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Desigualdades sociais para lideranças estudantis e de organizações profissionais: legado político de Florence Nightingale

RESUMO

Objetivos:

analisar os sistemas de compreensão das desigualdades sociais pela enfermagem, naperspectiva de lideranças estudantis e representantes de organizações profissionais da enfermagem.

Métodos:

pesquisa qualitativa sustentada no referencial teórico da dialética marxista. Participaram do estudo três representantes de organizações profissionais e cinco líderes estudantis. Os dados foram obtidos de entrevistas individuais e submetidos à Análise de Discurso Crítica.

Resultados:

osdiscursos são marcados pelo comprometimento, identificação relacional e caracterizam a posição de obrigação e necessidade da enfermagem em atuar com os indivíduos em situações de desigualdades, indicando a responsabilização como prática social. Dentre as competências necessárias à enfermagem no enfrentamento das desigualdades sociais, a competência política é central e se associa à advocacia em saúde.

Considerações Finais:

conclui-se que a atuação sobre as desigualdades sociais é parte da construção histórica da enfermagem. Ressalta-se a importância histórica de Florence Nightingale e seu legado para atuação política e liderança daenfermagem.

Descritores:
Fatores Socioeconômicos; Advocacia em Saúde; Liderança; Enfermagem; Compreensão

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the nursing systems of understanding and social inequalities from the perspective of student leaders and representatives of nursing professional organizations.

Methods:

qualitative research supported by the theoretical framework of Marxist dialectics. Threerepresentatives of professional organizations and five student leaders participated in the study. Datawere obtained from individual interviews and submitted to Critical Discourse Analysis.

Results:

thediscourses are marked by commitment, relational identification and characterize the position of obligation and necessity of nursing in acting with the individuals in situations of inequality, indicating accountability as a social practice. Among the competencies necessary for nursing in confronting social inequalities, political competence is central and is associated with health advocacy.

Final Considerations:

we conclude that acting on social inequalities is part of the historical construction of nursing. Here, we emphasized the historical importance of Florence Nightingale and her legacy for political action and leadership in nursing.

Descriptors:
Socioeconomic Factors; Health Advocacy; Leadership; Nursing; Understanding

RESUMEN

Objetivos:

analizar sistemas de comprensión de desigualdades sociales por la enfermería, por perspectiva de liderazgos estudiantiles y representantes de organizaciones profesionales de enfermería.

Métodos:

investigación cualitativa sustentada en la dialéctica marxista. Participaron del estudio tres representantes de organizaciones profesionales y cinco líderes estudiantiles. Datos fueron obtenidos de entrevistas individuales y sometidos al Análisis de Discurso Crítico.

Resultados:

discursos son marcados por el comprometimiento, identificación relacional y caracterizan la posición de obligación y necesidad de la enfermería en actuar con los individuos en situaciones de desigualdades, indicando la responsabilización como práctica social. Entre las competencias necesarias la enfermería en el enfrentamiento de desigualdades sociales, competencia política y central y se relaciona la abogacía en salud.

Consideraciones Finales:

concluye que la actuación sobre las desigualdades sociales y parte de la construcción histórica de la enfermería. Resalta la importancia histórica de Florence Nightingale y su legado para actuación política y liderazgo de enfermería.

Descriptores:
Factores Socioeconómicos; Defensa de La Salud; Liderazgo; Enfermería; Comprensión

INTRODUÇÃO

A enfermagem possui um papel sócio-histórico no enfrentamento das desigualdades sociais, entendidas como fruto das relações econômicas que se repercutem nas relações sociais, políticas eculturais.

A atuação da enfermagem é atribuída a um mandato social para promover a equidade em saúde com ações coletivas, advocacia e empoderamento das comunidades vulneráveis, garantindoacesso à prestação de cuidados e trabalhando para mudar as condições sociais subjacentes que perpetuam as desigualdades(11 Rozendo CA, Santos Salas A, Cameron B. A critical review of social and health inequalities in the nursing curriculum. Nurse Educ Today. 2017;50:62-71. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.12.006
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.12.0...
-22 Reutter L, Kushner KE. 'Health equity through action on the social determinants of health': taking up the challenge in nursing. Nurs Inq. 2010;17(3):269-80. https://doi.org/10.1111/j.1440-1800.2010.00500.x
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).

Desde o início da Enfermagem Moderna, cuja precursora foi Florence Nightingale, com o paradigma do cuidado científico, os profissionais de enfermagem são considerados protetores da vida, o que inclui a defesa dos direitos humanos de forma igualitária(33 Frello AT, Carraro TE. Florence nightingale's contributions: an integrative review of the literature. Esc Anna Nery. 2013;17(3):573-9. https://doi.org/10.1590/S1414-81452013000300024
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). Esse entendimento se estende desde as primeiras ações de Florence, num contexto de guerra, cenário adverso à saúde, até os cuidados dos pobres e doentes na Grã-Bretanha e das mulheres e prostitutas na Índia(44 Selanders L, Crane P. The Voice of Florence Nightingale on Advocacy. Online J Issues Nurs. 2012;17(1). https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol17No01Man0
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). Essa atuação, também marcada pelos preceitos da religiosidade, conferiu à Florence Nightingale um grande destaque na história da enfermagem, não somente pela sua contribuição na organização científica do trabalho, mas também no cuidado a grupos vulneráveis.

Além dos conceitos religiosos de devoção, caridade, amor ao próximo e doação, queinfluenciaram Florence no desenvolvimento profissional da enfermagem, os autores também mencionam o seu ativismo político para a mudança de leis e condições geradoras de problemassociais(44 Selanders L, Crane P. The Voice of Florence Nightingale on Advocacy. Online J Issues Nurs. 2012;17(1). https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol17No01Man0
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).

Partindo dessa compreensão, pressupõe-se que lutar contras as desigualdades e promover a justiça social está nas raízes históricas e filosóficas da profissão(22 Reutter L, Kushner KE. 'Health equity through action on the social determinants of health': taking up the challenge in nursing. Nurs Inq. 2010;17(3):269-80. https://doi.org/10.1111/j.1440-1800.2010.00500.x
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), desde o legado de Florence Nightingale. Contudo, torna-se necessário entender como a Enfermagem Contemporânea tem atuado nesse movimento incorporando a compreensão sobre as desigualdades e exercendo liderança nessecampo.

As lideranças da profissão exercem um papel decisivo no enfrentamento das desigualdades sociais(55 Bordin V, Almeida ML, Zilly A, Justino ET, Silva NDVS, Faller JW. Liderança em enfermagem na perspectiva de enfermeiros assistenciais de um hospital público da tríplice fronteira. Rev Adm Saúde. 2018;18(71). https://doi.org/10.23973/ras.71.107
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). Nesse sentido, acredita-se que grandes lideranças são capazes de marcar o cenário de uma profissão, sendo necessário, para isso, atores com ousadia suficiente para assumir a responsabilidade e acreditar nas possibilidades de suas ideias.

Contudo, há fragilidades na formação do profissional de enfermagem no que concerne ao desenvolvimento do exercício da liderança e do enfrentamento das desigualdades sociais devido à majoritária prioridade do aprendizado de habilidades técnicas(66 Magnago C, Pierantoni CR. Nursing training and their approximation to the assumptions of the National Curriculum Guidelines and Primary Health Care. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(1):15-24. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28372019
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-77 Thumé E, Fehn AC, Acioli S, Fassa MEG. Formação e prática de enfermeiros para a Atenção Primária à Saúde: avanços, desafios e estratégias para fortalecimento do Sistema Único de Saúde. Saúde Debate. 2018;42(1):275-288. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S118
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). A superação desses limites está no foco do movimento Nursing Now, campanha de iniciativa da Organização Mundial da Saúde e do Conselho Internacional de Enfermeiros, para fortalecimento da enfermagem, que tem como um dos seus pilares a liderança.

Destaca-se a organização política da enfermagem por meio das suas associações profissionais como espaços para reivindicação dos interesses da categoria e das demandas sociais, garantindo a divulgação de estudos sobre assuntos referentes às práticas dos profissionais(88 Santos JFE, Santos RM, Costa LMC, Almeida LMWS, Macêdo AC, Santos TCF. The importance of civilian nursing organizations: integrative literature review. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):572-80. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690326i
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).

Assim, torna-se primordial compreender a perspectiva de lideranças da enfermagem brasileira para evidenciar como a atuação nesses espaços tem a potencialidade para a formação política e para a compreensão das desigualdades sociais.

OBJETIVOS

Analisar os sistemas de compreensão das desigualdades sociais pela enfermagem, na perspectiva de lideranças estudantis e representantes de organizações profissionais da enfermagem.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu as orientações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(99 Ministério da Saúde (BR). Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466 de 12 dezembro de 2012 [Internet]. Brasília: MS; 2012 [cited 2020 Apr 29]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2013/06_jun_14_publicada_resolucao.html
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) e teve seu início após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. Todas as entrevistas foram precedidas da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na apresentação dos resultados, os participantes estão codificados com a sigla LE (lideranças estudantis) e OP (representantes das organizações profissionais), ambas seguidas de um número que indica a ordem das entrevistas, garantindo o sigilo e anonimato durante todo o processo de pesquisa.

Referencial teórico-metodológico

O estudo ancora-se no referencial teórico da dialética marxista, a qual permite revelar o processo de movimento que existe permanentemente na sociedade, bem como sua construção histórica e capacidade de transformação e superação das contradições por meio da práxis(1010 Minayo MCS. Cientificidade, generalização e divulgação de estudos qualitativos. Ciênc Saúde Colet. 2017;22(1):16-17. https://doi.org/10.1590/1413-81232017221.30302016
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).

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa. Foram utilizados os critérios propostos pelo Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ), usado como roteiro para pesquisas qualitativas.

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido no Brasil, com entrevistas que ocorreram de forma virtual e presencial, de acordo com a disponibilidade de participantes e pesquisadores. Os entrevistados eram representantes da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO), Associação Brasileira de Enfermeiros de Família e Comunidade (ABEFACO) e do Comitê Estudantil da Associação Brasileira de Enfermagem (COEST).

Dentre as organizações profissionais incluídas no estudo, a ABEn é a única que possui uma instância formal na sua estrutura de participação estudantil, representada pelo COEST. Esse comitê tem, entre outros objetivos, o propósito de estimular a formação política de lideranças para o desenvolvimento da enfermagem(1111 Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn). Conselho Nacional Da Associação Brasileira De Enfermagem. Comitê Estudantil Nacional: Regimento Interno [Internet]. Rio de Janeiro: 2019 [cited 2020 Apr 29]. Available from: http://www.abennacional.org.br/site/wp-content
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), motivo pelo qual justifica-se a sua inclusão neste estudo.

Procedimentos metodológicos

Os dados foram obtidos de entrevistas com três profissionais de organizações profissionais da enfermagem, no nível nacional, com reconhecimento pela sua atuação na representação da categoria. Foram incluídos também discentes membros do COEST. A escolha dos participantes foi realizada por amostragem intencional.

O primeiro contato com os participantes foi realizado por e-mail, consistindo em breve explicação da pesquisa e convite para participação. Foram convidados quatro representantes das organizações profissionais, e três aceitaram o convite. Esses representantes atuavam em cargos de liderança dentro das organizações como membros da direção nacional das entidades com participação na gestão no momento da coleta de dados; e possuíam também experiências em gestões anteriores da mesma associação. Tinham idade entre 40 e 60 anos, sendo duas mulheres e um homem.

Em relação aos estudantes, foram enviados e-mails para todas as lideranças vinculadas ao COEST. Cinco atenderam ao convite. As lideranças estudantis estavam vinculadas a universidades públicas (2) e privadas (3), de estados das Regiões Norte (1), Nordeste (1), Centro-Oeste (1) e Sudeste (2); e cursavam do 7º ao 10º período da graduação em Enfermagem.

Fonte de dados

Os dados foram obtidos de entrevistas individuais realizadas via Skype e, em dois casos, presencialmente. A entrevista presencial se deu pela oportunidade do encontro das pesquisadoras com os representantes das associações; e a entrevista virtual permitiu a inclusão de participantes de diferentes regiões do país.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados ocorreu entre 10 de dezembro de 2018 e 24 de agosto de 2019 e foi realizada pelas pesquisadoras que possuem formação em enfermagem e experiência nos procedimentos utilizados, tanto no que se refere à técnica de coleta quanto ao referencial do estudo.

O roteiro de entrevista continha três questões norteadoras acerca da compreensão das desigualdades sociais e sua relação com saúde, da atuação da enfermagem para enfrentá-las e da abordagem sobre esses temas na formação, incluindo as competências necessárias. Procurou-se propiciar a livre manifestação dos participantes. As entrevistas foram gravadas em áudio e registraram duração média de 25 minutos e 11 segundos entre os estudantes; e de 52 minutos e 34 segundos entre os representantes das organizações profissionais.

Análise dos dados

O conteúdo foi transcrito e submetido à Análise de Discurso Crítica (ADC). Fairclough(1212 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001. 338p.)refere-se ao termo “discurso” considerando-o “linguagem enquanto prática social”, o que implica tomá-lo como modo de ação sobre o mundo e sobre os outros, bem como modo de representação, em uma relação dialética com a estrutura social. Seguiu-se, portanto, a Teoria Social do Discurso proposta por Fairclough(1212 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001. 338p.), que traz a concepção tridimensional do discurso pautada em texto, prática discursiva e prática social.

No processo de análise, cada entrevista foi lida na íntegra, de forma individual e independente por dois pesquisadores. Em seguida, foram destacados, nos textos das entrevistas, os aspectos discursivos, em especial os modos de operação da ideologia (narrativização, universalização e racionalização), as modalidades ou sistema de modo (recurso gramatical que indica os movimentos interativos do discurso na forma de modalidade epistêmica ou deôntica) e a representação dos processos (relações temporais e atores sociais). As marcações foram validadas pelo conjunto de pesquisadores para verificar o nível de concordância e evitar viés de interpretação individual.

Os elementos discursivos foram analisados e organizados para a discussão nas seguintes categorias: “Compreensão sobre as desigualdades sociais”; “Competências requeridas para atuar diante das desigualdades sociais”; e “Espaços de formação e aprendizagem para lidar com as desigualdades sociais”.

RESULTADOS

Compreensão sobre as desigualdades sociais

Os entrevistados revelam uma compreensão de desigualdade social associada à diferenciação da dimensão econômica bem como dos direitos sociais relacionados ao acesso à educação, saúde, bem-estar e cultura. Os discursos retratam esse entendimento com o emprego dos itens lexicais “desequilíbrio econômico”, “setor financeiro”, “privar” e “não tem acesso a oportunidades” associados ao conceito de desigualdades.

Eu vejo a desigualdade como a questão do desequilíbrio. Aí tem o desequilíbrio na questão social, desequilíbrio na questão econômica, perpassa várias coisas. (LE2)

Eu entendo como sendo as desigualdades um fator relacionado ao setor financeiro; mas assim, quando a gente fala especificamente social, a minha compreensão está relacionada à classe social. (LE4)

Eu entendo que a desigualdade social é privar, não dar todos os direitos básicos constitucionais, né? Como saúde e educação pública. (OP2)

Desigualdade é quando pessoas de diferentes grupos sociais, por conta do lugar que ocupam, não tem acesso às mesmas oportunidades. […] o acesso aos bens, aos serviços e às condições de vida e, inclusive, de felicidade […] de bem-estar. (OP3)

Entende-se que o discurso dos participantes reflete a ideologia dominante da análise das desigualdades no campo das relações econômicas e das diferenças de classe. Com isso, expressam um conceito político e moral de desigualdade. Associam, também, a desigualdade social ao acesso à saúde, tendo como determinantes a habitação e as condições de vida na periferia.

Há pessoas que se beneficiam mais, e no final acaba não sendo igualitário, então é uma desigualdade. (LE5)

Eu acho que a diferença é uma coisa que existe, mas, quando essa diferença acarreta danos para uns, é uma questão dialética mesmo, e melhorias ou benefícios para outros, é aí que você tem nesse desequilíbrio a desigualdade. (OP1)

Eu acho que uma coisa interliga a outra, assim […] o nível de doenças que pode ter, o nível do acesso à saúde, de não conseguir ter acesso. Eu acho que a dificuldade do acesso e como as periferias são colocadas […] muitas das periferias não têm condições básicas nem de habitação, então de saúde muito menos. (LE3)

Nos trechos citados, é possível identificar também a estratégia discursiva da “universalização” para caracterizar as condições de saúde nas periferias e distinção da assistência prestada pelos profissionais na rede privada e na rede pública de saúde.

Os participantes reconhecem e destacam, nas entrevistas, grupos populacionais que são diretamente afetados pelas desigualdades: a população da periferia, os pobres, índios, população de rua, as mulheres negras. Discursivamente, a estratégia da narrativização revela o reconhecimento dos fenômenos sócio-históricos que marcam a origem das desigualdades a que esses grupos sociais sãosubmetidos.

A desigualdade afeta, muito fortemente, as mulheres, os mais vulneráveis: mulheres, pobres, negros, índios, é… enfim […] os excluídos da vida, enfim […] populações de rua, enfim. […] e as mulheres negras, é […] estão no topo, infelizmente, dessa desigualdade, então elas estão em condições piores que os homens negros, com mulheres negras são o fim, né? Sãoas mais atingidas pela desigualdade. (OP3)

Muitas periferias não têm condições básicas nem de habitação, então de saúde muito menos. (LE3)

O caminho que os moradores precisam passar até chegar à unidade […] são casas instaladas em cima de rio, então as estabilidades das casas não são lá aquelas coisas. […] Então tudo isso é desigual. Fora as situações de miséria e de pobreza. Mas […] é muita coisa, é muita coisa [risos], mas o que a gente tenta atender muito é a população ribeirinha, que a situação é muito séria. (LE1)

O entendimento da desigualdade social é apresentado ainda por uma crítica ao papel do Estado, sendo descrito como um problema estrutural.

As próprias iniquidades que promovem as desigualdades são promovidas pelo próprio estado, que deveria promover esse acesso, né, essa igualdade. Diminuir essas desigualdades. Mas pelo contrário, ele legitima através de políticas diretas e indiretas. Osistema público de saúde brasileiro, apesar dele ser universal, ele é muito controverso. Ele tem um problema político. Desde a ditadura militar, há uma lei que reduz despesas gastas com saúde, então de certa forma é um incentivo direto às pessoas a pagar um plano de saúde. (OP2)

Então, primeiro essa desigualdade […] social, que é muito estrutural na sociedade, tá certo? […] as mulheres, por conta da especificidade de gênero, e […] por conta de serem culturalmente e socialmente, as responsáveis pelos cuidados com a família, com os filhos, com os mais velhos, têm menos oportunidade de avanço social e, por conta de seu gênero, ainda recebem menos salário, isso gera uma desigualdade. (OP3)

Discursivamente, o emprego da narrativização e racionalização revela os efeitos da desigualdade estrutural sobre as mulheres, trazendo elementos históricos e uma construção de argumentos que legitimam esse posicionamento.

Competências requeridas para atuar diante das desigualdades sociais

Os discursos dos participantes apresentam elementos acerca das competências necessárias à enfermagem no enfrentamento das desigualdades sociais, desenvolvendo duas linhas de descrição das intervenções esperadas do enfermeiro: uma que se associa ao atendimento mais individualizado, com as demandas caso a caso; e outra que aciona um papel político mais coletivo, de participação e controle social.

[…] eu não tenho como unir o meu conhecimento científico e tentar amenizar essas desigualdades, se eu não consigo ter um olhar personalizado para cada paciente, se a minha demanda ela não ajuda. (LE1)

Acho que a enfermagem tem abertura de, na educação em saúde, abordar vários temas, não só do cuidado com o corpo na área de saúde, mas temas sobre políticas, debate e fazer a população ficar mais envolvida. (LE3)

O profissional […] ele tem que ser, incentivar a participar nas instâncias representativas como conselhos locais, assento nos conselhos de saúde tanto no âmbito municipal, estadual como federal, nos conselhos locais de saúde. (OP2)

Eu acho assim: o que a enfermagem poderia estar usando pra combater as desigualdades seria uma iniciativa de ação voluntária. Eu, por exemplo, participo de várias ações. (LE5)

Os discursos são marcados pelo comprometimento, identificação relacional e por modalidades epistêmicas e deônticas, que caracterizam a posição de obrigação e necessidade da profissão em “ter”, “ter como” e “poder estar” atuando com os indivíduos em situações de desigualdades.

Há menção a um papel político da enfermagem apresentado por expressões que modalizam as afirmações (Eu vejo assim, entendeu? Eu acho que tem, assim) num discurso que é construído associando expressões valorativas, como “ampliadas” e “aquelas que extrapolam”, intertextualmente remetendo à noção de campo e núcleo de saberes profissionais.

É […] o Gastão Wagner [CAMPOS] fala bastante disso, de competências de campo, que são necessárias ao trabalhador em saúde desse campo de especialidade que a gente trabalha, que são competências mais ampliadas […]. Então, as competências de campo, competências ampliadas, competências que são aquelas que extrapolam ao campo das competências específicas, são aquelas que nos colocam no lugar de engajamento, de ampliar participações, de convocar coletivos para uma ação organizada! (OP3)

A enfermagem contra essas desigualdades, eu vejo assim; […] de se envolver em questões de lutas das populações que vivem essa desigualdade diariamente, […]. De estarmos envolvidos nas questões até mesmo dentro da própria cidade em que está o campus, envolvimento com as questões de lutas de classes entendeu? Porque tudo isso perpassa pra ir de encontro com essas desigualdades. (LE2)

Eu acho que tem ações muito interessantes, assim […] quando a enfermagem engajada, doponto de vista do engajamento político, do ativismo. Enfim […] como agentes sociais, nós trabalhamos pela redução da pobreza, pela inclusão de populações mais vulneráveis. (OP3)

Assim como a advocacia e competência política, os participantes elencaram a comunicação e liderança, além de outros atributos e habilidades necessárias para os enfermeiros alcançarem êxito no enfrentamento das desigualdades sociais: criatividade, humanização, discernimento, ética.

Eu não sei se a gente pode chamar de competências, mas eu já ouvi falar muito esse nome na promoção; as professoras de promoção citam muito, que é aquela coisa do advocacy, né, de você advogar por e falar por. Deixa eu ver o que tem mais; eu não sei se isso seria exatamente uma competência, mas a questão da humanização. (LE4)

Então, se eu pudesse elencar competências, seria três: liderança, comunicação e discernimento, que eu consiga lembrar, porque eu acho isso muito importante, porque falta muito pra gente. (LE1)

Competência política, comunicação e liderança. (LE2)

Opinião e ética, porque é o princípio. Se a gente tiver ética, a gente não vai ter desigualdade. (LE5)

Espaços de formação e aprendizagem para lidar com as desigualdades sociais

Os participantes estabelecem uma crítica à formação dos profissionais de enfermagem, no que se refere à forma como a temática das desigualdades sociais é abordada nos cursos de graduação. Referem que as desigualdades sociais recebem abordagens pontuais, incitadas por questionamentos e dúvidas dos alunos, ou por iniciativas isoladas de determinadas disciplinas e em atividades nãoobrigatórias do curso.

Eu vejo que tem essa carência de mais pares; no caso, os estudantes de Enfermagem. (LE2)

[Essas competências são adquiridas ou desenvolvidas durante a formação do acadêmico na sua instituição?] Infelizmente não. Assim, eu acho que a gente adquire muito isso quando a gente começa a militar, eu acho […]. Acho que não é a academia que vai proporcionar isso pra gente. (LE3)

No meu curso, as desigualdades, fica meio restrito, sabe? Tipo, as disciplinas que são disciplinas de saúde coletiva ou os professores da saúde coletiva, eles sempre tocam no assunto, e aí fica uma coisa tipo uma caixinha, tá dentro da caixa da disciplina. (LE4)

Então, ao meu ver, eu acredito que é um problema de formação. A enfermagem tem que sair dessa caixinha. (OP2)

Elas [desigualdades sociais] não são, e nós estamos fazendo o possível para fazer isso, é muito difícil fazer isso, porque isso foge ao escopo do que está nos planos curriculares, que são as competências que tem lá, as competências nucleares. […] Mas a gente não transversaliza esse tema, por exemplo na formação! (OP3)

As dificuldades na formação se refletem diretamente no desenvolvimento de competências para o enfrentamento das desigualdades sociais entendidas como uma “carência” e fruto de “má formação política”.

E a universidade, o que eu tenho olhado por aqui, porque eu visito vários estados e algumas universidades, eu sinto essa carência de se ter esse chamamento, da academia de trazer o aluno: “Vamos discutir política”, “Vamos pensar politicamente”. (LE2)

E a gente observa que o problema é macro. É desde a formação, uma questão histórica da constituição da enfermagem, assim, da predileção profissional em discutir assuntos técnicos e não políticos, da má formação política. (OP2)

A militância é identificada no discurso dos estudantes como uma oportunidade para compreender e atuar sobre o enfrentamento das desigualdades. Nesse sentido, é considerada um espaço para o desenvolvimento de competências com tal foco. Os discursos se apresentam por meio de processos materiais e de relações causa-efeito que indicam a participação na ação (militância) como espaço de transformação dos atores sociais.

A militância te faz voltar muito às comunidades e periferias, te faz refazer falas. Porque a academia é isso: se você não falar o termo técnico, você não sabe. Então se você for militante, você é obrigado a não usar esses termos, porque as pessoas acabam não entendendo. (LE3)

Os representantes das organizações profissionais indicaram o poder associativo como espaço político para discussão das desigualdades.

Então a gente tá nessa perspectiva de conscientizar os profissionais, então a gente tá fazendo rodas de conversas com discussão, levando conhecimento, problematizando, né, o Sistema Único de Saúde, o momento político. […] A gente advoga por um corporativismo, mas que eu chamo de corporativismo progressista. (OP2)

A gente tem ocupado também, vários espaços de discussão, seja nacionais ou internacionais sempre levando uma posição de defesa do SUS, de defesa da democracia, como é a tradição. […] Para mim, a grande rigorosidade é olhar a realidade seja ela qual for e tentar compreender essa realidade para fazer o enfrentamento das iniquidades. (OP1)

Nós trabalhamos, especialmente, fortalecendo a implementação de políticas públicas, jáentendendo que políticas públicas, em um país de desigualdade, são políticas sociais. Então, nós trabalhamos na implementação de políticas públicas, na elaboração de políticas públicas […]. Uma outra coisa, que a gente faz, é trabalhar com pesquisas, grandes pesquisas, que deem conta não apenas no panorama dessa desigualdade, mas se pensando no que se pode fazer para a superação delas. (OP3)

A competência política está retratada nos discursos por meio da representação de processos materiais, cujas ações e eventos discursivos são apresentados com uma ocorrência temporal que indica a permanência desses processos ao longo do tempo (levando, problematizando, fortalecendo). Ainda, a representação dos atores sociais por inclusão (a gente, nós) sinaliza o comprometimento individual e coletivo com o enfrentamento das desigualdades por diferentes maneiras de atuar.

DISCUSSÃO

Os resultados apontam a compreensão da desigualdade social nos seus diferentes aspectos e entendimentos relacionados às dimensões econômica/financeira, de acesso à educação, saúde, cultura, riqueza e pobreza. Os elementos lexicais, na análise crítica do discurso, fornecem evidências das representações a serem transmitidas(1212 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001. 338p.). Assim, a linguagem utilizada expressa a posição ou ponto de vista sobre determinado fenômeno.

Ao expressarem a compreensão dos determinantes sociais como condição que gera desigualdades, os participantes remetem aos fatores que afetam de maneira distinta os grupos e classes sociais. Em especial, reconhecem a historicidade e as desvantagens sociais que acometem, especialmente, as periferias, os pobres, as mulheres negras e as populações mais vulneráveis, revelando a visão de mundo por meio do discurso.

Determinantes sociais da saúde (DSS) são as condições que marcam o modo de viver das pessoas e têm influência sobre a saúde, incluindo educação, emprego, nível de renda, gênero, etnia, habitação e acesso aos cuidados de saúde. Os enfermeiros têm uma longa história e um papel significativo na redução das desigualdades, devendo considerar o reconhecimento dos DSSs como prioridade para empoderar indivíduos e comunidades na busca de equidade(1313 Hemingway A, Bosanquet J. Role of nurses in tackling health inequalities. JCN Online J [Internet]. 2018 [cited 2020 Sep 23];32(6):62-64. Available from: https://www.jcn.co.uk/journal/12-2018/comment/2073-role-of-nurses-in-tackling-health-inequalities
https://www.jcn.co.uk/journal/12-2018/co...
).

Os discursos, com estratégias simbólicas de narrativização, universalização e racionalização, informam uma prática social orientada pela ideologia da justiça social e das lutas de classe. Esseachado pode ter relação com o perfil dos participantes do estudo, todos ligados a espaços de militância política e organização profissional.

Os grupos mais vulneráveis socialmente, cujos direitos humanos se encontram violados, apresentam maiores necessidades de saúde devido às carências a que estão submetidos; entretanto, esses grupos são os que mais encontram dificuldades no acesso aos serviços(1414 Fiorati RC, Arcêncio RA, Souza LB. Social inequalities and access to health: challenges for society and the nursing field. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016;24:e2687. https://doi.org/10.1590/1518-8345.0945.2687
https://doi.org/10.1590/1518-8345.0945.2...
). À medida que entendemos que o conhecimento e os recursos existem para melhorar a saúde de todos, consideramos tais iniquidades injustas, e evitá-las é uma questão de justiça social(1515 Comissão da Organização Pan-Americana da Saúde sobre Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas. Sociedades justas: Equidade em saúde e vida com dignidade. Relatório da Comissão da Organização Pan-Americana da Saúde sobre Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas [Relatório] [Internet]. Washington, D.C, 2019[cited 2020 Sep 23]. 326p. Available from: https://iris.paho.org/handle/10665.2/51613
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).

Os discursos referem-se também à compreensão de que as desigualdades, além de detectáveis nos fatores econômicos, também geram situações de iniquidade, pois produzem danos, criam desequilíbrios e distanciam as pessoas. Nesse sentido, evidencia-se a perspectiva da equidade baseada no reconhecimento da ética e dos direitos humanos como concepções que marcam a prática social do discurso sobre desigualdade social.

Nesse contexto, a discussão sobre a função do Estado adquire centralidade, uma vez que assume papel fundamental na garantia do acesso a condições inerentes a um cidadão. Assim,aredução das desigualdades sociais e da pobreza requer grandes investimentos e políticas redistributivas(1515 Comissão da Organização Pan-Americana da Saúde sobre Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas. Sociedades justas: Equidade em saúde e vida com dignidade. Relatório da Comissão da Organização Pan-Americana da Saúde sobre Equidade e Desigualdades em Saúde nas Américas [Relatório] [Internet]. Washington, D.C, 2019[cited 2020 Sep 23]. 326p. Available from: https://iris.paho.org/handle/10665.2/51613
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).

Os participantes tecem uma crítica ao sistema de saúde brasileiro, cuja construção histórica admitiu uma subdivisão entre público e privado, com desvantagens da parcela pública seja pela dificuldade de acesso da população, seja pelo subfinanciamento a ela destinado. Essa contradição inerente ao sistema de saúde reflete os limites da proteção social do Estado brasileiro que, em razão dos recursos financeiros escassos ou subtraídos, deixa de assistir aqueles que mais necessitam.

Ressalta-se que, para redução das desigualdades no acesso à saúde, é preciso garantir a sustentabilidade do SUS e construir uma cultura inversa à lógica predatória do mercado. Nessecampo, os profissionais de enfermagem têm um papel imprescindível, seja pela sua expressão numérica à frente do Sistema, seja pelo seu potencial de atuar com os indivíduos e grupos sociais pela reversão das situações que produzem desigualdades.

Esse comprometimento da enfermagem com ações de promoção da justiça, de visibilidade e combate às relações desiguais é próprio da construção dialética da profissão ao longo da sua formação social, revelando contradições, limites e avanços.

Historicamente, as práticas de cuidado aos enfermos foram desempenhadas, primeiramente, por leigos e, posteriormente, com o advento do cristianismo, pelas irmãs de caridade. Dessa forma, princípios cristãos de amor ao próximo, altruísmo e fraternidade marcaram ideologicamente o desenvolvimento da enfermagem.

No século XIX, na Inglaterra, a enfermagem profissional moderna, erigida por FlorenceNightingale, surgiu das experiências pessoais de uma educação aristocrática privilegiada, que lhe permitiu ter acesso a vários idiomas, matemática, religião e filosofia, o que trouxe princípios científicos para o exercício do cuidado. Os fundamentos que embasaram a criação da profissão também sofreram influência da vida religiosa e dos pressupostos cristãos de fazer o trabalho de Deus, amenizar o sofrimento, ajudar os pobres, seguir as regras de conduta e formas de cuidar dos doentes, observados durante a convivência de Florence com as Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo, em Paris(1616 Padilha MICS, Mancia JR. Florence Nightingale and charity sisters: revisiting the history. Rev Bras Enferm. 2005;58(6):723-6. Available from: https://doi.org/10.1590/S0034-71672005000600018
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200500...
).

Por outro lado, a conformação da profissão tem um polo oposto e contraditório, tambéminfluenciado por Florence e seus conhecimentos e atuação advindos do saber epidemiológico, do seu papel social, político e educativo na construção da profissão. Assim, aos princípios de religiosidade e moralidade que fundamentaram a criação da profissão, associam-se os princípios de um agir político na busca de relações sociais mais justas(1717 Brandão APCL, Galluzzi ML. Aspectos epistemo-cognitivo-filosóficos no ideário de Florence Nightingale (1890-1910). Rev Scientiarum His [Internet]. 2019 [cited 2020 Apr 30];2:e0100. Available from: revistas.hcte.ufrj.br/index.php/RevistaSH/article/view/100).

O legado de Florence demonstra que o fazer da enfermagem deve ser reflexivo ao superar o tecnicismo e adotar uma postura crítica, compreendendo o papel do enfermeiro com o compromisso social, relacionando sempre o conhecimento à prática. A historicidade desse processo carrega marcas de um fazer que foi, ao longo dos tempos, se modificando e alcança, nos dias atuais, uma representação discursiva, expressa pelos participantes como competências para enfrentar as desigualdades sociais.

Há uma identificação relacional da enfermagem na atuação e defesa contra as desigualdades, especialmente como parte do seu trabalho, necessário e desejável, na educação em saúde, nas atividades assistenciais e no incentivo à participação. Com isso, o discurso que se constrói é de responsabilização, com modalidades deônticas que revelam o mandato moral da enfermagem e o legado da ação política de Nightingale como expressão de cuidado para promover a saúde(1818 Falk-Rafael A. Speaking truth to power: nursing's legacy and moral imperative. ANS Adv Nurs Sci. 2005; 28(3):212-23. https://doi.org/10.1097/00012272-200507000-00004
https://doi.org/10.1097/00012272-2005070...
).

Nessa direção, os achados indicam que a atuação do enfermeiro diante das desigualdades sociais se faz por meio de competências, em especial: advocacia, competência política, liderança, ética. Os resultados apontam ainda habilidades e outros atributos que são mobilizados perante indivíduos ou contextos de desigualdades: discernimento, humanização, sensibilidade, empatia.

Faz-se importante ressaltar que a advocacia em saúde é uma competência central para abordagem e atuação em face das desigualdades sociais, apresentada em conjunto com a competência política e liderança. Por ser uma prática que busca a democracia justa e representativa, a advocacia auxilia no fortalecimento de diferentes atores sociais nos debates de interesse público.

Os resultados demonstram que a enfermagem pode atuar ante as desigualdades sociais por meio da advocacia em saúde, a qual, diga-se de passagem, é uma expectativa recente na enfermagem. Noentanto, a análise das correspondências pessoais e documentos oficiais, relacionados à assistência médica nas forças armadas britânicas e nas forças ocupacionais no continente indiano, permiteidentificar marcos da advocacia no trabalho desempenhado por Florence, principalmente na promoção de direitos humanos igualitários, proteção a grupos vulneráveis e de suas atividades deliderança.

Nightingale desempenhou ações de defesa da enfermagem e de pacientes ao instituir padrões de formação profissional e de atendimento, assumindo um lugar de liderança para alcançar as mudanças desejadas e defender um sistema de valores igualitários na saúde(44 Selanders L, Crane P. The Voice of Florence Nightingale on Advocacy. Online J Issues Nurs. 2012;17(1). https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol17No01Man0
https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol17No01Ma...
). Nesse sentido, o novo associado à advocacia na enfermagem carrega as marcas históricas de um agir com ativismo político. Essa relação velho-novo revela o movimento dialético permanente dos fenômenos sociais, nos quais se inclui a enfermagem.

A mobilização é parte de um trabalho de advocacia em saúde. Nesse contexto, Farrer et al.(1919 Farrer L, Marinetti C, Cavaco YK, Costongs C. Advocacy for Health Equity: a synthesis review. Milbank Quarterly. 2015;93:392-437. https://doi.org/10.1111/1468-0009.12112
https://doi.org/10.1111/1468-0009.12112...
) apontam que a mobilização social deve envolver a capacitação dos grupos desfavorecidos a fim de terem voz e construírem uma ampla base de apoio para exercer pressão sobre os decisores políticos.Épossível identificar o pioneirismo de Florence Nightingale em iniciativas de mobilização social da enfermagem para defesa do progresso nos cuidados aos enfermos da Guerra da Criméia e nas condições de saneamento da Índia. Estratégias políticas como o uso da sua posição pessoal, das habilidades de comunicação e de evidências epidemiológicas e estatísticas são encontradas em documentos da época(44 Selanders L, Crane P. The Voice of Florence Nightingale on Advocacy. Online J Issues Nurs. 2012;17(1). https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol17No01Man0
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).

A mobilização social também inclui a influência sobre os processos eleitorais(1919 Farrer L, Marinetti C, Cavaco YK, Costongs C. Advocacy for Health Equity: a synthesis review. Milbank Quarterly. 2015;93:392-437. https://doi.org/10.1111/1468-0009.12112
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) num esforço de engajamento político capaz de produzir mudanças na elaboração, aprovação e implementação de políticas. Esses elementos estão presentes nos discursos dos participantes evidenciando a compreensão e a prática da advocacia pela defesa da equidade num exercício de mobilização, participação, ocupação/representação em espaços/órgãos públicos.

Os achados direcionam ao entendimento de que a competência política também é central no enfrentamento das desigualdades sociais e se mescla à advocacia na compreensão dos entrevistados.

Sonenberg, Leavitt e Montalvo(2020 Sonenberg A, Leavitt JK, Montalvo W. Learning the ropes of policy and politics. In: Mason D, Gardner DB, Outlaw FH, O’ Grady ET. Policy & Politics in Nursing and Health. 8. ed. Ed Kindle; 2020. Chapter 4; p. 38-48.) apresentam um espectro sobre competência política que evolui de um nível inicial até um nível mais avançado de ação. Nesse espectro, incluem-se atividades que conformam os atributos da competência política tais como aprender sobre advocacia e ativismo, considerar a saúde e as questões sociais, engajar-se em ações voluntárias e campanhas, participar dos espaços de democracia, influenciar políticos e políticas, participar de organizações profissionais, realizar lobbies, construir coalizões, entre outras.

Com isso, reafirma-se que, desde Florence Nightingale, o papel político na atuação do enfermeiro é ressaltado num entendimento de que o profissional deve se envolver nas lutas de classes, com engajamento político e ativismo para redução da pobreza.

A enfermagem se vê diante de muitos limites para o enfrentamento das desigualdades sociais, seja em termos de recursos e tecnologias, seja na própria formação desse profissional, devido ao seu grande enfoque assistencialista, com conhecimento restrito no que se refere ao Estado de Direito(1414 Fiorati RC, Arcêncio RA, Souza LB. Social inequalities and access to health: challenges for society and the nursing field. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016;24:e2687. https://doi.org/10.1590/1518-8345.0945.2687
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).

Os achados informam que as competências para atuação diante das desigualdades sociais poderão ser aprendidas e apreendidas com destaque na educação experiencial. Essa educação se sustenta na aprendizagem em serviço, com atividades de extensão e extracurriculares, em articulação com a comunidade e serviços de saúde e aproximação dos espaços de formação política e social, na militância e movimento estudantil e nas associações da categoria.

Contraditoriamente, a pesquisa indica possíveis fragilidades da formação acadêmica para a atuação em face das desigualdades, na perspectiva dos participantes. Assim, esse tema está presente nos cursos, contudo com abordagens pontuais e, muitas vezes, de iniciativas individuais. Acontradição, como categoria dialética, apresenta-se como uma contraposição de ideais a respeito do mundo e que é geradora de mudanças ao oportunizar a negação e a (re)construção de dada realidade objetiva.

Discursivamente, a militância é apresentada como a ação que possibilita criação e transformação dos atores. Nesse sentido, é considerada um espaço para o desenvolvimento de competências para atuar diante das desigualdades sociais. Dessa forma, avança-se no desenvolvimento da profissão, que visa a uma atuação para além da técnica, abordando as necessidades humanas envolvidas nas práticas sociais como parte do cuidado de enfermagem na sua função política.

Contudo, em um estudo realizado por Laitano et al.(2121 Laitano AC, Silva GTR, Almeida DB, Santos VPFA, Brandão MF, Carvalho AG, et al. Precariousness of the work of the nurse: professional militancy from the perspective of the press. Acta Paul Enferm. 2019;32(3):305-311. https://doi.org/10.1590/1982-0194201900042
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), a militância na enfermagem foi evidenciada como uma prática incipiente, sendo concentrada no âmbito das entidades de classe e movimentos de associações e estudantes, e comandada, em sua maioria, pelos representantes dessas organizações. Nesse sentido, cabe ressaltar uma necessidade de envolvimento e movimento coletivo para o desenvolvimento das ações de militância pela profissão.

Com isso, pode-se reforçar uma prática histórica de atuação com grupos vulneráveis, promovendo a justiça social, legado da ação política construída desde Florence Nightingale.

Limitações do estudo

Este estudo reconhece a possível influência dos contextos pessoais, socioculturais, históricos e políticos dos participantes nos resultados encontrados. Ainda, deve-se considerar como limitação o pequeno tamanho da amostra.

Contribuições para a Área da Enfermagem

O estudo contribui para a prática da enfermagem, tanto na educação quanto na produção do cuidado, avançando na agenda de redução das desigualdades e na construção de relações mais justas, democráticas e cidadãs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que as desigualdades sociais são uma temática de destaque no discurso das lideranças da enfermagem. Sua compreensão está relacionada aos determinantes sociais e ao reconhecimento das desvantagens e vulnerabilidades que atingem diferentes grupos populacionais.

Ao longo dos 200 anos, a enfermagem evoluiu no seu saber-fazer preservando sua centralidade e mandato social na promoção da justiça e na defesa dos vulneráveis. Acredita-se na relevância da continuidade de discussões e pesquisas sobre essa temática, em especial considerando estratégias pedagógicas e formação educacional que possam reafirmar e potencializar a compreensão das desigualdades e a atuação política como legado de Florence Nightingale para a enfermagemcontemporânea.

  • FOMENTO
    Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Maria Saraiva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2020
  • Aceito
    18 Abr 2021
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