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Determinação ou Determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde

Resumos

Este artigo tem como objetivo discutir os conceitos de Determinação Social da Saúde e de Determinantes Sociais da Saúde, tecendo uma comparação entre suas perspectivas orientadoras e as implicações para as políticas e ações de saúde. Desenvolve-se uma reflexão de caráter histórico e conceitual, destacando a Teoria da Produção Social da Saúde, seguindo-se uma discussão sobre os conceitos, com abordagem comparativa entre estes.

Determinantes Sociais da Saúde; Epidemiologia; Medicina Social; Enfermagem em Saúde Pública


This article aims to discuss the concepts of Social Determination of Health and Social Determinants of Health, by establishing a comparison between each of their guiding perspectives and investigating their implications on the development of health policies and health actions. We propose a historical and conceptual reflection, highlighting the Theory on the Social Production of Health, followed by a debate on the concepts, with a comparative approach among them.

Social Determinants of Health; Epidemiology; Social Medicine; Public Health Nursing


Este artículo tiene el fin de discutir los conceptos de Determinación Social de la Salud y de Determinantes Sociales de la Salud, tejiéndose una comparación entre sus perspectivas orientadoras y las implicaciones para las políticas y acciones de salud. Se desarrolló una reflexión de carácter histórico y conceptual, destacándose la Teoría de la Producción Social de la Salud, siguiéndose una discusión acerca de los conceptos, con abordaje comparativo entre esos.

Determinantes Sociales de la Salud; Epidemiología; Medicina Social; Enfermería en Salud Pública


Introdução

Ao longo do tempo, várias teorias interpretativas sobre o processo saúde-doença foram elaboradas, tendo em vista a busca por inferências causais para as doenças. Essas teorias expressam determinadas maneiras de pensar o mundo e diversos projetos filosóficos, quando não antagônicos(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

Desde a implantação da Lei Orgânica da Saúde no Brasil, Lei n.º 8.080/1990, a Epidemiologia tem sido explicitamente utilizada como referencial para a fundamentação das ações de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). É definida, tradicionalmente, como ciência que estuda a distribuição de doenças e suas causas nas populações. No século XX, além da ampliação dos seus conhecimentos, também foi consolidada como saber científico, subsidiando práticas de saúde pública e coletiva(2Medeiros ARP de, Larocca LM, Chaves MMN, Meier MJ, Wall ML. Epidemiology as a theoretical-methodological framework in the nurses' working process.. Rev Esc Enferm USP 2012;46(6):1519-23.).

Ao longo do tempo, a Epidemiologia nem sempre teve a perspectiva coletiva como objeto de estudo. Foi utilizada para buscar legitimidade do discurso clínico, na ótica de uma concepção biologicista que vigorou por muito tempo, levando a reflexão epistemológica trilhar caminhos diferentes, sem fazer uma articulação com as ciências sociais(2Medeiros ARP de, Larocca LM, Chaves MMN, Meier MJ, Wall ML. Epidemiology as a theoretical-methodological framework in the nurses' working process.. Rev Esc Enferm USP 2012;46(6):1519-23.).

A Epidemiologia faz uso de um raciocínio predominantemente indutivo, ou seja, após análises de ocorrências em populações, "(...) resulta em inferências aplicáveis a outras populações expostas às mesmas condições"(2Medeiros ARP de, Larocca LM, Chaves MMN, Meier MJ, Wall ML. Epidemiology as a theoretical-methodological framework in the nurses' working process.. Rev Esc Enferm USP 2012;46(6):1519-23.). Já na Clínica, os modelos explicativos do processo saúde-doença são restritivos. Ter saúde significa a ausência de doenças, organizando os serviços de saúde de forma a oferecer ações preventivas e curativo-reabilitadoras. "Não considera a historicidade dos fatos sociais, pressupondo a existência de padrões universais de saúde-doença"(3Amador DV, Silva KL. Promoção da Saúde: histórico, conceito e práticas no contexto da saúde coletiva. In: Souza MCMR, organizadores. Enfermagem em saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2013. p. 15-24.).

Tradicionalmente, tal conceito de saúde, reduzido a simples ausência de doenças, propõe uma visão puramente biológica, que foi amplamente contestada por não ter aplicação na análise da determinação social da saúde, uma vez que centraliza sua perspectiva ao tratamento e prevenção de doenças e lesões, restringindo a análise da questão saúde(4Fleury-Teixeira P. Uma introdução conceitual à determinação social da saúde. Saúde Debate. 2009;33(83):380-7.). Um exemplo é a incorporação e cada vez mais ampla utilização do conceito de risco como dispositivo para a identificação de fatores que aumentam a probabilidade da ocorrência de doenças ou agravos, com aumento de sua influência nas decisões com relação ao futuro da sociedade. Tal desejo de controle, no entanto, se apresenta como um paradoxo, em função da imprevisibilidade dos fenômenos saúde-doença(5Lupton D. Risk. London: Routledge; 1999.).

O caráter histórico-social do processo saúde-doença pode ser demonstrado, empiricamente, por diversos estudos. Isto é exposto no artigo "A saúde-doença como processo social" de Asa Cristina Laurell(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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), em que discute a limitação da concepção biológica da doença e a influência do caráter histórico e social no processo de adoecimento, através de dados de estudos realizados na América e na Europa. E ao explicitar esta relação, possibilita alcançar a conceituação relativa ao problema da determinação(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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).

Este artigo tem por objetivo discutir os conceitos de Determinação Social da Saúde e de Determinantes Sociais da Saúde (DSS), tecendo uma comparação entre suas perspectivas orientadoras e as implicações para a saúde. É trazida uma breve reflexão de caráter histórico e conceitual, destacadamente sobre a Teoria da Produção Social da Saúde, seguindo-se uma discussão sobre os conceitos, com breve abordagem comparativa entre eles. Finaliza-se apontando algumas implicações para as ações de saúde. O artigo tem sua origem nos estudos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Configurações do Mundo do Trabalho, Saúde dos Trabalhadores e Enfermagem, da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Determinação social da saúde

O conceito de Determinação Social da Saúde teve notória importância na formação da epidemiologia social latino-americana e na história do movimento sanitário brasileiro(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

A medicina social tem sua origem vinculada à polícia médica na Alemanha, à medicina urbana na França e à medicina da força de trabalho na Inglaterra. Através destas três formas, Foucault ilustra sua tese de que "(...) com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário"; que o capitalismo ao se desenvolver no final do século XVIII e início do século XIX, "(...) socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho"(8Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979.).

Para Foucault(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.), "o investimento do capitalismo foi no biológico, no somático, no corporal, mas no corpo que trabalha, do operário, somente seria levantado como problema na segunda metade do século XIX". E é a partir dos anos 40 do século XIX que se origina as condições para a emergência da medicina social. "Às vésperas de um movimento revolucionário que se estenderia por toda a Europa, muitos médicos, filósofos e pensadores assumiriam o caráter social da medicina e da doença"(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

A partir deste momento se integra ao discurso sanitarista alguns princípios básicos: 1) a saúde das pessoas passa a ser de interesse da sociedade, isto é, a sociedade é obrigada a proteger e assegurar a saúde de seus membros; 2) as condições sociais e econômicas influenciam a saúde e doença e estas precisam ser estudadas cientificamente; 3) as medidas que devem ser tomadas para a proteção da saúde são tanto sociais quanto médicas(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

"Sem dúvida, este ideário centralizado na corporação médica, como pregava Guérin, ou marcado pelas relações entre o homem e suas condições de vida, como dizia Virchow, impulsionaram a formulação da medicina social da metade do século XIX"(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

Com a derrota da Revolução de 1848, todas essas vozes que defendiam a saúde como questão política e social na Europa ficaram sufocadas. A ideologia do movimento de reforma da saúde e médica como ciência social foi transformada em um programa limitado de reforma sanitária, levando à desconsideração da importância dos fatores sociais em saúde enquanto a ênfase biomédica ganhou domínio em uma proporção esmagadora, a partir da revolução científica oriunda das descobertas bacteriológicas de Robert Koch(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

Surge, no final da década de 1960, uma polêmica em relação ao caráter da doença, devido à crescente crise política e social dos países capitalistas que acompanhava a crise econômica e com ela se entrelaçava. O paradigma dominante da doença, que a definia como um fenômeno biológico individual, passou a ser questionado, principalmente, a partir do momento que surge discussões sobre o caráter da doença ser essencialmente social(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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).

As primeiras análises gerais na América Latina que remetem ao campo da medicina social datam dos anos 1980 e 1990. No Brasil, as trajetórias de um pensamento social resultaram em diferentes aproximações, em diferentes momentos. Tais aproximações retomam as origens da saúde coletiva com base no chamado projeto preventivista, amplamente discutido na segunda metade dos anos 1950, que se associava à crítica ao modelo biomédico, culminando na criação dos departamentos de medicina preventiva e social nas escolas médicas e de disciplinas que ampliavam a perspectiva clínica, como a epidemiologia, as ciências de conduta, a bioestatística. A preocupação com uma perspectiva biopsicossocial do indivíduo é instalada(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

Esta compreensão sobre os fenômenos saúde, doença e formas de enfrentamento apoiam-se na perspectiva social e científica da abordagem marxista, que se apresenta tanto crítica, em relação aos encaminhamentos da ciência hegemônica, quanto propositiva, ou seja, apontando para as estratégias necessárias no sentido de construir novas formas de pensar a saúde e novos modos de organizar e desenvolver as práticas e ações do setor saúde(1010 Viana NS, Soares CB, Campos CMS. Reprodução social e processo saúde-doença: para compreender o objeto da saúde coletiva. In:, Soares CB, Campos CMS organizadores. Fundamentos de saúde coletiva e o cuidado de enfermagem. Barueri: Manole; 2013. p. 107-42.).

Parte-se do reconhecimento de que, sob o capital, as relações sociais de produção e reprodução da vida são permeadas e expressam as contradições inerentes aos projetos de classe em disputa, e que estas contradições, por sua vez, expressam-se em desiguais formas de viver, adoecer e morrer. Há, portanto, uma perspectiva epidemiológica que busca aprofundar a análise para além dos indicadores e dos fenômenos imediatos, o que permite distinguir, em uma dada população, não um único, mas vários perfis epidemiológicos, dado que os grupos sociais estão concretamente "expostos a diferentes potenciais de desgaste e de fortalecimento (...)"(1010 Viana NS, Soares CB, Campos CMS. Reprodução social e processo saúde-doença: para compreender o objeto da saúde coletiva. In:, Soares CB, Campos CMS organizadores. Fundamentos de saúde coletiva e o cuidado de enfermagem. Barueri: Manole; 2013. p. 107-42.).

Em meados dos anos 1960 o projeto preventivista torna-se realidade em muitas escolas médicas. Já a década de 1970 é um marco para o campo da saúde coletiva no Brasil, que inicia sua estruturação formal por meio da formação de recursos humanos, no avanço das ciências sociais na saúde e no financiamento de desenvolvimento tecnológico e inovação por instituições de fomento. Em 1974 tem-se a criação do primeiro curso de pós-graduação em Medicina Social no Rio de Janeiro, e do ponto de vista teórico-acadêmico, a divulgação de vários trabalhos de relevância como os de Cecília Donnangelo, Arouca, Luz, García, entre outros(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

Tais trabalhos passam a ser difundidos pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social. No trabalho de Arouca, a Medicina Social estuda a dinâmica do processo saúde-doença nas populações, suas relações com a estrutura da atenção à saúde, assim como as relações das duas com o sistema social global, a fim de transformar estas relações com o intuito de maximizar os níveis de saúde e bem-estar das populações(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

A construção da medicina social no Brasil se estende de 1974 a 1979. Contudo, somente entre 1980-1986, desdobra-se em propostas para uma política pública efetiva, pela disseminação das propostas de reforma do sistema de saúde vigente, expressas em importantes eventos, como a VII e a VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorridos em 1979 e 1986, respectivamente. A partir de então se inicia o processo de reforma da saúde pública(9Nunes ED. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo; 2009. p. 19-40.).

Um conjunto de tradições acadêmicas estuda a determinação social do processo de saúde e doença: a medicina social latino-americana, a saúde coletiva no Brasil e o movimento de promoção à saúde no Canadá. Ainda que de maneira diversa em relação ao alcance e à radicalidade de suas posições como indagação quanto à ordem social vigente, todas concordam sobre a importância da organização social nos aspectos sanitários de um dado território e em uma época específica. Afinal, a saúde e a doença também dependem das condições socioeconômicas, embora não somente delas(1111 Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In:, Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM organizadores.. Tratado de saúde coletiva São Paulo: Hucitec; 2009. p. 41-80.).

Estas abordagens concordam que os fatores econômicos (renda, emprego e organização da produção) podem interferir positiva ou negativamente na saúde de grupos populacionais; que os ambientes de convivência e de trabalho podem gerar efeitos mais ou menos lesivos à saúde das pessoas; e que a cultura e os valores também podem interferir ampliando ou restringindo as possibilidades de saúde das pessoas, pelo valor que se atribui à vida, reconhecimento de cidadania, concepção de saúde, e forma como cada povo lida com as diferenças de gênero, de etnia e até mesmo econômicas(1111 Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In:, Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM organizadores.. Tratado de saúde coletiva São Paulo: Hucitec; 2009. p. 41-80.).

"Em termos gerais, o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção"(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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).

Portanto, o processo saúde-doença apresenta simultaneamente caráter social e biológico, e pode ser analisado com metodologia social e biológica, ou seja, como um processo único. O estudo empírico do processo saúde-doença permite descrever as condições de saúde de um grupo relacionadas às condições sociais deste, evidenciando a problemática de forma mais abrangente do que a mera descrição biológica das condições de saúde, fato que influencia, diretamente, na prática sanitária(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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Estabelece-se uma relação entre o processo saúde-doença do coletivo e do indivíduo, já que o processo do coletivo determina as características básicas sobre as quais se assenta a variação biológica individual. Visto de outro modo, leva-se em consideração a história social do indivíduo, ou seja, o conjunto de relações e condições presentes na sua vida, o que irá condicionar sua biologia e determinar a probabilidade de adoecer, de um modo particular, efetivada como presença ou ausência do fenômeno. O estudo do processo saúde-doença do coletivo ressalta a compreensão do problema da causalidade, visto que o modo biológico de viver em sociedade determina os transtornos biológicos característicos, a doença, que não surge separada deste, mas ambos ocorrem como momentos de um mesmo processo, todavia, diferenciáveis(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
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).

A determinação social da saúde é um referencial teórico que discute a abrangência da coletividade e do caráter histórico-social do processo saúde-doença, não colocando em foco discussões de dados epidemiológicos individuais. Propicia explicitar a relação entre o biológico e o social, divergindo da abordagem dos DSS, como pode ser visto adiante.

Determinantes sociais da saúde

Até o século XIX, a representação da doença se resumia em duas vertentes baseadas na unicausalidade: a ontológica e a dinâmica. A concepção ontológica que predominava na antiguidade era a atribuição da enfermidade a um estatuto de entidade, que sempre era externa ao ser humano e com existência própria, um mal, ou seja, tal entidade se agrega ao corpo do doente, passando a ser um receptáculo de um elemento natural ou espírito sobrenatural que, invadindo-o, produz a enfermidade. Não havia participação ou controle do organismo no processo de causação(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

A vertente dinâmica tem sua origem nas antigas medicinas hindu e chinesa sobre uma concepção dinâmica da causalidade. Considerava-se que doença era produto do desequilíbrio ou desarmonia entre os princípios ou forças básicas da vida, no entanto, também compreendia a busca do reequilíbrio, ou seja, o ser humano podia buscar diferentes procedimentos terapêuticos para a restauração de suas forças vitais. Tratava-se, portanto, de uma naturalização da doença(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

Nos séculos XVII e XIX, sob a influência do paradigma cartesiano, a ciência médica se desenvolveu rapidamente, principalmente com o progresso da Anatomia Humana de Vesalius, que levou ao aparecimento de outra disciplina, a Fisiologia, na busca em explicar o funcionamento normal do corpo humano. Outra disciplina que surgiu foi a Patologia, que possibilitou criar um sistema classificatório para as doenças(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

No século XIX ocorre a revolução sanitária, como uma forma de intervir sistematicamente sobre o ambiente físico com o intuito de torná-lo mais seguro. Isto é, haviam sido lançadas as bases da Epidemiologia, "(...) voltada para a observação e registro das doenças nas populações quando a teoria contagionista superou a atmosférico-miasmática, após um embate que perdurou do século XVI ao XIX"(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

A origem das doenças era explicada pelo paradigma socioambiental predominante, em que miséria e miasmas eram utilizados para explicar a disseminação de doenças. Os estudos de Chadwik sobre as causas sociais da diminuição absoluta da população inglesa e de John Snow sobre o caráter transmissível da cólera instituíram as bases metodológicas da Epidemiologia. Iniciam-se as primeiras evidências da determinação social do processo saúde-doença e os primeiros modelos estatais de interferência na saúde coletiva com a saúde pública inglesa e a medicina social francesa. Tais modelos foram articulados aos movimentos ideológicos do sanitarismo e da medicina social da época na Inglaterra e na Europa Ocidental. A medicina social nasce na França fundada na observação empírica das relações entre doença e as condições sociais, assim, o objeto da medicina passa a se deslocar da doença para a saúde(1Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15.).

No pós-guerra, a concepção de saúde da OMS no final da década de 1970 refere-se à necessidade de se integrar aos cuidados com atenção médica o combate às causas da doença. Essa preocupação também mobilizou a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e culminou com políticas e projetos de intervenção em países com formações históricas diferentes, como Chile e Suécia. Para alguns autores, o reaparecimento do tema Determinantes Sociais da Saúde (DSS) está atrelado aos efeitos negativos do modelo neoliberal de desenvolvimento implantado nos anos 1980. Tal modelo teria aumentado as iniquidades em saúde, acarretando o reaparecimento da preocupação com a justiça social(1212 Zioni F, Westphal MF. O enfoque dos determinantes sociais de saúde sob o ponto de vista da teoria social. Saúde Soc. 2007;16(3):26-34.).

Neste sentido, o nível de saúde seria decorrente da estratificação social, determinante do contexto ou do território, assim como da distribuição desigual dos fatores produtores de saúde: materiais, biológicos, psicossociais e comportamentais. A desigualdade econômica, caracterizada pela posição que o indivíduo ocupa na estratificação social, determinaria uma desigualdade de acesso aos fatores de boa ou má saúde, implicando o aumento das iniquidades da área. Combater a desigualdade significaria melhorar o nível de saúde, mas para tal, faz-se necessário desenvolver políticas intersetoriais (econômicas, de emprego, de renda, moradia, educação, etc.), garantindo a participação e empoderamento das populações, para que estas possam colaborar com a transformação da sociedade. Portanto, esta ênfase na revalorização dos indivíduos como sujeitos de suas ações sugere que os mesmos estão implicados nas estruturas e estas, por sua vez, nos significados das ações sociais(1212 Zioni F, Westphal MF. O enfoque dos determinantes sociais de saúde sob o ponto de vista da teoria social. Saúde Soc. 2007;16(3):26-34.).

Atualmente, tem-se um consenso sobre a importância dos DSS na situação de saúde, que foi construído ao longo da história. Estes foram postos em destaque no final dos anos 1970 com a Conferência de Alma-Ata, e na década de 1990, com o debate sobre as Metas do Milênio, que foi ratificado com a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde em 2005(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

Em 2006, cria-se no Brasil, por Decreto Presidencial, a Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). Tal comissão define os DSS como fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

Em geral, considera-se que os DSS são as relações entre as condições de vida e trabalho dos indivíduos com a sua situação de saúde. A OMS adota uma definição mais sucinta sobre os DSS, os quais são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

As atividades da CNDSS se baseiam no conceito de saúde da OMS: "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade"; e do preceito constitucional de reconhecer a saúde como "(...) direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação"(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.-1414 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado; 1988.).

Os principais objetivos da CNDSS são: produzir conhecimentos e informações sobre os DSS no Brasil; contribuir no desenvolvimento de políticas, planos, modelos e programas para a promoção da equidade em saúde; e mobilizar a sociedade civil e o governo para atuar sobre os DSS(1515 Brasil. Decreto Presidencial, de 13 de março de 2006. Institui, no âmbito do Ministério da Saúde, a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde - CNDSS [Internet]. Brasília; 2006 [citado 2014 abr. 20]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Dnn/Dnn10788.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
).

Existem vários modelos que estudam os DSS e descrevem as relações entre diversos fatores gerais, como os de natureza social, econômica e política. O modelo de referência adotado pela CNDSS é de Dahlgren e Whitehead de 1991(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.,1616 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro; 2008 [citado 2014 abr. 20]. Disponível em: http://www.determinantes.fiocruz.br/
http://www.determinantes.fiocruz.br/...
).

Tal modelo dispõe os DSS em diferentes camadas. Uma camada mais próxima dos determinantes individuais até uma camada onde se situam os macrodeterminantes. Isto é, são identificados quatro níveis de atuação, que não se excluem e são inter-relacionados(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

O primeiro nível relacionado aos fatores individuais, de comportamentos e estilos de vida, é fortemente influenciado pelos DSS, uma vez que é difícil mudar comportamentos de risco sem alterar as normas culturais que os influenciam. A atuação consiste em políticas de abrangência populacional que promovam mudanças de comportamento em relação aos fatores de risco ou fortalecer a capacidade das pessoas em lidar melhor com as influências negativas advindas de suas condições de vida e trabalho. Alguns exemplos seriam educar pessoas que trabalham em condições monótonas a lidar com o estresse ou aconselhar pessoas que estão desempregadas a prevenir o declínio da saúde mental associado a esta condição(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

O segundo nível corresponde às redes sociais e às comunidades. Os laços de coesão social e as relações de solidariedade e confiança entre as pessoas e grupos são fundamentais para a promoção e proteção da saúde individual e coletiva, ou seja, seu foco é o fortalecimento da organização e participação das pessoas e das comunidades em ações coletivas, para se constituírem em atores sociais e participantes ativos das decisões da vida social(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.).

O terceiro nível refere-se aos fatores relacionados às condições de vida e de trabalho. Neste nível as pessoas em desvantagem social estão submetidas a riscos oriundos de condições habitacionais humildes, de exposição a condições de trabalho perigosas e estressantes, além de menor acesso aos serviços essenciais. As propostas de atuação são políticas que assegurem um melhor acesso à água limpa, rede de esgoto, habitação adequada, alimentos saudáveis, serviços essenciais de saúde e educação, ambientes de trabalho saudáveis e um emprego seguro e realizador, entre outros(1414 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado; 1988.,1616 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro; 2008 [citado 2014 abr. 20]. Disponível em: http://www.determinantes.fiocruz.br/
http://www.determinantes.fiocruz.br/...
-1717 Comissão de Determinantes Sociais de Saúde. Rumo a um modelo conceitual para análise e ação sobre os Determinantes Sociais de Saúde: ensaio para apreciação da Comissão de Determinantes Sociais de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CSDH; 2005 [citado 2014 abr. 20]. Disponível em: http://www.determinantes.fiocruz.br/pdf/texto/T4-2_CSDH_Conceptual%20Framework%20-%20tradu%E7%E3o%20APF.pdf
http://www.determinantes.fiocruz.br/pdf/...
).

O quarto e último nível inclui as condições econômicas, culturais e ambientais prevalecentes na sociedade como um todo. A atuação se baseia nas políticas macroeconômicas e de mercado de trabalho, de fortalecimento dos valores culturais e de proteção ambiental, a fim de promover um desenvolvimento sustentável, reduzindo as desigualdades socioeconômicas, a violência, a degradação ambiental e seus efeitos sobre a sociedade(1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):77-93.,1616 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro; 2008 [citado 2014 abr. 20]. Disponível em: http://www.determinantes.fiocruz.br/
http://www.determinantes.fiocruz.br/...
).

Aspectos comparativos entre dss e determinação social da saúde

A partir de 2005, a OMS divulga o tema determinantes sociais das doenças, que passa a ser estudado por diversos países filiados a essa entidade de cooperação multilateral. Mas o conceito de determinantes sociais reaparece desprovido do arcabouço teórico e político que apresentava nos anos 1970 e 1980, período em que se pretendia entendê-lo à luz da teoria marxista de sociedade, com base na vertente crítica do pensamento social(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

Nessa crítica, admite-se que, na maioria das vezes, apresentam-se sob o tema DSS casos em que a causalidade social dos problemas de saúde é quase óbvia, como por exemplo, estatísticas nas quais famílias de baixa renda apresentam altas taxas de mortalidade infantil, em comparação aos demais estratos da população; outro exemplo são os trabalhadores desempregados quando comparados aos empregados, pois são mais suscetíveis a episódios de depressão e a outros transtornos mentais(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

Verifica-se que os atuais estudos sobre determinantes sociais se limitam a identificar correlações entre variáveis sociais e eventos de morbimortalidade na população, diferentemente do que se pretendia nos anos de 1970 e 1980, em que se buscava uma perspectiva explicativa mais ampla. Aprofundando a análise, assume-se que interesses relacionados à hegemonia de campos de conhecimento também podem estar presentes, embora de modo não imediatamente claro: "Assim, o que está disfarçado por trás do rótulo de determinantes sociais e de combate às iniquidades em saúde é o triunfo esmagador da visão de mundo da epidemiologia tradicional"(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

Tais críticas também são tecidas por algumas instituições do campo da Saúde Coletiva atualmente, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e a Associação Latino-Americana de Medicina Social (ALAMES). Estas entidades entendem que o aparente novo campo de investigação dos determinantes sociais enfatize a perspectiva positivista predominante na epidemiologia tradicional(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

No modelo da OMS, os determinantes sociais são considerados fatores externamente conectados, expandindo a visão para as chamadas causas das causas. Fato preocupante, uma vez que repete o modus operandi do causalismo, o de atuar sobre os fatores. Mesmo que este modelo reconheça os determinantes estruturais e intermediários, o faz de tal forma que é impossível estabelecer o nexo histórico entre as dimensões da vida(1818 Breilh J. Las tres "s" de la determinación de la vida y el triángulo de la política. In:, Nogueira RP organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro:; CEBES 2010. p. 87-125.).

Um primeiro fator limitador dessa perspectiva se deve à ausência das categorias definidoras do conjunto e de sua lógica (acumulação, propriedade, relações sociais), dos determinantes estruturais, além da ênfase sobre as políticas e a governança. Outro ponto é a versão linear dos componentes das classes sociais (educação, trabalho/ocupação) e sua tendência para a valorização da dimensão econômica na definição de estratos sociais, tal como se observa nas análises acerca de emergência de uma nova classe média no Brasil, com base apenas em indicadores de consumo. Em relação aos determinantes intermediários, não fica claro quais são as circunstâncias materiais envolvidas, e se correspondem ao nível de produção individual ou ao social(1818 Breilh J. Las tres "s" de la determinación de la vida y el triángulo de la política. In:, Nogueira RP organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro:; CEBES 2010. p. 87-125.).

Já a concepção de base marxista impõe outra episteme, ao propor uma compreensão na qual as quantificações objetivas dos fenômenos observáveis (aí se incluindo o conceito de fator de risco, por exemplo) devem ser examinadas como mediações dinâmicas entre níveis nos quais se produzem os processos sociais, em lugar de trazer as variáveis para um mesmo plano de análise. A crítica que se dirige às vertentes de base positivista é a de que esta, "ao utilizar métodos das ciências naturais no mundo social, viabiliza uma leitura fragmentada do problema de estudo e fotografa a realidade de maneira estática, acobertando a dinamicidade que põe em evidência o quadro de determinação do que está em estudo, no plano da consciência"(1919 Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxism as a theoretical and methodological framework in collective health: implications for systematic review and synthesis of evidence.. Rev Esc Enferm USP 2013;47(6):1403-9.).

O neopositivismo e a ciência contemporânea reduziram o conceito de determinante social da saúde a um fator causal empírico, através do uso de métodos e inferências estatísticas(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.). Alguns autores afirmam a importância de se rediscutir a determinação social da saúde, no sentido de superar a noção positivista expressa no conceito de DSS, visto que a teoria da produção social da saúde abarca o caráter histórico-social do processo saúde-doença, propiciando explicitar a relação entre o biológico e o social, e entre o individual e coletivo(1818 Breilh J. Las tres "s" de la determinación de la vida y el triángulo de la política. In:, Nogueira RP organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro:; CEBES 2010. p. 87-125.).

Dessa forma, pensamos que a utilização do termo Determinação Social se contrapõe ao de DSS, e que o primeiro traz um questionamento de base não apenas quanto às bases teórica e metodológica acerca dos estudos que permitem sustentar o conceito de DSS, mas também epistemológica, indagando sobre em que bases deve se apoiar uma ciência que busca compreender as questões relativas à vida e ao adoecimento para além dos fenômenos pelos quais se expressam(1818 Breilh J. Las tres "s" de la determinación de la vida y el triángulo de la política. In:, Nogueira RP organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro:; CEBES 2010. p. 87-125.). Resumidamente, pode-se afirmar que o primeiro é entendido como uma perspectiva que considera o campo mais amplo na qual se produzem os processos saúde-doença, buscando trazer para o plano da consciência uma compreensão que estabeleça mediações entre a realidade fragmentada e a totalidade social, enquanto o segundo expressa o privilegiamento da identificação de variáveis sociais mensuráveis sobre uma compreensão mais descritiva e densa dos contextos de saúde(4Fleury-Teixeira P. Uma introdução conceitual à determinação social da saúde. Saúde Debate. 2009;33(83):380-7.,7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.,1818 Breilh J. Las tres "s" de la determinación de la vida y el triángulo de la política. In:, Nogueira RP organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro:; CEBES 2010. p. 87-125.).

Tomando como base a teoria da Produção Social da Saúde, assume-se que esta é um fenômeno eminentemente humano e social, e não um fato biológico-natural, o que exige uma abordagem complexa, histórica, política e culturalmente contextualizada. Essa não é, todavia, uma abordagem predominante, já que boa parte dos estudos se volta para a identificação de correlações entre variáveis sociais isoladas e eventos de morbimortalidade na população, sem avançar em análises mais aprofundadas. A crítica reside no pressuposto de que a determinação da saúde está além do simples emprego de esquemas de causalidade, não sendo apenas uma comparação empírica entre condições de saúde e fatores sociais(7Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010.).

O processo biológico individual não revela de imediato o social. É preciso olhar além do objeto direto da medicina clínica e da epidemiologia para se construir um objeto que permita um estudo empírico do problema. Uma vez que "(...) o caráter social do processo saúde-doença manifesta-se empiricamente mais claro em nível da coletividade que do indivíduo"(6Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982 [citado 2014 maio 20];2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/57...
).

Logo, a teoria da Produção Social da Saúde como referencial teórico de discussão abrange a coletividade e o caráter histórico-social do processo saúde-doença, e não apenas a discussão de dados epidemiológicos individuais, o que propicia explicitar a relação entre o biológico e o social constituindo a determinação social da saúde.

Considerações finais

Os DSS têm sido assunto de destaque em âmbito internacional, e vem sendo discutido em nossa sociedade, principalmente, pela CNDSS. Tal é o grau de importância, que diversos países estão apoiando suas políticas através do estudo e análise dos DSS. Contudo, a partir dessa análise acerca da natureza dos conceitos, verifica-se uma tendência à abordagem positivista e reducionista dos dados, sobretudo quando se discutem dados epidemiológicos de forma individualizada, sem considerar todos os fatores sociais que podem estar ou não envolvidos no processo de adoecimento do indivíduo e da população.

Vale ressaltar que saúde vai além de um fato biológico-natural e do emprego de esquemas epidemiológicos. Faz parte da convivência do indivíduo em sociedade e ao acesso às redes socioeconômicas e de serviços essenciais. Isto é, o contexto social e a história de vida individual e da coletividade irão influenciar positiva ou negativamente na saúde, a qual é um fenômeno eminentemente humano.

As implicações da utilização, como base teórica, dessas diferentes perspectivas para o campo da saúde coletiva são de diversas ordens. Primeiramente, é preciso ter claro que para a formação de futuros profissionais de saúde deve-se, necessariamente, contemplar, nas suas diretrizes curriculares, qual a perspectiva teórica que sustenta o desenvolvimento curricular, daí decorrendo todo o conjunto de escolhas a respeito de questões, como relação entre teoria e prática no ensino, privilegiamento de determinadas matrizes disciplinares em detrimento de outras, apenas para mencionar alguns.

Também no âmbito da definição de políticas públicas, aqui entendido como expressão de arenas de disputa de interesses políticos-ideológicos, além de suas bases técnico-científicas, a adoção de uma ou outra perspectiva poderá sustentar (ou não) ações mais ou menos focalizadas, a depender da forma como se estruturam os processos de implementação dessas políticas. Admite-se, a partir das leituras, que, no conjunto das agendas políticas orientadas para o financiamento e a implementação de ações de enfrentamento dos processos saúde-doença, persiste a hegemonia de uma visão tecnicista e baseada em ações focalizadas que se sucedem, se contrapõem ou sobrepõem, sem considerar a dimensão histórica e social local.

Assim, ao trazer estes pontos, ainda que de forma sucinta, para o debate, conclui-se pela necessidade de ampliar essa discussão para além do âmbito acadêmico, incluindo também os profissionais de saúde, gestores, docentes e discentes das profissões da saúde, a fim de que a explicitação da origem e nortes dos conceitos permita escolhas informadas e a apropriação dessa discussão teórico-conceitual por todos os que estão envolvidos na produção da saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2014
  • Aceito
    12 Nov 2014
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