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Práticas na Atenção Básica voltadas para o consumo prejudicial de drogas* * Extraído da dissertação "A atenção ao usuário de drogas na atenção básica: elementos do processo de trabalho em unidade básica de saúde", Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2012.

Resumos

Objetivo

Analisar as práticas de atenção básica voltadas ao consumo prejudicial de drogas.

Método

Estudo qualitativo, desenvolvido na perspectiva dialético-crítica. A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semiestruturadas com 10 trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

Resultados

As demandas não são acolhidas e, quando ultrapassam as barreiras - conformadas pela ausência histórica de práticas de atenção à saúde ao usuário de drogas e por ideologias moralistas e preconceituosas -, não são reinterpretadas como necessidades de saúde; as práticas que atendem essas demandas são precárias; a perspectiva funcionalista, que compreende o consumo de drogas como doença e considera usuários de drogas como desviantes, embasa as escassas práticas existentes.

Conclusão

A atenção básica encontra-se equivocamente voltada para a dependência; carece de elementos estruturais do processo de produção em saúde e da dinamicidade interna aos processos de trabalho, que favoreceriam o desenvolvimento de práticas coletivas.

Usuários de drogas; Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Pessoal de saúde


Objective

To analyze the practices of primary care focused on the harmful consumption of drugs.

Method

This is a qualitative study, developed with a dialectical-critical approach. Data collection was carried out through semi-structured interviews with 10 employees of a basic health unit (UBS).

Results

The demands are not accepted, and if they go beyond the barriers shaped by the historical absence of health care practices for drug users and moralistic and preconceived ideologies, they are not reinterpreted as health needs; practices that meet these demands and go beyond the barriers are poor; the functionalist approach, which explains drug use as a disease and considers drug users as deviants, supports the few existing practices.

Conclusion

primary health care is mistakenly focused on addiction; it lacks structural elements of the production process in health and internal dynamics of the working processes that would foster the development of collective practices.

Drug users; Primary health care; Family health strategy; Health personnel


Objetivo

El estudio tiene como objetivo analizar las prácticas de atención primaria dirigidos a lo consumo prejudicial de drogas.

Método

Se trata de un estudio cualitativo, desarrollado en la perspectiva dialéctica crítica. La recolección de datos se realizó a través de entrevistas semiestructuradas con 10 empleados de una Unidad Básica de Salud.

Resultados

Muestran que: las demandas no son aceptadas, y si van más allá de las barreras - formadas por la ausencia histórica de la práctica de la atención de salud para los consumidores de drogas y las ideologías morales y preconcebidas -, no son reinterpretados como necesidades de salud; las prácticas que satisfagan esas demandas son pobres; detrás de estas escasas prácticas, está la perspectiva funcionalista, que considera el uso de drogas como una enfermedad y los usuarios de drogas como desviados; los trabajadores valoran la formación clínica y culpan a los usuarios por los problemas que enfrentan.

Conclusión

Se pode concluir que la atención primaria: es equívoca hacia el objeto de la dependencia; carece de los elementos estructurales del proceso de producción en la salud y las dinámicas internas de los procesos de trabajo que fomenten el desarrollo de las prácticas colectivas.



Consumidores de drogas; Atención Primaria de la Salud; Estrategia de Salud Familiar; Personal de salud


Introdução

Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que as práticas voltadas aos usuários de drogas na Atenção Básica (AB), como a maior parte das práticas que congregam os processos de trabalho do processo de produção em saúde, estão tomando como objeto do cuidado em saúde a unidade dependência-dependente de drogas. Isso ocorre porque o consumo prejudicial de drogas foi historicamente considerado pela política pública de saúde brasileira como doença psiquiátrica(101 Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis Rev Saúde Coletiva. 2010;20(3):995-1015). Pressupõe-se ainda que as mudanças mais recentes na configuração da AB e nas diretrizes ministeriais relativas às ações no campo do enfrentamento dos problemas com o consumo de drogas não estão sendo capazes de modificar essa tendência histórica.

A história do cuidado a usuários de drogas prestado na AB é marcada pela constituição fragmentada das políticas públicas brasileiras na área da saúde e, em particular, das políticas e das práticas de enfrentamento ao consumo prejudicial de drogas. O modelo de atenção para esse grupo esteve sempre conectado ao modelo multifatorial de saúde-doença(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007) com a chamada prevenção primária atribuída autoritariamente à escola(303 Soares CB, Jacobi PR. Adolescentes, drogas e AIDS: avaliação de um programa de prevenção escolar. Cad Pesqui. 2000;(109):213-37) e o tratamento atribuído à psiquiatria, uma vez que o consumo vem sendo genericamente definido como doença(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007).

Ao propor a construção de uma rede de atenção aos usuários de drogas com base comunitária, regida pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e por lógica transversalizadora, a atual política do Ministério da Saúde direcionada aos usuários de drogas vem exigindo revisão dos modelos assistenciais vigentes na AB. A política do MS reconhece a importância e a centralidade da AB na construção de uma rede de atenção aos usuários de drogas e a literatura na área reconhece a AB como locus importante de ação na área(404 Gonçalves SSPM, Tavares CMM. Atuação do enfermeiro na atenção ao usuário de álcool e outras drogas nos serviços extra-hospitalares. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):586-92-505 Barros MA, Pillon SC. Atitudes dos profissionais do PSF diante do uso e abuso de drogas. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):655-62).

A reestruturação da AB a partir da Estratégia Saúde da Família (ESF) priorizou a atenção a um conjunto de problemas de saúde para alguns grupos populacionais reconhecidos grosseiramente como SUS-dependentes e, nos documentos governamentais, como grupos de risco/vulneráveis para esses problemas de saúde, tendo como finalidade a extensão de cobertura. Dessa forma, as mudanças efetuadas através das normas operacionais deixaram de fora do escopo da atenção primária um conjunto considerável de necessidades de saúde(606 Calipo SM, Soares CB. Público e privado na reforma do Sistema de Saúde no Brasil. Soc Debate. 2008;14(1):119-38).

Até o presente, portanto, não há acúmulo histórico em relação à atenção a usuários de drogas na AB, o que vem situando os trabalhadores dessa área na periferia do debate sobre o cuidado para esse grupo. A análise da bibliografia na área permite perceber a escassez e/ou ausência de práticas direcionadas aos usuários de drogas na AB(404 Gonçalves SSPM, Tavares CMM. Atuação do enfermeiro na atenção ao usuário de álcool e outras drogas nos serviços extra-hospitalares. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):586-92-505 Barros MA, Pillon SC. Atitudes dos profissionais do PSF diante do uso e abuso de drogas. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):655-62,707 Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface Comun Saúde Educ. 2009;13(28):151-64-808 Munari DB, Melo TS, Oliveira MB, Barbosa CC, Queiroz ACCM, Araújo BFM. Capacitação de agentes comunitários de saúde para o cuidado em saúde mental na atenção básica: potencializando pessoas para cuidar de pessoas. Rev Tempus Actas Saúde Colet. 2010;4(1):115-23). Esse âmbito de atenção não é historicamente considerado na atenção aos usuários de drogas, identificados como doentes/dependentes; quando demandam a AB são tradicionalmente encaminhados a serviços especializados, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) ou de internação.

A formação dos trabalhadores de saúde na temática do consumo de drogas mostra-se precária, incapaz de romper com o modelo biomédico de saúde-doença, com a lógica de mercadorização da saúde e com os fundamentos ideológicos da política pública nessa área; incapaz, consequentemente, de romper com a concepção biomédica do consumo de drogas(404 Gonçalves SSPM, Tavares CMM. Atuação do enfermeiro na atenção ao usuário de álcool e outras drogas nos serviços extra-hospitalares. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):586-92-505 Barros MA, Pillon SC. Atitudes dos profissionais do PSF diante do uso e abuso de drogas. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(4):655-62,909 Moretti-Pires RO, Corradi-Webster CM, Furtado EF. Consumo de álcool e atenção primária no interior da Amazônia: sobre a formação de médicos e enfermeiros para assistência integral. Rev Bras Educ Med. 2011;35(2):219-28).

O objetivo deste trabalho é analisar as práticas voltadas para consumidores de drogas nos serviços de AB em saúde, tomando por referência as políticas públicas de saúde brasileiras nessa área.

Método

Esta pesquisa se fundamenta na vertente marxista de produção de conhecimento, que contribui expressivamente na América Latina com o campo da saúde coletiva e que congrega o paradigma crítico(1010 Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxism as a theoretical and methodological framework in collective health: implications for systematic review and synthesis of evidence. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2014 Mar 19];47(6):1403-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en_0080-6234-reeusp-47-6-01403.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en...
). Particularmente, ancora-se no desenvolvimento da perspectiva teórico-metodológica que explica os problemas atuais com o consumo de drogas, a partir da mercadorização/fetichização das drogas(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007,1111 Soares CB, Campos CMS. Consumo de drogas. In: Borges ALV, Fujimore E, organizadoras. Enfermagem e a saúde do adolescente na atenção básica. Barueri: Manole; 2009-1212 Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf Social. 2013;4(2):38-54).

Nessa perspectiva, as práticas na AB são tomadas como instrumentos dos processos de trabalho instaurados no processo de produção em saúde para responder a necessidades de saúde(1313 Mendes Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. São Paulo: Centro de Formação dos Trabalhadores em Saúde, Secretaria Municipal da Saúde; 1992. (Cadernos CEFOR, 1 – Série textos)). Nessa perspectiva estas são compreendidas como necessidades de reprodução social, e tomá-las como objeto das práticas em saúde requer uma compreensão ampla desse objeto em suas diversas dimensões, coordenadas pela dimensão econômica, dado o seu domínio no modo de produção capitalista(1414 Campos CMS, Mishima SM. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cad Saúde Pública. 2005;21(4):1260-8).

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza descritivo-analítica, realizada em 2012, que teve como campo de estudo uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do Município de São Paulo, em que convivem o modelo de atenção tradicional e o da ESF.

A UBS conta com seis equipes de saúde da família, que respondem por aproximadamente 90% da população de abrangência da unidade. Alguns médicos especializados atendem aos usuários que se encontram fora da cobertura da ESF, porém o psiquiatra e a hebiatra atendem também aos usuários ESF. A UBS conta ainda com uma equipe de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), composta por trabalhadores que atendem a quatro UBS da Supervisão Técnica de Saúde do Ipiranga, contabilizando-se o total de 15 equipes da ESF.

A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (APDM), em contrato de gestão com a Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), assumiu a gestão dessa UBS em 2001, com a implantação das primeiras equipes da ESF, sendo responsável pela contratação de todos os trabalhadores dessa estratégia e do NASF.

Os sujeitos de pesquisa foram: seis trabalhadores da ESF; três trabalhadores da PMSP; e um trabalhador do NASF. Ter experiência de atender demandas relacionadas às questões do consumo de drogas constituiu o critério de inclusão dos sujeitos da pesquisa, indicados ao término de reuniões de apresentação do projeto de pesquisa às equipes.

Os dados foram coletados a partir de entrevistas gravadas, conduzidas através de roteiro semiestruturado, mediante consentimento dos entrevistados e de assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O projeto foi aprovado por dois Comitês de Ética em Pesquisa (da Escola de Enfermagem da USP e da Prefeitura Municipal de Saúde de São Paulo), sendo formalmente apresentado ao Núcleo de Educação Permanente da Coordenadoria Regional de Saúde da região Sudeste da PMSP, que orientou a sua consecução operacional.

A análise dos dados seguiu as orientações básicas para análise de conteúdo(1515 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977), revisitadas a partir das categorias teóricas que ajudaram a analisar aspectos estruturais e da dinâmica da realidade encontrada. Tomou-se em consideração criticamente o sujeito que traz o conteúdo à tona, sua forma de interpretar a realidade e o contexto em que esse conteúdo se apresenta(1010 Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxism as a theoretical and methodological framework in collective health: implications for systematic review and synthesis of evidence. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2014 Mar 19];47(6):1403-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en_0080-6234-reeusp-47-6-01403.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en...
).

Resultados

A análise dos resultados permitiu a identificação de três grandes temas entre os conteúdos levantados pelos entrevistados:

Ausência de demandas relacionadas ao consumo de drogas na AB.

Neste tema identificaram-se os componentes: 1. Aspectos que dificultam a compreensão do fenômeno do consumo de drogas: a) a concepção que ampara o trabalhador na identificação do objeto do processo de trabalho assistencial é a de que o usuário de drogas é incapaz, fraco, vulnerável, indefeso, doente, desviante; b) os aspectos da formação dos trabalhadores que não contribuem para o atendimento das demandas relacionadas ao consumo de drogas são: ausência ou insuficiência de formação sobre o tema; a hegemonia da formação clínica/biomédica, pautada no modelo psiquiátrico; ausência de instrumentos para promover a transformação do objeto de trabalho (causa de angústia por não se ofertarem respostas efetivas, o que vem mobilizando alguns trabalhadores a buscar formação por conta própria); fracasso na produção de mudanças significativas a partir de curso específico realizado por alguns (o pequeno impacto das ações é atribuído à ausência de instrumental prático que ensine como abordar os usuários de drogas); 2. Demandas relacionadas ao consumo de drogas que chegam à AB e não são reinterpretadas como necessidades de saúde: demandas são tomadas e atendidas (ou não) da forma que são trazidas e expressas pelos usuários dos serviços e suas famílias, sem que sejam submetidas a reinterpretações (se a demanda vem na forma de internação, ela é lida como internação); dificuldades para que demandas desse tipo cheguem até os espaços da AB; não há qualquer busca ativa, apesar de ser uma questão reconhecidamente presente no território; as demandas que conseguem chegar ao serviço, chegam na forma de agravos agudos, trazidos por familiares ou ACS; os processos que levam os sujeitos a buscar ajuda estão relacionados principalmente ao desespero de familiares e algumas vezes do próprio usuário em não saber lidar com a problemática; há relatos também de que as demandas relacionadas ao consumo de drogas não chegam de forma direta, ou seja, os usuários de drogas chegam até o serviço trazendo outras demandas/queixas e, apesar de haver uma ressignificação das demandas trazidas pelos usuários de drogas por parte de alguns profissionais de saúde, o reconhecimento das necessidades por trás dessas demandas não é concluído; as formas de organização dos processos de trabalho na AB não contribuem para esse movimento de identificação e reconhecimento das necessidades de saúde da população atendida na AB; não há intervenção adequada para as necessidade no elenco de práticas, sendo o único recurso enquadrar/reduzir a necessidade ao modelo de atenção; a demanda que mais chega à UBS é por internação.

Práticas Protocolares são Insuficientes: a) insuficiência de meios e instrumentos de trabalho para lidar com as questões complexas que estão imbricadas no fenômeno do consumo de drogas; as principais práticas direcionadas aos usuários de drogas se restringem a: consultas individuais, visitas domiciliares e encaminhamentos para outros âmbitos de atenção ou para trabalhadores especializados; o objeto dos processos de trabalho são os agravos que conseguem chegar até os serviços; tais práticas seguem estritamente o que é preconizado nos manuais e fluxogramas, e por isso as denominamos aqui como protocolares; b) mesmo as práticas de trabalhadores especializados não ampliam o objeto dos processos de trabalho, que continuam sendo o indivíduo incapaz, fraco ou doente; os trabalhadores não contam com recursos suficientes para ampliar o objeto e transformar as demandas trazidas pelos usuários de drogas e suas famílias em necessidades de saúde; há dificuldades de se produzirem práticas que ampliem o objeto dos processos de trabalho, pois esses processos estão sujeitos à normatização dos protocolos e programas estabelecidos pelas políticas de saúde, construídas em âmbito central sem a participação de trabalhadores e população residente nos territórios atendidos; o vínculo torna-se o principal instrumento do processo de trabalho, quando o objeto é o usuário de drogas e suas demandas.

Ineficácia do Modelo de Atenção Biomédico e Privatista: a rede de atenção e cuidados direcionados aos usuários de drogas é estruturada de forma deficiente; há desintegração entre os equipamentos de saúde mental e os serviços da AB, além da ineficácia do modelo de atenção de saúde mental no município; há desconhecimento em relação à realidade de saúde mental das pessoas que vivem no território; há contradição entre essa realidade e as intervenções de saúde produzidas pela rede de saúde do município; a desintegração da rede de saúde fere o princípio do SUS, de integralidade das ações; o funcionamento da rede de serviços de saúde mental do município é conhecido a partir de manuais e fluxogramas.

Discussão

Os resultados indicam a existência de barreiras na atenção ao usuário de drogas na AB. Definem-se barreiras como aquelas conformadas pela ausência histórica de práticas de atenção à saúde na AB, dirigidas a usuários de drogas, e por ideologias moralistas. Em geral as demandas trazidas para a AB relativas ao consumo prejudicial de drogas não são acolhidas e/ou reinterpretadas como necessidades de saúde para disparar os processos de trabalho. Apesar da existência de mecanismos que dificultam ou até mesmo impossibilitam o acesso das demandas relacionadas ao consumo de drogas, algumas delas conseguem ultrapassar as barreiras, mas permanecem sem reinterpretação, cruas, como chegaram. Nesse sentido provocam angústia e desconforto, com os trabalhadores convencidos de que estão tecnicamente despreparados para produzir qualquer tipo de abordagem ao usuário e à sua família.

Esse despreparo não é atribuído à insuficiência do modelo biomédico para interpretar as necessidades relativas ao consumo prejudicial de drogas, mas à falta de formação técnica para lidar com as demandas, o que acaba se constituindo na principal explicação elaborada para justificar a ausência de práticas direcionadas aos consumidores de drogas na AB. Percebe-se que a formação clínica/biomédica, pautada no modelo psiquiátrico, é eleita quando se trata de abordar a questão das drogas, atribuindo-se um papel secundário à saúde coletiva e à saúde mental, que são abordagens desconhecidas ou preteridas.

Como mecanismo de alívio das angústias e em face da ausência de espaços de formação no processo de produção de serviços de saúde, principalmente nas áreas não incluídas no pacote assistencial priorizado para a AB, alguns profissionais buscam alternativas de formação técnica, por conta própria. Essa busca é movida por compromisso pessoal em dar algum tipo de resposta a essa demanda.

A assistência prestada aos usuários de drogas na AB também é estudada por outro autor(909 Moretti-Pires RO, Corradi-Webster CM, Furtado EF. Consumo de álcool e atenção primária no interior da Amazônia: sobre a formação de médicos e enfermeiros para assistência integral. Rev Bras Educ Med. 2011;35(2):219-28), que verifica que os profissionais reforçam a importância da formação clínica, quase sempre restrita a protocolos de intervenção farmacológica.

Historicamente os serviços de saúde voltados para usuários de drogas mostram-se restritos, não apenas em relação a aspectos quantitativos, como em relação aos tipos de abordagem e intervenção produzidos(1616 Soares BM, Rohden F. As melhores intenções: análise dos programas de prevenção e recuperação da dependência química. Rio de Janeiro: Núcleo de Pesquisa/ISER; 1994). Eles reproduzem o modelo biomédico e psiquiátrico hegemônico e se caracterizam por excessiva patologização e medicalização de problemas sociais(1717 Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saúde Pública. 2009;25(11):2309-19).

Os sujeitos da pesquisa acreditam que o vínculo torna-se o principal instrumento do processo de trabalho quando o objeto são as demandas trazidas pelos consumidores de drogas. A valorização do aspecto humano permitiria a oferta de algum conforto para os sujeitos que estão em sofrimento em função do consumo de drogas, mas o fôlego desse cuidado parece muito curto e acaba por trazer de volta as mesmas angústias suscitadas diante da impossibilidade de reinterpretar as demandas inicialmente trazidas pelos usuários, famílias e vizinhança.

A análise da percepção que os sujeitos têm sobre a atenção ao usuário de drogas na AB remete a um ciclo que vem promovendo o reforço de mecanismos que colocam a AB em posição secundária para proporcionar intervenções em saúde capazes de modificar o quadro de problemas que cercam o consumo de drogas.

Quando esse profissional elege como objeto do processo de trabalho as demandas de usuários de drogas, ele parte de concepções adquiridas a partir de sua formação, de sua trajetória de vida e, em última instância, a partir de suas experiências pessoais com substâncias psicoativas. De maneira geral esse processo reproduz a ideologia dominante. Não se observam questionamentos ou análises críticas por referência às abordagens de senso comum e biomédica, reproduzindo-se os estigmas relacionados aos consumidores de drogas, considerados incapazes, fracos, indefesos, doentes, marginais, desviantes. A reprodução dessa ideologia, que sustenta a abordagem funcionalista do problema do consumo de drogas(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007,1111 Soares CB, Campos CMS. Consumo de drogas. In: Borges ALV, Fujimore E, organizadoras. Enfermagem e a saúde do adolescente na atenção básica. Barueri: Manole; 2009,1818 Velho G. O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social. In: Velho G, organizador. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar; 1974. p.11-28), encontra-se nas justificativas dos trabalhadores da saúde da AB para a dificuldade de acesso de demandas relacionadas ao consumo de drogas e para a ausência e/ou precariedade das práticas de cuidado.

No equacionamento da questão relacionada ao consumo de drogas, os profissionais de saúde trazem para a análise a categoria da culpabilização do sujeito e das famílias, especialmente as famílias ditas desestruturadas. Deposita-se no usuário de drogas toda a responsabilidade em relação ao consumo de drogas, ao tratamento e, por último, ao sucesso ou fracasso em sua vida. Aspectos relevantes, como a inserção desses sujeitos nas relações de produção e de consumo e como os valores sociais que sustentam essas relações(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007), são apenas precariamente considerados.

A culpabilização por referência ao consumidor de drogas é mecanismo encontrado na AB em outros espaços(1919 Soares CB, Campos CMS, Leite AS, Souza CLL. Young people and drug consumption: workshops to provide tools for workers in social institutions, from a collective health perspective. Interface Comum Saúde Educ. 2009;13(28):189-99) e relaciona-se com orientação mais geral da promoção da saúde bastante criticada na literatura em saúde(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007).

A problematização dos entrevistados sobre a incoerência entre as demandas que chegam, o processo de produção de serviços de saúde e o modelo assistencial vigente é precária, com poucos argumentos. A precarização do próprio trabalho, as formas de contratação, a ausência de planos de carreira, os salários e a ausência de estabilidade ficam de fora da equação. Não se põem em evidência as transformações atuais no mundo do trabalho, que afetam a área da saúde e que se referem à reestruturação produtiva e à investida do neoliberalismo(606 Calipo SM, Soares CB. Público e privado na reforma do Sistema de Saúde no Brasil. Soc Debate. 2008;14(1):119-38,2020 Antunes R. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo; 2006. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil; p.15-25

21 Santos VC. A relação trabalho-saúde dos enfermeiros do PSF da região de Vila Prudente-Sapopemba: um estudo de caso [dissertação]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007
-2222 Shimizu HE, Carvalho Junior DA. O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e suas repercussões no processo saúde-doença. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(9):2405-14).

As condições de trabalho na AB, diretamente influenciadas pelas transformações ocasionadas pela onda neoliberal e concretizadas na figura das Organizações Sociais (OS), no caso da atenção primária em São Paulo, produzem ambiente de trabalho propício à alienação do trabalhador, além de sentimentos como impotência, estresse, medo e insegurança(2323 Ribeiro EM, Pires D, Blank VLG. A teorização sobre processo de trabalho em saúde como instrumental para análise do trabalho no Programa Saúde da Família. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):438-46). Sentimentos que estão entre os enfermeiros da ESF, por exemplo, e que se encontram na base de seus desgastes no trabalho(2424 Santos VC, Soares CB, Campos CMS. A relação trabalho-saúde de enfermeiros do PSF no município de São Paulo. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(n.esp):777-81).

Todos esses sentimentos foram trazidos pelos sujeitos desta pesquisa, que em geral não apresentavam qualquer análise estrutural ou das dinâmicas que conformam as condições de trabalho, apontando para a inexistência dessa discussão, bem como de espaços e condições favoráveis para reflexão sobre as formas de organização e gestão dos processos de trabalho e de produção dos serviços de saúde na AB(2323 Ribeiro EM, Pires D, Blank VLG. A teorização sobre processo de trabalho em saúde como instrumental para análise do trabalho no Programa Saúde da Família. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):438-46).

O medo do tráfico, da violência e das drogas é também apontado por alguns trabalhadores entrevistados como um fator limitante na produção de intervenções em saúde direcionadas aos usuários de drogas e no acesso dessas demandas na UBS, contextualizando esse medo à realidade concreta do narcotráfico no território onde atuam. Essas condições vêm sendo relatadas em outros espaços de trabalho(1919 Soares CB, Campos CMS, Leite AS, Souza CLL. Young people and drug consumption: workshops to provide tools for workers in social institutions, from a collective health perspective. Interface Comum Saúde Educ. 2009;13(28):189-99,2525 Cordeiro L. Formação de Agentes Comunitários de Saúde para o desenvolvimento de práticas de Atenção Básica relativas ao consumo prejudicial de drogas [dissertação]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2013).

Isso se deve às distorções provocadas pela guerra às drogas, que veicula um conjunto de concepções reacionárias e contraproducentes a respeito das drogas e dos usuários. Ela preconiza que as ações sociais devem se dirigir a combater as drogas, o que coloca trabalhadores da saúde e da educação e de outras áreas sociais em face de circunstâncias atemorizantes, como as que circundam a criminalidade que cerca a produção, circulação e consumo de drogas ilícitas. Há muito temos denunciado, a partir de resultados de pesquisa, que os problemas relacionados às drogas são sociais e devem ser o foco da atenção dos trabalhadores sociais. Isso significa que trabalhar nesse campo envolve ações sobre os determinantes, ações que fortaleçam os indivíduos e grupos sociais na busca por encaixe e por igualdade social(202 Soares CB. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde Coletiva [tese livre docência]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007,1111 Soares CB, Campos CMS. Consumo de drogas. In: Borges ALV, Fujimore E, organizadoras. Enfermagem e a saúde do adolescente na atenção básica. Barueri: Manole; 2009-1212 Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf Social. 2013;4(2):38-54).

Ocasionalmente, observam-se discursos críticos que analisam o consumo a partir da mercadorização das drogas, considerando na equação as dinâmicas sociais mais gerais. Dessa forma, o objeto se amplia, mas para que isso se sustente na prática é preciso aprofundar o conhecimento e garantir práticas que tomem em consideração as condições de trabalho e vida dos diferentes grupos sociais que vivem nos territórios de abrangência das UBS e que estão na base dos problemas de saúde que enfrentam(101 Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis Rev Saúde Coletiva. 2010;20(3):995-1015).

O trabalho na AB continua a ser concebido de forma fragmentada, parcelar e isolado, mesmo com a proposta da reestruturação desse nível da atenção, a partir da implantação da ESF, e não há ruptura com o modelo assistencial predominantemente biomédico e com as formas hegemônicas de produção das intervenções em saúde(2323 Ribeiro EM, Pires D, Blank VLG. A teorização sobre processo de trabalho em saúde como instrumental para análise do trabalho no Programa Saúde da Família. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):438-46,2626 Favoreto CAO, Camargo Junior KR. Alguns desafios conceituais e técnico-operacionais para o desenvolvimento do Programa de Saúde da Família como uma proposta transformadora do modelo assistencial. Physis Rev Saúde Coletiva. 2002; 12(1):59-75).

Dessa forma, o modus operandis preconizado nos órgãos centrais é imposto aos diferentes trabalhadores que estão na linha de frente e que devem executar passivamente as tarefas prescritas e atingir determinado resultado esperado. Poucos são os espaços de planejamento local, poucas são as avaliações de ações, programas e projetos (que poderiam constituir espaços de reflexão sobre os processos de trabalho). Os níveis centrais realizam avaliações de forma isolada, levando-se em conta apenas dados quantitativos (metas atingidas, número de práticas produzidas). Mas nem esses dados são discutidos com os trabalhadores. A estes sobram apenas as cobranças e o trabalho técnico e vazio(2727 Schraiber LB, Mendes-Gonçalves RB. Necessidades de saúde e Atenção Primária. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB, organizadores. Saúde do adulto: programas e ações na Unidade Básica. São Paulo: Hucitec; 1996).

As formas com que estão organizados os processos de trabalho na AB e a ausência de espaços de reflexão sobre esses processos, bem como a organização do processo de produção dos serviços de saúde em si, impedem que os trabalhadores qualifiquem as demandas relacionadas ao consumo de drogas, que conseguem chegar na AB, como necessidades de saúde.

Ademais, como convivem na UBS trabalhadores de diferentes vínculos e salários, há consequentemente desiguais histórias de apropriação da realidade do território em que atuam. Os vinculados à unidade há muitos anos mostram conhecer a realidade dos moradores do território e da produção de serviços de saúde no município em profundidade, o que não é o caso de muitos profissionais da ESF de contratação mais recente e, vivenciando alta rotatividade, acabam acumulando menos referências históricas.

As demandas relacionadas ao consumo de drogas por vezes são trazidas de forma ampliada, interpretadas como necessidades de saúde. Mas o trabalhador, ao se deparar com uma necessidade de saúde, não consegue encontrar uma intervenção adequada para tal necessidade no elenco de práticas que dispõe. O único recurso do trabalhador é reduzir tal necessidade a uma que encontre respostas nas práticas disponíveis, enquadrando-a no modelo de atenção.

As principais práticas direcionadas aos usuários de drogas na AB, levantadas pelos entrevistados, restringem a atenção ao usuário de drogas a consultas individuais, visitas domiciliares e encaminhamentos para outros níveis de atenção ou para outros trabalhadores especializados. O objeto do processo de trabalho são os agravos que conseguem chegar até os serviços. Tais práticas seguem estritamente o que é preconizado nos manuais e fluxogramas estipulados a partir das políticas públicas que versam sobre o tema e não são configuradas a partir das necessidades de saúde da população que vive no território. Por isso denominamos tais práticas como protocolares.

Os entrevistados mencionam a ausência de espaços reflexivos sobre suas práticas. Considerando que o trabalho em saúde configura-se como um trabalho reflexivo, uma vez que o objeto de trabalho em saúde é extremamente complexo, torna-se imprescindível construir espaços nos quais os diversos profissionais de saúde, envolvidos na implementação das ações em saúde, construam coletivamente as práticas de saúde visando assistência integral, e não parcelar e compartimentalizada(2828 Peduzzi M. Mudanças tecnológicas e seu impacto no processo de trabalho em saúde. Trabalho Educ Saúde. 2002;1(1):75-91).

A ausência desses espaços de reflexão acaba repercutindo na execução de tarefas como meras justaposições, de forma que o trabalho em equipe não se configura como trabalho coletivo, que impõe a articulação e integração de diferentes processos de trabalho, com suas peculiaridades, objetivos específicos, saberes e instrumentos próprios(2828 Peduzzi M. Mudanças tecnológicas e seu impacto no processo de trabalho em saúde. Trabalho Educ Saúde. 2002;1(1):75-91). Fica também prejudicado o desenvolvimento de instrumentos capazes de transformar em necessidades de saúde as demandas relacionadas ao consumo de drogas que chegam ao serviço.

A permanência da hegemonia do paradigma biomédico, mesmo com a implementação do SUS, vem gerando um sistema de saúde anômalo, visto que as normas de operacionalização do SUS contradizem suas diretrizes e seus princípios. O arcabouço político, jurídico e institucional que fundamenta o SUS propõe modelo assistencial abrangente e capaz de garantir à população acesso universal à saúde, de forma integral, equânime e resolutiva, contando com redes hierarquizadas de serviços que esbarram no aspecto técnico-operacional (que tem a ver com as formas de organização dos processos de trabalho e formas de produção dos serviços de saúde) ainda pautado no modelo biomédico(2929 Scherer MDA, Marino SRA, Ramos FRS. Rupturas e resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões sobre a estratégia de saúde da família com base nas categorias kuhnianas. Interface Comum Saúde Educ.2005;9(16):53-66).

O modelo assistencial biomédico determina a constituição de toda a rede de atenção, que se configura de forma fragmentada, como apontam os entrevistados, incapaz de articular os diferentes serviços de saúde para produzir os cuidados de saúde para pessoas que consomem drogas e também incapazes de alterar os objetos do processo de trabalho, que continuam restritos à doença(707 Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface Comun Saúde Educ. 2009;13(28):151-64

08 Munari DB, Melo TS, Oliveira MB, Barbosa CC, Queiroz ACCM, Araújo BFM. Capacitação de agentes comunitários de saúde para o cuidado em saúde mental na atenção básica: potencializando pessoas para cuidar de pessoas. Rev Tempus Actas Saúde Colet. 2010;4(1):115-23
-909 Moretti-Pires RO, Corradi-Webster CM, Furtado EF. Consumo de álcool e atenção primária no interior da Amazônia: sobre a formação de médicos e enfermeiros para assistência integral. Rev Bras Educ Med. 2011;35(2):219-28).

O processo de produção de serviços de saúde é sustentado e diretamente influenciado pelos aparatos jurídico, político e ideológico, que são engendrados pelo Estado e condicionam a organização da sociedade. As formas atuais de produção dos serviços de saúde na AB e organização dos processos de trabalho das distintas categorias de trabalhadores da rede de saúde são influenciadas por concepções e ideologias hegemônicas de padrão neoliberal..Tais concepções seguem em direção oposta aos princípios do SUS, priorizando a atenção desintegrada, parcelar, sem uma rede constituída (apenas um conjunto de serviços que não se inter-relacionam), com ações focalizadas e direcionadas a grupos sociais específicos(1010 Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxism as a theoretical and methodological framework in collective health: implications for systematic review and synthesis of evidence. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2014 Mar 19];47(6):1403-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en_0080-6234-reeusp-47-6-01403.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n6/en...
).

Conclusão

Os achados deste estudo permitem concluir que a AB: reitera concepções sociais reducionistas sobre o consumo e sobre o consumidor de drogas; concebe equivocadamente que o objeto de atenção encontra-se fora do seu escopo, já que o dependente de drogas seria supostamente atendido em espaços especializados; quando o problema se aproxima ele é visto como anômalo para aquele espaço; de forma muito precária são tomados alguns encaminhamentos e decisões; graças a como se configura atualmente o trabalho no setor saúde, fortemente perpassado pela lógica produtiva do capital privado, ao profissional da saúde na AB dificilmente se colocam possibilidades de refletir sobre o processo de trabalho do qual participa; prevalece o trabalho parcelar, fragmentado e mecânico; os instrumentais disponíveis ao trabalhador da AB não ajudam a re-significar as demandas que chegam a esse serviço; as práticas relacionadas ao consumo de drogas são construídas a partir da demanda espontânea e de normas e fluxogramas desenvolvidos em níveis centrais, sem que os profissionais de saúde da ponta tenham acesso; a formação dos trabalhadores da área da saúde é eminentemente técnico-clínica, o que não ajuda a romper com as amarras ideológicas do proibicionismo, do modelo assistencial biomédico e da mercadorização da saúde; os profissionais de saúde na AB têm formação insuficiente e/ou inadequada para lidar com fenômenos complexos, como o consumo de drogas; quando uma demanda consegue ultrapassar as barreiras ideológicas do estigma e do preconceito, chegando finalmente ao serviço de AB, ela encontra práticas protocolares; os aspectos ideológicos que tendem a culpabilizar o usuário são dominantes, e os meios e instrumentos disponíveis para o trabalhador são inadequados para que este recorte o objeto do processo de trabalho de forma ampla e possa captar as necessidades de saúde; as práticas produzidas a partir de objeto simplificado e finalidade de transformação reduzida tendem a ser simplistas e pouco favorecem mudanças significativas, que impactariam de forma positiva sobre as formas de os sujeitos se relacionarem com as drogas; a ausência de espaços críticos de reflexão e formação está na base de problematização pobre sobre os processos de trabalho, os processos de produção de saúde e sobre a questão do consumo de drogas. Torna-se dessa forma difícil superar concepções hegemônicas, que emanam de paradigmas hegemônicos e de como a formação social contemporânea se organiza; o quadro levantado mostra que, na situação analisada, é bastante difícil construírem-se práticas condizentes com as necessidades de saúde da população usuária de drogas.

Conclui-se que a AB apresenta enorme potencial para reestruturar a atenção ao usuário de drogas, uma vez que se trata do serviço de saúde que se encontra mais próximo da realidade concreta dos distintos grupos sociais que vivem nos territórios, onde concretamente se situa o processo e os desfechos em potencial do consumo prejudicial de drogas. É preciso, portanto, que a AB assuma essa tarefa como componente do trabalho intersetorial que deve nuclear as ações na área. O Estado deve reconhecer esse potencial e investir na centralidade da AB na construção do SUS e locus fundamental para a implementação da atenção aos usuários de álcool e outras drogas.

As conclusões deste estudo permitem propor, para a construção de uma rede de cuidado à população usuária de drogas, organizada a partir da AB, que se promova reflexão crítica sobre os processos de trabalho, tanto nos espaços de formação dos trabalhadores de saúde quanto nos espaços de trabalho. Essa instrumentalização deve apoiar a participação de trabalhadores e usuários de drogas e suas famílias nas arenas decisórias, onde são construídas as políticas públicas que direcionam as ações do Estado perante o fenômeno do consumo de drogas, bem como os espaços gerenciais que definem os processos de produção dos serviços de saúde.

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    Extraído da dissertação "A atenção ao usuário de drogas na atenção básica: elementos do processo de trabalho em unidade básica de saúde", Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2014
  • Aceito
    06 Jul 2014
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