Acessibilidade / Reportar erro

O acolhimento como analisador das relações entre os profissionais, gestores e usuários* * Extracted from the thesis " Práticas de acolhimento e os modos de gestão na atenção básica em saúde à luz da análise institucional", Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2015.

Resumo

OBJETIVO

Analisar as relações entre profissionais e destes com gestores e usuários a partir do analisador acolhimento.

MÉTODO

Estudo qualitativo com referencial teórico-metodológico da análise institucional. Os dados foram produzidos por meio de grupos focais e organizados a partir da transcrição, transposição e reconstituição. Foram realizadas 17 sessões de grupos focais envolvendo seis municípios e profissionais de saúde de diversas formações.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 137 profissionais. O acolhimento vem sendo realizado na perspectiva de organizar o atendimento à demanda espontânea. Os médicos não têm se envolvido diretamente, embora detenham a palavra final. A enfermagem intermedia a lida com os usuários e exerce importante trabalho de negociação entre os setores da rede. Os recepcionistas e os agentes comunitários realizam a primeira abordagem aos usuários, dirigindo-se à enfermagem para a negociação do atendimento. Os gestores esperam evitar reclamações, atendendo a todos. Os usuários se valem da política partidária e da imprensa para atendimento quando não há acesso.

CONCLUSÃO

O acolhimento é um analisador, pois produz visibilidade e dizibilidade às relações em produção nos serviços de saúde e ao ser posto em análise pode desencadear a desnaturalização destas.

Descritores
Acolhimento; Atenção Primária à Saúde; Relações Interprofissionais; Enfermagem de Atenção Primária

Abstract

OBJECTIVE

Analyzing the relationships among professionals and between professionals with managers and users based on the user embracement analyzer.

METHOD

A qualitative study incorporating the theoretical-methodological reference of institutional analysis. The data were produced through focus groups and organized from transcription, transposition and reconstitution. Seventeen (17) focus group sessions were conducted involving six municipalities and health professionals from various backgrounds.

RESULTS

137 professionals participated in this study. User embracement has been carried out with the aim to organize spontaneous demand. Doctors have not been directly involved, although they have the final say. Intermediate nursing deals with the users and nurses perform important negotiation work among the network sectors. The receptionists and the community agents develop the first approach to the users, forwarding them to nursing to negotiate the service. Managers hope to avoid complaints by attending everyone. Users take advantage of party politics and of the media for services when there is no access.

CONCLUSION

User embracement is an analyzer, since it produces visibility and readability of the relations being produced in health services, and when analyzed can lead to denaturalizing these actions.

Descriptors
User Embracement; Primary Health Care; Interprofessional Relations; Primary Care Nursing

Resumen

OBJETIVO

Analizar las relaciones entre profesionales e de esos con gestores y usuarios mediante el analizador acogida.

MÉTODO

Estudio cualitativo con marco de referencia teórico metodológico del análisis institucional. Los datos fueron producidos por medio de grupos focales y organizados mediante la transcripción, transposición y reconstitución. Fueron realizadas 17 sesiones de grupos focales involucrando a seis municipios y profesionales sanitarios de distintas formaciones.

RESULTADOS

Participaron en la investigación 137 profesionales. La acogida se está llevando a cabo en la perspectiva de organizar la atención a la demanda espontánea. Los médicos no se están involucrando directamente, aunque detengan la palabra final. La enfermería intermedia el manejo de los usuarios y ejerce importante trabajo de negociación entre los sectores de la red. Los recepcionistas y los agentes comunitarios realizan el primer abordaje a los usuarios, dirigiéndose a la enfermería para la negociación de la atención. Los gestores esperan evitar quejas, atendiendo a todos. Los usuarios se valen de la política partidaria y de la prensa para atención cuando no hay acceso.

CONCLUSIÓN

La acogida es un analizador, pues produce visibilidad y decibilidad a las relaciones en producción en los servicios sanitarios y, al ser puesta en análisis, puede desencadenar la desnaturalización de esas.

Descriptores
Acogimiento; Atención Primaria de Salud; Relaciones Interprofesionales; Enfermería de Atención Primaria

Introdução

Segundo socióloga francesa, na atualidade mundial, uma série de ocupações e profissões se constituem por meio das relações11 Gonnin-Bolo A. Demailly Lise. Politiques de la relation. Approche sociologique des métiers et activités professionnelles relationnelles. Rev Fr Pédagogie. 2010; 171(1):150-1. . Esses trabalhos têm por objeto o ser humano, diferentemente de outros que têm por objeto, por exemplo, um motor (o mecânico), signos (o matemático), a terra (o agricultor). Dentre os trabalhos relacionais, estão as profissões da saúde, como a enfermagem, a medicina, dentre outras.

As profissões relacionais vêm crescendo na atualidade, ao mesmo tempo, os modos de se relacionar também vêm se transformando. Tal sociedade é chamada "sociedade de relações", acrescentando esse título aos elencados contemporaneamente: sociedade do conhecimento, sociedade da informação, sociedade do serviço11 Gonnin-Bolo A. Demailly Lise. Politiques de la relation. Approche sociologique des métiers et activités professionnelles relationnelles. Rev Fr Pédagogie. 2010; 171(1):150-1. .

No Brasil, autores da saúde coletiva22 Carvalho BG, Peduzzi M, Mandú ENT, Ayres JRCM. Work and Inter-subjectivity: a theoretical reflection on its dialectics in the field of health and nursing. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2012 [cited 2016 Jan 25];20(1):19-26. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n1/04.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n1/04.p...

3 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Silva E. Contribuciones metodológicas para estudiar la producción del cuidado en salud: aprendizajes a partir de una investigación sobre barreras y acceso en salud mental. Salud Colectiva [Internet]. 2012 [citado 2016 Jan. 24];8(1):25-34. Disponible en: Disponible en: http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n1a03.pdf
http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n...
-44 Merhy EE. Multidão: esfinge da saúde pública, lugar de inflexão, ideias do bem comum. Saúde Soc [Internet]. 2015 [citado 2016 jan. 24];24 Supl 1:44-54. afirmam que a saúde é um trabalho constituído no contexto sócio-histórico. Esses autores consideram que resultado na saúde é um bem imaterial, um bem simbólico produzido nas relações entre o trabalhador e o usuário, por meio de uma leitura de necessidades e do uso de instrumentos (inclusive do conhecimento) visando à transformação de algo antes em algo depois, atendendo a finalidades.

Pode-se afirmar que o trabalho em saúde é relacional, complexo e que atualiza as disputas econômicas, políticas e sócio-históricas33 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Silva E. Contribuciones metodológicas para estudiar la producción del cuidado en salud: aprendizajes a partir de una investigación sobre barreras y acceso en salud mental. Salud Colectiva [Internet]. 2012 [citado 2016 Jan. 24];8(1):25-34. Disponible en: Disponible en: http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n1a03.pdf
http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n...
. Nessas relações vão se produzindo bens imateriais e simbólicos (pois a saúde possui distintos e singulares significados, sentidos vividos e produzidos por cada pessoa em sintonia com seu contexto e cultura). Tais relações produzem também os trabalhadores da saúde, os gestores, os destinatários da atenção, numa certa fabricação de dupla mão: uma fábrica que fabrica.

Essa fábrica, fabricante e fabricada, é a instituição saúde que se atualiza nos serviços de saúde por meio de suas organizações, por exemplo, o Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, seus estabelecimentos (as unidades de saúde) e equipamentos (aparelhos, instrumentos). As instituições são lógicas e os modos de operar nem sempre explícitos, cujo conjunto compõe a sociedade e dita seu funcionamento, suas permissões, omissões e proibições55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. .

Cada instituição é cruzada/atravessada por diversas outras. Por exemplo, na saúde há uma divisão técnica e social do trabalho que é considerada também como instituição55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. e ambas se atravessam.

As normas e as regras da saúde pressupõem que alguém não saudável procure um serviço que é ofertado por profissionais que possuem um saber capaz de restituir e/ou interceder para evitar ou retardar a morte, a dor e o sofrimento. Nesse encontro, a pessoa que sofre e o profissional da saúde conduzem uma série de ritos, contando com o uso de alguns objetos e de sequências a serem seguidas. Nesse ritual, ambos estão revestidos do simbólico de uma dada intervenção sobre um dado curso de acontecimentos. Esse curso é o da vida em seu transcorrer em direção à morte.

Os serviços de saúde são organizações e estabelecimentos onde se dão os encontros entre trabalhadores e entre estes e os usuários. Ali, o atendimento é organizado segundo lógicas, regras e normas que foram pensadas, elaboradas e instituídas, podendo ou não terem sido aceitas pelos agentes do trabalho e pela sociedade em sua execução.

As instituições são composições dialéticas. Sua forma mais estável consiste no instituído. Os movimentos de transformação do instituído são chamados de forças instituintes, e o resultado desse interjogo de forças corresponde ao processo de institucionalização55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. -66 Monceau G. Entre pratique et institution. L'analyse institutionnelle des pratiques professionnelles. Nouv Rev Adapt Scolar. 2008;41(1):145-59..

Na saúde, há uma lógica instituída para a busca de serviços. Essa busca acontece quando se conforma uma necessidade, uma carência, em geral ao se identificar que algo não está bem. Nos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), especificamente, há uma lógica de que essa busca deva se fazer antes do adoecimento, de modo preventivo e programado. Há ainda a expectativa de que as pessoas, ao assumirem hábitos de vida saudáveis, sejam capazes do cuidado de si e sejam autônomas.

Assim, há desencontros e contradições que tensionam a instituição saúde, pois existem expectativas e leituras diferentes entre profissionais e usuários acerca do momento de procura dos serviços e ainda do que seja, ou não, necessidade legítima de saúde33 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Silva E. Contribuciones metodológicas para estudiar la producción del cuidado en salud: aprendizajes a partir de una investigación sobre barreras y acceso en salud mental. Salud Colectiva [Internet]. 2012 [citado 2016 Jan. 24];8(1):25-34. Disponible en: Disponible en: http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n1a03.pdf
http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n...
.

A análise institucional tem por objetivo colocar em evidência essas contradições e lógicas que se materializam por meio das práticas dos trabalhadores55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. -66 Monceau G. Entre pratique et institution. L'analyse institutionnelle des pratiques professionnelles. Nouv Rev Adapt Scolar. 2008;41(1):145-59.. As lógicas instituídas e as contradições em curso e em produção são reveladas por meio dos analisadores, ou seja, de fatos, eventos, falas, etc. que expressam as tensões e as relações de força constituintes de um determinado fenômeno77 Zambenedetti G, Piccinini CA, Sales ALLF, Paulon SM, Silva RAN. Psicologia e análise institucional: contribuições para os processos formativos dos agentes comunitários de saúde. Psicol Ciênc Prof. 2014;34(3):690-703..

No Brasil, o acolhimento foi proposto como um dispositivo para reorganizar o processo de trabalho dos serviços de saúde, podendo colocar em evidência as formas de cuidado e (des)cuidado em produção88 Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública.1999;15(2):345-53.-99 Costa PCP, Garcia APRF, Toledo VP. Welcoming and nursing care: a phenomenological study. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [citado 2016 Ago 31];25(1):e4550015. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-0707-tce-25-01-4550015.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-...
. É uma das perspectivas da Política Nacional de Humanização (PNH) do SUS, que o define como um processo a perpassar todos os atendimentos, uma postura de escuta que leve em conta as necessidades de saúde dos usuários e ultrapasse a visão biologicista e imediatista1010 Barros MEB, Roza MMR, Guedes CR, Oliveira GN. O apoio institucional como dispositivo para a implantação do acolhimento nos serviços de saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];18 Supl1:1107-17. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807-5762-icse-18-1-1107.pdf
http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807...
.

Há alguns anos, os autores desta pesquisa, por meio da modalidade de pesquisa intervenção, têm atuado no âmbito dos municípios que estão vinculados a um Departamento Regional de Saúde do interior paulista. Nos espaços de reflexão vivenciados, os pesquisadores se constituíram num coletivo com os trabalhadores desses departamentos, em coprodução de dados que são submetidos à análise, mas que também se traduzem em reflexões sobre práticas de gestão e cuidado dos serviços de saúde desses locais, na perspectiva de qualificá-las. O cotidiano desses municípios tem mostrado que há inúmeros desafios a serem enfrentados, e o acolhimento aos usuários nesses serviços é uma prática que merece reflexão. Este estudo buscou colocar luz sobre algumas dessas questões.

Embora vários estudos88 Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública.1999;15(2):345-53.

9 Costa PCP, Garcia APRF, Toledo VP. Welcoming and nursing care: a phenomenological study. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [citado 2016 Ago 31];25(1):e4550015. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-0707-tce-25-01-4550015.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-...

10 Barros MEB, Roza MMR, Guedes CR, Oliveira GN. O apoio institucional como dispositivo para a implantação do acolhimento nos serviços de saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];18 Supl1:1107-17. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807-5762-icse-18-1-1107.pdf
http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807...
-1111 Pelisoli C, Sacco AM, Barbosa ET, Pereira CO, Cecconello AM. Acolhimento em saúde: uma revisão sistemática em periódicos brasileiros. Estud Psicol. (Campinas) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];31(2):225-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a08v31n2.pdf
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a0...
tenham sido produzidos sobre o acolhimento, não se encontrou publicação que o trate enquanto um analisador e enfoque as lógicas presentes nas relações e práticas dos serviços de saúde da APS, o que justifica esta pesquisa. Além do mais, ainda que a prática do acolher deva ser exercida por todos os profissionais que compõem a equipe de um estabelecimento de saúde, é notório o protagonismo da equipe de enfermagem enquanto "linha de frente" no acolhimento aos usuários em todos os níveis de atenção à saúde. Dessa forma, tomá-lo enquanto um analisador poderá apontar pistas capazes de problematizar as relações entre enfermeiros e diversos profissionais e destes com gestores e usuários dos serviços de saúde, sendo esta a questão que norteia este trabalho: o que o acolhimento, enquanto um analisador revela sobre as relações entre profissionais e destes com gestores e usuários?

Desse modo, este estudo tem por objetivo analisar, a partir da ótica dos profissionais de saúde, as relações estabelecidas entre eles e destes com gestores e usuários por meio do analisador acolhimento.

Método

O presente estudo é parte de uma pesquisa financiada pela parceria entre Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - na modalidade de Pesquisa para o SUS (PPSUS) - e Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo (SES/SP). A pesquisa foi desenvolvida nos seis municípios que compõem a Região de Saúde Coração do Departamento Regional de Saúde de Araraquara (DRSIII) da SES/SP. Esses municípios possuem características que os aproximam, como a organização do acolhimento à população nos estabelecimentos de saúde, mas que também os distanciam, sobretudo, em relação aos índices demográficos e a quantidade de serviços ofertados.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa com referencial teórico-metodológico da análise institucional55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. . Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Protocolo CAAE nº 35014514.5.0000.5393) e seguiu as recomendações previstas neste tipo de investigação, como o esclarecimento prévio, a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com recebimento de uma via assinada, o sigilo, a confidencialidade e a não identificação dos sujeitos que compõem o estudo.

Os dados foram produzidos por meio de grupos focais realizados no período de dezembro/2014 a abril/2015. A entrevista grupal, nome também atribuído ao grupo focal, pode produzir dados ricos que são fabricados em interação. Essa técnica vem sendo utilizada tanto em pesquisas quantitativas como em qualitativas, e comumente é compreendida como a focalização em um assunto, por um grupo, a ser conduzido por um pesquisador. Neste estudo, no entanto, foi adotada outra perspectiva de grupo focal, na qual o coordenador não é o que dirige rigidamente uma conversa com várias pessoas. Seu trabalho é o de estimular a conversa sobre um tema, considerando as diferenças de poder e de saber entre os participantes e, ainda, apostando que são nessas diferenças que a complexidade dos temas pode ser melhor explorada1212 L'Hostie M, Cody N, Laurin N. Caractéristiques et particularités du groupe de discussion favorisé dans un dispositif de recherche collaborative en éducation. Rech Qual. 2011 ;29(3):198-213..

Os aparentes devaneios ou saídas do tema pelo grupo são também aspectos a serem considerados para a compreensão do modo como aquele grupo se porta frente ao tema, cabendo ao coordenador atentar aos ditos, aos silêncios, às pausas, aos risos nervosos, às falas ao mesmo tempo (que podem demonstrar aumento de ansiedade frente a uma ideia), às provocações, entre outros aspectos1313 Leclerc C, Bourassa B, Picard F, Courcy F. Du groupe focalisé à la recherche collaborative: avantages, défis et strategies. Rech Qual. 2011;29(3):145-67..

Considera-se que o grupo focal, nesse formato, tem o objetivo de realizar uma produção coletiva no aqui-agora em uma tessitura que se faz sem possibilidades de prever a priori seu desfecho, e que o coordenador tem o papel de mediar. Nesta pesquisa, o acolhimento foi utilizado enquanto eixo condutor da discussão e atuou na perspectiva de um analisador, fazendo aparecer questões implícitas e explícitas vivenciadas no cotidiano do trabalho pelos profissionais de saúde envolvidos. Nesse contexto, outras questões também foram surgindo pelo estranhamento das informações que foram sendo trazidas e, sobretudo, confrontadas e debatidas pelos participantes.

Para compor os grupos foi solicitado às instâncias gerenciais dos municípios a indicação, de cada unidade de saúde, de um trabalhador com formação universitária e outros dois com formação fundamental ou nível médio. Cada equipe indicou, voluntariamente, esses trabalhadores, que compareceram em dia e local agendados previamente. Em cada sessão, o número de participantes variou entre 6 e 13 trabalhadores. Tal desenho visou favorecer um maior número de trabalhadores de nível fundamental/médio, propiciando, em tese, a fala dessas categorias profissionais nos grupos. O critério de inclusão foi pertencer às equipes de saúde aderentes ao Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade de Atenção Básica (PMAQ-AB). Como critério de exclusão, foi considerado o afastamento do trabalho por férias, doença ou outro motivo no período de realização da pesquisa.

Cada um dos 137 participantes pertencia a um dos seis municípios da Região de Saúde Coração do DRS III e foram identificados segundo sua profissão: psicólogo, médico, dentista, auxiliar de saúde bucal, recepcionista (escriturário e agente administrativo), técnico de enfermagem, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e Agente Comunitário de Saúde (ACS). As sessões tiveram duração média de 90 minutos, havendo a participação de dois pesquisadores: um no papel de observador silente e o outro enquanto coordenador do grupo. As discussões partiram de questões norteadoras, como: digam como se organiza o trabalho na Unidade de Saúde; falem sobre o acolhimento na Unidade de Saúde de vocês, dentre outras.

Em consonância com o referencial teórico adotado, a análise dos dados se fez durante todo o processo de investigação, perpassando pelo preparo dos pesquisadores em oficinas, realização dos grupos focais e a escrita deste texto. A ordenação dos dados para análise foi realizada com base em três momentos do processo de análise: transcrição, transposição e reconstituição1414 Paillé P, Mucchielli A. L'analyse qualitative en sciences humaines et socials. 3ème éd. Paris: Armand Colin; 2012. .

Para o trabalho de transcrição, houve a transformação das gravações de áudio em texto de arquivos em formato Word, sendo realizada por empresa contratada, paga com recurso da agência de fomento financiadora da pesquisa.

Os textos transcritos foram revisitados pelos pesquisadores, momento em que foi realizada a correção de termos técnicos e siglas utilizadas na saúde, além de outras incorreções. Essa revisita também teve por objetivo remarcar momentos de tensões, dilemas e falas conjuntas.

As falas dos participantes não estão identificadas, salvo em alguns momentos em que foram nominadas por categoria profissional, por serem relevantes para a análise, assim como as falas do coordenador do grupo focal. Cada grupo foi denominado pela sequência em que ocorreu e em seu respectivo município, por exemplo: GF1 Mun 1, GF2 Mun 1.

Para o trabalho de transposição, as transcrições foram lidas diversas vezes na tentativa de buscar semelhanças e diferenças, interrogando-se o caminho de cada grupo. Durante o percurso da pesquisa, a realização de cada um dos grupos foi suscitando questões aos pesquisadores, as quais puderam ser exploradas com os grupos seguintes.

O trabalho de transposição se fez com o recorte de fragmentos que, durante a leitura, faziam ressonâncias com os objetivos e com o referencial teórico. Nesse processo, foram ganhando uma ordenação.

Reunidos em oficinas para análise, os autores realizaram a transposição do material empírico, confrontando a ordenação dos fragmentos dos diferentes grupos com os objetivos, sendo guiados pelo referencial da análise institucional e, assim, foram constituindo os resultados.

Para fins didáticos, podemos dizer que há um momento de maior intensidade da análise de dados em pesquisas que utilizam a análise institucional como referencial teórico-metodológico, que consiste no momento da institucionalização da análise por meio da escrita dos resultados. Fazemos aqui um paralelo com o momento da reconstituição proposto por autores vinculados à metodologia qualitativa1414 Paillé P, Mucchielli A. L'analyse qualitative en sciences humaines et socials. 3ème éd. Paris: Armand Colin; 2012. .

Nesta investigação, a análise se intensificou quando os relatórios finais de investigação estavam sendo realizados. Nas oficinas de análise, foram produzidos quadros e esquemas com base no referencial adotado. Assim, foi verificado que o acolhimento se apresentava como analisador das relações. Em conseguinte, foi decidido, coletivamente, sobre quais aspectos poderiam ser apresentados nos resultados.

O trabalho de reconstituição, embora situado mais fortemente na discussão dos resultados, é também um momento de revisitação das referências bibliográficas e a busca de outras produções para a escrita do trabalho final. No momento de reconstituição, foram revisitados os principais conceitos da análise institucional, buscando-se articulá-los com as questões do acolhimento na APS.

Resultados

Participaram do estudo 137 profissionais. Cerca de 90% eram do sexo feminino, na faixa etária entre 27 e 59 anos, a maioria era ACS, seguidos por enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem. Grande parte exercia um único trabalho. O tempo de experiência profissional na atenção básica variou de 2 a 24 anos e cerca de 25% dos participantes de nível universitário possuíam especialização em saúde da família.

Em todos os municípios envolvidos, o acolhimento foi discutido, majoritariamente, pelos trabalhadores como sinônimo de atendimento inicial aos usuários e, especialmente, para aqueles que não possuíam agendamento de consultas médicas.

Em geral, o usuário chega à recepção das unidades, local em que encontra o ACS ou o recepcionista. Um dos grupos denominou esse encontro de triagem e pré-acolhimento, ou seja, aquilo que vem antes do acolhimento, sendo realizado pelos ACS, e o acolhimento propriamente dito é realizado por auxiliares de enfermagem ou por enfermeiros:

Na nossa unidade é mais ou menos assim também, a pessoa chega, ela é acolhida pelo agente comunitário de saúde, que faz a parte de recepção. Ali mesmo a gente já faz um, entre aspas, um pré-acolhimento. A gente conversa e pergunta o que está acontecendo, ele se coloca, e a partir daí a gente direciona para o acolhimento com as auxiliares de enfermagem ou com a enfermeira (GF2 Mun 1).

O setor da enfermagem, pelo trabalho do enfermeiro ou dos técnicos e auxiliares de enfermagem, é passagem obrigatória para os usuários que não têm atendimento previsto:

Coord do GF: Todo o paciente que chega de demanda espontânea passa pela enfermeira? Participante do GF: Passa pela enfermagem. Geralmente passa, a gente já faz a consulta logo de manhã, ou o médico chega um pouco mais tarde... porque os pacientes chegam às 07 da manhã. Então a gente nem espera, já faz a escuta e já encaminha... pede para os pacientes retornarem à sua casa, para não ficarem aguardando ali até o médico voltar, e aí a gente já encaminha para a consulta (GF1 Mun 2).

Num dos grupos houve um momento interessante de discussão que se referiu a certa estratégia dos trabalhadores para produzir o acesso ao usuário que vem sem a consulta agendada: a "agenda escondida".

Enf: Só que aí, o que que eu faço? Eu tenho agenda escondida. Coord GF: Como que é isso? Enf: Que são os dias, como tem bastante médicos, tem dias que eu não agendo nada. Para que na hora que eu faço esse acolhimento, aqueles que eu posso agendar para outro dia, que é uma alergia, ou coisas do tipo assim, eu tenho essa agenda escondida que eu posso agendar para amanhã ou para depois de amanhã entendeu? Coord GF: Você fala que é agenda escondida porque o médico não sabe? (Várias pessoas falando ao mesmo tempo) (GF1 Mun 3).

Ainda que não participem diretamente do acolhimento, os médicos acabam definindo os casos que serão atendidos a partir da leitura do que escrevem os demais profissionais:

Quando é feito o acolhimento pelos auxiliares de enfermagem, se o paciente tem necessidade de urgência, ele é atendido, ou dispensado pela médica. Ou se é uma questão que ele veio pra um agendamento de consulta, então a gente faz a anotação no prontuário e a médica que avalia a necessidade da prioridade daquele paciente (GF5 Mun 1).

Mesmo em municípios maiores, há interferência político-partidária para solicitar atendimentos, ainda que os trabalhadores tenham definido que o atendimento poderia ser realizado em outro momento. Assim, vão se expressando estratégias dos usuários para conseguir os atendimentos, quando julgam necessários, como apelo às questões político-partidárias e ameaça de denúncia por meio da imprensa.

Então, eles procuram outros meios, e, também, pensando que a gente está com má vontade. Aí, eles vêm mesmo, "Eu disse". Hoje, a gente estava até discutindo isso, "Aí, eu consegui, está vendo?" Essa mudança de profissionais na rede, então, a gente não tem a referência (o respaldo). Ameaça, às vezes. Assim, "Eu vou chamar a EPTV" (rede local de televisão), eu acho um absurdo falar isso no telefone, pra gente, que vai chamar a EPTV (GF3 Mun 1).

O problema é que lá, assim, também tem muito clientelismo. Porque, assim, às vezes, você toma uma atitude e aí eles não vão com a gente, vão na prefeitura reclamar, e muitas vezes você tem que voltar atrás, "ah, por que você não atendeu tal paciente, por que ele não foi atendido, estou mandando ele aí de novo pra você atender" (GF5 Mun 1).

A lida com a demanda espontânea tece relações de "demanda" da enfermagem com o médico, e as dificuldades são vividas a partir de características individuais. Ora produzem parceria, ora dificuldade sob a ótica da enfermagem, que tem sua perspectiva sobre aquilo que poderia ser atendido. Vão se produzindo os "lugares fixos" de uns e de outros, como: os médicos bons encaixam, a enfermagem boa é a que resolve o caso:

Agendadas são duas, mas quando chegar, se conversar com ele... ele é bastante gente boa, só que ele está de férias (GF1 Mun 2).

Lá onde a gente trabalha a médica fica o dia todo no Centro (nome). Então normalmente a gente conversa com ela. E ela fala, "não, vai ter que encaminhar" (GF2 Mun 2).

Diante da demanda espontânea, da flexibilização do horário médico e em contato diário com usuários que chegam ao serviço solicitando consultas médicas, os enfermeiros pensam em assumir e prescrever, por exemplo, casos de hipertensão arterial (HA) e diabetes mellitus (DM) por meio de protocolos, o que não é possível:

O médico não fica o tempo todo na unidade. Meu médico chega às 09 da manhã e vai embora às 11. Depois ele volta às 02 da tarde para ir embora às 04. E, ai, gente... nós, enfermeiras, não temos autonomia de prescrever medicação. A gente pode estar fazendo o acolhimento e orientar o paciente, mas a questão da prescrição, nós não temos esse respaldo. Então nesses casos, se é um caso urgente, a gente encaminha para o hospital, que tem médico 24 horas. Entendeu? Então a nossa realidade é um pouco difícil nisso. A gente não tem autonomia para prescrever. Talvez... para as doenças crônicas, por exemplo, vou citar um exemplo, hipertensão e diabetes, talvez o município poderia criar um protocolo de atendimento para a enfermeira ter autonomia de trabalho (GF2 Mun 2).

Quando a pessoa vem e pede para passar por consulta de rotina, são pedidos exames e, se os resultados não estão alterados, não é preciso retorno médico. O enfermeiro olha e conversa, evitando nova consulta médica. Há uma organização do seguimento ordenado também pelos resultados, que, quando alterados, são realizados agendamentos e visitas. Há referências de que quando é o enfermeiro que conversa com a pessoa, indicando a não necessidade da consulta, tem menos "confusão":

(...) Porque os exames que dão alterados, que eles avisam, a enfermeira já pede para a gente chamar o paciente e já agenda. Então os exames que não deram alteração, eles mandam e a pessoa vai lá ver e agenda a consulta depois. E outra coisa que mudou muito é que sempre tem aqueles estressados que querem passar no dia, mas não é emergência. E a nossa enfermeira, ela é um amor de pessoa, ela conversa com jeitinho, então as pessoas não brigam mais lá. Não tem mais briga. Fala, "não, hoje não dá, você quer conversar com a enfermeira?", daí a (nome da enfermeira) conversa, explica por que não dá, e a pessoa entende e acaba indo embora. Então, no nosso posto não tem mais reclamação (GF2 Mun 2).

Os enfermeiros começam a assumir diretamente o cuidado, ofertando outras ações para suprir a demanda por consulta médica:

A mentalidade é que eles acham que o médico era, e para alguns continua sendo, o "pai de todos", que a unidade só funcionava porque existia um médico, e nós conseguimos provar o contrário. Nós conseguimos pedir um hemograma, pedir um exame de gestante, olha quanto poupou o médico. Fazemos os acompanhamentos, a gente consegue (GF3 Mun 4).

Outro aspecto presente na maioria dos municípios é a falta de estrutura adequada, tanto materialmente (equipamentos, salas) quanto de articulação da rede, bom como o número inadequado de trabalhadores, conformando uma rede de atenção desintegrada.

Agora mudou o responsável. Mês passado eu consegui pra uma paciente uma consulta pro Neuro (em São Paulo) e eles deixaram a paciente aqui das 3 horas da manhã até a hora que eu cheguei ao posto. Tem as falhas. Então, eu acho que o problema de infraestrutura nós conseguimos organizar. Mas a infraestrutura nossa ainda está a desejar. Por parte de quem? Da equipe gestora. Não tem apoio, não tem respaldo. E muitas vezes a gente... não que a gente desanima, a gente é muito é solidário. O paciente chega lá e ele não quer saber, ele só fala assim, porque é que não fecha isso daqui, não resolve nada! (...) (GF1 Mun 4).

No dia que ele foi na nossa unidade, a nossa chefe estava de férias, aí ele colocou que ele gostaria que o atendimento fosse humanizado e que queria que os pacientes se sentissem à vontade, porque eles já vinham fragilizados, isso é uma realidade que a gente conhece, a gente sabe. Só que diante de tudo isso, a gente colocou o problema inverso, o problema de o pessoal gostar tanto do atendimento ou da boa vontade dos funcionários sabendo que não tem aparelhagem e tudo mais, que eles vinham procurar em excesso a unidade mesmo sendo de outros bairros. (...) Coord GF: Você está falando que tem a escuta do usuário, mas não tem a escuta do profissional. Part: Sim, sim, às vezes tem isso. Então a pessoa exige da gente umas condutas que não podem acontecer isso, independente do que esteja acontecendo (GF2 Mun 4).

Discussão

Ainda que o acolhimento tenha sido proposto como dispositivo para mudança do modelo tecnoassistencial, os dados mostram que ele está fortemente relacionado com ações de triagem e repasse de encaminhamentos. É possível identificar um processo de tecnificação daquilo que deveria se dar por meio do contato, da escuta e do estabelecimento de pactos e atendimento das expectativas dos usuários. Em vez disso, ocorrem, muitas vezes, respostas prontas e escuta modulada pela queixa. Tal fato possui relação com questões históricas e institucionais das práticas profissionais em saúde, no sentido de atender e ter que resolver, e de entender a resolução como processo de simplificação de aspectos complexos e de categorização da população (diabéticos, hipertensos, poliqueixosos, etc.).

Para a análise institucional, as práticas profissionais ocupam as instituições e as atualizam, e é por isso o seu interesse por elas. A dinâmica institucional atravessa e impregna as práticas profissionais, ao mesmo tempo, que a instituição ganha materialidade nessas práticas66 Monceau G. Entre pratique et institution. L'analyse institutionnelle des pratiques professionnelles. Nouv Rev Adapt Scolar. 2008;41(1):145-59..

O acolhimento vai colocando em evidência os modos de relação nos estabelecimentos de APS em suas lógicas, vindo a se constituir como um analisador, caracterizado como revelador daquilo que se encontrava não visto, ou não dito na instituição. Foi possível identificar os modos como se relacionam enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, médicos e ACS e todos estes com usuários e com a gestão municipal, por meio do acolhimento.

As profissões se atualizam e se fazem nos estabelecimentos e nas organizações66 Monceau G. Entre pratique et institution. L'analyse institutionnelle des pratiques professionnelles. Nouv Rev Adapt Scolar. 2008;41(1):145-59.. A profecia inicial é uma certa promessa pactuada que faz a inauguração das instituições e ela tende a não ser cumprida55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. , fazendo com que a instituição se perpetue. No caso da enfermagem, a profecia que funda sua profissionalização moderna é a promessa do combate a mortes evitáveis por meio de medidas de higiene adequadas, o cuidado baseado em princípios técnicos e científicos reconhecidos por comunidade "acadêmica", e a promessa de ruptura com as práticas caritativas, leigas e vinculadas à visão mágico-religiosa sobre o processo saúde-doença, exigência da ciência positivista.

Outra marca da fundação da instituição enfermagem moderna é a oposição à profissão médica, buscando autonomia em relação a esta. Na atualização das marcas da fundação nas práticas profissionais da enfermagem desenvolvidas nas organizações de saúde, em especial nos estabelecimentos de Atenção Básica (AB), o enfermeiro se coloca em busca de autonomia, exercendo um papel de referência da equipe para o acolhimento ao usuário, desenvolvendo práticas que aumentam o acesso e se propondo a realizar atividades protocolares que possam otimizar o trabalho médico, produzindo maior acesso. A reivindicação dos protocolos para medicar e pedir exames entra nessa perspectiva inclusiva.

Estudo1515 Silva SS, Assis MMA. Family health nursing care: weaknesses and strengths in the Unified Health System. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2015 [cited 2016 May 12];49(4):600-6. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n4/0080-6234-reeusp-49-04-0603.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n4/00...
aponta a polivalência do trabalho do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família (ESF) e fragilidades quanto à resolutividade e ao acolhimento, achados que corroboram os desta pesquisa.

Outro aspecto a ser demarcado nas práticas profissionais dos enfermeiros, que o acolhimento coloca em iluminação, consiste nas relações estabelecidas com a categoria médica. Relações tensas, que configuram a necessidade de "pedir" um favor do atendimento ao usuário ou estabelecer estratégias como a da "agenda escondida".

Chama atenção, ainda, a questão de que o trabalho do enfermeiro, no acolhimento, ocupa papel de redutor do volume do trabalho médico. Tal fato evidencia duas instituições profissionais que muito se atravessam e se atritam. Uma, a enfermagem, que parece buscar reconhecimento e autonomia através de atividades de cuidado que o acolhimento oportuniza. A outra, a prática médica, que se afasta do trabalho, aparentemente, mais árduo de lida direta com a clientela. Em ambas, as práticas profissionais estão atravessadas pela instituição divisão técnica e social do trabalho55 Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003. , com disputas conflituosas.

Os conflitos podem explicitar diferentes interesses e, por vezes, é consequência de distribuição desigual de recursos, relações de poder e questões relativas a uma profissão que possui em sua história a predominância do feminino e da submissão. Dispositivos que contribuem para o enfrentamento desses conflitos consistem na reunião de equipe, na valorização do trabalho interprofissional e no fortalecimento dos processos comunicacionais intraequipe1616 Oliveira AM, Lemes AM, Ávila BT, Machado CR, Ordones E, Miranda FS, et al. Relação entre enfermeiros e médicos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás: a perspectiva do profissional de enfermagem. Rev Latino Am Bioet. 2010;10(2):58-67. -1717 Tabak N, Orit K. Relationship between how nurses resolve their conflicts with doctors their stress and job satisfaction. J Nurs Mang. 2007;15(3):321-31. .

Para a enfermagem, quando se discute acolhimento, aparecem diversos temas relevantes, tais como aqueles relacionados à PNH, educação em saúde e educação e formação dos demais trabalhadores, sendo que eles se articulam a propostas do colocar-se no lugar do outro, da empatia, do cuidado e de promoção do autocuidado. Não é ao acaso que em uma revisão de literatura1111 Pelisoli C, Sacco AM, Barbosa ET, Pereira CO, Cecconello AM. Acolhimento em saúde: uma revisão sistemática em periódicos brasileiros. Estud Psicol. (Campinas) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];31(2):225-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a08v31n2.pdf
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a0...
foram encontradas publicações bem mais numerosas sobre o acolhimento realizado por enfermeiros e publicados em periódicos da enfermagem.

Outro estudo1818 Santos DA, Shirasaki RTS, Cangussu JML, Santos DA, Fermino JM, Silva AT, et al. Potencialidades e dificuldades nas práticas de acolhimento na rede de atenção básica conforme a Política Nacional de Humanização. Saúde Transf Soc. 2016;6(2):54-69. aponta o acolhimento na direção da empatia e da educação, algo bastante valorizado pela enfermagem e que compõe um certo instituído dessa prática profissional.

Quanto aos técnicos e auxiliares de enfermagem, na discussão sobre o acolhimento, eles descrevem sua prática como colaboração com o enfermeiro, fazendo a intermediação com médicos e demais trabalhadores quando o enfermeiro não pode fazê-lo.

As práticas médicas ainda são centrais na organização da unidade de saúde da AB e na produção do que se constitui enquanto "necessidade de saúde" de modo mais hegemônico na sociedade capitalista: o diagnóstico, a prescrição, a medicação e a cura da doença instalada1919 Fertonani HP, Pires DEP, Biff D, Scherer MDA. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1869-78..

Como recurso mais escasso, o acolhimento tria aqueles que poderão acessar as práticas médicas. Os demais, para não serem barrados, devem aguardar na fila ordenada do agendamento para o dia e hora de sua consulta.

Os médicos atendem um número específico de pessoas, sendo que, o que passa disso, precisa ser autorizado por ele. Ficam poucas horas nas unidades, mesmo que a jornada prevista seja de 4 horas e o número estimado seja de 16 consultas para o mínimo de duração de 15 minutos cada. Nota-se que, em geral, atendem em 1 a 2 horas, a todas as consultas previstas, indo trabalhar noutro estabelecimento de saúde. Assim, os 15 minutos que parecem tão rápidos e insuficientes para uma consulta adequada se transformam em muito menos. Quanto ao atendimento da demanda espontânea e ao acolhimento, a participação dos médicos é a de autorizar ou não a inclusão realizada, a partir da fala ou da escrita dos demais trabalhadores. Esse diálogo é permeado por tensões e a palavra final é a do médico.

Os ACS são trabalhadores que têm por tarefas oficiais a realização do cadastro das famílias e sua atualização por meio de visitas (ao menos) mensais a cada uma das 150 famílias sob seu cuidado. Ações de promoção à saúde, tais como artesanato, caminhadas, passeios e festas são também previstas.

Com as discussões sobre o acolhimento, foi possível evidenciar que o trabalho do ACS está diretamente relacionado com o do enfermeiro, embora as diretrizes da AB coloquem aquele trabalhador sob a supervisão do médico, enfermeiro e dentista da ESF. Em algumas cidades da região estudada, esse trabalhador tem ocupando também a recepção. Ao fazê-lo, deixa as ruas, as visitas, entra na unidade, fica mais próximo fisicamente dos profissionais, mas em posição pouco valorizada. Por outro lado, na recepção da unidade, assume certo poder.

Nesse sentido, a aposta de que esse ACS consiga aproximar usuários e serviços de saúde, ser elo e voz da população não se cumpre, e a instituição vai mostrando força em absorvê-lo, trazendo-os para a lógica dos trabalhadores, hegemonicamente científica e cartesiana.

Nas relações da equipe de saúde com os gestores municipais, há expectativas desencontradas. Os trabalhadores esperam ser ouvidos e apoiados pela gestão e esta espera que os usuários não reclamem, assumindo, por vezes, posições que desautorizam a equipe de saúde em suas decisões com relação ao momento do atendimento e às necessidades. Tal aspecto reforça a relação de polarização entre equipe de saúde e usuários.

Estudo2020 Silva AS, Baitelo TC, Fracolli LA. Primary Health Care Evaluation: the view of clients and professionals about the Family Health Strategy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 May 12];23(5):979-87. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n5/0104-1169-rlae-23-05-00979.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n5/0104...
sobre os atributos da APS demonstra a não correspondência entre a concepção dos profissionais e a dos usuários acerca das questões que envolvem esse nível de atenção à saúde, mostrando os desencontros ali existentes.

A estratégia encontrada pelos usuários é a de reclamar para a imprensa e de apelar para as questões político-partidárias, constituindo um ciclo que não discute claramente a racionalização do recurso médico, a rede de saúde fragmentada, os serviços de saúde como mais um bem de consumo que deve estar disponível a todos e a todo o momento.

Outro aspecto que o acolhimento, enquanto um analisador coloca em visibilidade é a necessidade de "conversar", que, muitas vezes, levam os usuários à unidade de saúde. Esse aspecto não é considerado legítimo pelos trabalhadores. É como se eles estivessem tomando o lugar das pessoas que, "de fato", necessitam do cuidado.

As profissões relacionais, ou seja, as profissões que têm por objeto a "transformação do outro", incluindo a saúde, têm lidado com certa profissionalização dos aspectos da vida, antes confiados e exercidos nos círculos familiares, nos círculos de vizinhos e de amigos. Quando se precisava conversar, essas eram as pessoas procuradas. Na atualidade, esses aspectos passaram para o âmbito profissional, dos especialistas e destitui as comunidades desse saber11 Gonnin-Bolo A. Demailly Lise. Politiques de la relation. Approche sociologique des métiers et activités professionnelles relationnelles. Rev Fr Pédagogie. 2010; 171(1):150-1. .

Conclusão

Embora o acolhimento tenha sido proposto para que houvesse reorganização do processo de trabalho e reconhecimento da legitimidade das necessidades de saúde da população, o procedimento executado pelos profissionais e atribuído como acolhimento é limitado à viabilização da demanda espontânea e não agendada para atendimento médico.

As práticas profissionais da enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem), a médica, dos ACS e de outros profissionais da área da saúde se atualizam nos serviços de atenção básica, produzindo a instituição saúde em suas lógicas. Há lógicas que atualizam a profecia inicial de práticas profissionais, como no caso, a busca dos enfermeiros pela autonomia por meio da proposição de atividades que aumentam o acesso ou deixam os usuários mais seguros de que podem esperar pelo atendimento médico.

O acolhimento é um analisador potente das práticas e das relações entre profissionais, gestão e usuários. Acredita-se que, ao ser posto coletivamente em análise, pode desencadear a desnaturalização dessas práticas e relações, abrindo possibilidades de produção de processos instituintes, ou seja, capazes de gerar transformações no processo de trabalho em saúde e, consequentemente, na atenção à saúde prestada aos usuários.

References

  • 1
    Gonnin-Bolo A. Demailly Lise. Politiques de la relation. Approche sociologique des métiers et activités professionnelles relationnelles. Rev Fr Pédagogie. 2010; 171(1):150-1.
  • 2
    Carvalho BG, Peduzzi M, Mandú ENT, Ayres JRCM. Work and Inter-subjectivity: a theoretical reflection on its dialectics in the field of health and nursing. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2012 [cited 2016 Jan 25];20(1):19-26. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n1/04.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n1/04.pdf
  • 3
    Merhy EE, Feuerwerker LCM, Silva E. Contribuciones metodológicas para estudiar la producción del cuidado en salud: aprendizajes a partir de una investigación sobre barreras y acceso en salud mental. Salud Colectiva [Internet]. 2012 [citado 2016 Jan. 24];8(1):25-34. Disponible en: Disponible en: http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n1a03.pdf
    » http://www.scielo.org.ar/pdf/sc/v8n1/v8n1a03.pdf
  • 4
    Merhy EE. Multidão: esfinge da saúde pública, lugar de inflexão, ideias do bem comum. Saúde Soc [Internet]. 2015 [citado 2016 jan. 24];24 Supl 1:44-54.
  • 5
    Lourau R. L'analyse institutionnelle. Paris: Les Éditions de Minuit; 2003.
  • 6
    Monceau G. Entre pratique et institution. L'analyse institutionnelle des pratiques professionnelles. Nouv Rev Adapt Scolar. 2008;41(1):145-59.
  • 7
    Zambenedetti G, Piccinini CA, Sales ALLF, Paulon SM, Silva RAN. Psicologia e análise institucional: contribuições para os processos formativos dos agentes comunitários de saúde. Psicol Ciênc Prof. 2014;34(3):690-703.
  • 8
    Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública.1999;15(2):345-53.
  • 9
    Costa PCP, Garcia APRF, Toledo VP. Welcoming and nursing care: a phenomenological study. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [citado 2016 Ago 31];25(1):e4550015. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-0707-tce-25-01-4550015.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-0707-tce-25-01-4550015.pdf
  • 10
    Barros MEB, Roza MMR, Guedes CR, Oliveira GN. O apoio institucional como dispositivo para a implantação do acolhimento nos serviços de saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];18 Supl1:1107-17. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807-5762-icse-18-1-1107.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807-5762-icse-18-1-1107.pdf
  • 11
    Pelisoli C, Sacco AM, Barbosa ET, Pereira CO, Cecconello AM. Acolhimento em saúde: uma revisão sistemática em periódicos brasileiros. Estud Psicol. (Campinas) [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 23];31(2):225-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a08v31n2.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v31n2/a08v31n2.pdf
  • 12
    L'Hostie M, Cody N, Laurin N. Caractéristiques et particularités du groupe de discussion favorisé dans un dispositif de recherche collaborative en éducation. Rech Qual. 2011 ;29(3):198-213.
  • 13
    Leclerc C, Bourassa B, Picard F, Courcy F. Du groupe focalisé à la recherche collaborative: avantages, défis et strategies. Rech Qual. 2011;29(3):145-67.
  • 14
    Paillé P, Mucchielli A. L'analyse qualitative en sciences humaines et socials. 3ème éd. Paris: Armand Colin; 2012.
  • 15
    Silva SS, Assis MMA. Family health nursing care: weaknesses and strengths in the Unified Health System. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2015 [cited 2016 May 12];49(4):600-6. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n4/0080-6234-reeusp-49-04-0603.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n4/0080-6234-reeusp-49-04-0603.pdf
  • 16
    Oliveira AM, Lemes AM, Ávila BT, Machado CR, Ordones E, Miranda FS, et al. Relação entre enfermeiros e médicos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás: a perspectiva do profissional de enfermagem. Rev Latino Am Bioet. 2010;10(2):58-67.
  • 17
    Tabak N, Orit K. Relationship between how nurses resolve their conflicts with doctors their stress and job satisfaction. J Nurs Mang. 2007;15(3):321-31.
  • 18
    Santos DA, Shirasaki RTS, Cangussu JML, Santos DA, Fermino JM, Silva AT, et al. Potencialidades e dificuldades nas práticas de acolhimento na rede de atenção básica conforme a Política Nacional de Humanização. Saúde Transf Soc. 2016;6(2):54-69.
  • 19
    Fertonani HP, Pires DEP, Biff D, Scherer MDA. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1869-78.
  • 20
    Silva AS, Baitelo TC, Fracolli LA. Primary Health Care Evaluation: the view of clients and professionals about the Family Health Strategy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 May 12];23(5):979-87. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n5/0104-1169-rlae-23-05-00979.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n5/0104-1169-rlae-23-05-00979.pdf
  • *
    Extraído da tese de livre docência "Práticas de acolhimento e os modos de gestão na atenção básica em saúde à luz da análise institucional", Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2016
  • Aceito
    05 Maio 2017
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br