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Projeto de recuperação integral da criança desnutrida - uma proposta de atuação para o enfermeiro: Relato de caso

Integral recuperation of undernourished children project - a proposal for nursing practise: Case report

Resumos

As autoras apresentam um relato de caso de recuperação nutricional de criança desnutrida, envolvida no Projeto de Recuperação Integral do Desnutrido implantado no Ambulatório de Pediatria do Hospital Universitário de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Mostram a importância da atuação do enfermeiro como membro da equipe multiprofissional em projetos dessa natureza.

Desnutrição infantil; Assistência de enfermagem à criança


The authors present a case report of nutrition recuperation in an undernourished child involved in the Integral Recuperation, of Undernourished Children Project at the University Hospital in Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brazil. They show the importance of nursing assistance as a member of multiprofissional team in projects of this matter.

Childhood; Malnutrition; Nursing Assistance


ARTIGOS ORIGINAIS

Projeto de recuperação integral da criança desnutrida - uma proposta de atuação para o enfermeiro. Relato de caso

Integral recuperation of undernourished children project - a proposal for nursing practise. Case report

Myriam A. Mandetta PettengillI; Mariza Rufino LuizariII; Marly JavorskyIII; Mercy de SouzaIV

IEnfermeira - Professor Auxiliar do Departamento de Enfermagem da UFMS - Disciplina Enfermagem Materno Infantil. Mestranda em Enf. Pediátrica EEUSP

IIEnfermeira - Professor Auxiliar do Departamento de Enfermagem da UFMS - Disciplina Fundamentos de Enfermagem

IIIEnfermeira - Professor Auxiliar do Departamento de Enfermagem da UFMS- Disciplina Enfermagem Materno Infantil. Mestranda em Enf. Saúde Pública EERP-USP

IVEnfermeira. Atuou no Projeto como aluna 4º ano do Curso de Graduação em Enfermagem e Obstetrícia UFMS

RESUMO

As autoras apresentam um relato de caso de recuperação nutricional de criança desnutrida, envolvida no Projeto de Recuperação Integral do Desnutrido implantado no Ambulatório de Pediatria do Hospital Universitário de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Mostram a importância da atuação do enfermeiro como membro da equipe multiprofissional em projetos dessa natureza.

Unitermos: Desnutrição infantil. Assistência de enfermagem à criança.

ABSTRACT

The authors present a case report of nutrition recuperation in an undernourished child involved in the Integral Recuperation, of Undernourished Children Project at the University Hospital in Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brazil. They show the importance of nursing assistance as a member of multiprofissional team in projects of this matter.

Uniterms: Childhood. Malnutrition. Nursing Assistance.

1 INTRODUÇÃO

A desnutrição infantil tem sido estudada, pesquisada e discutida em eventos nacionais e internacionais, pois trata-se de um grave problema de saúde que ocasiona comprometimento no crescimento e desenvolvimento e está associada a maior freqüência de internações hospitalares (devido s infecções de repetição) e aumento da mortalidade infantil.

MONTEIRO et al. (1992) afirmam que "os distúrbios do estado de saúde e nutricionais durante a infância podem ser ocasionados por múltiplas condições, predominando nos países em desenvolvimento deficiências nutricionais e infecções repetidas”.

Para NOGARA (1994) o Brasil inicia a década de 90 com um dos piores desempenhos entre os países do Terceiro Mundo no que diz respeito à pobreza e distribuição de renda. Tal afirmativa fica evidenciada no estudo de MONTEIRO et al.(1992), no qual a estimativa do número absoluto de crianças desnutridas, no pais em 1989 era de mais de 2 milhões de crianças pertencentes a famílias que viviam em condições de “extrema pobreza”, concentradas sobretudo na Região Nordeste do pais.

MONTEIRO (1988) em estudo realizado na cidade de São Paulo, também observou déficits de crescimento em uma proporção considerável de crianças, fortemente influenciado pelo nível socio-econômico. Da mesma forma, VICTORA et al. (1988) a partir de estudo longitudinal realizado em Pelotas (RS) reiteraram a influência do nível sócio econômico no índice de mortalidade infantil e na ocorrência de baixo peso ao nascer. Esses autores concluem serem necessárias mudanças sociais profundas p ara que se possa reduzir significativamente os diferenciais de saúde, e que o profissional de saúde além da luta pela transformação da sociedade, deve tomar medidas para melhor atender aqueles que mais necessitam de cuidados de saúde.

Em Mato Grosso do Sul, dados da Secretaria de Estado da Saúde através da Divisão de. Informações em Saúde (MATO GROSSO DO SUL,1994) apontavam o coeficiente de mortalidade infantil de 28,30% O nascidos vivos para o estado como um todo, índice que se eleva quanto mais distante dos centros encontra-se o município e quanto maior a precariedades das condições de vida da população (Corguinho 115,38%0, Porto Murtinho 68,49%0, Eldorado 54,26%0, Glória de Dourados 50,45%0, entre outros). Entre as principais causas de morte no 1º ano de vida, encontram-se os problemas respiratórios e as diarréias. A desnutrição é a 12' causa, ficando atrás apenas de causa desconhecida e morte sem assistência médica. Há que se reconhecer, no entanto, que os casos de desnutrição provavelmente não são diagnosticados, sendo portanto subnotificados.

Em estudo realizado na comunidade Anhanguera, situada na bacia do córrego Bandeira, em Campo Grande-MS, MOURA et al. (1995) observaram que 27,5% de crianças de 0 a 6 anos de idade apresentavam déficit de peso para idade (abaixo do percentil 10 na curva preconizada pelo Programa de Assistência à Saúde da Criança-PAISC, BRASIL, 1984).

Sabe-se que a desnutrição pode estar associada a outros agravos como a anemia, verminose, falta de vitaminas, cárie dental e infecções que aumentam a chances de internações hospitalares (BRANDÃO; BRANDÃO, 1993). Por outro lado, quanto mais intensa e prolongada for a desnutrição em crianças pequenas, maiores são os efeitos deletérios no organismo, fato que justifica a vigilância do crescimento para intervir o mais precocemente possível (LEÃO; FIGUEIREDO FILHO,1989).

Enquanto profissionais da área da saúde, os enfermeiros, envolvem-se diariamente com a problemática da desnutrição. Na Clínica Pediátrica do Hospital Universitário de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, a recuperação das crianças desnutridas integra a prestação da assistência de enfermagem às crianças internadas. Para algumas crianças, no entanto, o comprometimento do crescimento e desenvolvimento dificilmente pode ser recuperado durante a curta permanência no hospital, fato que certamente contribui para reinternações posteriores.

Com a finalidade de ampliar o atendimento para essas crianças criou-se um grupo de trabalho multidisciplinar denominado Projeto de Recuperação Integral à Criança Desnutrida, que atua de forma integrada com a Assistência ao Menor Enfermo AME, entidade não-governamental em parceria com o Hospital Universitário-NHU. Nosso objetivo é recuperar o estado nutricional e psicossocial intrinsecamente afetados, em conjunto com a família, prevenindo tanto a reincidência de internações quanto o agravamento do quadro.

Este artigo tem como objetivo apresentar a proposta de atuação do enfermeiro na recuperação de crianças desnutridas, contemplando aspectos biológicos e psicossociais da criança e de sua família, a partir de um relato de caso do Projeto de Recuperação Integral à Criança Desnutrida.

2 DESCRIÇÃO DO PROJETO DE RECUPERAÇÃO INTEGRAL DO DESNUTRIDO

O Projeto é desenvolvido no Ambulatório de Pediatria do NHU - Campo Grande - MS, por equipe multidisciplinar composta por enfermeiros, médicos, nutricionistas e assistentes sociais. A coordenação é realizada por uma enfermeira, docente da disciplina Enfermagem Materno Infantil do Curso de Graduação em Enfermagem.

O encaminhamento da criança e sua família é realizado por profissionais da área da saúde, sendo admitidas crianças atendidas e/ou internadas em unidades pediátricas do NHU, observada uma das seguintes condições:

1.Peso ao nascer adequado, porém peso atual abaixo do percentil 10 da curva do National Center for Health Statistics-NCHS, adotada pelo Ministério da Saúde- PAISC (BRASIL,1984) para avaliação infantil conforme preconiza a Organização Mundial de Saúde- OMS.

2. História de internações hospitalares de repetição.

Cada caso é analisado pela equipe que expõe a situação da criança à família (pais ou responsável), discute o caso em conjunto e verifica a disponibilidade em participar do programa. Com o compromisso da família em participar, dá-se prosseguimento às atividades que se iniciam com a realização de visita domiciliar (Anexo 1 Anexo 1 ), para conhecimento tanto das condições ambientais como das relações entre os membros da família. O Projeto inclui também orientações e demonstrações sobre o manejo técnico de alimentação alternativa através da utilização de vídeos educacionais e aulas práticas desenvolvidas na cozinha experimental da AME, com assessoria de nutricionistas. São agendados retornos semanais ou quinzenais, para Consulta de Enfermagem no ambulatório de pediatria do NHU, de acordo com cada caso.

A alta é decidida em conjunto pela equipe e família, considerando-se os seguintes aspectos :

1.crianças com curva de peso/idade (P/I) ascendente por 3 meses consecutivos;

2.progressão nos marcos de desenvolvimento;

3.manejo técnico adequado da alimentação;

4.ausência de intercorrências patológicas.

3 CONSULTA DE ENFERMAGEM NO PROJETO (Anexo 2 Anexo 2 )

A consulta de enfermagem é realizada por um Enfermeiro - docente do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, acompanhado por alunos de enfermagem, bolsistas e/ou voluntários do 3º e 4º ano. Tem como finalidade:

• acompanhar a recuperação da criança, verificar seus problemas e dificuldades, favorecer o diálogo e estabelecer relação de ajuda;

• realizar exame físico visando o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento e a detecção precoce de intercorrências clínicas. Caso necessário, a avaliação médica é realizada em conjunto, permitindo maior resolutividade;

• discutir com a mãe ou substituta, suas percepções sobre as alternativas alimentares, uso e opções de manejo e orientar quanto à adequação da dieta e correção de possíveis erros;

• esclarecer dúvidas quanto aos problemas referentes à higiene pessoal, ambiental e dos utensílios domésticos;

• estimular a interação e o vínculo mãe-filho orientando sobre o uso do brinquedo, brincadeiras, e formas de estimulação adequadas para cada etapa do desenvolvimento, de acordo com a realidade da família;

• verificar o peso e registrar no "Cartão da Criança" preconizado pelo PAISC (BRASIL, 1984)

• orientar as mães para acompanhar a evolução da curva de crescimento dos filhos.

4 RELATO DE CASO

Criança (T.D.S), sexo feminino, ingressou no Projeto em 20/7/94, aos 7 meses. Havia estado internada por 10 dias na Clínica Pediátrica (NHU) com diagnóstico de diarréia infecciosa, desidratação de 2º Grau - com perda de 10% do peso corpóreo e desnutrição protéico calórica grau III segundo classificação de Gomez (déficit acima de 40% em relação ao peso ideal para a idade). Durante a internação apresentou intolerância secundária à lactose, sendo alimentada com dieta de frango.

Exame físico no 5º dia de internação: Estado geral regular, irritada ao manuseio, fácies senil, cabelos ralos, finos e sem brilho. Pele hipocorada e ressecada, com turgor e elasticidade diminuídas, tecido celular subcutâneo extremamente diminuído. Hiperemia em região sacra e dermatite de fraldas.

Com atraso no desenvolvimento para idade nas áreas: motor grosso (não sustenta a cabeça), social adaptativo (não sorri) e linguagem (não arrulha).

Peso/idade: abaixo do percentil 3 (4.200g); Estatura/idade: entre percentil 10 e 25 (62cm);Perímetro Cefálico/idade: no percentil 3 (39cm ).

História alimentar: Leite Materno por 2 meses. Iniciou o desmame com leite de vaca pasteurizado 100 ml, diluído ao meio em água e acrescido de 1 colher (chá) de açúcar e 1 colher (sopa) de arrozina, de 3/3 horas.

História familiar: Residem em bairro afastado do centro, casa de madeira com 2 cômodos, banheiro fora da casa, sem pia e com fossa, água de poço, não possui filtro. Moram 5 pessoas no domicílio, sendo 2 crianças e 3 adultos. A renda familiar situa-se entre 1 e 3 salários mínimos. Mãe solteira, estudou até 4a série do 1º grau, trabalha fora como doméstica. A criança permanece na creche durante o dia.

A mãe mostrou-se distante, porém após explicações acerca do trabalho a ser desenvolvido no Projeto decidiu entregar a criança à irmã, pessoa que teria maior disponibilidade para comparecimento às consultas ambulatoriais e cuidados no lar.

Durante as consultas de enfermagem, orientou-se sobre: adequação da diluição e adições do leite; cuidados de higiene corporal , dos utensílios e dos alimentos; uso e preparo das alternativas alimentares; tratamento da dermatite de fraldas; manutenção da hidratação/ uso de soro oral; cuidados gerais: exposição ao sol, vacinação, risco de acidentes na infância e estimulação ; sinais de perigo (infecção de vias aéreas, diarréia e desidratação); uso de antibiótico para tratamento de otite e infecção respiratória aguda; fortalecimento do vínculo afetivo mãe - filho.

A criança apresentou várias intercorrências clínicas durante os retornos ambulatoriais (otite média aguda, infecção respiratória aguda e diarréia), porém foram detectadas e tratadas precocemente, não havendo necessidade de internação hospitalar.

Exame físico na alta do Projeto em 7/7/95:

Bom estado geral, normocorada, hidratada, afebril. Pele íntegra com turgor e elasticidade preservados. Cabelo de coloração normal e com brilho. Tecido celular subcutâneo preservado e bem distribuído. Excelente estado de higiene. Vacinação em dia. Desenvolvimento adequado para idade (anda, corre, pronuncia algumas palavras, sorri, obedece ordens simples).

Peso/idade: entre percentil 10 e 25 (10.150g); Estatura/idade: percentil 50 (81 cm);Perímetro Cefálico/idade: entre percentil 25 e 50 (46 cm). Alimentação: Recebe 5 refeições ao dia; a família faz uso de alternativas alimentares (farelo de trigo, pó de folha de mandioca, pó da casca de ovo, óleo cru), assim como o aproveitamento de todas as partes dos alimentos (casca, talo, folhas e sementes), conforme orientação.

Cerca de 4 meses após o início do acompanhamento ambulatorial a mãe, passou a participar das consultas e voltou a cuidar da criança. Seu depoimento, na alta, foi: "Fiquei muito feliz com tudo que aprendi aqui, tenho até medo de pensar o que seria de minha filha sem a ajuda de vocês, muito obrigado!"

5 COMENTÁRIOS

Trata-se de uma criança que aos 7 meses de idade já apresentava estado geral extremamente comprometido, com evidencias de desnutrição ao exame físico.

No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição- PNSN analisados por MONTEIRO et al. (1995) indicam que a ocorrência de desnutrição já é alta nos primeiros 6 meses de vida, aumentando gradualmente após esse período até os 24 meses.

Vários autores, entre eles NOGARA (1994), atribuem parte dessa situação ao desmame precoce, pois apenas metade das crianças são amamentadas até o 6º mês. MONTEIRO (1988) também evidenciou em seu estudo que a duração da amamentação era muito curta e que a oferta de substitutos do leite materno era precoce e desnecessária. Segundo a PNSN, a média de duração do aleitamento materno no Brasil era de 72 dias e na região Centro Oeste de 92 dias (LEÃO et al.,1992). Como relatado, essa criança havia sido desmamada aos 2 meses de idade recebendo fórmula láctea erroneamente diluída, e com adição inadequada de hidratos de carbono, o que segundo PERNETTA (1988), favorece as diarréias e contribui para o aparecimento de infecções intestinais e a instalação do círculo vicioso infecção-desnutrição. Além disso, segundo BRANDÃO; BRANDÃO (1993) as famílias dão preferência à adição de amido de milho, como fonte calórica que, além de ser mais caro, é menos nutritivo que o farelo de trigo e o fubá de milho, por exemplo. Assim sendo, procedeu-se à orientação de uma alimentação adequada, com assessoria da Prefeitura para orientação sobre a instalação de hortas domésticas e da AME para orientações quanto à utilização de todas as partes do alimento (folha, frutas, caule e raízes), frutas e verduras da época, além do uso de farelo de trigo, pó de folhas verde escuras (mandioca, abóbora, chuchu, salsa, batata doce, etc.), pó de sementes (melancia, melão, girassol, abóbora, etc.) e pó da casca de ovo.

Observou-se que a criança, apresentou, na fase inicial, ganho ponderal entre 30 a 50g/dia, acima da média considerada normal para o 1º trimestre de vida, o que enfatiza a importância de ações imediatas para garantir o sucesso da recuperação.

Nos retornos ambulatoriais para acompanhamento, verificou-se constantes queixas de tosse, coriza, problemas de pele e mucosas, entre outros. Sabe-se que o desnutrido apresenta baixa imunidade, sendo comum intercorrências clínicas durante o período de convalescência, razão pela qual realiza-se o acompanhamento semanal e/ou quinzenal e orienta-se quanto aos sinais de perigo, a fim de que procurem os serviços de saúde o mais precocemente possível. As condutas mais freqüentes, nas consultas foram de orientações e demonstrações de cuidados de higiene corporal, manejo da alimentação e prevenção de doenças (diarréia, infeção respiratória, imunopreveníveis), banho de sol, recreação, prevenção de acidentes e maus tratos. As mães eram ouvidas quanto à sua maneira de cuidar e somente realizava-se alguma intervenção caso apresentasse risco para a criança. Buscou-se sempre ajudar as mães a encontrarem suas próprias condições e respostas, com a preocupação de não tentar modificar ou interferir em seus hábitos e costumes, respeitando sua cultura e entendendo a sua realidade social.

Em algumas ocasiões a mãe fazia questões, em geral, consideradas simples, porém ainda não esclarecidas pela equipe. Pôde-se observar que muitas vezes as mães tinham vergonha de perguntar sobre determinados cuidados que, se não abordados, poderiam contribuir para o agravamento da situação.

Em relação à imunização, a criança recebeu alta com a vacinação em dia, pois como afirma OSELKA (1995), a desnutrição não é contra indicação para imunização, sendo fundamental a cobertura vacinal do desnutrido.

Quanto às condições de moradia verificou-se, através da visita domiciliária que a família residia na periferia da cidade, em domicílio onde a cozinha e as instalações sanitárias eram situadas fora da casa; não dispunha de rede de esgoto (fossa negra) água encanada, filtro d'água nem geladeira. Tais condições precárias de moradia e saneamento constituem a realidade da maioria das famílias das crianças inseridas no projeto e, como sabemos, favorecem a contaminação e a instalação de doenças infecciosas, por vezes de repetição, como é o caso das infecções diarreicas. No Brasil, segundo SIMÕES (1992), enquanto a mortalidade infantil de crianças residindo em domicílios adequados se situava em torno de 30%o, para aquelas residindo em domicílios inadequados subia para 78,4%o ou seja, mais que o dobro. Observou-se que, após discussão conjunta dos problemas envolvendo questões do meio ambiente, como destino adequado para o lixo, tratamento da água de poço e tratamento das fossas, entre outros, muitas famílias conseguiram encontrar soluções na própria comunidade.

A renda mensal familiar inferior a 1/4 de salário mínimo per capita é classificada segundo MONTEIRO et al. (1992) na classe denominada “pobreza absoluta”, isto é, abaixo da linha de pobreza, e tanto essa família como a grande maioria das famílias assistidas no projeto encontravam-se nessa situação.

Segundo SIMÕES (1992) “alimentos, ambiente e cuidados à criança são essencialmente condicionados pelo nível de renda familiar, embora tal condicionamento possa ser modulado, entre outros fatores pela oferta de serviços públicos de saúde, saneamento, educação e programas de subsídios ou doação de alimentos. Para VICTORA et al. (1988),”é possível reduzir parcialmente a morbimortalidade da população infantil, através de melhorias no sistema de atenção médico-sanitária.” Desta forma, a criação de programas de atendimento à saúde da criança, enfocando aspectos preventivos são extremamente importantes para diminuição da mortalidade infantil, como o Projeto ora descrito.

Esta criança foi entregue à sua tia durante o tratamento, pois sua mãe não sentia-se em condições de prestar os cuidados necessários. SILVA et al. (1995) analisando as características psicológicas de mães de crianças desnutridas observaram componentes depressivos e ansiosos, com dificuldade de estabelecimento de vínculos afetivos e sentimento de rejeição, relataram ainda, desestruturação familiar tanto em seu núcleo atual como em seus modelos parentais, além de perdas importantes na infância e presença de alcoolismo no companheiro e/ou avós maternos. NÓBREGA; CAMPOS (1996) destacam que, além das demais dificuldades, em geral, as mães de crianças desnutridas apresentam fraca relação afetiva com seus filhos. O Projeto de Recuperação do Desnutrido desenvolve um programa de estimulação, tanto enfocando o desenvolvimento da criança quanto a relação mãe-filho. As mães são orientadas em relação à prática de atividades apropriadas para a faixa etária e, também para a manutenção de um programa de observação dos filhos em casa. No retorno ambulatorial, solicita-se que comentem sobre as situações vividas e discute-se seus sentimentos em relação à criança, permitindo que reflitam e se auto analisem, fortalecendo o vínculo afetivo mãe-filho. Ao receber alta do Projeto a criança não apresentava sinais de atraso de desenvolvimento e pelo depoimento da mãe percebe-se o fortalecimento do vínculo afetivo.

Observa-se que, assim como a mãe dessa criança, muitas outras são semi-alfabetizadas, e poucas estudaram o I grau completo, dificultando a compreensão de orientações. Vallin apud MONTEIRO (1992) afirma que em países não desenvolvidos uma mãe com bom nível de educação é mais importante para a sobrevivência da criança que um bom médico. Reconhece-se que quanto maior o nível de instrução da mãe, melhor sua condição para assistir a criança em termos de cuidados gerais de promoção à saúde.

Enquanto profissionais da saúde não podemos esquecer das desigualdades sociais que são realidade no país e que se expressam de forma cruel no quadro clínico da desnutrição infantil. Trabalhar com estas famílias é o grande desafio, mas é preciso ampliar nossa prática e o nosso discurso para além das "alternativas alimentares", pois sabe-se que o controle e a diminuição da incidência de desnutrição não depende apenas de oferta e/ou correção de alimentação inadequada, mas depende também da detecção e tratamento precoce de infecções, interrompendo a cadeia da síndrome da desnutrição, além de corrigir distorções sociais como inadequada distribuição de renda, acesso à escola e às informações, discutindo com as famílias seus problemas, suas dificuldades de forma que, no transcorrer do trabalho, estas também ampliem suas concepções sobre cidadania.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Projeto de Recuperação Integral do Desnutrido encontra-se em processo de avaliação. Os resultados alcançados até o momento revelam que tem sido possível recuperar o crescimento e desenvolvimento das crianças atendidas, com a participação ativa da família.

Apesar da condição social da família continuar a mesma, em termos de renda, moradia e nível educacional da mãe, temos observado mudanças no relacionamento entre mãe e filho, com maior envolvimento afetivo. A conscientização dos problemas, através da relação de ajuda, contribui para que a família, possa buscar, com autonomia soluções na própria comunidade.

As mães revelam, em seus depoimentos que, sentem-se gratificadas pela oportunidade de participar do processo de recuperação da saúde dos filhos, fortalecidas e capacitadas para enfrentar novas dificuldades.

Isto evidencia, conforme afirma ANGELO (1993), a importância de optar por ações de enfermagem que liberem as pessoas, ao invés de ações que as mantenham oprimidas, forçadas a se manter em situação de desvantagem. E, reforça esse pensamento afirmando que “diante das múltiplas determinações do processo saúde-doença, a perspectiva de cuidado centrado na criança enquanto pessoa, em sua mãe enquanto pessoa, é um instrumento que pode capacitar estas pessoas para a superação de limites.”

O trabalho em equipe mostrou favorecer o atendimento multidisciplinar, que tem efeitos positivos na abordagem da complexa problemática da desnutrição. A relação da mãe com a equipe também torna-se mais envolvente e todos se unem para um objetivo comum, isto é, recuperar a condição de saúde da criança.

A parceria com a AME tem se mostrado fundamental para facilitar a recuperação das crianças, pois é uma maneira de abordar os problemas da comunidade, em conjunto com a própria comunidade, de forma que as ações desenvolvidas buscam garantir os direitos do cidadão.

Assim, acredita-se que o enfermeiro e demais profissionais da área da saúde, que atuam com crianças desnutridas, precisam buscar esta maneira de olhar para as famílias das crianças e propor formas de atuação conjunta que estimulem a participação das mesmas no processo de recuperação.

RELATÓRIO DE VISITA DOMICILIAR (PRÉ - ALTA HOSPITALAR)

1) IDENTIFICAÇÃO.

Nome da criança: __________________________________________________________________

Endereço:__________________________________________________________

Nome do informante:_____________________________Grau de parentesco: ________________________________

2) FAMÍLIA:

Pessoas que habitam a residência: adultos:__________ crianças:__________ idades: ______________________

Grau de parentesco com a criança: ____________________________________________________________________

Quem permanece na residência durante o dia? ____________e à noite? __________________________________

Quem prepara as refeições? ____________________ Quem cuida das crianças? _____________________ Com quem a criança tem mais afinidade? ________Como a criança se relaciona com os irmãos? ________

3) HABITOS: a)Higiene: toma banho sozinha na banheira ou chuveiro? _____________________________________________

Precisa de ajuda para tomar banho?__________________________________________________________________

Escova os dentes quantas vezes ao dia? ______________________________________________________________

É acompanhada para ir ao banheiro?_________________________________________________________________

b)Alimentação: Cardápio de hoje:____________________________________________________________________

Qual o grau de instrução da pessoa que prepara o alimento?__________________________________________

criança come o mesmo que os adultos?_____________________________________________________________

criança já rejeitou a alimentação?_____________________Qual a atitude tomada?______________________

Usa mamadeira, copo, colher, garfo? _________________________________________________________________

Onde é guardada a mamadeira? ________________ É fervida? _______Quantas vezes? ____________________

Em que estado de higiene está a cozinha no momento da visita? ______________________________________

Água encanada?( ) Poço? ( ) Fossa? ( ) Localização ____________________________________________________

Onde é localizada a cozinha? ___________ geladeira?_______ higiene _________ filtro? ______ fogão? ______

Onde são armazenados os alimentos? ______________ Onde é acondicionado o lixo? ___________________

onde é localizado o banheiro e o estado de higiene e conservação: _____________________________________

c) Sono e Repouso: como é o quarto ? _____________________ E o berço da criança? ___________________

O local é arejado? _____________________ Recebe luz solar?_________________________

Quantas horas a criança dorme por dia? ________________Quais os horários?__________________________

d)Lazer e Recreação

criança brinca só ou em grupo? _________________ O local para brincar é seguro? ____________________

Algum adulto participa das brincadeiras? ______ freqüenta creche? ______________

escola? ______________

Quais os métodos utilizados para disciplina? _________________________________

Solicite ao informante que relate o temperamento da criança no lar. Observe o tratamento dispensado à criança durante sua permanência. Descreva suas impressões.

ROTEIRO CONSULTA DE ENFERMAGEM

I) Evolução/queixas: ______________________________________________________________________

II ) Esquema alimentar: 7:00: ___________________ 9:00 ________ 11:00 15:00 ________18:00__________________

Observações: _________________________________________________________________________

Apetite: Anorexia ( ) Regular ( ) Bom ( ) Está usando: Farelos ( ) Folhas verdes ( ) Óleo vegetal ( )

III) Avaliação dos gráficos de crescimento:

P/I: _________________ E/I: __________________ P/E: _____________ PC/I:____________________________

IV) Imunização: Em dia ( ) Atrasado ( )

V) Exame fisico

Peso: ____________Estatura: ____________Perímetro cefálico: ______ Estado geral: _______________________

Pele e anexos: _________________________Tecido subcutâneo :___________________Higiene:_______________

Observações: _______________________

VI) Condutas:________________________________________________________Ass: ___________

  • ANGELO, M. Saúde da criança e do adolescente: políticas e programas de saúde - aspectos técnicos, científicos e éticos. Sessões Simultâneas. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENFERMAGEM, 45, Recife, 1993. Anais Recife, ABEn, 1993. p.127-31.
  • BRANDÃO,C.T.; BRANDÃO.R.F. Alimentação alternativa. Goiânia, Redentorista,1993.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança, Brasília,1984.
  • LEÃO, E.; FIGUEIREDO FILHO, P.P. Desnutrição. In: LEÃO,E. et al . Pediatria ambulatorial. Belo Horizonte, Coopmed,1989. p.156-61.
  • LEÃO,M.M. et al. O perfil do aleitamento materno no Brasil. In: MONTEIRO, M.F.G.; CERVINI,R.(org.) Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil: aspectos de saúde e nutrição de crianças no Brasil, 1989. Rio de Janeiro,IBGE/UNICEF/ INAN,1992. p. 97-109.
  • MATO GROSSO DO SUL. Secretaria de Estado da Saúde. Divisão de Informações em Saúde. Núcleo de Estatística Vital. Dados estatísticos. Mato Grosso do Sul,1994.
  • MONTEIRO,C.A. Saúde e nutrição das crianças de São Paulo: diagnóstico, contrastes sociais e tendências. São Paulo, HUCITEC/USP,1988.
  • MONTEIRO,C.A. Saúde e nutrição das crianças brasileiras no final da década de 80. In: MONTEIRO, M.F.G.; CERVINI,R.(org.) Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil: aspectos de saúde e nutrição de crianças no Brasil, 1989. Rio de Janeiro, IBGE/UNICEF/INAN,1992.p. 19-42.
  • MONTEIRO,C.A.et al. Velhos e novos males da saúde no Brasil. a evolução do pais e de suas doenças. São Paulo, Ed. HUCITEC-NUPENS/USP,1995.p.93-114. Evolução da desnutrição infantil
  • MONTEIRO, M.F.G. Baixo Peso ao Nascer. In: MONTEIRO, M.F.G.; CERVINI,R. (org.) Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil: aspectos de saúde e nutrição de crianças no Brasil,1989. Rio de Janeiro, IBGE/UNICEF/ INAN, 1992. p.11-8
  • MOURA,L.A. et al. Atuação do enfermeiro na bacia do córrego Bandeira (comunidade Anhanguera):uma proposta de prática social. Campo Grande,1995./Mimeografado/
  • NÓBREGA, F.J.; CAMPOS, A.L.R. Distúrbios nutricionais e fraco vínculo mãe/filho. Rio de Janeiro, Revinter,1996.
  • NOGARA,C.D. Farelo de arroz como suplemento alimentar Curitiba, 1994./Mimeografado/
  • OSELKA,G.Vacinação./ Apresentado na Conferência Internacional de Desnutrição Infantil. São Paulo,1995.
  • PERNETTA,C. Alimentação da criança. Rio de Janeiro,Guanabara,1988.
  • SILVA,I.F.et al. Avaliação das características psicológicas de mães de desnutridos internados em enfermaria. Rev. Paul. Pediatr, v.13, n.1,p.6-9,1995.
  • SIMÕES,C.C.Estudo dos diferenciais na mortalidade infantil segundo algumas características sócio-econômicas. In: MONTEIRO, M.F.G.; CERVINI, R.(org.) Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil: aspectos de saúde e nutrição de crianças no Brasil,1989.Rio de Janeiro, IBGE/UNICEF/ INAN,1992. p. 61-78.
  • VICTORA,C.G et al. Epidemiologia da desigualdade: um estudo longitudinal de 6000 crianças brasileiras. São Paulo,HUCITEC,1988.

Anexo 1 

Anexo 2 

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Out 1998
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