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Pesquisa de gênero na produção de enfermagem: contribuição do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem da EEUSP

Investigación de género en la producción de enfermería: contribución del Grupo de Investigación Género, Salud y Enfermería de la EEUSP

Resumos

O estudo das teses e dissertações produzidas pelo Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, teve por objetivo descrever e analisar a produção do saber construído pelo grupo, seu produto e processo de construção. Os resultados mostram uma produção expressiva no conjunto de estudos de gênero no cenário nacional, revelando que o aprofundamento da compreensão dos fenômenos sociais sob a ótica de gênero tem trazido avanços não só no âmbito da pesquisa, como da intervenção. No campo das práticas em saúde e de enfermagem, tem se mostrado capaz de revelar os limites e as potencialidades que as permeiam.

Gênero e saúde; Feminismo; Pesquisa em enfermagem


El estudio tuvo objetivo describir y analizar la producción del conocimiento construido por el grupo de investigación Género, salud y enfermería, del Departamento de Enfermería de Salud Pública en la Escuela de Enfermería, Universidad de São Paulo, con respecto a las tesis y disertaciones, su producto y el proceso de construcción. Los datos muestran que el grupo tiene una producción significativa en el conjunto de los estudios de género en el ámbito nacional, revelando que la profundización de la comprensión de los fenómenos sociales desde la perspectiva de género no sólo ha traído avances en la investigación y también de la intervención. En el campo de las prácticas de salud y de enfermería ha sido capaz de revelar los límites y el potencial que permean.

Género y salud; Feminismo; Investigación en enfermería


The present study of the theses and dissertations produced by the Gender, Health and Nursing Research Group, at the University of São Paulo School of Nursing was performed with the objective to describe and analyze the knowledge production of the referred group, its produce and construction process. The outcomes indicate an expressive production in the collection of gender studies in the national setting, revealing that advancing the understanding of the social phenomenon from a gender perspective has improved not only the research, as well as the intervention domain. In the field of health and nursing care practices, it has been shown that it has proved capable of revealing the pervading limitations and strengths.

Gender and health; Feminism; Nursing research


ARTIGO ORIGINAL

Pesquisa de gênero na produção de enfermagem: contribuição do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem da EEUSP* * Extraído do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2011.

Investigación de género en la producción de enfermería: contribución del Grupo de Investigación Género, Salud y Enfermería de la EEUSP

Rosa Maria Godoy Serpa da FonsecaI; Rebeca Nunes GuedesII; Marília Rita Ribeiro ZalafIII; Kelly Cristina Máxima Pereira VenâncioIV

IEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem". Pesquisadora do CNPq 1D. São Paulo, SP, Brasil. rmgsfon@usp.br

IIEnfermeira. Doutoranda do Programa Interunidades em Enfermagem dos Campi de São Paulo e Ribeirão Preto. Membro do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem". São Paulo, SP, Brasil

IIIAssistente Social. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem". São Paulo, SP, Brasil

IVEnfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem". São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca Escola de Enfermagem da USP Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

O estudo das teses e dissertações produzidas pelo Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, teve por objetivo descrever e analisar a produção do saber construído pelo grupo, seu produto e processo de construção. Os resultados mostram uma produção expressiva no conjunto de estudos de gênero no cenário nacional, revelando que o aprofundamento da compreensão dos fenômenos sociais sob a ótica de gênero tem trazido avanços não só no âmbito da pesquisa, como da intervenção. No campo das práticas em saúde e de enfermagem, tem se mostrado capaz de revelar os limites e as potencialidades que as permeiam.

Descritores: Gênero e saúde; Feminismo; Pesquisa em enfermagem

RESUMEN

El estudio tuvo objetivo describir y analizar la producción del conocimiento construido por el grupo de investigación Género, salud y enfermería, del Departamento de Enfermería de Salud Pública en la Escuela de Enfermería, Universidad de São Paulo, con respecto a las tesis y disertaciones, su producto y el proceso de construcción. Los datos muestran que el grupo tiene una producción significativa en el conjunto de los estudios de género en el ámbito nacional, revelando que la profundización de la comprensión de los fenómenos sociales desde la perspectiva de género no sólo ha traído avances en la investigación y también de la intervención. En el campo de las prácticas de salud y de enfermería ha sido capaz de revelar los límites y el potencial que permean.

Descriptores: Género y salud; Feminismo; Investigación en enfermería

INTRODUÇÃO

Em 22 anos de existência, tem sido considerável a produção do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem para a construção do conhecimento de Enfermagem em Saúde Coletiva, no que concerne aos objetos e ao instrumental teórico-metodológico relacionados com os processos históricos de construção da feminilidade e da masculinidade, resultante da vivência relacional de mulheres e homens - a categoria gênero.

O conhecimento baseou-se numa episteme específica de gênero, na crença de que

uma metodologia deve abordar as ciências sob o ângulo do produto delas – como resultado em forma de conhecimento científico – mas também como processo – como gênese desse próprio conhecimento. A metodologia deve ajudar a explicar não apenas os produtos da investigação científica, mas principalmente seu próprio processo, pois suas exigências não são de submissão estrita a procedimentos rígidos, mas antes de fecundidade na produção dos resultados(1).

Este artigo analisa as teses de doutorado e dissertações de mestrado, no que tange ao produto e ao processo de construção, buscando responder às questões: Quais fenômenos sociais e objetos de investigação têm sido privilegiados nestes estudos? Quais bases teórico-metodológicas foram utilizadas? Quais os campos empíricos e as estratégias metodológicas de apreensão de dados deram voz à realidade? Qual o estado da arte do conhecimento em gênero produzido pelo Grupo Gênero, Saúde e Enfermagem?

Uma breve retrospectiva histórica mostra que o grupo teve origem na elaboração da tese Mulher, reprodução biológica e classe social: a compreensão do nexo coesivo através do estudo dialético do perfil reprodutivo biológico de mulheres atendidas nas unidades básicas de saúde(2). O objetivo era conhecer e explicar à luz do materialismo histórico e dialético o perfil reprodutivo biológico de mulheres clientes das Unidades Básicas de Saúde de Taboão da Serra, de acordo com as classes sociais nas quais se inseriam. A operacionalização de classe social foi feita com base na definição de Lênin, metodologia usada em estudos mexicanos e brasileiros elaborados sob o referencial nascente da saúde coletiva, a teoria da determinação social do processo saúde-doença(3-4).

A análise dos dados sob a mais clássica categoria do materialismo histórico e dialético não conseguiu explicar porque várias mulheres apresentavam problemas e situações semelhantes do perfil reprodutivo biológico, a despeito de pertencerem a diferentes classes sociais e, portanto, terem qualidade de vida diversa. A conclusão foi de que a categoria classe social era insuficiente para explicar as diferenças necessitando ser buscada outra fonte de análise.

À época, nas Ciências Sociais, intensificavam-se os estudos de gênero e isto fez supor que talvez residisse ali a possibilidade explicativa de fenômenos da vida das mulheres, independentemente das classes sociais. A explicação do perfil reprodutivo biológico poderia estar na confluência das duas categorias e não na exclusão ou na aplicação isolada de uma delas, no caso, a classe social. Foi declarado o impasse e apontada a categoria gênero como possibilidade futura de aplicação para comprovar as hipóteses então retraçadas. Mais tarde, apareceria a reflexão sobre a existência de uma verdadeira alquimia entre as categorias sociais para explicar os fenômenos (gênero, classe social, geração e raça/etnia)(5).

Inaugurava-se então uma nova linha de pesquisa transformando o referencial teórico do materialismo histórico e dialético com a inclusão de gênero como categoria explicativa da realidade. Foi o primeiro estudo de gênero produzido na Escola de Enfermagem da USP e a primeira tese de gênero da Enfermagem brasileira, de acordo com o Catálogo de Teses e Dissertações do CEPEn (Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem da Associação Brasileira de Enfermagem), conforme iríamos comprovar em pesquisa ulterior(6).

Daí para frente foi assumido claramente o referencial teórico-metodológico de gênero. Mesmo os estudos que não abordavam temas relativos à masculinidade e à feminilidade, adotaram a episteme de gênero abordada nos estudos específicos.

OBJETIVO

Descrever e analisar a produção do saber construído pelo Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, no que tange às teses e dissertações produzidas por componentes do grupo e orientadas pela sua coordenadora.

MÉTODO

Trata-se de uma revisão bibliográfica. A base dos dados foi constituída pelas teses e dissertações produzidas pelo Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, defendidas desde o período de formação do grupo, até os dias atuais, ou seja, de 1990 a 2011. As informações foram obtidas a partir da leitura do material e organizadas em um instrumento contendo: dados gerais (autoria, tipo, data de defesa), do resumo (tipo de estudo, objeto de estudo e objetivos, referencial metodológico, técnica de coleta de dados, fonte dos dados, tratamento dos dados, tipo de análise, coerência entre objetivos e resultados e palavras-chave). Foram consultados os volumes originais, disponíveis na Biblioteca Wanda de Aguiar Horta, da EEUSP. Os estudos foram acessados na íntegra.

RESULTADOS

A produção do grupo foi de 16 teses de doutorado, uma de livre-docência e seis dissertações de mestrado. Destas, apenas três dissertações de mestrado e duas teses de doutorado não puderam ser classificados especificamente como estudos de gênero embora, com certeza, o referencial teórico-metodológico encontrava-se na perspectiva de gênero. Todos os estudos foram produzidos no Programa Interunidades de Pós-Graduação em Enfermagem dos campi de São Paulo e Ribeirão Preto e no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, na área de concentração em Enfermagem em Saúde Coletiva.

Depois da tese que deu início à produção, os estudos subsequentes apareceram seis anos mais tarde, tempo necessário para adensar o conhecimento do referencial nascente na saúde e na enfermagem. Depois, a produção passou a ser regular, com concentração de teses que são hoje o dobro do número de dissertações.

Para a coleta dos dados inicialmente foi utilizada somente a entrevista. Porém, considerando-se a potencialidade transformadora da categoria gênero, tornou-se imperativo encontrar métodos de pesquisa igualmente transformadores. Assim foi que a Oficina de Trabalho passou a ser utilizada como estratégia para coleta e depois para a análise de dados. Foi utilizada pela primeira vez na tese de livre-docência, em 1996(7) e, a partir de 2001, em nove estudos, oito teses(8-15) e uma dissertação(16).

A própria Oficina foi estudada quanto à potencialidade para a investigação e intervenção. Atualmente constitui um método(17-18), por se basear num referencial teórico específico e conter uma sistematização própria.

A entrevista semi-estruturada foi a técnica de coleta de dados utilizada em 13 estudos (2,10,15,19-28,34). Alguns usaram várias modalidades de coleta de dados: entrevista e oficina de trabalho(10), observação participante e entrevista(27); e observação participante, entrevista e oficina de trabalho(15).

Quanto às linhas de pesquisa e seus respectivos temas, predominam os que tratam do trabalho da enfermagem ou da obstetrícia(6,8,10-11,23); violência contra as mulheres ou adolescentes(14,15-16,26,34); processo saúde-doença da mulher(20,22,24); cuidado da criança(9,19); saber-ser ético-profissional da enfermagem(27-28); perfil reprodutivo biológico(2); saúde mental e trabalho(21); saúde reprodutiva e masculinidade(12); adolescência e empoderamento(13); alcoolismo e drogadição(25).

De 1990 a 2003 os estudos tinham como objetos os fenômenos da vida das mulheres ou o seu processo saúde-doença e o trabalho da enfermagem. A partir de 2005, tomaram corpo investigações sobre a violência contra as mulheres e adolescentes, constituindo também o tema da maior parte dos estudos em andamento (três doutorados e um mestrado).

Entremeando esta trajetória, foram desenvolvidos estudos sobre mulheres e crianças, drogadição, masculinidade, saúde mental e o saber-ser ético-profissional da enfermagem. Todos seguiram a episteme de gênero.

Em relação aos cenários, dez estudos foram realizados em serviços de atenção básica de saúde, predominando os do Programa Saúde da Família; quatro em instituições de ensino como creche, escola técnica de enfermagem e escolas de enfermagem no nível superior. Dois foram feitos em um centro de atenção psicossocial e dois em instituições não-governamentais. Três ocorreram em uma moradia estudantil universitária, um num ambulatório de doenças infecciosas e outro numa instituição filantrópica de assistência integral à saúde. O último foi realizado num serviço municipal de enfrentamento da violência contra a mulher. Predominam as instituições vinculadas ao SUS e à saúde coletiva.

DISCUSSÃO

Os estudos foram ancorados na base teórico-metodológica do materialismo histórico e dialético e grande maioria utilizou a categoria de análise gênero. Alguns não tinham como perspectiva a utilização da categoria, mas acabaram por utilizá-la por força da sua pertinência para a compreensão do fenômeno analisado(2,19). A produção do grupo acompanhou a tendência dos estudos de gênero ocorrida no Brasil.

Pesquisa realizada sobre a produção de 51 grupos de pesquisa de gênero (com dados até maio de 2005)(29) revelou

o crescimento acentuado da produção científica, sendo localizadas 98 dissertações, 42 teses e 665 artigos sobre gênero e saúde. As mulheres são autoras de 86,0% das teses, 89,0% das dissertações e 70,5% dos artigos. Os temas podem ser reunidos em cinco subgrupos: reprodução e contracepção; violência de gênero; sexualidade e saúde, com ênfase nas DST/Aids; trabalho e saúde, incluindo trabalho doméstico e trabalho noturno; outros temas emergentes ou pouco explorados.

Da produção do Grupo Gênero, Saúde e Enfermagem até 2005, as 15 teses que utilizaram diretamente a categoria gênero representam aproximadamente um terço do total de teses produzidas e contabilizadas em um estudo(29). Isto leva a concluir que o grupo tem uma produção expressiva no conjunto de estudos de gênero no cenário da produção acadêmica nacional, acompanhando as tendências dos demais estudos.

A Oficina de Trabalho foi uma importante contribuição do grupo por aliar coleta e análise de dados à reflexão e ao fortalecimento dos participantes. Comprovou-se que essas técnicas

chegaram ao espaço acadêmico como instrumento pedagógico e de produção de conhecimento, sendo adaptadas a objetos de pesquisa da área social, buscando a transformação qualitativa dos espaços de aprendizagem(18).

Assim verifica-se a fertilidade desse processo metodológico que possibilita agregar pesquisa e intervenção social. A Oficina constitui um método próprio da episteme feminista, baseando-se nos fundamentos teóricos da educação crítico-emancipatória(30) e nas emoções como construtoras do conhecimento(31). Utiliza ainda os pressupostos e a sistematização da Teoria de Intervenção Práxica em Saúde Coletiva, baseada na dialética materialista(1).

ALGO SOBRE OS ESTUDOS REALIZADOS SEGUNDO OS TEMAS ESCOLHIDOS

Gênero e o trabalho da enfermagem

Os estudos mostraram que o cuidar da enfermagem aparece como um saber qualificado que conjuga o técnico e o científico com afetividade, sendo o cuidar e a afetividade características socialmente femininas. A relação enfermeira-cliente constrói-se em meio a desigualdades entre e intragênero e a prática é orientada pelo referencial médico e masculino que inferioriza a enfermagem no campo do saber. A idealização do cuidar define uma relação com as clientes que dificulta a potencialização da capacidade reivindicatória das mulheres e das profissionais por direitos. A prática de enfermagem também foi revelada como desgenerificada, não levando em conta os processos históricos de construção da masculinidade e da feminilidade, compreendendo as desigualdades entre homens e mulheres determinadas pelo biológico e não pelo social. Há similaridade no que tange à obstetrícia(23). O desenvolvimento científico trouxe em seu bojo uma opção cultural da mulher pelo parto assistido por profissional médico homem e elas se submetem a esse poder determinado pelo gênero e pelo saber. Dado que a assistência aos momentos que cercam o parto e a própria obstetrícia constitui um campo historicamente feminino, as mulheres precisam de outras mulheres (parteiras) para fazer valer seu direito de decisão. Baseada nisso, a autora desse estudo assumiu o compromisso de defender os direitos das mulheres, de modo que enfermeiras e mulheres possam ser parceiras para trazer dignidade e segurança ao nascimento e ao parto. Esta tese veio fortalecer a necessidade de reimplementar a formação de obstetrizes no nível de graduação o que, desde a década de 1960, encontrava-se interrompido. Em 2005, foi iniciado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo um curso para atender a esta necessidade, muito influenciado pelo estudo em tela, já que a autora era uma das suas proponentes(32).

Gênero e violência

Desde a primeira tese, a violência contra as mulheres aparece como um fenômeno recorrente, mesmo não constituindo objeto de investigação. Naquele estudo(2), várias dentre as 159 entrevistadas citam terem sido vítimas de violência sexual (estupros, abusos), psicológica (desqualificação, xingamentos), física (espancamentos) e institucional (laqueaduras tubárias e inserção de DIU sem conhecimento e sem consentimento prévio das mulheres). O mesmo ocorreu em outros trabalhos(10-11,20,24) até que o primeiro estudo específico de violência contra as mulheres foi concluído em 2005(14). De uma maneira geral, a violência é vista como problema menos da área da saúde que de outras (educação, segurança) e os profissionais consideram-se impotentes e despreparados para lidar com ela. As concepções baseiam-se no senso comum e não levam em consideração a historicidade do desequilíbrio na relação de poder entre homens e mulheres na determinação da violência de gênero(15-16). Esta área tem merecido uma grande concentração de estudos na atualidade, movida pela crescente contribuição dos movimentos de mulheres no desvelamento de problemas antes naturalizados e de pouco interesse para a produção acadêmica. Aos poucos vem constituindo um item importante na área da saúde. Um estudo sobre a violência contra adolescentes, vista por eles mesmos(26), impressionou pela conjugação dos vários tipos e intensidades de violência nos grupos marginalizados e a consciência de que isto representa um problema sério para sua vida. As meninas, como é de se esperar, são mais atingidas pela violência sexual que os meninos.

Gênero e o processo saúde-doença das mulheres

Carro-chefe da produção do grupo, a primeira tese foi exatamente sobre a imbricada relação entre a situação social e os fenômenos da vida das mulheres(2). Posteriormente, outros estudos viriam confirmar a relação entre processo saúde-doença e gênero, com a subalternidade social feminina constituindo grave peso sobre os agravos à saúde das mulheres(20-21,24). A soropositividade para aids constituiu objeto de estudo para a compreensão da concepção de maternidade de mulheres nesta condição e revelou que não cabia às mulheres sequer o direito de saber dos riscos aos quais estavam sendo expostas, aspecto determinado pelo ideário do amor romântico(28). A drogadição foi outro tema de um dos estudos do grupo que se revelou como um campo de emergência da violência de gênero(25).

Saber-ser ético-profissional e prática da enfermagem

Nesta área de estudos, duas dissertações aprofundaram um projeto interinstitucional desenvolvido junto ao Programa de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem - PROFAE que buscou compreender o saber-ser ético-profissional de auxiliares de enfermagem e validar seus marcadores, com vistas a propor uma metodologia de avaliação das competências profissionais(33). Os estudos revelaram que o saber encontra-se permeado por concepções do senso comum que ligam a prática de enfermagem a características históricas e socialmente constituintes do feminino, tornando mais difícil a compreensão da enfermagem como trabalho. O saber-ser ético-profissional é ainda pouco explorado quando se trata da formação de técnicos de enfermagem(27-28).

CONCLUSÃO

A produção do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem revela que o aprofundamento da compreensão dos fenômenos sociais sob a ótica de gênero tem trazido avanços no âmbito da pesquisa e da intervenção. Tem se mostrado capaz de relevar limites e as potencialidades das práticas de saúde e enfermagem. Como limites, o saber tradicional tem sido predominante, mantendo-se veiculado a ideologias opressoras. Como saber instrumental, tem orientado as práticas profissionais vigentes, apesar da existência do novo modelo de assistência à saúde integral e equânime proposto pelo SUS. A utilização da perspectiva de gênero pode ser vista como práxis norteadora da atenção à saúde, transformando a visão sobre a realidade e as intervenções para superar suas contradições.

A Oficina de Trabalho tem se mostrado um potente instrumento porque sua aplicação fortalece e empodera os pesquisados, levando-os a refletir sobre os fenômenos como inerentes às condições de homens, pais, agressores, mulheres, mães, trabalhadoras, vítimas.

Além disso, o desenvolvimento dos estudos tem permitido: ampliar a compreensão do processo saúde-doença de mulheres e homens segundo a historicidade do processo de construção da feminilidade e da masculinidade na sociedade brasileira; intervir no ensino de enfermagem em saúde coletiva e em geral, por meio da criação e do desenvolvimento de disciplinas específicas de gênero ou conteúdos disciplinares, nos curricula de graduação e pós-graduação em enfermagem; intervir na qualificação da força de trabalho de enfermagem, saúde e áreas afins através de atividades junto a outras instituições e serviços; implementar uma prática generificada de enfermagem a mulheres e homens, propondo alternativas de superação das contradições existentes na realidade objetiva de vida e saúde de grupos populacionais; compreender a enfermagem como prática social feminina, vislumbrar e implementar alternativas de superação da subalternidade a que está submetida no conjunto das demais práticas sociais, em especial as da área da saúde; compreender a violência contra a mulher como fenômeno social e historicamente determinado, possibilitando a intervenção emancipatória no conhecimento e na prática de saúde.

São estes avanços que têm fortalecido a constituição de um campo de estudos inovador e às vezes contraditório aos demais. Temos certeza de que seu desenvolvimento trará para a enfermagem e para as mulheres o lugar ao sol que tanto procuram e merecem.

Recebido: 29/10/2011

Aprovado: 10/11/2011

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  • Correspondência:

    Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca
    Escola de Enfermagem da USP
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar
    CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil
  • *
    Extraído do Grupo de Pesquisa Gênero, Saúde e Enfermagem, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      29 Out 2011
    • Aceito
      10 Nov 2011
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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