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Criatividade e relação pedagógica: em busca de caminhos para a formação do profissional crítico criativo

Creatividad y relación pedagógica: búsqueda de caminos para la formación del profesional crítico y creativo

Creativity and the pedagogical relationship: searching for new paths to train a creative and critical professional

Resumos

Este estudo, é uma reflexão filosófica e ressalta a importância dos espaços de liberdade na relação pedagógica como ferramenta para a formação do profissional crítico-criativo. Compreendemos o "ofício" do professor no processo de trabalho educar como possibilidade de liberdade, com criação de projetos a partir das finalidades estabelecidas no contexto de sua realidade. É de fundamental importância a valorização do espaço interseçor, como um privilegiado espaço de liberdade e autonomia, onde a relação pedagógica favorece o ensino prático-reflexivo, resgatando o potencial criativo, o potencial dos indivíduos, a autogovernabilidade.


El estudio es una reflexión filosófica y resalta la importancia de los espacios de libertad en la relación pedagógica como una herramienta para la formación del profesional crítico-creativo. Comprendemos el "oficio" del profesor en el proceso de educar como posibilidad de libertad, con la creación de proyectos a partir de las finalidades establecidas en el contexto de su realidad. Es de fundamental importancia la valoración del espacio mediador, como un espacio privilegiado de libertad y autonomía, en donde la relación pedagógica favorece la enseñanza práctica-reflexiva y rescata el potencial creativo, el potencial de los individuos y la autogubernabilidad.


This study is a philosophical reflection and stresses the importance of freedom spaces inside the pedagogical relationship as a tool for the constitution of a critical and creative professional. We view the teaching "art" in the educational work as a possibility for freedom, with projects arising from the objectives established within his/her contextualized reality. It is paramount to value the intersection space as a privileged space for freedom and authonomy to be expressed, where the pedagogical relationship favors a practical and thougth-provoking learning, rescuing the creative potential of individuals and their self-guidance.


REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Criatividade e relação pedagógica: em busca de caminhos para a formação do profissional crítico criativo

Creativity and the pedagogical relationship: searching for new paths to train a creative and critical professional

Creatividad y relación pedagógica: búsqueda de caminos para la formación del profesional crítico y creativo

Kenya Schmidt ReibnitzI; Marta Lenise do PradoII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Docente do Departamento de Enfermagem e Coordenadora Didático-pedagógica do Curso Técnico de Enfermagem da UFSC, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFSC, E-mail: kenya@nfr.ufsc.br IIEnfermeira, Doutora em Filosofia da Enfermagem, Docente do Programa de Pós-graduação em Enfermagem e do Departamento de Enfermagem da UFSC Coordenadora Didático-pedagógica do Curso de Mestrado em Enfermagem/ PEn - UFSC

RESUMO

Este estudo, é uma reflexão filosófica e ressalta a importância dos espaços de liberdade na relação pedagógica como ferramenta para a formação do profissional crítico-criativo. Compreendemos o "ofício" do professor no processo de trabalho educar como possibilidade de liberdade, com criação de projetos a partir das finalidades estabelecidas no contexto de sua realidade. É de fundamental importância a valorização do espaço interseçor, como um privilegiado espaço de liberdade e autonomia, onde a relação pedagógica favorece o ensino prático-reflexivo, resgatando o potencial criativo, o potencial dos indivíduos, a autogovernabilidade.

ABSTRACT

This study is a philosophical reflection and stresses the importance of freedom spaces inside the pedagogical relationship as a tool for the constitution of a critical and creative professional. We view the teaching "art" in the educational work as a possibility for freedom, with projects arising from the objectives established within his/her contextualized reality. It is paramount to value the intersection space as a privileged space for freedom and authonomy to be expressed, where the pedagogical relationship favors a practical and thougth-provoking learning, rescuing the creative potential of individuals and their self-guidance.

RESUMEN

El estudio es una reflexión filosófica y resalta la importancia de los espacios de libertad en la relación pedagógica como una herramienta para la formación del profesional crítico-creativo. Comprendemos el "oficio" del profesor en el proceso de educar como posibilidad de libertad, con la creación de proyectos a partir de las finalidades establecidas en el contexto de su realidad. Es de fundamental importancia la valoración del espacio mediador, como un espacio privilegiado de libertad y autonomía, en donde la relación pedagógica favorece la enseñanza práctica-reflexiva y rescata el potencial creativo, el potencial de los individuos y la autogubernabilidad.

1 Introdução

Este texto nasceu com a finalidade de organizar o pensamento e a ação, sobre o que entendemos ser o trabalho docente. O título tem muito a ver com nossas incursões na literatura pedagógica, principalmente contemporâneas, que discutem o trabalho docente como ofício.

Ao longo de nossa caminhada pelo ensino de Enfermagem, refletindo o papel do Enfermeiro e a responsabilidade política e social dos docentes no processo de formação, julgamos importante contribuir para o debate nesta área, tendo em vista a estreita relação entre o trabalho em saúde e o trabalho em educação, pois ambos estão situados no setor produtivo, como serviços.

E o que caracteriza o setor de serviços?

[...] os serviços definem-se essencialmente por sua utilidade imediata: servem, em primeiro lugar, em uma relação de exterioridade com o usuário, para recuperar um bem, para preservar um conjunto de bens, para tornar melhor, no plano da eficácia ou da estética, alguma coisa que já se possui como um bem. Em segundo lugar, servem ao usufruto mais pessoal, em uma relação direta com a personalidade do usuário, no qual o sentido de utilidade está condicionado estreitamente por valores e comportamentos socialmente reconhecidos[...](1:72).

Assim, educação e saúde possuem uma característica fundamental no qual o consumo dá-se imediatamente na produção da ação; não produzimos bem materiais, mas um bem simbólico que se evidencia no ato(2). Neste processo, o fenômeno está sempre em transformação e é um processo contínuo. Teoricamente, o trabalho não se esgota no produto.

Neste trabalho, nós docentes de Enfermagem, relacionamos os fatos e decidimos como vamos fazer; temos momentos instituíntes1 1 Termo utilizado por Merhy e Onocko (2) ao analisar o processo de trabalho em saúde como trabalho vivo, que se manifesta com o trabalho em ato, por meio de ações não determinadas institucionalmente (instituído) mas sim, que se efetiva a partir dos espaços de auto governabilidade do sujeito, seja ele trabalhador (produtor) ou usuário (consumidor). , quer seja na educação ou na assistência. Nosso trabalho se dá num espaço de autonomia do trabalhador e independente da sua função, sempre existirá a possibilidade de criar, de ir além.

Neste processo de trabalho, o consumo pelo usuário dá-se imediatamente na produção da ação; ele não está sendo ofertado como uma coisa externa. Deste modo, no processo pedagógico temos a construção de um espaço interseçor, compreendido como o espaço das relações; um espaço de encontro e negociação entre professor e aluno, em ato. O espaço pedagógico é, portanto, um espaço de interseção, o qual não é um somatório de um - aluno, com o outro - professor, mas um produto de quatro mãos, um "inter". Designa o que se produz nas relações entre sujeitos, espaços das suas interseções, que é um produto que existe para os "dois" em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo e no qual os inter se colocam como instituintes na busca de novos processos e a presença do trabalho vivo em ato se traduz na criatividade em ação(2).

Sendo assim, todos nós professores (enfermeiros ou não), precisamos estar cientes do significado do processo educativo, das suas interferências na formação profissional e sua relação com a sociedade, pois a educação se evidencia em qualquer contexto; não só nas escolas; é um processo que faz parte do social e por isso não pode ser considerado neutro em seus objetivos. Percebemos que estas relações profissionais e/ou sociais, interferem no resultado deste processo pedagógico, influenciando a nossa forma de atuação.

A política neoliberal restringe educação à formação - incentivo a certificação, isto é, em seu discurso está embutido que me fazendo melhor técnico, me torno um melhor cidadão. Entretanto, devemos entrar no mundo tecnológico com uma educação que capacite os indivíduos à responder ao avanço da tecnologia, ampliando seus horizontes, aumentando o conhecimento e não se contentando com uma formação meramente técnica, reducionista.

Como entendemos, então, a Educação?

Educação é um ato político. Esta afirmação é defendida por vários autores da pedagogia crítica, tais como Freire, Gadotti, Perrenoud, Apple, Shon dentre outros. "A escola faz política não só pelo que diz, mas também pelo que cala; não só pelo que faz, mas também pelo que não faz"(3:22), isto reflete a ação política da escola. Ao analisarmos as atividades desenvolvidas, percebemos que em nossa tarefa de educar, seja no ensino ou na assistência, a forma de atuar estará identificando uma postura política, podendo ser de acomodação ou de transformação. Quando estamos assumindo que a enfermagem é uma profissão eminentemente técnica, que precisamos desenvolver nossas atividades num contexto tecnicista e eficiente, sem questionar seus efeitos, estamos fazendo uma opção política de acomodação, pois estamos compactuando com o sistema dominante, isto é, estamos formando profissionais tecnicamente competentes que irão servir para perpetuar as relações sociais já existentes. Por outro lado, ao assumirmos uma postura mais crítica e criativa, refletindo sobre as questões que estão sendo apresentadas, procurando fazer relações históricas dos fatos e analisando suas implicações, estaremos também fazendo um ato político, pois além de reconhecermos a importância da competência técnica, estaremos buscando favorecer a reflexão acerca da realidade vislumbrando possibilidades de mudança. Competência aqui entendida como "a capacidade do sujeito mobilizar o todo ou parte de seus recursos cognitivos e afetivos para enfrentar uma ´família' de situações complexas"(4:21) Saber mobilizar está relacionado com sinergia, com a orquestração destes recursos cognitivos e atitudinais, ampliando o significado do saber fazer. Não se traduz num conhecimento acumulado, mas na "capacidade de recorrer ao que se sabe, para realizar o que se deseja, o que se projeta"(5:145).

A Educação, portanto, é um processo que vai além de ensinar, instruir ou treinar; ela é essencialmente um processo de formação que precisa estimular a curiosidade, desenvolver a autonomia crítica e criativa do sujeito histórico competente. "É preciso reconhecer que somos seres condicionados e não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, é problemático e não inexorável"(6:21).

Assim, o processo educativo é compreendido como um exercício de reflexão da realidade, reflexão esta, fundamentada em conhecimentos adquiridos ao longo da vida, de maneira formal (escola, livros...) e informal (no processo de viver...). Esta reflexão possibilita uma releitura da prática anterior, relacionando o conhecimento com a realidade, descobrindo equívocos e erros cometidos, provocando necessariamente uma melhoria da compreensão do que deveria ter sido praticado. Nesta relação existem duas opções:

ou se pensa e se reflete sobre o que se faz e assim se realiza uma ação educativa consciente, ou não se reflete criticamente e se executa uma ação pedagógica a partir de uma concepção mais ou menos obscura e opaca existente na cultura vivida do dia-a-dia, e assim se realiza uma ação educativa com baixo nível de consciência(7:32).

Neste processo de trabalho educar não pode haver respostas prontas, porque elas não existem. O que se pode fazer é estimular, ajudar a pensar. Quem pensa geralmente faz a educação na qual acredita:

a meta da instrução é o fim da instrução, quer dizer, a invenção. A Invenção é o ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligente. O resto? Cópia, impostura, reprodução, preguiça, convenção, batalha, sono. Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se pensa de verdade a coisa que se pensa, seja qual for essa coisa. Penso, portanto invento; invento, portanto penso: única prova de que um sábio trabalha ou de que um escritor escreve. Para que trabalhar, para que escrever, se não assim? Nos outros casos, eles dormem ou se batem e se preparam mal para morrer. Repetem. Só o sopro dá vida, pois a vida inventa. A ausência de invenção prova, pela contraprova, a ausência de obra e de pensamento(8:23).

Portanto, não adianta copiar; é necessário compreender e assimilar a necessidade de participar do processo, estimulando a criação.

Diante destas afirmações, nessa perspectiva de educação, como fica o papel do professor?

O professor é aquele que facilita esse processo; ele é um criador de oportunidades para as situações de aprendizagem, um oportunizador das experiências intensas e adequadas, capazes de despertar no aluno a motivação para a pergunta, para uma atitude investigativa que busque soluções e que fundamente sua intervenção na realidade.

Esta função docente não tem como princípio a domesticação através de artifícios que podem camuflar esta intencionalidade (memorização mecânica do educando), mas sim os princípios da arte que liberta, fundamentado no estímulo à curiosidade. Reconhecemos aqui, o trabalho do professor como um "ofício".

A arte de diagnosticar, auscultar, perceber; é tão importante nos profissionais da saúde quanto a capacidade e o tino para regular e intervir. Todo ofício é uma arte reinventada que supõe sensibilidade, intuição, escuta, sintonia com a vida, com o humano(9:47).

O professor é, enfim, um estimulador da capacidade crítico-criativa e, neste papel, deve promover a liberdade e desafiar a razão.

A liberdade e a responsabilidade andam sempre juntas. A capacidade de reconhecer limites em si, nos outros e para si e para os outros, possibilita o indivíduo agir livremente. A liberdade está associada à possibilidade de escolha e esta possibilidade está presente nas atividades humanas, além do pensamento e criação, ela se expressa quando exercemos a autogovernabilidade

O estímulo ao pensar possibilita esta construção do sujeito, pois integra as dimensões do conhecimento e da aprendizagem(10). Para que isto ocorra é preciso provocar o exercício do pensamento, no qual envolve o pensar crítico (fazer julgamento, baseado em critérios já estabelecidos como verdades, leis...), o pensar criativo que busca o significado do fenômeno baseado em valores, nos aspectos culturais, busca a contextualização e promove o pensamento divergente.

A articulação destas duas formas de pensar associado ao agir, reflete o pensar complexo(11) ou pensar de ordem superior(10). Assim, no pensar complexo, existe uma associação do pensamento com a ação; ocorre a investigação dentro da investigação como um processo contínuo articulando o holístico com o contexto.Este movimento do pensar crítico e criativo, do pensar complexo, possibilita uma nova forma de enfrentar os desafios do conhecimento, significa assumir uma atitude não contemplativa, ou seja, uma prática questionadora.

O requerimenrto em desenvolver o pensar complexo está em sintonia com a compreensão do trabalho docente como um trabalho vivo, pois envolve dar luz aos espaços interseçores (das relações) com o locus priveligiado para a prática de duvidar, analisar e procurar revelar (através de dispositivos interrogadores) o sentido e a direcionalidade (intencionalidade) do processo pedagógico e os seus modos de operar cotidianamente nos processos formativos.

O processo de trabalho em saúde precisa mudar, precisa ressaltar a subjetividade através do acolhimento e do vínculo com o usuário(2). Sendo assim, como é que nossos egressos vão desenvolver esta atitude utilizando a proposta de articular o pensamento, estar atento aquilo que não está instituído, se ele não vivenciou isto no seu cotidiano acadêmico? E mais que isso, como favorecer as mudanças no processo de trabalho em saúde, se no processo educativo os professores não estão instrumentalizados para isto, não vivenciam esta prática?

2 A criatividade e o processo educativo

Ao analisarmos um projeto político-pedagógico que contenha em seus princípios filosóficos a formação de um profissional enfermeiro preocupado com a realidade de saúde da população e com as condições de vida destes sujeitos, percebe-se a necessidade deste indivíduo ser um agente de mudança e para que isto ocorra é primordial trabalhar com a renovação de idéias, estimulando o pensamento criativo.

A busca do conhecimento se reflete numa mudança de atitude pois queremos que nossos alunos façam mais que simplesmente pensar, é importante que sejam capazes de analisar e apreender o que uma situação apresenta, declara, implica e/ ou sugere(12).

O discurso social afirma que o desenvolvimento e a expressão do potencial criativo são de grande importância, não só para o indivíduo como também para a sociedade, pois é da criatividade que depende o próprio desenvolvimento da humanidade. Porém, a prática pedagógica mostra que o potencial criativo tem sido usualmente inibido e bloqueado(13).

E como tem sido entendido o conceito de criatividade? Sabe-se que os conceitos modificam, evoluem através dos tempos(14), e atualmente criatividade está sendo o foco da moda sempre presente no discurso neoliberal e da globalização. Percebemos esta realidade ao analisarmos as diretrizes curriculares nacionais para os cursos da área da saúde, em qualquer um dos níveis de formação, que focalizam a necessidade da formação do profissional crítico-criativo. Portanto, é de fundamental importância que se analise o significado desta proposta, para não continuarmos somente na retórica e sim partirmos para uma relação pedagógica que se apresente como uma importante ferramenta para a formação deste profissional.

Ao estabelecermos como um perfil profissional desejado, a formação de um indivíduo crítico-criativo, há coerência entre o que pensamos e o que fazemos? Estamos pensando a mesma coisa?

Estudando sobre a dinâmica do processo criativo, encontrei uma proposta que inter-relaciona estes vários fatores(15). E coloca a criatividade nesta perspectiva e a compreende como um processo dialético/interativo em que participam três elementos: talento individual, campo e domínio/disciplina representados esquematicamente sob a forma de um triângulo, onde estes três vértices se inter-relacionam.

O talento individual relaciona-se com potencial de cada indivíduo para realizar determinada coisa; contudo este potencial precisa ser estimulado e uma das maneiras de fazê-lo é propiciar um espaço de liberdade para procurar o que lhe dá prazer. O processo educativo, tanto em casa como na escola, pode inibir este potencial (podando e amoldando conforme o referencial cultural do que é certo e errado). Para ilustrar um pouco melhor este processo, recomendamos a leitura da história infantil Quando a escola é de vidro, no qual a autora propõe, de maneira lúdica, uma reflexão acerca dos efeitos bloqueadores da criatividade, fazendo uma analogia ao modelo pedagógico que homogeneíza os indivíduos, colocando-os em vidros exatamente iguais, sem considerar as diferenças, até corriqueiras, como peso e tamanho.

O Campo relaciona-se com a área de atuação, podendo ser a escola ou o trabalho; neste setor, o indivíduo sofre a ação dos juízes que julgam a qualidade e utilidade dos produtos e processos desenvolvidos; é aqui que ocorrem as maiores pressões para o desenvolvimento da criatividade. Na Enfermagem, onde o processo de formação ainda é fortemente tecnicista, percebemos estas pressões nos espaços da Escola repetitiva, descontextualizada, sem considerar os determinantes sócio-econômicos, político-culturais dessa prática.

O terceiro vértice do triângulo, o domínio/disciplina, relaciona-se com a escolha da área de trabalho, que se coincidir com o talento individual, irá estimular o desenvolvimento de um sujeito mais criativo. Ou seja, quando se trabalha com o que se gosta, este trabalho passa a ser um trabalho motivado, prazeroso e, portanto, mais criativo.

Como um movimento de dentro para fora, a disciplina passa a ser um profundo exercício interior, de habilitar, exercitar o aluno para conseguir criar um foco de atenção em torno de algo motivador e significativo em sua vida, que mereça, pois, toda a sua energia. Criar este direcionamento e a energia interior é um profundo exercício de disciplina. É o exercício de que o artista necessita para compor uma música, para pintar um quadro, de que o cientista precisa para estruturar uma teoria. Esse movimento disciplinador fortalece a auto -organização, parte importante desse movimento criativo e transdisciplinar(8:73).

Desta forma, percebemos a criatividade para além da competência de alguma disciplina, sendo necessário diversos tipos de análise para à compreensão desse fenômeno. Conforme já ressaltamos, para Gardner, a criatividade não está somente na idéia, no processo ou na habilidade do artista, nem no domínio de uma prática e tampouco no grupo de juízes, mas sim numa interação entre todas essas dimensões(16).

Com este entendimento, ressaltamos que os fatores culturais influenciam no processo criativo, que este processo é dinâmico e resulta em potencial para mudança, ação ou produto. Todo indivíduo tem capacidade de ser criativo e cada pessoa tem uma maneira diferente de expressá-la. Portanto, a criatividade não pode ser só definida em termos de novidade, mas também em termos de melhoramentos individual e da sociedade.

Um importante pesquisador sobre a criatividade e talento criativo constatou que o estímulo em sala de aula repercute diretamente no processo ensino-aprendizagem(17). Este estudo ressalta a importância da aprendizagem através do estímulo à criatividade, que se processa a partir do interesse do próprio indivíduo e de sua motivação interna, tendo, portanto, efeito mais duradouro. Para que isto aconteça, deve-se estimular a produção do pensamento divergente, ou seja, a busca da solução de problemas através de várias alternativas e possibilidades, estimulando a imaginação. Assim, a criatividade está intimamente relacionada a fatores como espontaneidade, entusiasmo e motivação(18).

Entendemos o fenômeno criativo não como um dom ou talento, mas sim como algo que pode ser estimulado ou inibido a partir das relações que o indivíduo estabelece ao longo da vida, e por isso a importância da relação pedagógica.

Nessa perspectiva, entra em foco a capacitação docente, de modo a favorecer a concretização do jogo dialético ação-pensamento, pensamento-ação para alcançar a educação integral dos sujeitos ali envolvidos - professores e alunos.. Desta forma, o processo educativo é mais do que uma reflexão. Ele é a práxis(19).

Retornamos, então a compreensão do ofício do professor no processo de trabalho educar, no qual o conceito de trabalho ligado à competência compreende o trabalho como possibilidade de liberdade, com criação de projetos a partir das finalidades estabelecidas no contexto de sua realidade. E que apesar de ter alguns momentos de tensão e fadiga, nos traz satisfação e alegria, pois nos completa como seres humanos, satisfazendo uma das dimensões do desenvolvimento do homem, que é o processo de criação.

Neste aspecto, ao refletir sobre a importância do resgate da docência como ofício de mestre afirma que o professor não pode ser confundido com um cata-vento que gira a mercê da vontade política e do avanço tecnológico.

Percebemos que

cada nova ideologia, cada nova moda econômica ou política, pedagógica ou acadêmica, cada novo governante, gestor ou tecnocrata até de agências de financiamento se julgam no direito de nos dizer o que não somos e o que devemos ser, de definir o nosso perfil, de redefinir o nosso papel social, nossos saberes e competências, redefinir o currículo e a instituição que nos formarão através de um simples decreto(9:24).

Neste processo de trabalho educar, é de fundamental importância a valorização do espaço interseçor, como um privilegiado espaço de liberdade e autonomia, onde a relação pedagógica favorece o ensino prático-reflexivo, resgatando o potencial criativo, o potencial dos indivíduos, a autogovernabilidade. O processo pedagógico se realiza num dado momento, não se repete, não retorna, pois cada indivíduo é um e cada momento é único; valoriza e destaca a subjetividade nas relações, tão necessária, também, no processo de trabalho em saúde.

A relação pedagógica associada ao ensino prático-reflexivo, como instrumento do trabalho educar, poderá possibilitar um resgate da cidadania, envolvendo uma sinergia com os quatro pilares da educação, ou seja: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a conviver e aprender a ser(20).

Com base neste referencial, entendemos que aprender a conhecer envolve desenvolver competências para a compreensão (exercitar o pensamento, a atenção e a memória) o aprender a aprender; aprender a fazer compreende o despertar e estimular a criatividade para que se descubra o valor construtivo do trabalho e não para preparar alguém para executar determinada tarefa; aprender a conviver corresponde às estratégias para um trabalho coletivo, com projetos solidários e cooperativos, modificando esta aparência da escola como um disfarçado campo de competição; e aprender a ser, que além de envolver os demais pilares, fundamenta-se na visão holística do homem, constitui-se em despertar o poder de decisão, envolvendo para isto inteligência e sensibilidade, espirito e corpo, estilo estético e responsabilidade pessoal, ética e espiritualidade(21:18).

Para atingirmos esta finalidade, sem dúvida, se faz necessário uma revitalização da relação pedagógica como espaço de autonomia e liberdade para que junto educador e educando possam transformar-se, transformando as relações com o saber, com a aprendizagem e com a realidade em que se inserem. Precisamos entender que o processo de trabalho educar constitui-se, portanto, num trabalho vivo em ato, que se concretiza no momento da relação pedagógica e é o lócus privilegiado para a construção de sujeitos crítico-criativos, comprometidos com a construção de uma sociedade justa, igualitária e livre, que garanta o alcance da felicidade que o humano em sua humanidade requer.

Data de recebimento: 31/08/2003

Data de aprovação: 30/10/2003

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    Termo utilizado por Merhy e Onocko
    (2) ao analisar o processo de trabalho em saúde como trabalho vivo, que se manifesta com o trabalho em ato, por meio de ações não determinadas institucionalmente (instituído) mas sim, que se efetiva a partir dos espaços de auto governabilidade do sujeito, seja ele trabalhador (produtor) ou usuário (consumidor).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2003

    Histórico

    • Aceito
      30 Out 2003
    • Recebido
      31 Ago 2003
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