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Assistência ao parto domiciliar planejado: desafios enfrentados durante a pandemia da COVID-19

RESUMO

Objetivo:

Conhecer os desafios enfrentados por parteiras urbanas para a assistência ao parto domiciliar planejado durante a pandemia da COVID-19.

Métodos:

Estudo qualitativo, ancorado no referencial metodológico do Discurso do Sujeito Coletivo, realizado com oito profissionais integrantes de um coletivo de assistência ao parto, no Nordeste brasileiro. Os dados foram coletados entre setembro e outubro de 2020 mediante a técnica de grupo focal.

Resultados:

Os discursos coletivos revelaram cinco ideias centrais: Alterar a condução da assistência; Lidar com as frustrações; Encarar o medo da contaminação; Evitar a exposição ao vírus; e Manter-se distanciada durante a assistência.

Considerações finais:

Evidencia-se um contexto pandêmico desafiador para assistência ao parto domiciliar planejado, marcado pela necessidade de proteção coletiva e por angústias advindas do atendimento às recomendações sanitárias. O estudo sinaliza, ainda, a relevância de protocolos oficiais e informações de qualidade que norteiem um atendimento pautado em evidências científicas e na humanização.

Descritores:
Parto Domiciliar; Pandemias; Infecções por Coronavírus; Pessoal de Saúde; Parteira

ABSTRACT

Objective:

To understand the challenges faced by urban midwives in assisting planned home births during the COVID-19 pandemic.

Methods:

Qualitative study, based on the Collective Subject Discourse methodological framework, carried out with eight professionals, members of a birth care collective from the northeast region of Brazil. Data was collected between September and October of 2020 using the focus group technique.

Results:

The collective discourses revealed five central ideas: Changing assistance strategy; Dealing with frustration; Facing the fear of contamination; Avoiding exposure to the virus; and Keeping distance during the care process.

Final considerations:

The challenging condition the pandemic brings to the care of planned home births is made evident, being marked by the need for collective protection and the pressure of following health recommendations. The study also points out the need for official protocols and good quality information based on scientific evidence and humanizing principles to guide health care.

Descriptors:
Home Childbirth; Pandemics; COVID-19; Health Personnel; Midwifery

RESUMEN

Objetivo:

Conocer los desafíos enfrentados por parteras urbanas para la atención al parto domiciliario planeado durante la pandemia de COVID-19.

Métodos:

Estudio cualitativo, ancorado en el referencial metodológico del Discurso del Sujeto Colectivo, realizado con ocho profesionales integrantes de un colectivo de atención al parto, en Nordeste brasileño. Datos fueron recolectados entre septiembre y octubre de 2020 mediante técnica de grupo focal.

Resultados:

Discursos colectivos revelaron cinco ideales centrales: Alterar la conducción de la atención; Lidiar con las frustraciones; Encarar el miedo a contaminación; Evitar la exposición al virus; y Mantenerse distanciada durante la atención.

Consideraciones finales:

Evidencia un contexto pandémico desafiador para atención al parto domiciliario planeado, marcado por la necesidad de protección colectiva y angustias advenidas de la atención a recomendaciones sanitarias. El estudio señaliza, aún, la relevancia de protocolos oficiales e informaciones de calidad que dirija a una atención pautada en evidencias científicas y en la humanización.

Descriptores:
Parto Domiciliario; Pandemias; Infecciones por Coronavirus; Personal de Salud; Partería

INTRODUÇÃO

A assistência ao parto domiciliar planejado (PDP), apesar de ser uma possibilidade viável e com uma tendência crescente no cenário obstétrico brasileiro, ainda é uma alternativa alcançada por poucas mulheres do país. De modo geral, mostra-se uma possibilidade restrita às famílias com maior poder aquisitivo, que podem custear uma equipe privada(11 Cursino TP, Benincasa M. Parto domiciliar planejado no Brasil: uma revisão sistemática nacional. Cienc Saude Colet. 2020;25(4):1433-43. http://doi.org/10.1590/1413-81232020254.13582018
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). No contexto da saúde pública brasileira, apenas um hospital-maternidade implementou esse tipo de assistência (em 2013), o que revela interesse ainda incipiente da gestão em elaborar políticas públicas que tornem acessível essa opção de assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)(22 Conselho Regional de Enfermagem do Espírito Santo. Hospital público mineiro comemora um ano de parto domiciliar [Internet]. Vitória (ES): Coren/ES; 2015[cited 2021 Jan 20]. Available from: http://www.coren-es.org.br/hospital-publico-mineiro-comemora-um-ano-de-parto-domiciliar_5055.html
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). Tal situação contrapõe-se à realidade encontrada na Holanda e Reino Unido, locais com elevadas taxas de partos domiciliares e considerados, mundialmente, modelo de assistência obstétrica(33 Sánchez-Redondo MD, Cernada M, Boix H, Espinosa Fernández MG, González-Pacheco N, Martín A, et al. Home births: a growing phenomenon with potential risks. An Pediatr (Barc). 2020;93(4):266.e1-e6. http://doi.org/10.1016/j.anpedi.2020.04.005
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-44 Cheyney M, Davis-Floyd R. Birth in eight cultures. Long Grove (IL): Waveland Press; 2019. Chapter 1, Birth as culturally marked and shaped; p. 1-16.).

Ainda no que diz respeito ao PDP, é observado posicionamento questionável do Ministério da Saúde (MS), uma vez que evidencia o apoio ainda raso a essa prática no SUS e versa de forma limitada acerca da temática em documentos oficiais. Estes últimos discorrem sobre a aptidão de médicas(os), enfermeiras(os) e obstetrizes para tal assistência e sobre o não desencorajamento das mulheres que escolhem por esse contexto de parto, contudo os benefícios e/ou a importância da normatização dessa modalidade de assistência não hospitalar não são abordados(55 Ministério da Saúde (BR). Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida [Internet]. Brasília, DF: MS; 2017[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_nacionais_assistencia_parto_normal.pdf
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).

Somado à ausência de políticas públicas está o suporte fragilizado dos Conselhos Profissionais no sentido de regulamentar e estimular o atendimento ao PDP, bem como estabelecer diretrizes e protocolos específicos. Nesse contexto, as(os) médicas(os), quando não são proibidas(os) de atuarem nesse cenário, lidam com o desencorajamento de tais entidades quanto a esse tipo de assistência(66 Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro. Resolução n. 265/12. Dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos domiciliares. DOE RJ. 19 Jul 2012;(parte V):10.-77 Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina. Resolução nº 193/2019. Dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos fora do ambiente hospitalar; dispõe sobre a proibição de adesão [...]. DOE SC. 26 Ago 2019;22.). Essa conjuntura ancora-se na justificativa de risco aumentado por acontecer no ambiente domiciliar, reforçando a cultura hospitalocêntrica sobre o evento do parto(88 Denipote AGM, Lacerda MR, Nascimento JD, Tonin L. Parto domiciliar planejado no Brasil: onde estamos e para onde vamos? Res Soc Dev. 2020;9(8):e837986628. http://doi.org/10.33448/rsd-v9i8.6628
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). Por outro lado, é possível vislumbrar evoluções para tal prática quando realizada por enfermeiras(os), apoiadas, de maneira geral, por notas e pareceres técnicos do Conselho da classe(99 Conselho Federal de Enfermagem (BR). Parecer Técnico CNSM/COFEN nº 003/2019. Parecer Técnico para alinhamento da “regulação e prática da enfermagem obstétrica no espaço do parto domiciliar planejado”, conforme designação da Portaria COFEN nº 1092 de 17 de 2019 [Internet]. Brasília, DF: COFEN; 14 Aug 2019[cited 2021 Jan 19]. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2019/10/PARECER-T%C3%89CNICO-CNSM-COFEN-N%C2%BA-003-2019.pdf
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10 Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo. Parecer COREN-SP GAB nº 012/2011. Parto domiciliar [Internet]. São Paulo: COREN/SP; 11 Mar 2011[cited 2021 Jan 19]. Available from: https://portal.coren-sp.gov.br/wp-content/uploads/2013/07/parecer_coren_sp_2011_12.pdf
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11 Conselho Regional de Enfermagem da Bahia. Parecer COREN-BA nº 023/2015. Atendimento domiciliar pelo enfermeiro obstetra (pré-natal, parto e puerpério) [Internet]. Salvador (BA); 27 Nov 2015[cited 2021 Jan 19]. Available from: http://ba.corens.portalcofen.gov.br/wp-content/uploads/2016/06/PT-023-ATENDIMENTO-DOMICILIAR-PELO-ENFERMEIRO-OBSTETRA.pdf
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-1212 Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina. Parecer Técnico COREN/SC nº 023/CT/2016. Parto Domiciliar Planejado [Internet]. Florianópolis (SC): COREN/SC; 14 Dec 2016[cited 2021 Jan 20]. Available from: http://www.corensc.gov.br/wp-content/uploads/2017/01/PT-023-2016-Parto-Domiciliar-Planejado.pdf
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).

Essa realidade demanda dos profissionais que atuam no PDP, obstetrizes, enfermeiras e médicas obstetras — que, comumente, se autointitulam “parteiras urbanas” — a elaboração de rotinas próprias de assistência, as quais devem contemplar o acompanhamento do binômio no domicílio durante o transcurso entre a gestação e o pós-parto. De maneira geral, o que ocorre é a adaptação do modelo de assistência hospitalar para o ambiente doméstico, priorizando as práticas humanizadas na atenção ao parto e nascimento e distanciando-se daquelas de caráter intervencionista(1212 Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina. Parecer Técnico COREN/SC nº 023/CT/2016. Parto Domiciliar Planejado [Internet]. Florianópolis (SC): COREN/SC; 14 Dec 2016[cited 2021 Jan 20]. Available from: http://www.corensc.gov.br/wp-content/uploads/2017/01/PT-023-2016-Parto-Domiciliar-Planejado.pdf
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-1313 Koettker JG, Bruggemann OM, Freitas PF, Riesco MLG, Costa R. Obstetric practices in planned home births assisted in Brazil. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03371. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017034003371
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). Esse contexto pode contribuir para uma maior proximidade física e pessoal entre a(o) profissional e a mulher, o que a auxilia no protagonismo do seu parto e favorece uma prática mais acolhedora(1414 Oliveira PS, Couto TM, Gomes NP, Campos LM, Lima KTRS, Barral FE. Best practices in the delivery process: conceptions from nurse midwives. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):455-62. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0477
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).

No entanto, a pandemia da COVID-19 demandou a necessidade de adaptação na atuação profissional diante do risco de contaminação. Estudos internacionais mostram a alta taxa de transmissibilidade e potencial de letalidade da doença, sobretudo em profissionais de saúde, aomesmo tempo em que a contaminação pelo vírus pode acarretar complicações graves para o binômio (mãe-feto)(1515 World Health Organization. Transmission of SARS-CoV-2: implications for infection prevention precautions [Internet]. Geneva: WHO; 9 Jul 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/transmission-of-sars-cov-2-implications-for-infection-prevention-precautions
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-1616 Nakamura‐Pereira M, Andreucci CB, Menezes MO, Knobel R, Takemoto MLS. Worldwide maternal deaths due to COVID‐19: a brief review. Int J Gynaecol Obstet. 2020;151(1):148-50. http://doi.org/10.1002/ijgo.13328
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). No cenário brasileiro, dados da morbimortalidade materna por conta da doença são alarmantes, o que repercutiu na emissão de boletim epidemiológico do MS que coloca as gestantes e puérperas como grupos de risco da COVID-19(1616 Nakamura‐Pereira M, Andreucci CB, Menezes MO, Knobel R, Takemoto MLS. Worldwide maternal deaths due to COVID‐19: a brief review. Int J Gynaecol Obstet. 2020;151(1):148-50. http://doi.org/10.1002/ijgo.13328
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17 Takemoto MLS, Menezes MO, Andreucci CB, Knobel R, Sousa LAR, Katz L, et al. Maternal mortality and COVID-19. J Matern Fetal Neonatal Med. 2020. http://doi.org/10.1080/14767058.2020.1786056
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-1818 Ministério da Saúde (BR). Doença pelo coronavírus: 2019. Bol Epidemiol [Internet]. 3 Apr 2020[cited 2021 Jan 20];(6):1-23.Available from: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/03/BE6-Boletim-Especial-do-COE.pdf
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).

Nesse sentido, a não regulamentação da prática assistencial ao PDP revelou-se um problema ainda mais complexo, haja vista a necessidade de estruturação de novos protocolos que priorizem a segurança da família e da equipe que atua nessa assistência. Assim, é relevante conhecer como tem ocorrido a atuação das parteiras profissionais no cenário de parto domiciliar em um contexto pandêmico, o que pode contribuir para a elaboração de estratégias de adaptação desse modelo de assistência.

OBJETIVO

Conhecer os desafios enfrentados por parteiras urbanas para a assistência ao parto domiciliar planejado durante a pandemia da COVID-19.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Cientes dos objetivos, riscos e benefícios da pesquisa, asparticipantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Salienta-se que foram informadas, ainda, sobre a gravação das falas (por meio de equipamento portátil) e posterior arquivamento virtual dos documentos de transcrição pelo período de cinco anos. Por fim, de maneira a preservar o anonimato das participantes, seus nomes foram substituídos por um código formado pela letra E ou M, fazendo referência às classes profissionais “enfermeira” ou “médica”, respectivamente, seguida de um algarismo arábico escolhido de maneira aleatória para cada entrevistada (p.ex., E1, M1, E2, M2).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa norteada pelo instrumento Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ) e ancorada no referencial metodológico do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), elaborado por Lefèvre e Lefèvre(1919 Lefevre F, Lefevre AMC, Marques MCC. Discurso do Sujeito Coletivo, complexidade e auto-organização. Cienc Saude Colet. 2009;14(4):1193-204. http://doi.org/10.1590/S1413-81232009000400025
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). É fundamentada nos pressupostos da Teoria das Representações Sociais: esse método permite agrupar diferentes falas, isto é, estruturas sociocognitivas que representam expressões-chave, com base nas quais se constrói um pensamento coletivo que revela a Ideia Central Síntese (ICS), e nesta se encontra a essência do seu conteúdo(1920).

Cenário do estudo

O cenário do estudo foi um coletivo de assistência ao parto humanizado de uma capital da Região Nordeste do Brasil. Ressalta-se que se trata de um grupo formado por enfermeiras e médicas obstetras, autointituladas “parteiras urbanas”. A denominação “coletivo” se deve à filosofia de trabalho que as profissionais seguem, cujas características e princípios encontram-se pautados, sobretudo, na transdisciplinaridade e horizontalidade da assistência.

Fonte dos dados

Estabeleceu-se como critério de inclusão na pesquisa ser profissional de saúde integrante de coletivo de parto e atuante no cenário do PDP. Por outro lado, foram excluídas as participantes que estavam afastadas das suas atividades laborais em razão de licença-maternidade ou férias.

A escolha da população de estudo se deu de forma intencional pelas pesquisadoras, sendo o convite realizado por meio de ligação telefônica. Ao total, integraram a pesquisa oito profissionais de saúde do sexo feminino, com faixa etária entre 30 e 61 anos, dentre elas quatro médicas e quatro enfermeiras, todas especialistas na área obstétrica. O tempo de experiência na assistência ao PDP variou entre 6 meses e 30 anos.

Coleta, organização e análise dos dados

Para a realização da coleta de dados, ocorrida entre setembro e outubro de 2020, as pesquisadoras responsáveis aproximaram-se previamente das participantes mediante a integração nas reuniões semanais da equipe de parteiras urbanas (enfermeiras e médicas obstetras), que acontecem virtualmente por meio da plataforma Google Meet. Esse recurso tecnológico também foi utilizado para o processo de coleta em si. A primeira etapa de obtenção dos dados compreendeu encontros individuais das pesquisadoras com cada uma das participantes da pesquisa, momentos com duração média de 35 minutos, em que foram realizadas perguntas contidas em um questionário previamente elaborado com fins de caracterização sociodemográfica e profissional do grupo.

Após essa etapa, ocorreu um encontro coletivo entre todas as parteiras e pesquisadoras realizado na forma de Grupo Focal (GF). Por meio dessa estratégia, depois de serem lançadas as perguntas pelas investigadoras, as colaboradoras puderam interagir e dialogar entre si, compartilhando suas vivências, expondo suas opiniões, levantando discussões e provocando reflexões acerca da temática de assistência de parteiras urbanas ao PDP durante a pandemia(2121 Dall’Agnol CM, Magalhães AMM, Mano GCM, Olschowsky A, Silva FP. A noção de tarefa nos grupos focais. Rev Gaucha Enferm. 2012;33(1):186-90. http://doi.org/10.1590/S1983-14472012000100024
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). Previamente ao início do GF, que teve duração de 40 minutos, as profissionais aceitaram participar de um momento de integração, no qual foi realizada uma rodada de apresentação e aplicadas dinâmicas de aproximação. Isso contribuiu para que se sentissem acolhidas e seguras para falar sobre suas vivências pessoais durante o GF.

Para a condução desse espaço coletivo de maneira organizada e proveitosa, as pesquisadoras elaboraram um formulário semiestruturado, contendo questões abertas elaboradas com base em uma questão norteadora, a saber: “Fale-me sobre a assistência prestada ao PDP durante a pandemia da COVID-19”.

Atendo-se ao rigor metodológico do estudo, os critérios estabelecidos pelo COREQ foram utilizados para nortear a trajetória metodológica da investigação. Nesse sentido, a coleta de dados foi realizada por pesquisadoras responsáveis pelo presente trabalho que apresentavam experiência prévia na condução desses momentos de investigação. Posteriormente, em posse da gravação do GR, as falas das participantes foram transcritas na íntegra por uma graduanda em Enfermagem que recebeu treinamento para executar tal atividade. Em seguida, a transcrição foi validada por duas pósgraduandas envolvidas com o presente trabalho, confirmando a preservação do conteúdo da entrevista. Por fim, o documento contendo a transcrição foi encaminhado para as colaboradoras do estudo, possibilitando a leitura de todo o conteúdo e confirmação de que expressavam de maneira fidedigna os seus discursos.

Finalizado o processo de coleta, apoiando-se nos pressupostos metodológicos do DSC, procedeu-se à sistematização dos dados. A princípio, as falas foram agrupadas de acordo com a expressão-chave que apresentavam, possibilitando emergir Ideias Centrais Síntese em torno de discursos elaborados na primeira pessoa do singular e que evidenciassem representação coletiva acerca da temática(1919 Lefevre F, Lefevre AMC, Marques MCC. Discurso do Sujeito Coletivo, complexidade e auto-organização. Cienc Saude Colet. 2009;14(4):1193-204. http://doi.org/10.1590/S1413-81232009000400025
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-2020 Lefevre F, Lefevre AMC. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: metodologia do discurso do sujeito coletivo. Brasília, DF: Liber Livro; 2010.) (Quadro 1). Esses discursos encontrados foram analisados, interpretados e discutidos com base em referencial contido na literatura científica atual sobre parto domiciliar, assistência obstétrica humanizada e COVID-19.

Quadro 1
Ideias Centrais Síntese dos discursos de parteiras urbanas sobre os desafios na assistência ao parto domiciliar planejado durante a pandemia da COVID-19

RESULTADOS

Os discursos coletivos das profissionais ressaltaram os principais desafios na assistência ao PDP no período pandêmico, sendo estes apresentados nas cinco ideias centrais a seguir.

ICS 1A - Alterar a condução da assistência

O discurso aponta para alterações recorrentes na condução da prática assistencial de parteiras urbanas enquanto um dos desafios no período pandêmico. Dessa forma, as participantes revelaram mudanças na realização do acompanhamento pré-natal e na maneira da equipe se portar durante o trabalho de parto em domicílio.

No início da pandemia eram muitas informações, e as mudanças eram diárias. Levou um tempo até ser determinado um protocolo básico para a assistência, ancorado em experiências positivas compartilhadas por profissionais de outros estados. Foi necessário deixar de utilizar a banheira, ainda que não houvesse um consenso científico a respeito do maior risco de contaminação. A paramentação completa passou a ocorrer durante o expulsivo, e as consultas de pré-natal se tornaram alternadas entre presencial e virtual. Em parto longos, por vezes, tiro a máscara para comer e dormir, assim como faria no hospital, porém, no domicílio, separamos um espaço para isso, sendo melhor do que a realidade das instituições, onde o risco é aumentado por conta da grande circulação de pessoas. Ficou estabelecido que não pode ter a presença de fotógrafos de parto; a doula que estiver presente deve estar devidamente paramentada; e o número de acompanhante deve ser o mínimo possível, de preferência um só. (E1, E2, E4, M2, M4)

ICS 1B - Lidar com as frustrações

O discurso coletivo revelou que as alterações no planejamento do parto, impostas pelos protocolos de segurança, podem acarretar mudanças no cenário desse evento e limitação do quantitativo de pessoas presentes nesse momento, gerando frustrações na mulher. Essa realidade teve de ser absorvida pelas profissionais, que precisaram enfrentar o desafio de elaborar estratégias para lidar com esse desapontamento ainda durante as consultas de pré-natal.

O parto domiciliar planejado é muito idealizado pela mulher. Elas precisam adaptar não apenas o planejamento do parto, mas de um sonho. A suspensão da possibilidade de uso da banheira durante o trabalho de parto e parto trouxe muita frustração. Tive que lidar também com o desapontamento delas diante da necessidade de reduzir o número de pessoas no cenário do parto, por isso precisei dialogar sobre essas mudanças necessárias desde o pré-natal. Além disso, informo que, caso ela apresente sintomatologia suspeita ou confirmação de COVID-19 próximo à data provável do parto, este necessariamente será hospitalar. (E2, E4, M1, M2, M3)

ICS 1C - Encarar o medo da contaminação

Ainda que em posse do aparato necessário para se proteger do vírus, o discurso mostrou o constante medo de se contaminar e/ou de expor a mulher assistida a esse risco, representado nas falas pelos sentimentos de angústia e tensão. Somado a isso, revela-se o medo da contaminação entre a equipe, o que comprometeria a assistência às mulheres acompanhadas pelo coletivo de parto domiciliar.

Nos primeiros partos, foi quase enlouquecedor porque eu não sabia ao certo como me proteger. A primeira vez que atendi uma paciente com COVID-19 confirmado foi péssimo: me lembro que, depois de me paramentar toda, comecei a chorar. A tensão de poder me contaminar a qualquer momento é muito grande. Convivo com a incerteza de que a mulher assintomática pode estar positiva ou não e, depois da assistência, com dúvida se fiquei doente ou não e se posso espalhar o vírus. Também existe a insegurança de ter outras pessoas contaminadas dentro do cenário do parto, como familiares, doula. Qualquer espirro é sintomatologia suspeita; isso me causa muita angústia. Como trabalho em coletivo, para mim também é um desafio imaginar soluções caso todas fiquem doentes ao mesmo tempo. (E1, E3, E4, M1, M2, M4)

ICS 1D - Evitar a exposição ao vírus

As parteiras urbanas trazem em seu discurso que, no modelo de assistência domiciliar, há uma dificuldade de manter-se distanciada da parturiente, mesmo conscientes dos riscos da exposição ao vírus. Além disso, há situações em que o parto evolui de maneira acelerada e implica a limitação do tempo das profissionais para a paramentação.

Quando eu via, já estava em contato com a mulher, mesmo sabendo dos riscos. Em partos domiciliares que evoluem muito rápido, nem sempre temos tempo de colocar todos os EPIs, ou, às vezes, colocamos de forma inadequada, pois não podemos deixar de assistir a mulher. Me coloco em risco pela prioridade da assistência e em detrimento da paramentação. Quando a mulher está no expulsivo, por exemplo, por mais bem paramentadas que estejamos, no formato de assistência em que a mulher tem livre escolha da posição de parir, ela fica em contato comigo e os fluidos também. Acabo por me sujar pela movimentação toda. (E1, E2, M1, M2, M3)

ICS 1E - Manter-se distanciada durante a assistência

Com base no discurso, fica evidente que o contato com a mulher se tornou um desafio durante a assistência ao PDP no contexto da pandemia, uma vez que, além do distanciamento físico, as profissionais precisavam lidar com a barreira imposta pela paramentação. Essa realidade trouxe prejuízos para a relação profissional-mulher e para a própria prática assistencial da equipe.

Meu trabalho está completamente ligado ao contato físico, pois a relação de proximidade em casa é muito maior. Foi muito difícil me adaptar a uma assistência distante, sem abraçar, tocar e dar colo às mulheres. Complementar a paramentação durante o período expulsivo leva a uma ruptura da vinculação com aquele momento; às vezes, perco o foco do nascimento, da energia. A própria comunicação entre a equipe também foi comprometida pelo distanciamento e uso da paramentação, pois, na maioria das vezes, nos comunicamos pelo toque ou olhar. Além disso, o parto domiciliar planejado é construído durante o pré-natal; realizava as consultas no domicílio, conversando e tomando um cafezinho, mas, com o distanciamento, a vinculação com a família é dificultada. (E1, E2, E4, M1, M2)

DISCUSSÃO

O discurso aponta para adaptações recorrentes na prática assistencial de parteiras urbanas enquanto um dos desafios no período pandêmico, revelando mudanças ocorridas na realização do acompanhamento pré-natal e na maneira como a equipe se porta durante o trabalho de parto em domicílio. Nesse contexto emergencial, foi necessária adequação rápida das profissionais a fim de garantir assistência segura, mesmo diante das evidências científicas ainda incipientes atreladas à doença em ambientes hospitalares ou domiciliares. Especificamente, sobre a assistência em obstetrícia, nos primeiros meses da pandemia, informações novas acerca das repercussões do vírus na vida das gestantes e recém-nascidos eram constantemente difundidas pela mídia internacional(2222 Melo GC, Araújo KCGM. COVID-19 infection in pregnant women, preterm delivery, birth weight, and vertical transmission: a systematic review and meta-analysis. Cad Saude Publica. 2020;36(7):e00087320. http://doi.org/10.1590/0102-311x00087320
http://doi.org/10.1590/0102-311x00087320...
-2323 Tripathi S, Gogia A, Kakar A. COVID-19 in pregnancy: a review. J Family Med Prim Care. 2020;9(9):4536-40. http://doi.org/10.4103/jfmpc.jfmpc_714_20
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).

No cenário brasileiro, os dados alarmantes da morbimortalidade das gestantes demandaram empenho em salvaguardar essas vidas. Nesse sentido, com a divulgação da nota técnica do MS, queclassificou essa parcela da população como grupo de risco para a COVID-19, alertou-se para a necessidade de maior precaução na forma de assistir as mulheres no período gravídico-puerperal, eestabeleceram-se condutas assistenciais que consolidam mudanças na rotina dos serviços(2424 Ministério da Saúde (BR). Nota Técnica nº 13/2020, COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Recomendações acerca da atenção puerperal, alta segura e contracepção durante a pandemia da COVID-19. Brasília, DF; 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/nota-tecnica-no-13-2020-cosmu-cgcivi-dapes-saps-ms/
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz...
-2525 Ministério da Saúde (BR). Manual de recomendações para a assistência à gestante e puérpera frente à pandemia de covid-19 [Internet]. Brasília, DF: MS; 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/corona/manual_recomendacoes_gestantes_covid19.pdf
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab...
). Independentemente do cenário de assistência ao parto, as mudanças muitas vezes limitam a autonomia plena da mulher, o que gera frustrações também nas profissionais, por entenderem que não estão atendendo ao que compreendem como assistência humanizada.

Diante da gravidade do vírus para a gestante, as profissionais entrevistadas referiram que, conforme recomendações do MS, foi necessário adotar a alternância entre as modalidades presenciais e on-line para a realização das consultas pré-natal. A teleconsulta, além de ser utilizada no contexto de alternância, deve ser realizada quando as mulheres apresentam alguma sintomatologia suspeita e/ou tiveram contato recente com alguém positivo para COVID(2525 Ministério da Saúde (BR). Manual de recomendações para a assistência à gestante e puérpera frente à pandemia de covid-19 [Internet]. Brasília, DF: MS; 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/corona/manual_recomendacoes_gestantes_covid19.pdf
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). Assim, as consultas à distância tornaram-se um recurso para assegurar a vigilância do bem-estar materno-fetal em um momento no qual o isolamento social se faz necessário, embora as parteiras urbanas refiram a fragilização da consolidação do vínculo, visto que as consultas eram comumente realizadas no domicílio.

Países como China e Estados Unidos da América também utilizaram-se de teleconsultas como ferramenta para acompanhamento de gestantes no período pandêmico(2626 Wu H, Sun W, Huang X, Yu S, Wang H, Bi X, et al. Online antenatal care during the covid-19 pandemic: opportunities and challenges. J Med Internet Res. 2020;22(7):e19916. http://doi.org/10.2196/19916
http://doi.org/10.2196/19916...
-2727 Aziz A, Zork N, Aubey JJ, Baptiste CD, D'Alton ME, Emeruwa UN, et al. Telehealth for high-risk pregnancies in the setting of the covid-19 pandemic. Am J Perinatol. 2020;37(8):800-8. http://doi.org/10.1055/s-0040-1712121
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). Ainda que seja uma forma de preservar a assistência pré-natal, esta não é uma realidade em todo cenário brasileiro, poisalgumas mulheres, usuárias de serviços públicos ou privados, tiveram esse direito negado, o que as deixou desassistidas e colocou em risco a vida da mulher e do feto(2828 Ribeiro T. Mulheres grávidas encontram dificuldades para realizar pré-natal em SP. Agora São Paulo [Internet]. 8 Apr 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/04/mulheres-gravidas-encontram-dificuldades-para-realizar-pre-natal-em-sp.shtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo...

29 Lobato D. Em meio à pandemia, grávidas e puérperas vivem dificuldades com atendimento nas periferias [Internet]. São Paulo: Agência Mural; 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: https://www.agenciamural.org.br/em-meio-a-pandemia-gravidas-e-puerperas-vivem-dificuldades-com-atendimento-nas-periferias/
https://www.agenciamural.org.br/em-meio-...
-3030 Sieglitz A. Gravidez e covid-19: dia da gestante alerta sobre a importância dos cuidados durante a pandemia [Internet]. Minas Gerais: Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais; 14 Aug 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: http://www.fhemig.mg.gov.br/sala-de-imprensa/noticias-sala-imprensa/1934-gravidez-e-covid-19-dia-da-gestante-levanta-discussoes-sobre-a-importancia-dos-cuidados-durante-a-pandemia
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).

Para além do atendimento pré-natal, as profissionais tiveram que atualizar-se para atuar no cenário do trabalho de parto e parto, buscando recomendações nacionais e internacionais para elaborarem protocolos que orientassem uma assistência segura. Nesse ínterim, ainda que não houvesse um consenso científico, as evidências sinalizavam para detecção de RNA do SARS-CoV-2 em amostras de sangue, urina e/ou fezes de pessoas contaminadas, sendo necessário evitar o contato com tais fluídos corporais devido ao risco de contaminação(1515 World Health Organization. Transmission of SARS-CoV-2: implications for infection prevention precautions [Internet]. Geneva: WHO; 9 Jul 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/transmission-of-sars-cov-2-implications-for-infection-prevention-precautions
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). Assim, mesmo diante dos benefícios da utilização da imersão como técnica de alívio da dor, esse recurso tornou-se contraindicado às parturientes(3131 Ministério da Saúde (BR). Nota Técnica nº 9/2020, COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da covid-19. Brasília, DF: MS; 2020.). Apesar de a imersão não ser recomendada, o banho de aspersão deve ser estimulado, pois além de promover à mulher o relaxamento e alívio da dor, auxilia na sua higiene caso necessário(3232 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. Coronavirus (COVID-19) infection in pregnancy: information for healthcare professionals [Internet]. London: RCOG; 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-10-14-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy-v12.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...
-3333 Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Protocolo de atendimento no parto, puerpério e abortamento durante a pandemia da covid-19 [Internet]. São Paulo: FEBRASGO; 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: https://www.febrasgo.org.br/en/covid19/item/1028-protocolo-de-atendimento-no-parto-puerperio-e-abortamento-durante-a-pandemia-da-covid-19
https://www.febrasgo.org.br/en/covid19/i...
).

Outra mudança adotada para garantir uma assistência segura relaciona-se com a restrição no número de pessoas presentes no cenário do parto, como fotógrafos, familiares e amigos, sendo recomendada a presença da doula e de um acompanhante escolhido pelas mulheres. A respeito disso, é importante sinalizar que a presença dessa profissional no cenário do parto pode favorecer uma vivência positiva, trazendo impactos como melhor controle da dor durante o parto, redução do uso de analgesia e maior propensão à vivência da hora dourada(3434 Hans SL, Edwards RC, Zhang Y. Randomized controlled trial of doula-home-visiting services: impact on maternal and infant health. Matern Child Health J. 2018;22(suppl 1):105-13. https://doi.org/10.1007/s10995-018-2537-7
https://doi.org/10.1007/s10995-018-2537-...
-3535 Davis-Floyd R, Gutschow K, Schwartz DA. Pregnancy, birth and the COVID-19 Pandemic in the United States. Med Anthropol. 2020;39(5):413-27. https://doi.org/10.1080/01459740.2020.1761804
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). Portanto, entendendo tais benefícios e considerando tratar-se de profissionais regulamentadas e preparadas para atuar durante a pandemia, embora estejam impedidas de adentrar as maternidades, representando um retrocesso ao direito feminino, o direito a doulas foi assegurado no contexto do PDP.

Tanto a impossibilidade de uso de algumas técnicas quanto a limitação de pessoas no local são situações novas e inusitadas para a mulher que planeja o PDP. Ela, de maneira geral, é estimulada ao protagonismo durante o parto mediante, por exemplo, o entendimento da fisiologia do processo e elaboração do plano de parto registrando seus desejos e preferências. Diante disso, as parteiras urbanas precisaram dialogar com as gestantes, ainda durante o pré-natal, sobre as novas configurações do parto e adaptações necessárias. Essa prática alinha-se com a humanização da assistência, uma vez que prioriza o respeito às escolhas informadas da mulher e compartilha com ela a responsabilidade das decisões tomadas(3636 Sodré TM, Merighi MAB. Escolha informada no parto: um pensar para o cuidado centrado nas necessidades da mulher. Cienc Cuid Saude. 2012;11(5):115-20. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v11i5.17062
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-3737 Martins APC, Jesus MVN, Prado Jr PP, Passos CM. Aspects influencing women’s decision making about the mode of delivery. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25025. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25025
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).

Os desapontamentos presentes nos discursos das profissionais também guardam relação com a iminência de o parto se tornar hospitalar, caso a mulher tenha suspeita ou confirmação de COVID19. Essa mudança de cenário é adotada considerando a possibilidade de piora rápida do quadro clínico da gestante/parturiente, com repercussões como queda abrupta da oxigenação sanguínea, o que pode demandar suporte ventilatório e acompanhamento em Unidade de Terapia Intensiva(3838 Poon LC, Yang H, Dumont S, Lee JCS, Copel JA, Danneels L, et al. ISUOG interim guidance on coronavirus disease 2019 (covid-19) during pregnancy and puerperium: information for healthcare professionals, an update. Ultrasound Obstet Gynecol. 2020;55(6):848-62. https://doi.org/10.1002/uog.22061
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39 Rasmussen SA, Smulian JC, Lednicky JA, Wen TS, Jamieson DJ. Coronavirus disease 2019 (covid-19) and pregnancy: what obstetricians need to know. Am J Obstet Gynecol. 2020;222(5):415-26. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2020.02.017
https://doi.org/10.1016/j.ajog.2020.02.0...
-4040 Hantoushzadeh S, Shamshirsaz AA, Aleyasin A, Seferovic MD, Aski SK, Arian SE, et al. Maternal death due to covid-19. Am J Obstet Gynecol. 2020;223(1):109.e1-16. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2020.04.030
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). Salienta-se que os PDPs de risco habitual assistidos por profissionais capacitadas têm apresentado tendência de crescimento, estando associados a desfechos positivos e não relacionados a maiores taxas de morbimortalidade materno-fetal se comparados aos hospitalares, configurando-se, portanto, uma possibilidade positiva para as gestantes(3535 Davis-Floyd R, Gutschow K, Schwartz DA. Pregnancy, birth and the COVID-19 Pandemic in the United States. Med Anthropol. 2020;39(5):413-27. https://doi.org/10.1080/01459740.2020.1761804
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,4141 Cheyney M, Bovbjerg M, Everson C, Gordon W, Hannibal D, Vedam S. Outcomes of care for 16,924 planned home births in the United States: the Midwives Alliance of North America statistics project, 2004 to 2009. J Midwifery Womens Health. 2014;59(1):17-27. https://doi.org/10.1111/jmwh.12172
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42 Reitsma A, Simioni J, Brunton G, Kaufman K, Hutton EK. Maternal outcomes and birth interventions among women who begin labour intending to give birth at home compared to women of low obstetrical risk who intend to give birth in hospital: a systematic review and meta-analyses. EClinicalMedicine. 2020;21:100319. https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2020.100319
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43 Jonge A, Geerts CC, van der Goes BY, Mol BW, Buitendijk SE, Nijhuis JG. Perinatal mortality and morbidity up to 28 days after birth among 743 070 low-risk planned home and hospital births: a cohort study based on three merged national perinatal databases. BJOG. 2015;122(5):720-8. https://doi.org/10.1111/1471-0528.13084
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-4444 MacDorman MF, Declercq E. Trends and state variations in out-of-hospital births in the United States, 2004-2017. Birth. 2019;46(2):279-88. https://doi.org/10.1111/birt.12411
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).

Independentemente da confirmação de COVID-19, as profissionais precisam lidar com a possibilidade de casos assintomáticos, de modo que se sentem inseguras no ambiente, mesmo que tenham assumido as medidas de precaução. Isso se associa à necessidade de permanência por longos períodos no lar da parturiente, obrigando-as a compartilhar os ambientes e os objetos de uso pessoal, bem como retirar os EPIs para realização de necessidades fisiológicas. Ainda, a própria assistência implica risco, pois requer da profissional contato contínuo com a mulher. Importante ressaltar que, no ambiente hospitalar, onde são acompanhadas múltiplas famílias ao mesmo tempo, esse risco de contaminação pode estar aumentado por tratar-se de uma área de maior circulação de pessoas(3535 Davis-Floyd R, Gutschow K, Schwartz DA. Pregnancy, birth and the COVID-19 Pandemic in the United States. Med Anthropol. 2020;39(5):413-27. https://doi.org/10.1080/01459740.2020.1761804
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,4545 Liu Y, Ning Z, Chen Y, Guo M, Liu Y, Gali NK, et al. Aerodynamic analysis of SARS-CoV-2 in two Wuhan hospitals. Nature. 2020;582(7813):557-60. https://doi.org/10.1038/s41586-020-2271-3
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).

Nesse sentido, o medo da contaminação gera tensão nas profissionais, inclusive com manifestações de sofrimento psicológico. Essa angústia esteve associada à chance de ter a assistência às mulheres impossibilitada por conta de uma possível situação de contaminação coletiva entre as integrantes da equipe, bem como de transmissão do vírus para pessoas da sua própria família e/ou das demais que permanecem sob os cuidados da equipe. Daí, tem-se a imprescindibilidade do uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs), como touca, máscara N-95, face shield, avental impermeável e sapatilha descartável, incorporados à nova realidade de assistência obstétrica(2525 Ministério da Saúde (BR). Manual de recomendações para a assistência à gestante e puérpera frente à pandemia de covid-19 [Internet]. Brasília, DF: MS; 2020[cited 2021 Jan 21]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/corona/manual_recomendacoes_gestantes_covid19.pdf
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). A respeito disso, salienta-se que o momento da desparamentação é apontado como de risco acentuado de contaminação, repercutindo na divulgação de orientações pelo MS, a serem seguidas de maneira rigorosa pelos trabalhadores da área da saúde(4646 Ministério da Saúde (BR). Sequência correta na paramentação dos profissionais de saúde [Internet]. Brasília, DF: MS; 2020[cited 2021 Jan 20]. Available from: https://www.sbac.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Sequ%C3%AAncia-correta-na-paramenta%C3%A7%C3%A3o-dos-profissionais-de-sa%C3%BAde.pdf
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).

O desafio do uso contínuo dos EPIs em partos que evoluem com agilidade está também na complementação da paramentação, que pode ser prejudicada diante da necessidade de assistir a mulher com rapidez. Além disso, o respeito à livre escolha de posição da mulher que se encontra em período expulsivo, por exemplo, pode ser um elemento que vulnerabiliza a profissional à contaminação, considerando a possibilidade de contato com alguns fluidos. Outro fator que também impacta a condução do PDP é o uso de máscara, percebido pelas participantes como um fator que as distancia da parturiente, afetando o vínculo entre elas. Isso porque, no processo de parturição, se estabelece uma interação entre a gestante e a enfermeira obstétrica, expressa pela sintonia do partejar, a qual inclusive dispensa comunicações verbais, sendo, portanto, importantes os olhares e expressões(1414 Oliveira PS, Couto TM, Gomes NP, Campos LM, Lima KTRS, Barral FE. Best practices in the delivery process: conceptions from nurse midwives. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):455-62. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0477
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).

Vale destacar também que, conforme apontado pelas participantes, esses procedimentos adotados para garantir maior segurança são geradores de ruídos externos no cenário do parto — nomomento da paramentação e/ou da comunicação da equipe. Essa realidade destoa do habitual, em que se preza pelo silêncio, permitindo que ocorra uma interação familiar e conexão da mulher com o momento vivido(4747 Odent M. O Camponês e a parteira: uma alternativa à industrialização da agricultura e do parto. São Paulo: Ground; 2003.-4848 Leboyer F. Nascer sorrindo. São Paulo: Brasiliense; 1994.). Um espaço confortável e acolhedor configura-se propício para esse momento de intimidade, favorecendo o relaxamento da mulher e potencializando sua ligação com a energia envolvida no momento, o que pode agregar qualidade à assistência e auxiliar na progressão do trabalho de parto(4949 Sousa FLP. Formação em humanização do parto e nascimento [Internet]. São Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal; 2014[cited 2021 Jan 22]. Available from: http://agendaprimeirainfancia.org.br/arquivos/caderno_07_web_cor.pdf
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).

Limitações do estudo

Considerando que as parteiras urbanas atuantes no cenário do PDP estabelecem rotinas próprias de trabalho, os desafios encontrados para prestar a assistência podem sofrer variações de acordo com a região onde trabalham. Assim, o estudo limita-se por não ter investigado como esse modelo de assistência vem sendo conduzido por profissionais atuantes em outras localidades do país, que não o Nordeste brasileiro.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

O estudo contribui com a divulgação de estratégias elaboradas para adequar a assistência à mulher no período gravídico-puerperal nesse contexto desafiador, a fim de que garantam a segurança de todos envolvidos no evento e mantenham-se alinhadas às premissas da humanização durante a assistência. Para a área obstétrica, esses achados são ainda mais relevantes, por contribuírem para a autonomia e segurança profissional das enfermeiras e médicas obstetras atuantes no cenário do PDP, tendo destaque para as primeiras, uma vez que são figuras prevalentes nesse modelo de assistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os discursos das parteiras urbanas revelaram um cotidiano desafiador para a assistência ao parto domiciliar planejado no contexto da pandemia da COVID-19, pois, para oferecer assistência segura, que preza pela proteção da mulher, do acompanhante e das profissionais de uma possível contaminação, torna-se necessário enfrentar o medo da doença e atender a recomendações sanitárias rigorosas, ainda que estas possam impactar o vínculo profissional-parturiente e gerar angústias em todos os envolvidos.

Em um cenário tanto de ausência de protocolos oficiais que guiem a prática profissional quanto de limitação na divulgação de orientações para a condução da assistência ao PDP, sobretudo durante a pandemia, o estudo avança por divulgar informações acessíveis e de qualidade que podem nortear as profissionais para uma assistência obstétrica pautada em evidências científicas e alinhada com a humanização.

AGRADECIMENTO

Agradecemos às parteiras que participaram do estudo por contribuírem para o avançar da ciência acerca do parto domiciliar planejado.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2021
  • Aceito
    27 Jun 2021
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