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O enfermeiro e a construção da autonomia profissional no processo de cuidar

The nurse and the construction of professional autonomy in the care process

El enfermero y la construción de autonomía profesional en el proceso de cuidar

Resumos

Este artigo analisa alguns fatores que interferem na qualidade da prática de enfermagem, principalmente no que diz respeito ao agir do profissional enfermeiro no processo de cuidar. Traz uma reflexão crítica deste agir, baseada na suposição de que o processo de cuidar consiste na essência do trabalho em enfermagem. A autonomia profissional do enfermeiro é considerada como uma importante questão que deve ser renovada por um novo paradigma científico, que leve em consideração o aspecto humano do cuidado à saúde. Baseado em uma abordagem qualitativa, algumas questões importantes do processo de trabalho desenvolvido em um hospital público universitário são consideradas. O artigo conclui propondo uma nova atitude, mais comprometida com a produção de saúde e com a sua dimensão social.

Enfermagem prática; Processos de enfermagem; Prática profissional; Autonomia profissional


This article analyses some factors that interfere in the quality of nursing practice, focusing, particularly on the professional nursing practice. It brings about a critical approach of this acting, based on the assumption that the care process is the essence of the nursing work. The nurse's professional autonomy is considered as an important issue to be renewed by a new scientific paradigm, that takes into consideration the humanistic side of health care. Based on a qualitative approach, some important issues are considered, related to the labor process in an universitary public hospital. The article concludes by proposing a new attitude, which can be both more committed to the production of health and more connected to a social dimension.

Nursing, practical; Nursing process; Professional practice; Professional autonomy


Este artículo busca identificar y analizar factores que interfieren en la cualidad de la práctica de enfermería, principalmente con relación a la actuación del profesional enfermero en el proceso de cuidar. Trae una reflexión critica con respecto de esta actuación, consubstanciado en el acto de cuidar, la esencia de la enfermería. La autonomía profesional del enfermero es considerada una importante cuestión que debe ser renovada por un nuevo paradigma científico que lleva en consideración el aspecto humaño del cuidado de la salud. A partir de un abordaje cualitativo, son abordados los aspectos importantes del proceso de trabajo en un hospital publico universitario. El artículo fecha proponendo una nueva actitud científica que posa ser más comprometida con la producción de salud y más conectada con la dimensión social.

Enfermería práctica; Procesos de enfermería; Práctica profesional; Autonomía profesional


REFLEXÃO

O enfermeiro e a construção da autonomia profissional no processo de cuidar

The nurse and the construction of professional autonomy in the care process

El enfermero y la construción de autonomía profesional en el proceso de cuidar

Flora Marta Giglio BuenoI; Marcos de Souza QueirozII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Ouvidora do Hospital de Clínicas da UNICAMP

IIAntropólogo. Doutor em Sociologia pela Universidade de Manchester, Inglaterra. Pesquisador do Centro de Memória da UNICAMP. Professor credenciado da Pós-Graduação em Enfermagem da FCM/UNICAMP

RESUMO

Este artigo analisa alguns fatores que interferem na qualidade da prática de enfermagem, principalmente no que diz respeito ao agir do profissional enfermeiro no processo de cuidar. Traz uma reflexão crítica deste agir, baseada na suposição de que o processo de cuidar consiste na essência do trabalho em enfermagem. A autonomia profissional do enfermeiro é considerada como uma importante questão que deve ser renovada por um novo paradigma científico, que leve em consideração o aspecto humano do cuidado à saúde. Baseado em uma abordagem qualitativa, algumas questões importantes do processo de trabalho desenvolvido em um hospital público universitário são consideradas. O artigo conclui propondo uma nova atitude, mais comprometida com a produção de saúde e com a sua dimensão social.

Descritores: Enfermagem prática; Processos de enfermagem; Prática profissional; Autonomia profissional.

ABSTRACT

This article analyses some factors that interfere in the quality of nursing practice, focusing, particularly on the professional nursing practice. It brings about a critical approach of this acting, based on the assumption that the care process is the essence of the nursing work. The nurse's professional autonomy is considered as an important issue to be renewed by a new scientific paradigm, that takes into consideration the humanistic side of health care. Based on a qualitative approach, some important issues are considered, related to the labor process in an universitary public hospital. The article concludes by proposing a new attitude, which can be both more committed to the production of health and more connected to a social dimension.

Descriptors: Nursing, practical, Nursing process; Professional practice; Professional autonomy.

RESUMEN

Este artículo busca identificar y analizar factores que interfieren en la cualidad de la práctica de enfermería, principalmente con relación a la actuación del profesional enfermero en el proceso de cuidar. Trae una reflexión critica con respecto de esta actuación, consubstanciado en el acto de cuidar, la esencia de la enfermería. La autonomía profesional del enfermero es considerada una importante cuestión que debe ser renovada por un nuevo paradigma científico que lleva en consideración el aspecto humaño del cuidado de la salud. A partir de un abordaje cualitativo, son abordados los aspectos importantes del proceso de trabajo en un hospital publico universitario. El artículo fecha proponendo una nueva actitud científica que posa ser más comprometida con la producción de salud y más conectada con la dimensión social.

Descriptores: Enfermería práctica; Procesos de enfermería; Práctica profesional; Autonomía profesional.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo estudar, sob um ponto de vista sociológico, a profissão de enfermagem a partir de questionários e entrevistas realizadas com 59 enfermeiros assistenciais, de unidades de internação, unidades ambulatoriais e de pronto-socorro, que atuam com vínculo empregatício no Hospital de Clínicas da UNICAMP (HC-Unicamp). O método utilizado foi essencialmente qualitativo, ainda que tenha sido utilizado estatística no tratamento dos dados. O período de coleta foi de junho a dezembro/2001.

O HC-Unicamp, um hospital público estadual universitário da cidade de Campinas é um hospital geral especializado, considerado um centro de excelência médica, de complexidade terciária, de referência para o SUS Sistema Único de Saúde, de nível regional, porém presta atendimento a outras regiões adjacentes e a outros Estados. A pesquisa de campo efetuou-se após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da FCM/UNICAMP e anuência da Superintendência e Diretoria do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da UNICAMP .

O objetivo maior desse estudo é, a partir de uma pesquisa empírica, qualitativa e exploratória, contribuir para o desenvolvimento de um campo de estudos que apenas recentemente tem despertado algum interesse entre pesquisadores brasileiros, que é o campo da sociologia das profissões, em geral, e da enfermagem, em particular. Trata-se de um âmbito complexo que, para se consolidar dentro das Ciências Sociais, além de pesquisas empíricas adicionais, exigirá uma considerável concentração de esforços para resolver suas principais questões de ordem teórica.

O estudo sociológico das profissões na área da saúde tem contemplado principalmente a Medicina, que contempla alguns clássicos como, por exemplo, a obra de Freidson(1). Para este autor, uma profissão distingue-se em relação a outras ocupações menores no que se refere à autonomia organizada e legitimada em seu poder. Tal autonomia confere à profissão um monopólio ocupacional que assegura uma posição de dominância no interior de um processo de divisão de trabalho. Esta autonomia é, para ele, baseada em dois princípios fundamentais: o conhecimento teórico reconhecido e protegido pelo Estado e o apoio das elites.

Apesar de procurar as causas da organização médica na estrutura social, Freidson(1) não chega a tocar em questões cruciais, tais como, a natureza das elites por ele mencionada, o relacionamento da profissão com o Estado, e os interesses econômicos, sociais e políticos que sus-tentam o apoio dado pelo Estado. Este lapso deixou uma margem generosa para a crítica desenvolvida principalmente por autores marxistas. A grande virtude de Friedson foi a sua descrição e análise interna à profissão médica, dando uma contribuição decisiva para a dimensionalização desse campo de estudos.

A produção marxista moderna na área da saúde é importante principalmente pelo seu esforço de prover uma teoria que estabeleça uma conexão desta área com a sociedade mais ampla. Com este propósito, Wright(2) situa a profissão médica dentro da estrutura de classe da sociedade capitalista. Ao enfatizar esse ponto, este autor critica vários estudos realizados sobre a divisão do trabalho na área da saúde que, por não se preocuparem com esse aspecto, confundem ocupações com classes.

Johnson(3), enfatiza que, no capitalismo monopolista, o capital é transformado em processo de trabalho através de mecanismos comple-xos de controle produtivo. Os agentes que preenchem as funções da acumulação de capital podem ser identificados como parte da nova classe média, na medida em que ela expressa tanto a função e realização do capital como a de trabalho. As várias ocupações na área da saúde hierarquicamente subordinadas aos médicos têm pouca autonomia na performance de seu trabalho e podem ser identificadas como parte da classe proletária, independentemente da condição de ser produtiva ou não. Este autor analisa ainda a reprodução do sistema produtivo nas esferas política e ideológica empreendida principalmente pelo Estado e pelas "profissões" (envolvendo as áreas da saúde, educação, ciência e tecnologia). Portanto, a reprodução do sistema produtivo, principalmente no que diz respeito à reprodução da força de trabalho provê a base teórica para a autonomia da medicina e seu papel dominante no processo de trabalho na área da saúde.

Willis(4) enfatiza esse ponto, salientando que a base fundamental para a autonomia da profissão médica deve ser explicada basicamente pelo relacionamento da profissão médica com o Estado. Nesse caso, o papel do médico resume-se em ser capaz de estruturar e organizar o processo de trabalho na saúde, sendo que este direito corresponde à contra-partida concedida pelo Estado para que a medicina continue exercendo o seu importante papel no controle da força de trabalho e na reprodução de valores fundamentais para a manutenção do sistema produtivo como, por exemplo, a visão individualista da doença e da cura e as soluções baseadas em tecnologia industrial.

Portanto, a profissão médica assume, na visão deste autor, um monopólio de geração de definições, de práticas e de serviços na medida em que estes coincidem com o interesse oficial. A medicina torna-se, assim, uma instituição importante de manutenção da ordem e de controle social.

Analisando as ocupações e profissões diante da organização capitalista de produção, Braverman(5) conclui que a perda da autonomia no processo produtivo é uma tendência que atinge todas as ocupações e profissões, inclusive a do médico. Segundo o seu ponto de vista, haveria uma tendência histórica implacável segundo a qual a autonomia e a dignidade das profissões seria perdida e a degradação viria na medida em que o capitalismo se desenvolve em estágios mais complexos e sofisticados de dominação.

2. A ENFERMAGEM E A QUESTÃO DA AUTONOMIA

O tema da autonomia do profissional enfermeiro no processo de cuidar no contexto hospitalar torna-se a cada dia mais importante uma vez que proporciona a possibilidade de rever a enfermagem, enquanto profissão, a partir de sua própria tradição histórica, bem como articulando-a com outras áreas científicas, em um exercício moderno de interdisciplinaridade.

O processo de autonomia pressupõe que o profissional enfermeiro e a equipe de enfermagem possam interferir no processo de definição das prioridades na assistência. A autonomia está embasada na direção da vontade do indivíduo para a ação, a partir de influências sociais e culturais(6).

Neste estudo, optamos por realizar uma reflexão crítica sobre o tema, propondo um questionamento sobre o senso comum do agir do profissional enfermeiro, qual seja, sua visão de mundo e, a partir daí, analisar se o profissional admite ser necessário haver mudanças em seu processo de trabalho e se a proposição que se faz sobre sua autonomia na ação cuidadora é viável ou pertinente.

O trabalho em saúde tem características próprias que inclui um conjunto de saberes e de práticas com a finalidade de realizar uma intervenção sobre um determinado problema de saúde , conforme os critérios adotados pelo modelo de atenção do serviço, considerando-o como um objeto de ação de saúde(7). O processo de trabalho em saúde, em geral, e de enfermagem, em particular, pressupõe uma divisão de trabalho baseado nos princípios tayloristas, que tem como finalidade a ação terapêutica; como objeto, o indivíduo que precisa de cuidado; como instrumental, o saber corporificado nas técnicas e nas metodologias assistenciais e, como produto final ,um serviço de saúde prestado.

Em tal contexto, ao profissional enfermeiro cabe o trabalho intelectual e ao técnico de enfermagem, o trabalho manual, incluindo aqui, na maior parte das vezes, a ação efetiva voltada ao indivíduo. Essa divisão de trabalho, além de acarretar conflitos internos, reflete-se negativamente na assistência que se presta ao paciente, bem como interfere na autonomia do profissional enfermeiro, uma vez que, freqüentemente, o afasta de sua ação cuidadora direta, minimizando o seu potencial de ação nesse processo.

Sob a ótica de Foucault(8), que faz uma análise histórica do poder como meio capaz de explicar a produção do saber, a enfermagem se disciplina por meio de um regime de ordem (a divisão interna de seu processo de trabalho), relacionada ao espaço medicalizado, o hospital, atrelado ao contexto histórico-econômico em que ocorre a disciplinarização do corpo da enfermagem. Tal situação está associada ao próprio desenvolvimento do capitalismo moderno no setor saúde, em que ocorre uma ruptura entre saúde e medicina, corpo e mente, eu e o outro, pessoa e contexto, relações econômicas e comunitáriasemum processo de intensa burocratização e desencanto, reflexo da hegemonia do paradigma mecanicista/cartesiano/positivista(9).

O termo paradigma é aqui utilizado de acordo com a definição de Khun(10), para quem a "ciência normal" não teria por finalidade produzir conhecimento novo mas apenas concentrar suas investigações no óbvio determinado pelo paradigma científico dominante, um mapa social e historicamente forjado, que governa a percepção dos cientistas em uma determinada época. Assim, o desenvolvimento real da ciência (não apenas a expansão interna do paradigma) ocorre apenas em circuns-tâncias raras e especiais, quando o paradigma (que dê conta da realidade que não poderia ser compreendida pelo paradigma anterior) é proposto.

É sabido que a medicina científica ocidental, após a Segunda Guerra Mundial, avançou sobremaneira na área tecnológica, reforçando cada vez mais intensamente o paradigma mecanicista dominante. Tal fato possibilitou uma sintonia ainda maior com o sistema produtivo na medida em que aumentou significativamente o seu poder de intervenção no corpo humano a fim de moldá-lo às necessidades da produção. Neste sentido, percorre um processo de intensa acumulacão de capital(9).

A enfermagem, bem como a grande maioria das demais áreas relacionadas com a saúde, acompanhou esta tendência. No interior de um paradigma mecanicista cada vez mais forte, a ênfase recai, cada vez mais intensamente, na intervenção técnica, sem vistas às questões de ordem emocional, coletiva e educacional. A visão de ser humano, nesta perspectiva, "perde a sua integridade e consciência social e cultural de si mesmo e se torna um objeto de manipulação"(9).

Tal desvalorização do cuidado insere-se em um processo de alienação e perda de autonomia, uma vez que o cuidado constitui, historicamente, a essência da prática de enfermagem(11). A tentativa de resgatar o papel de cuidar na enfermagem significa, portanto, recuperar ou reconstruir a autonomia profissional da enfermagem.

Cuidar, neste contexto, é um processo, é a maneira de demonstrar o saber-fazer, pois requer um conhecimento que qualifica o trabalho do enfermeiro(12).

O processo de cuidar e o cuidado ao paciente é uma área específica da enfermagem que, como vimos, faz parte de um conjunto de ações que são pouco valorizadas em contexto hospitalar, sendo executadas principalmente pelo técnico e/ou auxiliar de enfermagem. Em tal contexto, a enfermagem só poderá adquirir plena autonomia quando o cuidado passar a ser visto como uma esfera privilegiada na área da saúde, tanto do ponto de vista científico como prático. É evidente que tal apropriação extrapola a vontade individual do enfermeiro ou mesmo a vontade coletiva da profissão enquanto classe. Somente uma mudança de paradigma científico, poderá conferir ênfase ao cuidado, juntamente com o aspecto humano da medicina.

A crise do paradigma mecanicista da medicina, como descrito por Queiroz(9), revela a possibilidade de construção de um novo paradigma, no interior do qual uma nova configuração da saúde, doença e terapêutica emerge com um sentido mais humano. Uma vez que a história abre a possibilidade de se construir uma ciência que perceba o fenômeno saúde nesses termos, sem perder de vista as suas conquistas na área tecnológica, é importante que tal possibilidade seja logo assumida e liderada pela profissão de enfermagem. Outras profissões da saúde, com menos tradição, certamente poderão aproveitar esta oportunidade e promover este tipo de demanda que é, ao mesmo tempo, científica e social.

A enfermagem, como área de saber e de prática organizada no interior de um paradigma mecanicista hospitalocêntrico, está sendo contestada internamente, ainda que timidamente, pelos próprios profis-sionais de enfermagem(13). Neste sentido, o profissional enfermeiro está rompendo com a imagem de um profissional devoto e obediente, atrelado tanto a uma concepção religiosa do cuidado como de um paradigma que promove exclusivamente a intervenção técnica voltada a um paciente percebido meramente como uma máquina. Este rompimento, ao mesmo tempo que enseja uma crise no paradigma hegemônico, permite um início de revolução científica e, conseqüentemente, a construção de um paradigma mais amplo na área da saúde.

3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Este estudo utiliza uma abordagem essencialmente qualitativa, ainda que tenham sido utilizadas quantificações numéricas e tabelas. O HC-Unicamp contava com 282 enfermeiros, incluindo gerentes e assistenciais, excluindo enfermeiros lotados em serviços de apoio, tais como Comissão de infecção hospitalar, Serviços Gerais (higiene e limpeza, portaria e recepção, lavanderia, suprimentos e outros). Foram estudados enfermeiros atuantes nas seguintes áreas: Ambulatório de Especialidades, Unidades de Internação (Adulto e Infantil), Unidades de Terapia Intensiva (Aadulto e Infantil), Unidade de Retaguarda de Emergência e Cirurgia do Trauma e Unidade de Emergência Referenciada (Pronto Socorro).

A população total de enfermeiros assistenciais nessas unidades era de 172, representando os turnos matutino, vespertino e noturno, tendo como referência a escala do mês de março de 2001.

O critério utilizado para a escolha das unidades foi que as mesmas deveriam constituír-se de enfermeiros assistenciais responsáveis pelo cuidado de enfermagem a pacientes com necessidades de assistência intensiva, semi-intensiva, cuidados intermediários e mínimos.

Para determinar o tamanho amostral de proporção para uma população finita de 172 enfermeiros, baseou-se em critérios estatísticos definidos com apoio da Comissão de Pesquisa e Estatística da Faculdade de Ciências Médicas FCM da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Para tanto, realizou-se um estudo prévio, em um pré teste com dez enfermeiros, a partir da definição do conteúdo do questionário aplicado. Das questões a serem respondidas, escolheu-se uma relacionada ao "grau de autonomia", considerando-a como a questão central do estudo e, a partir de um cálculo amostral, que considerou a probabilidade de resposta afirmativa à questão em 70%, admitindo-se um erro amostral de 10% e um nível de significância de 5%, fixou-se a população alvo em 59 sujeitos.

Dessa amostra, foram selecionados 3 enfermeiros para a realização de entrevistas; número este que se mostrou suficiente pelo critério de saturação das informações obtidas. Optou-se por selecionar um enfermeiro de cada turno e de áreas diferentes.

As entrevistas foram realizadas durante os meses novembro e dezembro de 2001, uma delas realizada na residência de um dos sujeitos, conforme seu interesse e as duas restantes no próprio hospital, em seus respectivos horários de trabalho. O roteiro das entrevistas centrou-se na experiência de trabalho do profissional, tendo algumas perguntas a respeito dessa experiência como o elemento que estimulava o desenrolar da entrevista. A partir disso, o roteiro foi aberto, levando em conta o interesse e a motivação do entrevistado com relação a determinadas questões.

O enfoque centrado no conceito de representações sociais, a partir do conceito desenvolvido por Moscovici(14), que informa teórica e metodologicamente a pesquisa, significa uma abordagem compreensiva que percebe o ator social como um agente que interpreta o mundo à sua volta com uma atitude que contém intenções e, portanto, projetos de ação. Neste contexto, a dimensão qualitativa da pesquisa privilegia a profundidade das informações, em detrimento da sua extensão.

Após cada entrevista, na tradição da pesquisa etnográfica, foi realizado um relatório que informavam aspectos emocionais não verbais emitidos pelo entrevistado e os sentidos gerais e conexões teóricas que a entrevista remetia. Após a transcrição de cada entrevista, procedeu-se a várias leituras, com o propósito de encontrar unidades de significados, ou núcleos de sentido que informaram o conteúdo de análise, de acordo com os procedimentos apropriados para uma pesquisa qualitativa descritos por Denzin & Lincoln(15) e Bardin(16). Neste contexto, a unidade de significação liberta-se naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia.

4. RESULTADOS

Na população estudada, a média de idade é de 37,3 anos. Em relação à formação educacional, 79,4% tiveram sua formação em universidades privadas, contra 20,6% em universidades públicas. Desses profissionais, 38,9% têm pós-graduação.

Em relação às atividades que os enfermeiros consideram como mais específicas da profissão, o quadro 1 mostra que a alternativa "coordenação de equipe" foi a mais freqüente, tanto como primeira (27,1%) como segunda resposta (20,3%). Nota-se que a resposta "cuidados diretos" e "prescrição de enfermagem", que, aparentemente, seriam atividades inerentes e prioritárias, só aparecem com maior freqüência como terceiras respostas (17,8% cada uma delas). No entanto, se as alternativas "prescrição de enfermagem" e "consulta de enfermagem" forem consideradas como uma unidade, ela tornar-se-ia a mais freqüente.


Como podemos observar no quadroa 2, 56,9% dos enfermeiros entrevistados, em sintonia com a visão da equipe de saúde, consideram o gerenciamento da assistência como a atividade mais importante que caracteriza a autonomia da profissão de enfermagem. Este dado indica que as atividades administrativas têm um significado muito importante no cotidiano do enfermeiro. A responsabilização pelo cuidado está presente como atividade autônoma, porém, não é considerada prioritária.


Uma das perguntas formuladas no questionário diz respeito ao fato de ter havido alguma intervenção, por parte do enfermeiro, de caráter inovador, que tenha provocado algum tipo de mudança na instituição. A grande maioria das respostas a tal questão (79,7%) foi negativa. Uma outra questão perguntava se o entrevistado participou alguma vez de algum tipo de representação de classe. Os dados obtidos também foram negativos de um modo ainda mais expressivo (95,0%).

Na abordagem referente ao conhecimento desses profissionais em relação à concepção teórica e as diretrizes básicas voltadas à saúde e preconizadas pela Organização Mundial da Saúde OMS, obtivemos que 70,2% não conhecem as recomendações da OMS em relação ao cuidado à saúde.

Uma outra questão indagava se o enfermeiro considerava o seu trabalho reconhecido pela instituição e, como resposta, obtivemos que 88,14% deles consideram bom e regular o reconhecimento dado pela instituição em relação ao seu exercício profissional. Nesse sentido, os enfermeiros deste estudo reconhecem-se como profissionais importantes no Hospital das Clínicas da Unicamp, embora 37,3% reconhecerem ser necessário ampliar o nível de conhecimento, inclusive para justificar um grau maior de autonomia.

A maioria (63,8%) dos representantes dessa amostra considera que exerce a sua função profissional com autonomia, enquanto que 13,8% não consideram ter autonomia em suas funções. Em relação ao grau de autonomia, entre os que consideraram que exercem a sua função com autonomia, 54,2% avaliaram ter pouca autonomia, contra 44,1% que avaliaram ter muita ou suficiente autonomia.

4.1 Apresentação e análise dos dados obtidos através das entrevistas

O conteúdo dos dados coletados nas entrevistas foram agrupados em várias categorias, porém enfatizaremos algumas delas que conside-ramos pertinentes ao enfoque deste artigo:

Qualificação do saber na enfermagem.

Os dados obtidos através de entrevista confirmam que o profissional enfermeiro atua de forma acrítica e passiva, correspondendo, na maioria das vezes, aos objetivos controladores da instituição. Enquanto uma parte significativa deles tem como objetivo ampliar seus conhecimentos, a rigidez organizacional torna, muitas vezes, tais objetivos inacessíveis, uma vez que a procura por conhecimentos voltados ao cuidado nem sempre se mostram coerentes com a prática desenvolvida na estrutura hospitalar dominante.

Esse aspecto explica a pouca expressividade do fato anteriormente mencionado relativo a algum tipo de intervenção, por parte do entrevistado, de caráter inovador, que tenha provocado algum tipo de mudança na instituição. O trecho de entrevista abaixo expressa bem o fato de que o dia-a-dia da instituição hospitalar consome grande parta do trabalho do enfermeiro, deixando muito pouca margem para o exercício de um trabalho criativo.

"acho que o enfermeiro, acaba por fazer uma porção de coisas que a instituição lhe delega (...) tudo aquilo que ninguém sabe a quem cabe, acaba 'sobrando' para o enfermeiro (...) são tarefas simples que não exigem formação especial e que poderiam estar sendo delegadas a alguém com menor qualificação, são, ainda, cobradas do enfermeiro(...) o enfermeiro deveria ficar liberado de tudo isso, para que ele pudesse ocupar-se do cuidado". (S1)

Esse desvio da ação cuidadora, além de traduzir a perda da autonomia no plano do saber em relação à pessoa em cuidado e à equipe de enfermagem, é inteiramente consistente com o paradigma mecanicista hegemônico no contexto de um hospital moderno. Este paradigma prevê a subutilização dos profissionais enfermeiros ao nãoreconhecer a importância do cuidado e, ao mesmo tempo, desvia a função desses profissionais para atividades administrativas e burocráticas. Apesar de reconhecerem que realizam atividades inespecíficas ao seu papel profissional, as nossas entrevistas revelam uma atitude passiva diante do problema.

Atitude para Mudança e Autonomia

Vimos anteriormente que 37,3% dos entrevistados consideram que precisam melhorar seu nível de atuação. As atividades de educação continuada nas instituições de saúde têm um papel extremamente importante, porque permitem não só que o conhecimento seja atualizado e outras experiências revistas. No entanto, o que acontece em muitas instituições hospitalares, inclusive o HC-Unicamp, é limitar as atividades da educação continuada para interesses mais próprios da instituição, principalmente os tecnológicos e regimentais. Temos aqui um exemplo do que Khun(10) denominara como uma prerrogativa do campo científico (e tecnológico) normal, onde não cabe a criatividade e inovação, mas meramente a extensão do paradigma dominante.

A ênfase dada pelo HC-Unicamp a cursos de extensão que apenas introduzem ou reforçam um viés tecnológico, assim como a ausência de um espaço institucional para que novas experiências e alternativas possam ser discutidas e partilhadas, tornam o ato criativo do profissional um empreendimento muito difícil. Esta condição limita consideravelmente a autonomia profissional do enfermeiro. O trecho de entrevista abaixo expressa bem esta questão.

"Eu posso mudar dentro de minha prática, no meu setor de trabalho, implantando novas medidas, mas não depende só de mim, eu dependo da administração do hospital e não só dessa administração, mas muito e principalmente da administração de enfermagem, de como essa administração vê o papel do enfermeiro (...) só a partir dessa sintonia a mudança seria possível".(S3)

No que diz respeito à questão da autonomia, houve um consenso absoluto entre os entrevistados no sentido de que ela só é possível para o enfermeiro quando este se concentra em atividades que ele realmente domina. Nesse sentido, uma vez que o cuidado ao paciente é considerado a área de competência própria do enfermeiro, é principalmente neste contexto onde ele pode efetivamente exercer a sua autonomia. Os trechos de entrevistas abaixo mostram bem este aspecto.

"Se a pessoa tem conhecimento, habilidade para fazer determinadas coisas, automaticamente, ela vai ter autonomia. Ela passa isso para as pessoas que estão perto dela e a sua autonomia é reconhecida tanto pelo paciente quanto pelo docente médico. Todos vão saber que você domina o que está fazendo ou falando." ( S2)

"Eu coloquei duas respostas exatamente pelo seguinte: eu exerço autonomia em relação ao cuidado que eu presto aos pacientes; tendo segurança e conhecimento para isso. Não considero ter autonomia nas questões administrativas e em algumas atividades burocráticas, pois muita coisa não depende de mim e sim da administração de instituição..." (S3)

É interessante notar que, nessas representações, a atividade que mais ocupa as atividades do enfermeiro, a burocrático-administrativa, não é considerada uma atividade que constitui a essência do trabalho de enfermagem e à qual ele possa exercer plena autonomia.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu uma reflexão sobre a prática do profissional enfermeiro e, conseqüentemente, da equipe de enfermagem, trazendo à tona alguns meios para a construção da autonomia profissional através do processo de cuidar. Sob este aspecto, o referencial teórico proporcionou um olhar crítico para a prática atual do profissional enfermeiro, instigando-o a compreender que o espaço do cuidado lhe é dado por um direito histórico. Para legitimar tal espaço seria preciso mudar, transformar, reorganizar e reconstruir a prática de enfermagem.

A análise e interpretação dos dados iluminam as limitações da autonomia da enfermagem em contexto hospitalar, onde se verifica uma forte hegemonia do paradigma mecanicista. Tais limitações ocorrem, principalmente, através do processo de trabalho caracterizado pela tecnificação dos procedimentos médicos e da pouca importância conferida aos aspectos simbólicos (emocionais e sócio-culturais) do processo da doença e da cura.

Na pesquisa, foi evidenciado que 56,9% dos enfermeiros consideraram que, em seu cotidiano profissional, as atividades autônomas prioritárias consistiam de atividades relacionadas com o gerenciamento assistêncial. O interessante é que 63,8% da amostra consideraram exercer atividades com autonomia, porém quanto ao grau desta autono-mia, 54% consideraram-se com apenas alguma, sendo esta uma atribuição dada pela instituição, que não leva em conta o cuidado como um aspecto essencial das atividades de enfermagem.

A enfermagem é, ainda, bastante submissa à hierarquia hospitalar, ao paradigma mecanicista (que organiza esta hierarquia) e ao modo de produção capitalista (que forja e reforça este paradigma). A conseqüência mais importante dessa submissão (que traz em seu bojo a desvalorização tanto do cuidar como do papel educativo do enfermeiro) valoriza a competência técnica, porém restringe a institucionalização da autonomia do saber da enfermagem, que é relacionado à ampla dimensão do processo de cuidar.

O paradigma mecanicista, que organiza as atividades hospitalares, exclui a possibilidade de perceber o ser humano como um agente complexo, integrado em um meio sócio-cultural. A hegemonia deste paradigma, atualmente, está sendo questionada em várias instâncias, inclusive no hospital. Tal questionamento está propiciando a inovação, a re(construção), a re(organização) dos processos de trabalho em saúde(17). Dessa forma, a reprodução de saberes, das estruturas prontas estão sendo questionadas diante da possibilidade de ampliar as perspectivas dos profissionais, principalmente através do trabalho interdisciplinar, no qual se disponibiliza o agir comunicativo e, conseqüentemente, o exercício da liberdade, em favor de uma assistência adequada e ética ao ser em cuidado.

É evidente que o diagnóstico, a terapêutica, a tecnologia são importantes, porém, o processo de cuidar e de cuidado poderia ser para o profissional enfermeiro, seu enfoque principal, que corresponde ao espaço de sua autonomia. Tendo seu saber fundamentado cientificamente numa perspectiva interdisciplinar, que inclui tanto as ciências biológicas como as humanas, permitirá ao enfermeiro proporcionar uma assistência muito mais efetiva.

Ficou claro, no estudo, que 52,7% reconheceram que necessitam melhorar seu nível de atuação, pretendendo cursar pós-graduação na área de enfermagem.

O profissional enfermeiro está, portanto, começando a reconhecer a necessidade de se reorganizar para assumir uma dimensão maior no trabalho em saúde, através da implementação de estratégias para intervir de forma fundamentada no processo de cuidar, rompendo com aquela identidade estabilizada, expressando, assim, seu significar na equipe de saúde, afastando-se de ações submissas e pouco expressivas..

Diante dessa possibilidade histórica de mudança de paradigma na saúde, com a conseqüente humanização do ato de cuidar, cabe ao profissional enfermeiro um papel que o torna um ator muito mais impor-tante na construção desse novo saber. Neste papel de promotor do cuidado, o profissional enfermeiro não será, como tem sido em ampla medida, um mero reprodutor de conhecimentos de outros profissionais.

Fica evidente que a autonomia do profissional enfermeiro se concretiza a partir do "ser profissional" (a vontade do indivíduo para a ação). Este, através de seu conhecimento, pode compreender o paradigma vigente, porém de forma ampliada, habilitando-o a responder às questões: o que faço, para que faço, como faço e para quem?

Esse assunto não se esgota com este estudo, aliás, acreditamos estar na etapa inicial, tendo em vista a insuficiência de debates sobre o tema na literatura. No entanto, ao final desta experiência, pudemos perceber que este estudo pode contribuir de alguma forma para facilitar a busca de caminhos estratégicos para um agir mais crítico e com fundamentação científica. Através do seu saber, o profissional enfermeiro reconhece o seu modelo de atuação, para que seu fazer lhe dê visibilidade, ou seja, mostre o seu ser e proporcione mudanças importantes no modo de produzir enfermagem, exercendo efetivamente sua autonomia.

Submissão: 25/01/2005

Aprovação: 30/12/2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2006

Histórico

  • Aceito
    30 Dez 2005
  • Recebido
    25 Jan 2005
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