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A implantação do Consultório na Rua na perspectiva do cuidado em saúde

RESUMO

Objetivo:

Relatar a experiência da implantação de um equipamento clínico de produção de cuidado em saúde à População em Situação de Rua, denominado Consultório na Rua.

Método:

Relato de experiência ocorrido no município do Rio de Janeiro, Brasil.

Resultado:

A implantação do Consultório na Rua partiu de uma demanda de práticas de cuidado em saúde para pessoas em situação de rua que se encontravam desabrigadas. Esta implantação contou com articulações intersetoriais, fazendo com que os profissionais de saúde, na realização de práticas de cuidado à População em Situação de Rua, fato que os levam a almejar por políticas públicas, repensassem suas ações para que ampliassem a resolutividade da assistência a essa população.

Conclusão:

Salienta-se a importância dos profissionais de saúde reinventar suas práticas, cotidianamente, buscando parcerias e aquisição de novos saberes a fim de lograrem resultados que possam minimizar as demandas destes indivíduos ao longo de suas trajetórias de vida.

Descritores:
Pessoas em Situação de Rua; Gestão em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Vulnerabilidade em Saúde; Assistência Integral à Saúde

ABSTRACT

Objective:

To report the experience of implementation of a clinical equipment of health care production to homeless people, denominated Street Outreach Office.

Method:

Experience report in the city of Rio de Janeiro, Brazil.

Results:

The Street Outreach Office implementation resulted from a demand for health care practices for homeless people. This implementation had intersectoral articulations, causing health professionals to carry out street care practices, which led them to strive for public policies, to rethink their actions in order to increase the resolution of care to this population.

Conclusion:

We should emphasize the importance of health professionals to reinvent their practices, daily, seeking partnerships and acquisition of new knowledge in order to achieve results that can reduce the demands of these individuals throughout their life routes.

Descriptors:
Homeless Persons; Health Management; Primary Health Care; Health Vulnerability; Comprehensive Health Care

RESUMEN

Objetivo:

Informar la experiencia de la implantación de un equipo clínico de producción de cuidado en salud a la población en situación de calle, denominado Consultorio en la Calle.

Método:

Relato de experiencia ocurrido en el municipio del Rio de Janeiro, Brasil.

Resultado:

La implantación del Consultorio en la Calle partió de una demanda de prácticas de cuidado en salud para personas en situación de calle que se encontraban abrigadas. Esta implantación contó con articulaciones intersectoriales, haciendo que los profesionales de salud, en la realización de prácticas de cuidado a la población en situación de calle, hecho que los llevan a anhelar por políticas públicas, repensaran sus acciones para que amplían la resolutividad de la asistencia a esa población.

Conclusión:

Se destaca la importancia de los profesionales de la salud reinventaren sus prácticas, cotidianamente, buscando alianzas y la adquisición de nuevos saberes a fin de lograr resultados que puedan minimizar las demandas de estos individuos a lo largo de sus trayectorias de vida.

Descriptores:
Personas sin Hogar; Gestión en Salud; Atención Primaria de Salud; Vulnerabilidad en Salud; Atención Integral de Salud

INTRODUÇÃO

A População em Situação de Rua (PSR) está, historicamente, inserida nas diferentes sociedades como um grupo de grande vulnerabilidade e, atualmente, protagoniza discussões e propostas de políticas públicas de saúde do Brasil. A definição de PSR aponta este grupo como heterogêneo, possuidor de diversos meios de sobrevivência em atividades produtivas desenvolvidas na rua, com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, sem referência de moradia regular(11 Brasil. Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, 24 dez. 2009.).

O sujeito que vive na rua é singular e deve ser contextualizado de acordo com o território o qual se insere. A complexidade das condições de vida e de saúde nos grandes centros urbanos é geradora de muitos desafios e são complexas as possibilidades para garantir a equidade e o direito à cidadania a estes grupos vulneráveis. Para isto, o processo de trabalho dos profissionais de saúde deve ser criativo, inovador, e singular às necessidades desta clientela(22 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultório na Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc Saúde Colet[Internet]. 2016[cited 2018 Apr 03];21(6):1839-48. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n6/1413-8123-csc-21-06-1839.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n6/1413-...
).

Assim sendo, a Política Nacional para a População em Situação de Rua(11 Brasil. Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, 24 dez. 2009.) possui como princípios: a igualdade, a equidade, a humanização, a universalidade, o direito à convivência social (familiar e comunitária), o reconhecimento da singularidade social, e o respeito à dignidade e à cidadania.

A articulação entre as políticas de saúde é essencial para a efetivação de práticas de saúde no acompanhamento à PSR. Dentre estas, destaca-se a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), cujas atividades estabelecidas nesta política são voltadas para ações, no âmbito individual, familiar e coletivo, e cujo foco centra-se nas ações de promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, redução de danos e manutenção da saúde, com o propósito de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades(33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.-44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.).

O atendimento a grupos vulneráveis, como a PSR, é um constante desafio para a prática dos profissionais de saúde que atuam na Atenção Básica. Imbuído pela necessidade de efetivação de ações de cuidado resolutivo que incluísse este grupo vulnerável, o Ministério da Saúde, em consonância com a PNAB e a Política Nacional para População em Situação de Rua, criou o equipamento clínico denominado Consultório na Rua (CnaR), com suas respectivas equipes de Consultório na Rua (eCnaR). O CnaR foi criado, desse modo, como um equipamento clínico que objetiva promover cuidados a PSR com diferentes problemas e necessidades de saúde, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas com as Unidades Básicas de Saúde(44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.).

Não obstante a isso, em 2010, foi criada, na cidade do Rio de Janeiro, uma Unidade Municipal de Reinserção Social (UMRS). Esta unidade é um equipamento social especializado no atendimento de adultos em situação de vulnerabilidade cujo propósito é atender às demandas da PSR. A construção desta unidade se deu na Área Programática 5.3 (AP 5.3) localizada na zona oeste do município.

Neste território, assim como em todo o município do Rio de Janeiro, é bastante comum encontrar pessoas que vivem em situação de rua. No entanto, com a implementação dessa unidade de abrigamento, ficou evidenciado o crescimento exponencial deste grupo no entorno da unidade de saúde, o que aponta para a necessidade de remodelação e criação de novas políticas públicas que contemplem as reais necessidades e, também, um plano efetivo de qualificação dos profissionais que atuam no cuidado direto a estes indivíduos.

Embora a política referente à PSR tenha em seu objetivo assegurar cuidados de saúde, os serviços assistenciais e de albergamentos, geralmente, não dispõem de recursos estruturais e humanos para o atendimento às necessidades sociais de saúde. Neste sentido, aponta-se como desafio a implantação de uma política intersetorial que possa contemplar as diversas áreas, como a habitação, a assistência social e a saúde(55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad Saúde Pública[Internet]. 2015[cited 2018 Mar 28];31(7):1497-504. Available from: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v31n7/0102-311X-csp-31-7-1497.pdf
http://www.scielosp.org/pdf/csp/v31n7/01...
). Tentando instituir esta articulação, foi criado, em 2013 na AP 5.3, o CnaR, com a proposta de reorganizar a Atenção à Saúde à PSR neste território.

OBJETIVO

Relatar a experiência sobre a implantação de um equipamento clínico de produção de cuidado em saúde à População em Situação de Rua, denominado Consultório na Rua.

MÉTODO

Estudo descritivo, do tipo relato de experiência, que descreve a trajetória de implantação de um equipamento de cuidado em saúde a PSR: Consultório na Rua (CnaR), na Área Programática 5.3, zona oeste do município do Rio de Janeiro, compreendendo os bairros de Santa Cruz, Sepetiba e Paciência. Esta experiência de implantação ocorreu no período de 2013 a 2014, a partir de profissionais envolvidos no apoio, coordenação e implantação do CnaR. O território atendido faz parte de um cenário de alta vulnerabilidade social, com características relacionados à pobreza e ao processo de exclusão social. Os três bairros ocupam as posições 147ª, 146ª e 144ª, respectivamente, do Índice de Desenvolvimento Social(66 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Urbanismo. Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Social - IDS: comparando as realidades microurbanas da cidade do Rio de Janeiro[Internet]. 2008[cited 2018 Sep 03]. Available from: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2394_%C3%8Dndice%20de%20Desenvolvimento%20Social_IDS.pdf
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudosca...
).

Este território possui, em sua história, uma elevação crescente da PSR e inúmeras ações de recolhimentos compulsórios pontuais, cujo retorno dos indivíduos às ruas ocorre de maneira célere e sem qualquer alteração nas condições de vida. Diante deste fato, enfatiza-se que o CnaR é uma criativa e importante estratégia de cuidado que somada às ações realizadas pelas unidades de saúde e as instituições de abrigamento existentes no território, produzem uma atenção diferenciada a esta população.

RESULTADOS

A experiência da implantação das práticas de cuidado no Consultório na Rua

Conhecer a PSR deste cenário foi o desafio inicial, no qual lançou-se como estratégia a observação direta e a posterior interação com esta população. Neste momento, era necessária a identificação da magnitude da PSR no território, da maneira como estes se relacionavam com os transeuntes e a forma como se organizavam nos espaços públicos.

O mapeamento realizado pela equipe da ESF foi, então, essencial para o reconhecimento da disposição desta população no território. A partir desta ação, entendeu-se que o território se configurava como espaço temporal e a migração geográfica não era constante, o que permitia a localização dos indivíduos para a concretização do cuidar em saúde. Entretanto, conceber a existência de um espaço físico permanente para alcançar a PSR é sempre desafiador e nem sempre eficaz, dada a cultura migratória que predomina nesta população.

A aproximação com a PSR foi uma questão de discussão coletiva dada a dificultosa interação destes indivíduos com as equipes de saúde, o que dificultava a construção do vínculo. Observou-se que, em sua maioria, estes indivíduos possuíam histórias de sofrimento, abandono, fragilização de vínculos familiares e violação de direitos sociais em decorrência de violência física ou psicológica.

Neste processo de construção dos vínculos, a aproximação se deu paulatinamente. Os indivíduos mais abertos à abordagem da equipe muitas vezes foram os que faziam a divulgação do trabalho e que traçavam as maneiras para a permanência nos locais onde viviam ou utilizavam como cena de uso de droga.

A prática de cuidar no espaço da rua deve incorporar os saberes, a experiência e a cultura das pessoas envolvidas neste processo e deve ser construída a partir de uma relação interpessoal baseada no vínculo, no acolhimento, no diálogo e na escuta qualificada. A escuta e o diálogo são habilidades próprias dos seres humanos e ferramentas essenciais para que o usuário seja atendido na perspectiva do cuidado integral, proporcionando o respeito à diversidade e à singularidade no encontro entre quem cuida e quem é cuidado(77 Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis - CNDDH. Relatório violações de direitos da população em situação de rua nos meses que antecedem a realização da copa do mundo[Internet]. 2014[cited 2018 Apr 03]. Available from: http://apublica.org/wp-content/uploads/2014/06/Viola%C3%A7%C3%B5es-Copa-do-Mundo-12-06-14-1.pdf
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).

A confiança e o vínculo entre a equipe de saúde e os usuários também foi construída gradualmente. Foi necessário demonstrar ao grupo atendido que os profissionais que circulam em seus locais de vivência não os estavam avaliando e nem objetivavam praticar remoções para abrigos. Eles se mostravam reticentes, sobretudo, pelo fato de já terem vivenciado um histórico de remoções compulsórias. A relação interpessoal pautada nas práticas diárias de cuidados com estes indivíduos foi essencial para a interação e estabelecimento de uma relação de confiança.

Com o vinculo instituído, era necessário desvendar os saberes relativos ao processo saúde-doença que orientam as trajetórias de vida. Deste modo, construiu-se um instrumento semiestruturado, baseado na ficha de cadastro da PSR que produziu um diagnóstico das condições de saúde desta população e, posteriormente, um retrato epidemiológico do território.

O perfil clínico epidemiológico do território apontava a prevalência de tuberculose, Infecções Sexuais Transmissíveis (IST - como HIV, sífilis e hepatites virais), doenças de pele, úlceras em membros inferiores, problemas psiquiátricos, e o uso abusivo de álcool e de outras drogas. Identificou-se, também, casos de abandono ao tratamento de doenças e agravos à saúde, o que suscitou questionamentos sobre a dimensão da complexidade do processo saúde-doença e como os habitantes das ruas e habitados por elas necessitam de privacidade, dignidade e de reconhecimento enquanto cidadãos. A Atenção à Saúde dessa população passa, necessariamente, pela compreensão da cultura de rua, na qual é preciso considerar algumas questões: Quem são essas pessoas? Como sobrevivem? Qual o sentido que atribuem à sua existência? Mediante este retrato, questiona-se como os órgãos públicos podem alcançar as questões relacionadas às demandas sociais relacionadas às trajetórias de vidas destes indivíduos.

Após a análise da situação de saúde, buscou-se produzir ações que potencializassem as propostas de cuidado do CnaR. Foi necessário ultrapassar muros, criar mecanismos para que o cuidado fosse concretizado nos espaços da própria rua, com consultas de psicologia, de enfermagem, médicas e de serviço social. Também sendo ofertados procedimentos, como realização de curativos, pré-natais, testagens rápidas para HIV, sífilis e hepatites virais, mensuração de glicose, aferição de pressão arterial, observação direta da tomada de medicamento para o tratamento da tuberculose e serviços de educação em saúde, entre outros.

Os atendimentos à PSR também se efetivaram em um outro espaço, denominado Centro Municipal de Saúde. Entretanto, observou-se que os atendimentos realizados não geraram resultados satisfatórios, pois a equipe trabalhava com a lógica de agendamentos prévios, o que distanciava estes indivíduos do processo de cuidado e os afastava das possibilidades terapêuticas no atendimento de suas demandas de saúde.

Observou-se que a permanência destes indivíduos na unidade gerava uma grande ansiedade relacionada, sobretudo, a preocupações relacionadas aos horários das refeições nas unidades de abrigamento, compromisso com fontes informais de renda e dificuldades de adaptação às normas sociais preconizadas pela equipe de saúde.

Deste modo, foi necessária uma modificação no processo de trabalho, pautando o acesso na demanda espontânea. Outra transformação realizada neste processo foi a implementação da orientação Secretaria Municipal de Saúde sobre a não obrigatoriedade de documentação original da PSR para os atendimentos de saúde, sendo necessário apenas um comunicado do gestor às unidades de referência.

Foi necessário que a eCnaR remodelasse sua forma de agir frente a esta situação, pois os saberes para o cuidado com a PSR foram reconstruídos e os conhecimentos que os profissionais traziam do modelo de Atenção Básica tradicional ou da experiência na Estratégia Saúde da Família foram aliados. Apesar de serem representativas, estas experiências prévias nem sempre se mostraram suficientes para atender a esta população em suas singularidades.

Além das dificuldades na instrumentalização do atendimento à saúde da PSR, observou-se a necessidade de intensificação de ações intersetoriais que pudessem contribuir para a resolutividade e integralidade das práticas realizadas pelos profissionais de saúde. Assim, em busca da consolidação de propostas que alcançassem a PSR, vários atores foram acionados para a busca de garantias dos direitos desta população, dentre eles: o Centro de Referência da Assistência Social (CREAS) e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).

O CREAS tem, entre outras atribuições, a oferta de serviços ao indivíduo em situação de ameaça ou violação de direitos(88 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS. 2011. Brasília: Ed Brasil.). A parceria entre o CREAS da localidade e a eCnaR se deu pela necessidade de articulação de ações de assistência social e saúde. Para a efetivação desta parceria, foram realizados encontros entre os profissionais das duas instituições com o propósito de discutirem e planejarem um processo de trabalho conjunto.

Uma grande preocupação da equipe de saúde com relação a parceria com o CREAS era a logística utilizada por estes profissionais para realização das ações de cuidado. O principal complicador devia-se ao uso de um tipo de transporte para locomoção de funcionários similar ao utilizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) para fins de recolhimentos compulsórios em diversas áreas da cidade.

Em relação à parceria com o DPRJ, esta surgiu tendo como base denúncias sobre a existência de gestantes em cenas de uso de drogas, apontando uma situação de extremo risco social cuja assistência à saúde era precária ou nula. Este fato suscitou encontros e discussões com diversos atores sociais, dentre eles, assistentes sociais e enfermeiros de um Hospital Municipal de Referência da localidade, psicólogos e agentes sociais do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, dentre outros que participaram desta rede de proteção à PSR da localidade.

É necessário salientar a importância das parcerias institucionais no êxito ao cuidado da PSR. Neste sentido, todas as Unidades de Atenção Básica de Saúde do território possuem papel relevante no processo de cuidado. Tais colaborações e parcerias devem ser estimuladas e sedimentadas pelas equipes. Assim sendo, inicialmente o trabalho se desenvolveu por meio de encontros pré-agendadas com os gestores das unidades para falar sobre o trabalho a ser realizado com esta população. Pensando nesta lógica, defendeu-se que se as unidades de saúde deveriam ser facilitadoras do cuidado e do acesso da PSR aos serviços de saúde atuando em conjunto com as eCnaR.

Trabalhar com uma população marcada pelo estigma social e pela exclusão das políticas públicas é uma atividade desafiadora. Assim, a trajetória de implantação de um equipamento clínico de produção de cuidados em saúde à PSR ficou marcada pelo envolvimento participativo dos equipamentos estatais e informais do território.

DISCUSSÃO

O cuidado à PSR é permeado de inúmeros desafios que variam desde a existência de dispositivos legais que garantam o acesso desta população aos serviços de saúde até a sensibilização da população e desconstrução do imaginário social a respeito destes indivíduos.

Diversas instituições governamentais ou não, de um mesmo território, possuem a assistência à PSR como característica do seu trabalho. Cabe então, o reconhecimento desta rede e a reflexão de que maneira os esforços podem ser somados para o desenvolvimento resolutivo do processo de trabalho.

Neste sentido, as equipes de saúde participantes no cuidado à PSR devem ser capazes de observar necessidades de saúde biológicas, psicológicas e sociais, auxiliando na ampliação da efetivação dos direitos a saúde a população de rua(99 Santana C. Consultórios de rua ou na rua? reflexões sobre políticas de abordagem à saúde da população de rua. Cad Saúde Pública[Internet]. 2014[cited 2018 Apr 01];30(8):1798-800. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n8/0102-311X-csp-30-8-1798.pdf
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).

Deve-se considerar novas formas de cuidado que superem o modelo biomédico, focado prioritariamente no componente biológico do adoecer. Isto implica na remodelação de alguns aspectos ligados ao cuidado, como a escuta e o processo terapêutico interdisciplinar, reconstruindo o trabalho proposto em manuais, estes considerados "normativos".

Neste cenário marcado pela invisibilidade da PSR, torna-se emergente discutir novas formas de intervenções que considerem as pessoas nas suas individualidades e que valorizem suas experiências e vivências(1010 Hwang SW, Burns T. Health interventions for people who are homeless. Lancet[Internet]. 2014[cited 2018 Apr 02];384:1541-7. Available from: http://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(14)61133-8.pdf
http://www.thelancet.com/pdfs/journals/l...
). A relação interpessoal constitui em um fator positivo, trazendo elementos importantes como o respeito mútuo, a sustentação da dignidade, a construção de confiança mútua e a demonstração de acolhimento durante todo o processo(99 Santana C. Consultórios de rua ou na rua? reflexões sobre políticas de abordagem à saúde da população de rua. Cad Saúde Pública[Internet]. 2014[cited 2018 Apr 01];30(8):1798-800. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n8/0102-311X-csp-30-8-1798.pdf
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).

A práxis das equipes de Saúde da Família já trabalha na lógica da intersetorialidade. A atenção multidimensional requer condições que ultrapassam as já contidas na maioria dos programas desenvolvidos. Desse modo, a atuação junto a esses sujeitos tem sido pensada numa lógica de redes de assistência que articulem diversos atores sociais.

Deve-se cultivar nestes profissionais o compromisso ético e em defesa da vida, com empatia e solidariedade aliados à competência clínica necessária para atuar com esta população de grande vulnerabilidade(22 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultório na Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc Saúde Colet[Internet]. 2016[cited 2018 Apr 03];21(6):1839-48. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n6/1413-8123-csc-21-06-1839.pdf
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).

É válido ressaltar que tais barreiras e necessidades são também identificadas no cuidado à PSR em outros países, como por exemplo, o Canadá. Barreiras ligadas ao acesso a medicações e serviços de saúde, entre outras variáveis, afetam a População em Situação de Rua. Neste sentido, é urgente a busca por meios de enfrentamento que transpassem os processos de trabalho tradicionais, construindo estratégias e serviços específicos à PSR, garantindo maior acesso aos serviços e garantindo assim maior efetividade(1111 Campbell DJT, O'Neill BG, Gibson K, Thurston WE. Primary healthcare needs and a barrier to care among Calgary's homeless populations. BMC Fam Pract[Internet]. 2015[cited 2018 Apr 02];16:139-49. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4603688/pdf/12875_2015_Article_361.pdf
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
).

Estudos e estratégias específicas para a população de rua também estão sendo desenvolvidas por pesquisadores de diversas universidades norte-americanas como de Birmingham, Pittsburgh, Boston, incluindo a Johns Hopkins University, de Baltimore. Estes pesquisadores construíram um instrumento de avaliação do cuidado à população de rua na Atenção Primária à Saúde, levantando aspectos importantes como acessibilidade, relacionamento entre profissionais e pacientes, como respeito, confiança e percepção de competência, satisfação do cuidado prestado, integração com outros serviços e continuidade do cuidado, constituindo assim, pontos importantes para organização do cuidado(1212 Kertesz SG, Pollio DE, Jones RN, Steward J, Stringfellow EJ, Gordon AJ, et al. Development of the Primary Care Quality-Homeless (PCQ-H) instrument: a practical survey of patients' experiences in primary care. Med Care[Internet]. 2014[cited 2018 May 28];52(8):734-42. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4620084/pdf/nihms608596.pdf
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
).

Outro estudo que comparou a estruturação de equipes móveis de atuação à população de rua traz também a abordagem das Equipes de Rua (ER), presentes em Portugal, como um meio de aproximação, acompanhamento e encaminhamento da PSR para os demais serviços da rede de saúde, a fim de oferecer cuidados básicos. Os autores apontam fatores comuns ao final da comparação das estratégias de atuação dos três países do estudo: Brasil, Estados Unidos e Portugal. Os países apresentam elementos essenciais que compõem intervenções positivas, como melhoria de acesso, estabelecimento de equipes multiprofissionais, busca ativa e assistência frente ao uso problemático de substâncias(1313 Borysow IC, Conill EM, Furtado JP. Health care of people in homelessness: a comparative study of mobile units in Portugal, United States and Brazil. Ciênc Saúde Colet[Internet]. 2017[cited 2018 Jun 02];22(3):879-90. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n3/en_1413-8123-csc-22-03-0879.pdf
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). Deve-se, a partir destas experiências nacionais e internacionais, buscar uma discussão sobre estratégias positivas para promover maior acesso aos serviços e maior integralidade do cuidado à População em Situação de Rua.

Limitações do estudo

O estudo limitou-se a trabalhar somente com o relato da experiência sobre a implantação de um equipamento clínico de produção de cuidados em saúde, localizado em uma área no Rio de Janeiro, trazendo elementos relacionados a este território.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Acredita-se que este estudo possa contribuir para ampliar o debate sobre o tema enquanto instrumento de conhecimento para enfermeiros e demais profissionais de saúde, possibilitando a visibilidade da PSR. A relevância desta discussão passa pela promoção de ações e debates sobre as formas de cuidado a esta população e os elementos essenciais para sua construção, no sentido de contribuir para formulação de políticas públicas que possam atender todas as necessidades desta população.

CONCLUSÃO

A implantação de políticas de atenção à saúde à PSR baseadas nos modelos propostos pelas estratégias da eCnaR traz desafios para os profissionais de saúde e gestores, dada à complexidade de atender às demandas sociais e biológicas que acompanham este grupo social. Além disso, a invisibilidade social destes indivíduos é observada também na inoperância das políticas públicas.

Buscou-se relatar as práticas desenvolvidas para consolidação da modalidade CnaR de acompanhamento das questões de saúde para a PSR em um território de alta vulnerabilidade social onde faz-se necessário rever a lógica das ações dos profissionais da Atenção Básica à Saúde em decorrência do crescente número de PSR.

É necessário que haja esforços conjuntos para que a consolidação do trabalho com estes sujeitos não seja pautado em esforços individuais, pois se torna infrutífero alcançar os resultados que respondam não somente aos problemas de saúde desta população, como vários, outros problemas de dimensão cultural, política e econômica que se configuram no cotidiano em banalização da vida da PSR, que muitas vezes se configura em ações sanitárias de caráter higienista e punitiva que os afastam dos profissionais de saúde e dos serviços de saúde.

Na experiência da implantação do trabalho da eCnaR, ficou demonstrado que é importante que os profissionais que atuam nestas equipes (re)inventem suas práticas de cuidado e, deste modo, estranhem os estereótipos, se transformando a cada dia para assim construir uma base de trabalho agregadora, e estranhando protocolos rígidos e pré-estabelecidos.

Ademais, cabe mencionar que a implementação do CnaR na AP 5.3 trouxe benefícios não só para a PSR, como também para os profissionais que atuam na Atenção Básica do território. Estes profissionais passaram a compreender o fenômeno do viver em situação de rua com toda sua dinâmica e cultura própria.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2017
  • Aceito
    14 Jun 2018
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