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Atenção à saúde de pessoas surdas em tempos de pandemias por coronavírus

RESUMO

Objetivo:

Dissertar sobre os entraves vivenciados pela população surda durante a pandemia de COVID-19, as propostas para superar as barreiras comunicacionais no atendimento em saúde e o papel das políticas públicas na efetivação da inclusão social de surdos.

Métodos:

Reflexão baseada em estudos sobre assistência à saúde da pessoa surda, pandemia de COVID-19 e políticas públicas de acessibilidade.

Resultados:

A crise global da COVID-19 tem aprofundado desigualdades pré-existentes no mundo, além de evidenciar a vulnerabilidade de pessoas com deficiência, entre elas as surdas. Iniciativas governamentais, institucionais e sociais para mitigar dificuldades na comunicação aos surdos têm sido feitas, mas ainda são insuficientes para garantir-lhes proteção nesta pandemia e plena inclusão nos cuidados de saúde.

Considerações finais:

A inclusão social, amparada por lei, e a acessibilidade linguística de surdos ainda necessitam gerar ações amplas e concretas para que as pessoas surdas possam usufruir dos direitos que lhes cabem como cidadãs.

Descritores:
Atenção à Saúde; Surdez; Línguas de Sinais; Pandemias; Coronavírus

ABSTRACT

Objective:

To reflect about the barriers experienced by the deaf population during the COVID-19 pandemic, the proposals to overcome communication barriers in health care and the role of public policies in effecting the social inclusion of deaf people.

Methods:

Reflection based on studies on health care for deaf people, the COVID-19 pandemic and public accessibility policies.

Results:

The global crisis of COVID-19 has deepened pre-existing inequalities in the world, in addition to highlighting the vulnerability of people with disabilities, including deaf. Government, institutional and social initiatives to mitigate difficulties in communicating to deaf people have been made, but they are still insufficient to guarantee protection for them in this pandemic and full inclusion in health care.

Final considerations:

Social inclusion, supported by law, and the linguistic accessibility of deaf people still need to generate broad and concrete actions so that deaf people can enjoy their rights as citizens.

Descriptors:
Health Care; Deafness; Sign Languages; Pandemics; Coronavirus

RESUMEN

Objetivo:

Disertar sobre los obstáculos vividos por la población sorda durante la pandemia de COVID-19, las propuestas para superar las barreras de comunicación en la atención sanitaria y el papel de las políticas públicas en la inclusión social efectiva de los sordos.

Métodos:

Es una reflexión basada en estudios sobre atención sanitaria de la persona sorda, COVID-19 y políticas públicas de accesibilidad.

Resultados:

La crisis global de COVID-19 está profundizando las desigualdades preexistentes en el mundo, además de poner de manifiesto la vulnerabilidad de las personas discapacitadas, entre ellas las sordas. Se están llevando a cabo iniciativas gubernamentales, institucionales y sociales para mitigar las dificultades de comunicación de los sordos, pero todavía son insuficientes para garantizarles protección en esta pandemia y plena inclusión en la atención sanitaria.

Consideraciones finales:

Es necesario impulsar la inclusión social, respaldada por la ley, y la accesibilidad lingüística de los sordos con acciones amplias y concretas para que puedan disfrutar de sus derechos como ciudadanos.

Descriptores:
Atención Sanitaria; Sordera; Lengua de Signos; Pandemias; Coronavirus

INTRODUÇÃO

O ano de 2019 teve seu início marcado por uma emergência internacional, causada pelo Novo Coronavírus, designado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como Sars-Cov-2. Esse vírus corresponde ao agente causador da doença intitulada COVID-19. Por conta da disseminação acelerada do vírus entre os países, em 11 de março de 2020, a OMS declarou a doença COVID-19 como uma pandemia.

As vias principais de transmissão são por gotículas no trato respiratório e por contato. Outra via de transmissão é por aerossóis, sendo que todas as pessoas estão suscetíveis a contrair o vírus. Idosos e pessoas com doenças crônicas estão sob maior risco. Os principais sintomas são febre, fraqueza e tosse seca. Uma menor parte dos pacientes também apresentam outros sintomas, como obstrução nasal, coriza e diarreia. A maior parte dos pacientes de caso grave, após uma semana de infecção, apresenta dificuldade para respirar(11 Zhang, W. Manual de Prevenção e Controle da Covid-19 segundo o Doutor Wenhong Zhang. São Paulo: PoloBooks; 2020. 70 p.).

A crise global da COVID-19 tem aprofundado as desigualdades pré-existentes no mundo. As recomendações para prevenção da doença incluem uso de máscaras, higienização das mãos com água, sabão ou álcool 70%, além do distanciamento social(11 Zhang, W. Manual de Prevenção e Controle da Covid-19 segundo o Doutor Wenhong Zhang. São Paulo: PoloBooks; 2020. 70 p.). Apesar de se mostrarem como medidas simples, a velocidade de disseminação e o número de mortes decorrentes da doença têm exposto questões relevantes a serem consideradas, como a importância de ações coletivas governamentais e forte influência das condições sociais em seu desfecho.

Compreende-se que o vírus afeta de maneira desproporcional os grupos populacionais, com maior risco para os de baixo nível socioeconômico(22 Patel JA, Nielsen FBH, Badiani AA. Poverty, inequality and COVID-19: the forgotten vulnerable. Public Health. 2020;183:110-11. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.05.006
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). Essa população enfrenta barreira no acesso à água, ao saneamento básico e aos equipamentos de proteção individual, configurando condições de trabalho que interferem no atendimento ao distanciamento social. Nesse contexto, destacam-se as populações vulneráveis, em que as dificuldades de acesso à saúde precediam a pandemia, sendo, portanto, acentuadas. Dentre essas, temos as pessoas com deficiência.

Mesmo em circunstâncias ditas normais, pessoas com deficiência são menos propensas a terem acesso à saúde, aos cuidados, à educação, ao emprego e à participação na comunidade. Elas são mais predispostas a viverem na pobreza, experimentando taxas mais altas de violência, negligência e abuso, além de estarem entre as mais marginalizadas em qualquer comunidade afetada pela crise. A COVID-19 agravou ainda mais tal situação com impacto desproporcional a esse grupo, direta e indiretamente(33 United Nation. Policy brief: a disability inclusive response to COVID-19 [Internet]. ONU; 2020 [cited 2020 Jul 29]. 18 p. Available from: https://unsdg.un.org/sites/default/files/2020-05/Policy-Brief-A-Disability-Inclusive-Response-to-COVID-19.pdf
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).

No caso de pessoas surdas, a situação atual corresponde a um grande desafio. Surdos, quando comparados a ouvintes, usam serviços de saúde com menos frequência, justamente pela dificuldade de acolhimento e entendimento nos espaços. Como consequência, tendem a procurar as unidades de saúde quando a doença já está instalada, ou seja, para tratamento(44 Kuenburg A, Fellinger P, Fellinger J. Health care access among deaf people. J Deaf Stud Deaf Educ. 2016; 21(1):1-10. https://doi.org/10.1093/deafed/env042
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).

O principal meio de combate da COVID-19 corresponde à prevenção. Para isso, o provimento de condições financeiras à população para favorecer o distanciamento social, assim como o acesso à informação, é primordial. Além disso, as dificuldades de comunicação e de difusão das informações podem prejudicar ainda mais a assistência à saúde de pessoas surdas, o que pode ocasionar ações equivocadas, promover medo e insegurança e prejudicar o desenvolvimento de ações de prevenção da doença.

OBJETIVO

Este trabalho objetiva dissertar sobre os entraves vivenciados pela população surda durante a pandemia de COVID-19, ressaltar propostas para superar as barreiras comunicacionais no atendimento em saúde e destacar o papel das políticas públicas na efetivação da inclusão social de pessoas surdas

MÉTODOS

Trata-se de reflexão sobre a assistência à saúde da pessoa surda durante o período de pandemia da COVID-19. Ao delimitar a problemática a ser discutida, para subsidiar a reflexão, realizou-se busca não sistemática de estudos que tratassem do tema cuidado ao surdo relacionado ao campo da saúde, no contexto da pandemia do Novo Coronavírus.

A busca ocorreu entre os meses de maio e julho de 2020, nas bases de dados da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e US National Library of Medicine (PUBMED), por meio de palavras-chave como Surdez ou Surdo ou Língua de Sinais, Assistência à Saúde ou Atenção à Saúde, Novo Coronavírus ou COVID-19 ou Pandemia por Coronavírus. Foi realizada leitura do título e resumo dos artigos, sendo selecionados os mais relevantes, em especial no que se refere à comunicação, a partir de dois eixos: as dificuldades que envolvem a acessibilidade comunicacional, incluindo o uso da língua de sinais na área da saúde; e o uso de máscaras, principal equipamento de proteção individual (EPI) que, no âmbito da atual pandemia, impede a leitura labial e de expressões faciais. A experiência das autoras no que tange ao cuidado à saúde de pessoas surdas também contribuiu para fundamentação da reflexão, além das políticas públicas vigentes que tratam da inclusão social desse grupo populacional.

A reflexão, substanciada pelos estudos selecionados, políticas públicas e pela vivência das autoras em relação à temática, abordou os principais problemas enfrentados pelos surdos no campo da saúde durante a pandemia do Novo Coronavírus e as propostas para superação das lacunas apontadas.

ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA PESSOA SURDA EM TEMPOS DE COVID-19

Para realizar o cuidado em saúde, é fundamental que se estabeleça uma forma de comunicação que possibilite o entendimento e, a partir disso, desenvolver a assistência ao considerar não só os sinais clínicos observados, mas também o que é exposto pela pessoa a ser cuidada, acolhendo-a nesse processo. A relação profissional de saúde e pessoa surda possui uma interdição a partir do momento em que existe uma dificuldade no estabelecimento da comunicação entre as partes, o que prejudica o vínculo, o acolhimento e a própria assistência

Pessoas surdas são aquelas que possuem perda auditiva e interagem com o mundo por meio de experiências visuais e da língua de sinais (LS), que no caso do Brasil é a Libras(55 Presidência da República (BR) . Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei n° 10.436/2002, o art. 18 da Lei nº 10.098/2000, e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da União. 2005 [cited 2020 Dec 15]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm
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). O que marca a diferença de pessoas surdas para as pessoas com deficiência auditiva é que os surdos, para além da deficiência sensorial, que nesse caso é auditiva, agregam a vivência visual de mundo e sua língua natural, a de sinais, compondo a comunidade surda. Essa compreensão de pessoa surda supera a concepção clínica da surdez, marcada pelo déficit auditivo, ao ponderar inclusive componentes culturais.

Isso posto, cabe destacar que a inclusão de surdos implica favorecer experiências visuais, promover acessibilidade linguística, principalmente pelo uso da LS, e atender suas peculiaridades comunicacionais. Nesse sentido, assistência à saúde de pessoas surdas ainda desaponta no que se refere ao acolhimento e à acessibilidade. Os profissionais desconhecem a comunidade surda, pouco sabendo sobre a LS e as formas para estabelecer inclusão durante o atendimento(44 Kuenburg A, Fellinger P, Fellinger J. Health care access among deaf people. J Deaf Stud Deaf Educ. 2016; 21(1):1-10. https://doi.org/10.1093/deafed/env042
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). As unidades de saúde, em sua maioria, não são adaptadas para superar as barreiras linguísticas impostas, sem contarem com sinalização visual para informar a chamada dos usuários surdos, ou para orientá-los quanto aos setores que compõem o espaço assistencial(66 Souza MFNS, Araújo AMB, Sandes LF, Fonseca FDA, Soares WD, Vianna RS, et al. Main difficulties and obstacles faced by the deaf community in health access: an integrative literature review. Rev CEFAC. 2017;19(3):395-405. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719317116
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).

A dificuldade de comunicação pela falta de uma língua em comum, além do desconhecimento dos profissionais sobre as formas de facilitar a comunicação, como falar lentamente e bem articulado para os surdos oralizados, ou conhecer a LS e as particularidades da escrita da língua majoritária por pessoas surdas, impacta no diagnóstico, podendo até mesmo acarretar equívocos no tratamento das doenças(44 Kuenburg A, Fellinger P, Fellinger J. Health care access among deaf people. J Deaf Stud Deaf Educ. 2016; 21(1):1-10. https://doi.org/10.1093/deafed/env042
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). Essas situações geram desconfiança, frustração e falta de resolutividade para os usuários surdos(66 Souza MFNS, Araújo AMB, Sandes LF, Fonseca FDA, Soares WD, Vianna RS, et al. Main difficulties and obstacles faced by the deaf community in health access: an integrative literature review. Rev CEFAC. 2017;19(3):395-405. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719317116
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).

Com a pandemia de COVID-19, os problemas vivenciados por surdos no serviço de saúde foram potencializados. A dificuldade de obter informações sobre a doença, acessar os serviços, ter acessibilidade para cuidado à saúde e de humanização, que antes já eram evidenciadas, atualmente expõe o quanto estamos em dívida quando o assunto é a inclusão de surdos na sociedade e, principalmente, na saúde.

No que tange ao acesso, as informações sobre a doença, como a quantidade de casos, óbitos, formas de evitar contágio e tratamento, estão sendo amplamente divulgadas na mídia, principalmente por meio de telejornais. Entretanto, esses telejornais não possuem intérpretes de LS, nem audiodescrição, não sendo, dessa forma, as informações acessíveis aos surdos. Nas coletivas de imprensa com representação de órgãos institucionais, como secretarias de saúde, deve haver presença de intérprete de Libras, o que não ocorre em sua totalidade.

No Brasil, desde 2015, a Lei Brasileira de Inclusão assegura a acessibilidade linguística no campo da informação, comunicação e participação na política. Porém, atualmente, essa acessibilidade se restringe aos pronunciamentos oficiais da Presidência da República, propaganda eleitoral obrigatória e debates transmitidos pelas emissoras de televisão(77 Presidência da República (BR). Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência [Internet]. Diário Oficial da União. 2015 [cited 2020 Jul 28]; Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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).

As redes sociais, como facebook, instagram, youtube e whatsapp, têm sido formas acessíveis de disseminar as informações sobre a COVID-19, tendo em vista a iniciativa de universidades, movimentos sociais de pessoas surdas, influencer surdos e secretarias de saúde que fizeram vídeos tratando da temática em LS. Contudo, deve-se atentar para a propagação de notícias falsas (fakenews) sobre o tema, verificando-se com frequência a referência da informação disseminada, se é de fonte confiável.

A Secretaria de Saúde do Ceará, por exemplo, realizou web conferência para responder dúvidas de pessoas surdas a respeito da COVID-19, com a participação de um médico usuário da LS. O Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da Universidade Federal do Vale do São Francisco proporcionou uma série de vídeos transmitidos ao vivo, acessíveis em Libras, para tratar de questões associadas à pandemia. Também contribuindo com a difusão de informação, a TV INES tem dado enfoque à pandemia do Novo Coronavírus em sua programação. Essa emissora prioriza a Libras e conta com legendas e locução, o que integra os públicos surdo e ouvinte, ou seja, oferta programação bilíngue.

Outro ponto pertinente sobre a difusão de informações acerca da COVID-19 em LS diz respeito à sinalização adequada para denominar a doença. É importante que os sinais utilizados para tratar do Novo Coronavírus sejam padronizados(88 Amorim G, Ramos A, Castro Jr G, Afonso L, Castro H. Coronavirus, deafness and the use of different signs of the area in health during a period of pandemic time: is that the best option to do?. Creat Educ. 2020;11(4):573-80. https://doi.org/10.4236/ce.2020.114042.
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). No Brasil, são utilizados pelo menos três sinais para designá-lo, sendo todos eles icônicos, ou seja, quando há semelhança entre o objeto e o sinal que este representa. Um deles foi criado no início da pandemia, quando não se conhecia profundamente o vírus, e sugere uma picada de animal, o que pode levar a erros de interpretação sobre como ser infectado pelo Novo Coronavírus.

Essa interpretação equivocada oferece perigo, pois pode levar os surdos a não adotarem ações preventivas contra o vírus, mas contra mordida de animais, como, por exemplo, de morcego. Os outros dois sinais estão diretamente relacionados ao agente real da COVID-19, apresentando detalhes, como forma e características biológicas. Cabe destacar que o uso de dois ou três sinais obriga a comunidade e os intérpretes surdos a conhecerem todos eles para ter ou dar acesso a todas as informações em LS(77 Presidência da República (BR). Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência [Internet]. Diário Oficial da União. 2015 [cited 2020 Jul 28]; Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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).

Para mais, há sinais em que o ponto de articulação pode envolver o toque em alguma parte do rosto, como boca, testa, por exemplo, o que vai de encontro às medidas preventivas sugeridas pela OMS, a qual orienta que se evite tocar o rosto, como uma das formas de proteção contra o Novo Coronavírus. É fundamental que essa informação seja amplamente divulgada à população surda, já que oferece risco de contaminação.

No que tange à comunicação durante a prestação de assistência à saúde da pessoa surda, merece destaque o uso de máscaras. Se, por um lado, elas representam um aliado no enfrentamento da COVID-19, por outro, evidenciam adversidades para pacientes surdos. As máscaras impedem a leitura labial e dificultam a visualização das expressões faciais, fundamentais no uso da LS. Ademais, esse EPI torna-se desconfortável para usuários de aparelhos auditivos e implantes cocleares(99 Trecca EMC, Gelardi M, Cassano M. COVID-19 and hearing difficulties. Am J Otolaryngol. 2020; 41(4):102496. https://doi.org/10.1016/j.amjoto.2020.102496
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).

Como solução para superar alguns desses entraves comunicacionais, tem-se a utilização de máscaras transparentes durante o atendimento ao usuário surdo. O uso da máscara cirúrgica transparente aprimora o desempenho da percepção da fala no ruído para pessoas com deficiência auditiva e não afeta negativamente o desempenho da percepção da fala no ruído. Além disso, possibilita visualizar expressões faciais e permite a leitura labial(1010 Atcherson SR, Mendel LL, Baltimore WJ, et al. The effect of conventional and transparent surgical masks on speech understanding in individuals with and without hearing loss. J Am Acad Audiol. 2017;28(1):58-67. https://doi.org/10.3766/jaaa.15151
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). Torna-se fundamental o investimento desse tipo de EPI, tendo em vista que possivelmente o uso de máscara será normalizado, pois até o momento não há medicamentos para tratamento da COVID-19 com evidência científica, além de a disponibilização de vacinas para a sociedade demandar grande período de tempo.

A acessibilidade linguística aos surdos em unidades de saúde também se dá por meio da mediação da comunicação por intérpretes de LS. Apesar de haver prejuízo na questão do sigilo médico e da autonomia do usuário surdo no processo saúde-doença, os intérpretes auxiliam no processo comunicativo, nos casos em que o profissional de saúde não conhece a LS e o surdo não é oralizado(66 Souza MFNS, Araújo AMB, Sandes LF, Fonseca FDA, Soares WD, Vianna RS, et al. Main difficulties and obstacles faced by the deaf community in health access: an integrative literature review. Rev CEFAC. 2017;19(3):395-405. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719317116
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). Entretanto, precisar de intérpretes nesse momento nos serviços de saúde é colocar em risco mais vidas, a não ser que a tradução seja realizada remotamente.

Outra questão relevante corresponde ao desconhecimento dos profissionais de saúde sobre a comunidade, cultura e identidade surda, suas necessidades de saúde. Consequentemente, a compreensão a respeito desse grupo pode estar baseada em crenças e no senso comum, o que pode prejudicar a assistência à saúde. Profissionais frequentemente utilizam a leitura labial, assim como a escrita, e acreditam que esses meios favorecem uma comunicação eficaz com surdos. Porém, essas estratégias foram consideradas ineficientes para uma interação efetiva, o que dificulta a comunicação entre surdo e profissional de saúde e, consequentemente, a participação plena dos envolvidos(44 Kuenburg A, Fellinger P, Fellinger J. Health care access among deaf people. J Deaf Stud Deaf Educ. 2016; 21(1):1-10. https://doi.org/10.1093/deafed/env042
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).

Ressalta-se, apesar de ser uma das formas mais comuns de comunicação entre profissionais de saúde e surdos, que a escrita não é a melhor maneira de fornecer informações à comunidade surda, uma vez que são apresentadas na língua majoritária do país, no caso do Brasil, em português. As LS têm sintaxe própria e a ordem das palavras na frase por vezes se distingue daquela de modalidade oral. O uso da LS permite que a comunidade surda acesse a linguagem técnica da comunicação, ao mesmo tempo em que possibilita o atendimento individual e coletivo(77 Presidência da República (BR). Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência [Internet]. Diário Oficial da União. 2015 [cited 2020 Jul 28]; Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Na tentativa de superar as barreiras linguísticas, diversas soluções foram propostas internacionalmente, como disponibilizar centrais de atendimento por videochamada, aplicativos para celular e máscaras com um painel de plástico na boca, mas a aplicação na unidade de saúde ainda é limitada, por serem inovações e, no caso da máscara, a produção ainda ser artesanal. Necessita-se de testes para verificar a eficiência desses, sendo necessárias mais pesquisas e ações para fornecer soluções eficazes e estratégias globais(99 Trecca EMC, Gelardi M, Cassano M. COVID-19 and hearing difficulties. Am J Otolaryngol. 2020; 41(4):102496. https://doi.org/10.1016/j.amjoto.2020.102496
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).

Todos os entraves relatados nos direcionam a refletir sobre a necessidade de políticas públicas que estabeleçam a difusão da LS na sociedade com responsabilidade. É necessário que a disciplina de Libras se torne obrigatória nos cursos de saúde, que haja mais de uma disciplina e tenha diretrizes mínimas de condução. Além disso, é importante que as instituições de ensino cumpram sua responsabilidade social e não ofertem a disciplina somente para cumprir uma legislação. O objetivo da disciplina deve ser formar profissionais aptos para o uso de Libras durante um atendimento em saúde.

É necessário também que a LS faça parte da política de educação permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), nos Estados e Municípios, das unidades de saúde, sejam elas de atenção primária ou de média e alta complexidade. É preciso que haja ampliação de pesquisas a respeito da temática junto a estudantes e profissionais e usuários do sistema de saúde, para que se conheçam as reais necessidades dos envolvidos e do processo de cuidado. O que se passa nesse momento é reflexo de descaso de mais de 15 anos da publicação do Decreto 5.626/2005, que na área da saúde pouco se viu resultado.

Todo o processo de pandemia mostrou o quanto é importante ter políticas públicas, principalmente na área da saúde, trabalho, economia, educação e ciência. A COVID-19 deixará marcas na sociedade e cabe à população cobrar de seus governantes ações para superá-las e, principalmente, enfrentar as desigualdades que a pandemia expôs e agravou. Por fim, cabe aos governantes a efetivação da inclusão de pessoas com deficiência na sociedade, que é amparada por lei, assim como a acessibilidade linguística de surdos que é garantida há mais de 15 anos no Brasil.

Limitações do Estudo

A escassez de artigos que tratem sobre a assistência à pessoa surda limita o debate a respeito do tema. Além disso, fazem-se necessárias pesquisas experimentais para avaliação do uso de máscaras com visor transparente, além de investigação empírica a respeito da educação permanente e formação de profissionais em Libras, para verificar a qualidade dessas capacitações e seu impacto para o atendimento ao surdo. Deve-se considerar também levantamento nos pontos de atenção à saúde de referência em COVID-19 para saber a respeito de atendimento a pessoas surdas, além de conhecer a experiência de quem prestou o cuidado e quem o recebeu.

Contribuições para a Área

Como contribuições potenciais, vislumbra-se a ampliação da discussão referente à inclusão dos surdos no serviço de saúde que, apesar de haver amparo legal para sua efetivação, ainda se mostra aquém do desejado. Esse assunto deve ser amplamente debatido, com vistas a sensibilizar profissionais de saúde e gestores, para superar obstáculos impostos a essa população, que há tanto tempo é negligenciada. A pandemia de COVID-19 reforçou o quão são urgentes pautas inclusivistas na saúde, para que possamos enfim acolher as pessoas surdas com empatia, estabelecer vínculo e assisti-las integralmente. Para tal fim, esta reflexão pode subsidiar novas temáticas para área de educação permanente em saúde.

No campo acadêmico, este artigo pode contribuir para sensibilizar instituições de ensino para incluir como obrigatória a disciplina de língua de sinais, elaborar propostas curriculares para formação que considere o respeito às diferenças, além de incentivar a realização de pesquisas que tratem da acessibilidade linguística no campo da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia da COVID-19 salientou as distorções sociais existentes no mundo. Pessoas vulneráveis tendem a sofrer os impactos da doença de maneira mais acentuada. A pessoa surda já enfrenta diariamente situações de exclusão social, pois não tem seu direito de se comunicar por meio da língua de sinais respeitado e porque há falta de acessibilidade linguística.

Na saúde não é diferente, pois o desconhecimento a respeito da comunidade surda e da sua língua natural finda por prejudicar o acesso e o cuidado à saúde da pessoa surda. Em tempos de enfrentamento da COVID-19, pessoas surdas têm dificuldade em obter informações sobre a doença nos veículos de informação em massa, pela falta de intérprete de LS, assim como dificuldades na assistência, devido ao desconhecimento da LS por parte dos profissionais de saúde e ao uso de máscaras de proteção que atenuam a intensidade do som da fala e reduzem a visualização das expressões faciais.

As redes sociais tiveram grande importância na difusão de informações acessíveis sobre a COVID-19 aos surdos. Iniciativas como máscaras com painel transparente para facilitar a visualização das expressões faciais também se destacaram. Porém, são iniciativas individuais e pontuais, evidenciando a necessidade de se ter ações globais, além de ressaltar a importância de que as iniciativas devem ser de responsabilidade do poder público, para garantir o alcance de todos.

A pandemia de COVID-19 impactou toda a humanidade e, de uma forma mais violenta, populações historicamente marginalizadas, como as pessoas com deficiência. Esse acontecimento exige uma resposta mundial sem precedentes, com compromisso dos governantes em garantir às pessoas com deficiência o acesso a serviços essenciais. O mundo não mais voltará a ser o mesmo. Então, que ele seja inclusivo, acessível e humanizado para toda a população, sem distinções.

REFERENCES

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Mitzy Danski

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    10 Maio 2021
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