Sono em crianças com microcefalia por infecção do Zika vírus: revisão sistemática

RESUMO

Objetivo:

Revisar a literatura sobre a alteração do sono e da função cerebral em crianças com microcefalia por Zika vírus.

Método:

Revisão sistemática realizada nas bases de dados MEDLINE (PubMed), Scopus, Web of Science, CINAHL, EMBASE, LILACS e SciELO e nas bases de dados cinzentas Google Scholar e OpenGrey.

Resultados:

Foram incluídos 10 estudos primários brasileiros com delineamento de pesquisas observacionais, publicados entre 2017 e 2020, com 516 crianças com microcefalia por infecção do Zika vírus com idades entre 4 meses e 4 anos. Destes, 4 investigaram aspectos qualitativos do sono utilizando os questionários Brief Infant Sleep Questionnaire ou Infant Sleep Questionnaire e 6 investigaram alterações nas atividades cerebrais durante o sono utilizando os exames Eletroencefalograma ou Vídeo-Encefalograma. A qualidade do sono das crianças não estava comprometida na maioria dos estudos. Alterações na atividade cerebral durante o sono foram frequentes, sendo a atividade epileptogênica um achado comum entre os estudos.

Conclusão:

A qualidade do sono em crianças com microcefalia por Zika vírus demonstrou ser semelhante à de crianças com desenvolvimento típico e as alterações comportamentais apresentadas podem estar relacionadas a alterações na atividade elétrica cerebral.

DESCRITORES
Sono; Microcefalia; Infecção por Zika vírus; Revisão Sistemática

ABSTRACT

Objective:

To review the literature on sleep changes and brain function in children with microcephaly due to Zika virus.

Method:

Systematic review conducted in the databases MEDLINE (PubMed), Scopus, Web of Science, CINAHL, EMBASE, LILACS, and SciELO and the grey databases Google Scholar and OpenGrey.

Results:

Ten Brazilian primary studies with observational research design were included. These were published between 2017 and 2020 with 516 children with microcephaly due to Zika virus infection aged 4 months to 4 years. Out of these, 4 investigated qualitative aspects of sleep using the questionnaires Brief Infant Sleep Questionnaire or Infant Sleep Questionnaire and 6 investigated changes in brain activities during sleep using the Electroencephalogram or Video-Electroencephalogram exams. The children’s quality of sleep was not compromised in most studies. Changes in brain activity during sleep were frequent, with epileptogenic activity being a common finding among the studies.

Conclusion:

The quality of sleep of children with microcephaly due to Zika virus has shown to be similar to that of children with typical development and the presented behavioral changes may be related to changes in electric brain activity.

DESCRIPTORS
Sleep; Microcephaly; Zika Virus Infection; Systematic Review

RESUMEN

Objetivo:

Revisar la literatura sobre la alteración del sueño y de la función cerebral en niños con microcefalia por infección del virus Zika.

Método:

Revisión sistemática realizada en las bases de datos MEDLINE (PubMed), Scopus, Web of Science, CINAHL, EMBASE, LILACS y SciELO y en las bases de datos de literatura gris Google Académico y OpenGrey.

Resultados:

Se incluyeron 10 estudios primarios brasileños con diseño de investigación observacional, publicados entre 2017 y 2020, con 516 niños con microcefalia debido a la infección por el virus Zika con edades comprendidas entre los 4 meses y los 4 años. De ellos, 4 investigaron los aspectos cualitativos del sueño mediante el Brief Infant Sleep Questionnaire o el Infant Sleep Questionnaire y 6 investigaron los cambios en las actividades cerebrales durante el sueño mediante exámenes de Electroencefalograma o Video-Encefalograma. La calidad del sueño de los niños no estaba comprometida en la mayoría de los estudios. Las alteraciones de la actividad cerebral durante el sueño fueron frecuentes, siendo la actividad epileptógena un hallazgo común entre los estudios.

Conclusión:

La calidad del sueño en los niños con microcefalia por el virus Zika resultó similar a la de los niños con desarrollo típico. Los cambios de comportamiento presentados pueden estar relacionados con cambios en la actividad eléctrica cerebral.

DESCRIPTORES
Sueño; Microcefalia; Infección por el Virus Zika; Revisión Sistemática

INTRODUÇÃO

O aumento de nascidos vivos com microcefalia entre os anos de 2015 e 2016 no Brasil, posteriormente associada à infecção do Zika vírus (ZikV), configurou um grave problema emergencial de saúde pública nacional e internacional, impactando na qualidade de vida das crianças e das famílias(¹). Entre os principais achados neurológicos, descrevem-se as microcefalias graves com atrofia cortical e malformações, calcificações corticais, tronco cerebral e subcorticais, padrões girais anormais, ventriculomegalia, hipoplasia de cerebelo, vermis cerebelar e corpo caloso, mielinização retardada e alterações periféricas, como cicatriz macular e mancha retiniana pigmentar focal(¹–³).

Os achados neurológicos e alterações apresentadas no desenvolvimento neuropsicomotor dessas crianças, descritas por estudos de seguimento dessa população, caracterizaram a Síndrome Congênita do Zika vírus (SCZ), incluindo atraso no desenvolvimento motor, cognitivo e fala, alterações visuais e auditivas, epilepsia e paralisia cerebral(⁴). Embora a epilepsia tenha sido descrita como um achado clínico importante nas crianças com SCZ(⁵–⁶), a alteração no sono não foi incluída como sintoma clínico dentro do escopo da caracterização da síndrome.

O sono envolve uma interação complexa de processos fisiológicos e comportamentais e depende da integridade de várias estruturas neurológicas. O desenvolvimento dos estados de sono e vigília é iniciado na vida fetal e mantém estreita vinculação com a maturação do Sistema Nervoso Central(⁷). Problemas com o sono prejudicam o desenvolvimento infantil e impactam negativamente a aprendizagem e qualidade de vida, sendo relatados em crianças com comprometimentos neurológicos(⁸–¹⁰).

Considerando as anomalias cerebrais presentes nas crianças com SCZ e a vulnerabilidade neurológica para a regulação sono-vigília(¹¹), é provável que essas crianças sejam mais propensas a apresentarem problemas no sono. Alterações no sono e comportamento foram reportadas em alguns estudos, influenciando no desenvolvimento inicial, conforme dados sinalizados por mães e cuidadores de crianças com microcefalia(¹²–¹³). Desse modo, o objetivo da presente pesquisa foi realizar uma revisão sistemática da literatura, reunindo estudos que avaliaram a alteração do sono e da função cerebral em crianças com microcefalia por infecção do Zika vírus.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Foi realizada uma revisão sistemática da literatura, um tipo de estudo secundário que tem nos estudos primários sua fonte de dados; as revisões devem ser abrangentes, não tendenciosas e focadas em uma pergunta bem definida, com objetivo de identificar, selecionar, avaliar e sintetizar as evidências disponíveis(¹⁴). As recomendações do método Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses – PRISMA(¹⁵) (Principais Itens para Relatar Revisões sistemáticas e Meta-análises) foram utilizadas para o aprimoramento dos resultados desta revisão.

Para avaliar a prevalência de alteração do sono e da função cerebral, o mnemônico CoCoPop(¹⁶) (acrônimo de Co: Condição – alteração do sono e da função cerebral; Co: Contexto – microcefalia por infecção do Zika vírus; Pop: População – lactentes ou crianças a partir de 1 mês de idade) foi utilizado para a elaboração da questão norteadora, que consistiu em: Qual a prevalência de alteração do sono e da função cerebral em crianças com microcefalia por infecção do Zika vírus?

Coleta de Dados

As bases de dados utilizadas na busca eletrônica foram: MEDLINE (via PubMed), Scopus, Web of Science, Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Excerpta Medical database (EMBASE), Literatura Latino- Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Uma pesquisa bibliográfica foi realizada nas bases de dados cinzentas Google Scholar e OpenGrey.

Os descritores utilizados para a elaboração das estratégias de busca foram Sleep e Zika Virus Infection, além dos sinônimos/palavras-chave correspondentes combinados entre si por meio do operador booleano OR. O operador booleano AND interligou as duas estratégias.

A busca foi realizada em setembro de 2020, sem restrições de idioma e período de publicação. Após sua identificação, os artigos foram exportados para o software gerenciador de referências Mendeley, buscando identificar os artigos duplicados e reunir todas as publicações encontradas. A lista de todos os estudos e revisões elegíveis foi digitalizada manualmente numa planilha Microsoft Excel^® de modo a identificar estudos adicionais para a inclusão. As estratégias de pesquisa eletrônica nas bases de dados são ilustradas na Tabela 1.

Tabela 1.
Número de artigos recuperados no banco de dados ao aplicar a estratégia de busca – Maceió, AL, Brasil, 2020.

Banco de dados	Estratégia	Número de artigos
PubMed	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection) AND (Sleep OR Sleep Wake Disorders OR Sleep Wake Disorder OR Sleep Disorders OR Sleep Disorder)	20
Scopus	TITLE-ABS-KEY ((zika virus infection OR zikv infection OR zika fever OR zika virus disease OR congenital zika syndrome OR congenital zika virus infection) AND (sleep or sleep wake disorders or sleep wake disorder or sleep disorders or sleep disorder))	4
Web of science	((Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection) AND (Sleep OR Sleep Wake Disorders OR Sleep Wake Disorder OR Sleep Disorders OR Sleep Disorder))	13
CINAHL	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection) AND (Sleep OR Sleep Wake Disorders OR Sleep Wake Disorder OR Sleep Disorders OR Sleep Disorder)	36
EMBASE	(‘zika virus infection’/exp OR ‘zika virus infection’ OR (zika AND (‘virus’/exp OR virus) AND (‘infection’/exp OR infection)) OR ‘zikv infection’/exp OR ‘zikv infection’ OR ((‘zikv’/exp OR zikv) AND (‘infection’/exp OR infection)) OR ‘zika fever’/exp OR ‘zika fever’ OR (zika AND (‘fever’/exp OR fever)) OR ‘zika virus disease’ OR (zika AND (‘virus’/exp OR virus) AND (‘disease’/exp OR disease)) OR ‘congenital zika syndrome’/exp OR ‘congenital zika syndrome’ OR ((‘congenital’/exp OR congenital) AND zika AND (‘syndrome’/exp OR syndrome)) OR ‘congenital zika virus infection’ OR ((‘congenital’/exp OR congenital) AND zika AND (‘virus’/exp OR virus) AND (‘infection’/exp OR infection))) AND (‘sleep’/exp OR sleep OR ‘sleep wake disorders’/exp OR ‘sleep wake disorders’ OR ((‘sleep’/exp OR sleep) AND wake AND (‘disorders’/exp OR disorders)) OR ‘sleep wake disorder’/exp OR ‘sleep wake disorder’ OR ((‘sleep’/exp OR sleep) AND wake AND (‘disorder’/exp OR disorder)) OR ‘sleep disorders’/exp OR ‘sleep disorders’ OR ((‘sleep’/exp OR sleep) AND (‘disorders’/exp OR disorders)) OR ‘sleep disorder’/exp OR ‘sleep disorder’ OR ((‘sleep’/exp OR sleep) AND (‘disorder’/exp OR disorder)))	51
LILACS	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection)	152
SciELO	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection)	220
Google scholar	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection) AND (Sleep OR Sleep Wake Disorders OR Sleep Wake Disorder OR Sleep Disorders OR Sleep Disorder)	631
OpenGrey	(Zika Virus Infection OR ZikV Infection OR Zika Fever OR Zika Virus Disease OR Congenital Zika Syndrome OR Congenital Zika Virus Infection) AND (Sleep OR Sleep Wake Disorders OR Sleep Wake Disorder OR Sleep Disorders OR Sleep Disorder)	0

Critérios de Seleção

Os estudos foram considerados elegíveis se satisfizessem os seguintes critérios: (I) crianças com microcefalia por infecção do ZikV; (II) estudos que analisaram a qualidade do sono por meio de exames ou utilizaram um instrumento psicométrico para avaliação do sono. Foram delimitados como critérios de exclusão: artigos de revisão, relatos de caso, editoriais, capítulos de livros e artigos sem especificação do instrumento de avaliação utilizado ou aqueles não relacionados ao tema.

A seleção dos estudos foi realizada por dois pesquisadores independentes (MCSR e EMSS), que selecionaram os estudos pesquisados com base na leitura dos títulos e resumos de cada trabalho, procedimento que configurou a primeira etapa de seleção. Os estudos relevantes foram lidos na íntegra e selecionados de acordo com os critérios de elegibilidade. Desacordos entre os dois revisores foram resolvidos por consenso ou por um terceiro revisor (ALFF).

Análise e Tratamento dos Dados

A extração de dados e a avaliação do risco de viés foram realizadas de modo independente pelos dois pesquisadores e posteriormente comparadas. Os dados foram extraídos utilizando um protocolo pré-definido pelos pesquisadores a fim de extrair, organizar e sumarizar as informações. Os tópicos de interesse abordados no instrumento foram: informações sobre o estudo (autor, ano de publicação, país), aspectos metodológicos (desenho do estudo, objetivo, tamanho e idade da amostra, instrumento de avaliação) e principais resultados.

A análise da qualidade metodológica dos artigos foi realizada em consenso pelos pesquisadores e baseou-se na Ferramenta de Avaliação de Qualidade para Coortes Observacionais e Estudos transversais dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) (https://www.nhlbi.nih.gov/health-topics/study-quality-assessment-tools). Para cada critério, é possível responder “sim”, “não” ou outra resposta (“não pode determinar”, “não aplicável” ou “não relatado”).

Os resultados foram analisados de forma descritiva e reunidos em tabelas que descrevem as informações sumarizadas dos estudos e da análise da qualidade.

RESULTADOS

A pesquisa inicial localizou 1.127 estudos nas bases de dados eletrônicas, com exceção da OpenGrey, na qual nenhum estudo foi encontrado. Dentre estes, 1.052 estudos foram excluídos após avaliação dos títulos e resumos. Após uma leitura completa, 10 estudos publicados foram incluídos nesta revisão, pois atendiam as condições para inclusão descritas na metodologia. Um fluxograma do processo de seleção dos estudos seguiu a recomendação do modelo PRISMA (Figura 1).

Figura 1.
Fluxograma representando o número de artigos selecionados e excluídos nas diferentes bases de dados.

Características dos Estudos

Os estudos primários incluídos foram realizados no Brasil e apresentaram um desenho relatando resultados de estudos observacionais transversais, série de casos e coortes. Todos os participantes foram recrutados a partir de amostra por conveniência, totalizando, nesta revisão sistemática, a análise de dados de 516 crianças com microcefalia por ZikV. A idade dos participantes das pesquisas incluídas variou entre quatro meses e quatro anos de vida. Alguns dos estudos incluíam resultados de exames de Eletroencefalograma (EEG) ou Vídeo Eletroencefalograma (VEEG), realizados para avaliar os padrões da atividade cerebral durante o sono; em outros, os questionários Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ) ou Infant Sleep Questionnaire (ISQ) foram utilizados para avaliar a qualidade do sono. Na maioria dos estudos, a qualidade do sono de crianças com microcefalia por Zika vírus não estava comprometida e, nos exames, alterações na atividade cerebral foram relacionadas a diagnósticos de atividade epileptogênica. As informações sumarizadas dos estudos estão na Tabela 2.

Tabela 2.
Estudos analisados sobre alterações no sono associadas à microcefalia por ZikV – Maceió, AL, Brasil, 2020.

Autores/Ano	Desenho do estudo	Objetivo	Tamanho e idade da amostra	Instrumento de avaliação	Resultados
Wheeler et al., 2018(17)	Coorte	Descrever perfis iniciais de desenvolvimento de bebês com CSZ, com foco nas habilidades nas áreas de resolução de problemas muito precoces, comunicação, desenvolvimento motor e socioemocional	Amostra: 47 crianças Idade: 13 a 22 meses	Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ)	A duração do sono foi de 9 horas durante a noite, 2,3 horas durante o dia; a latência para dormir teve média de 32 minutos. Problema do sono ocorreu em 18%.
Pinato et al., 2018(18)	Transversal	Investigar as características do sono de 136 bebês e crianças pequenas	Amostra: 88 crianças com SCZ e 38 com desenvolvimento típico (TD) Idade: 5 a 24 meses, média de 15,9 meses	Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ)	Crianças com SCZ: 34,1% dormiam mal; 15% permaneceram acordadas durante a noite por um período maior que 1 hora; 24% dormiram menos de 9 horas. Menor tempo total de sono, menor duração do sono noturno e sem correlação entre a idade e a vigília noturna em relação ao TD. Diagnóstico de epilepsia ocorreu em 77%.
Lage et al., 2019(19)	Transversal retrospectivo	Descrever as características clínicas, neurofisiológicas e neurorradiológicas de crianças com microcefalia congênita diagnosticada ao nascimento e potencialment e associada à infecção congênita por ZikV	Amostra: 102 crianças Idade: média de 4,1 meses VEEG Amostra: 96 crianças	Avaliações padronizadas não especificadas VEEG	Presença de irritabilidade/choro impaciente em 27,5%, dificuldades no sono em 9,8% e atividade epileptogênica em 56,3%.
Kanda et al., 2018(20)	Transversal retrospectivo	Descrever os achados do eletroencefalograma (EEG) no sono de crianças epilépticas que nasceram com microcefalia em áreas do Brasil com transmissão ativa do Zika vírus entre 2014 e 2017	Amostra: 23 crianças Idade: 4 a 48 meses	EEG	Um padrão distinto de EEG foi observado em ZikV (5 casos) e a atividade rítmica foi associada à hisdroritmia ou ao fundo lento, sendo comuns no EEG do ZikV longos períodos de atividade rítmica generalizada ou focal de 4,5 a 24 Hz.
Ferreira et al., 2018(21)	Transversal	Descrever o perfil funcional de crianças com microcefalia associada ao ZikV em dois estados do nordeste brasileiro	Amostra: 34 crianças Idade: média de 21,2 meses	Infant Sleep Questionnaire (ISQ); os resultados foram diretamente convertidos em qualificadores da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF)	47,1% dos participantes relataram nenhuma incapacidade e 20,6% problema grave nas funções do sono (categoria b134).
Carvalho et al., 2017(22)	Coorte, série de casos	Descrever os padrões de EEG do sono de recém-nascidos e crianças com microcefalia devido à síndrome congênita do vírus Zika (ZikV)	Amostra: 37 crianças Idade: de 1 a 5 meses	EEG	Diferentes tipos de anormalidades de EEG foram encontrados na SCZ com predominância de atividade epileptogênica interictal e hipsarritmia.
Lima, 2017(23)	Transversal, série de casos	Avaliar o desempenho funcional e o sono de crianças com SCZ entre 6 e 18 meses de idade e descrever a rede de saúde utilizada por crianças com SCZ do interior de Pernambuco	Amostra: 79 crianças Idade: 6 a 11 meses: média de 10,3 meses; 12–18 meses: média de 14,46 meses	Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ)	75,9% das mães não consideraram o sono do seu filho um problema. 88,5% da amostra não acordaram ou acordaram apenas uma vez durante o sono noturno e 67% dormiram entre 8 e 12 horas por noite.
Krueger et al., 2020(24)	Série de casos	Avaliar as características clínicas e neurofisiológicas de pacientes com síndrome congênita do Zika vírus que apresentavam um padrão de estado elétrico epiléptico durante o sono de ondas lentas (ESES)	Amostra: 4 crianças Idade: 4 anos	VEEG	Epilepsia diagnosticada entre um mês e 18 meses de idade, apresentando um padrão ESES aos três anos de idade. As crianças apresentaram uma ampla gama de sintomas epilépticos, mas todas experimentaram convulsões tônicas.
van der Linden et al., 2020(25)	Longitudinal	Descrever os padrões evolutivos de EEG após o segundo ano de vida em uma grande série de casos de pacientes com CZVS confirmados	Amostra: 55 crianças Idade: média de 50 meses	EEG e VEEG	Descargas epilépticas contínuas durante o sono de movimento ocular não-rápido foram identificadas em 40% das crianças; em 90,1%, o padrão foi simétrico, com predomínio anterior da atividade epileptiforme, sendo epilepsia grave em 68,2%. Calcificações subcorticais e EEGs multifocais em idades anteriores ocorreram com mais frequência em pacientes com esse padrão. Outros padrões de EEG interictal inespecíficos foram descargas de epileptiforme focal em 41,8% e atividade multifocal em 10,9%.
Sequerra et al., 2020(26)	Transversal	Apresentar correlações perspicazes entre a ocorrência de descargas epileptiformes e malformações do rombencéfalo, volume de prosencéfalo e oscilações relacionadas ao sono	Amostra: 47 crianças Idade: não especificado	EEG Tomografia Computadorizada	Diagnóstico de epilepsia em 62% da amostra, com descargas epileptiformes, incluindo picos interictais unilaterais (90%), picos interictais síncronos e assíncronos bilaterais (72%) e hipsarritimia (41%). 58% das crianças com epilepsia clínica nasceram com malformações de rombencéfalo, sendo associada à epilepsia. A presença de descargas epileptiformes interictais (IED) foi associada a volumes cerebrais menores. 25% apresentaram fusos de sono associados à presença do IED.

Qualidade Metodológica dos Estudos

A Tabela 3 apresenta a ferramenta de Avaliação de Qualidade para Coortes Observacionais e Estudos transversais dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) utilizada para avaliação da qualidade dos estudos individuais (validade interna) e a avaliação de cada estudo. A limitação dos estudos se referiu à seleção dos participantes, pois a maioria utilizou amostras por conveniência, ajustes para variáveis de confusão para fortalecer as evidências observacionais relacionadas à qualidade do sono de crianças com microcefalia por ZIKV e o fato de o padrão de sono pelo EEG ou VEEG não ter sido relatado nos estudos. A maioria dos estudos apresentou delineamento metodológico transversal aliado a uma coorte ou série de casos.

Tabela 3.
Avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos – Maceió, AL, Brasil, 2020.

Autor, ano	1	2	3	4	5	6	7	8	9	10	11	12	13	14
Wheeler et al., 2018(15)	S	S	S	S	S	NA	NA	N	S	N	ND	N	NA	N
Pinato et al., 2018(16)	S	S	S	S	ND	NA	S	S	S	N	NR	N	NA	N
Lage et al., 2019(17)	S	S	S	S	ND	NA	NA	N	S	NR	NA	N	NA	NR
Kanda et al., 2018(18)	S	S	S	S	ND	NA	NA	S	S	N	N	N	NA	NR
Ferreira et al., 2018(19)	S	S	ND	S	ND	NA	S	N	S	N	S	N	NA	ND
Carvalho et al., 2017(20)	S	S	S	S	ND	N	S	N	S	N	N	N	NA	NR
Lima, 2017(21)	S	S	S	S	S	NA	S	N	S	N	S	N	NA	ND
Krueger et al., 2020(22)	S	S	NR	S	S	S	S	N	N	N	N	N	N	NR
van der Linden et al., 2020(23)	S	S	S	NR	S	S	S	N	N	N	N	N	N	N
Sequerra et al., 2020(24)	S	S	S	S	S	S	S	S	N	N	N	N	N	NR

S, Sim; N, Não; ND, Não pode determinar; NA, Não aplicável; NR, Não relatado. (1) A questão de pesquisa ou objetivo claramente declarado; (2) A população do estudo foi claramente especificada e definida; (3) A participação de indivíduos elegíveis foi de pelo menos 50%; (4) Todos os indivíduos selecionados ou recrutados partiram da mesma população ou populações similares, incluindo o mesmo período de tempo? Os critérios de inclusão e exclusão para participação no estudo foram pré-especificados e aplicados de maneira uniforme entre os participantes; (5) Foram descritas a justificativa para o tamanho da amostra, cálculo da força estatística, variância e as estimativas de efeito; (6) Para a análise nesse estudo, as exposições de interesse foram mensuradas antes dos desfechos avaliados; (7) O tempo do estudo foi suficiente para que se pudesse estabelecer uma associação entre a exposição e o desfecho, se existente; (8) Para exposições que podem variar em quantidade e níveis, avaliou-se a influência dessas características em relação aos desfechos avaliados; (9) As medidas de exposição (variáveis independentes) foram definidas de forma clara, válida, confiável e implementadas de forma consistente entre os participantes; (10) A exposição foi avaliada mais de uma vez ao longo do estudo; (11) Os desfechos (variáveis dependentes) foram definidos de forma clara, válida, confiável e implementados de forma consistente entre os participantes; (12) Houve cegamento dos avaliadores em relação à exposição dos participantes; (13) Houve perda de seguimento após a linha de base de 20% ou menos; (14) Foi feito um ajuste para os principais fatores de confundimento no cálculo da associação entre exposição e desfechos.

DISCUSSÃO

O objetivo deste estudo foi realizar uma revisão sistemática da literatura de estudos que avaliaram a alteração do sono e da função cerebral em crianças com microcefalia por infecção do Zika vírus. Observa-se que todos os estudos incluídos são brasileiros. De modo geral, as investigações sobre o sono nessa população ocorreram em idades precoces, principalmente nos dois primeiros anos de vida.

Quatro estudos(¹⁷–¹⁸,²¹,²³) tiveram o sono como desfecho de pesquisa e investigaram aspectos qualitativos utilizando os questionários BISQ e o ISQ. A duração do sono noturno variou entre 8 e 9 horas e o tempo total de sono entre 11 e 13 horas, demonstrando que os lactentes com microcefalia por ZikV avaliados apresentavam hábitos saudáveis de sono. O sono desde o nascimento da criança está presente durante o dia e à noite e, com o avançar da idade, o sono diurno tende a diminuir. No recém-nascido, a duração do sono varia entre 14 e 17 horas, reduzindo-se para 11 e 14 horas entre o primeiro e segundo ano de vida, sendo essa diminuição do tempo total do sono resultado da redução dos períodos diurnos de sono(²⁷).

O Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ) e o Infant Sleep Questionnaire (ISQ) são alguns instrumentos traduzidos e validados utilizados para avaliar os problemas do sono em lactentes e crianças até 3 anos de idade(²⁸–³⁰) a partir do autorrelato dos pais ou cuidadores. Na amostra de validação do ISQ, foram incluídas crianças com Paralisia Cerebral, observando-se que estas tendem a apresentar mais alterações no comportamento do sono em relação a crianças saudáveis(³⁰). Embora tais instrumentos mostrem-se confiáveis, fortalecendo a importância de instrumentos subjetivos para a triagem e identificação dessas dificuldades(²⁹,³⁰), eles não baseiam os problemas do sono em um sistema padronizado de classificação de distúrbios do sono(³¹). Dentre os estudos incluídos nesta revisão que utilizaram esses instrumentos de avaliação, apenas um estudo(²¹) adaptou os resultados obtidos em qualificadores da Classificação Internacional de Funcionalidade.

Seis estudos(¹⁹–²⁰,²²,²⁴–²⁶) investigaram alterações neurológicas por meio do EEG ou VEEG, nos quais alterações nas atividades cerebrais durante no sono foram evidenciadas, sendo diagnosticada na maioria atividade epileptogênica, o que sugere que esse comportamento pode estar associado a crises não descobertas ou não controladas. Estudo com crianças com microcefalia congênita relacionada ao ZikV(³²) observou que, nos casos de encefalopatia epiléptica, a hipsarritmia não foi um achado frequente no EEG e a epilepsia focal foi o tipo mais comum nas crianças no segundo ano de vida. Estudo de série de casos sobre espasmos infantis com 22 crianças com SCZ no primeiro ano de vida(³³) encontrou um padrão de EEG de hipsarritmia interictal.

Estudo de revisão de literatura que incluiu a SCZ(³⁴) identificou que o distúrbio do sono pode estar diretamente relacionado às diferenças anatômicas no cérebro e que, na maioria das síndromes, é necessária uma investigação completa para elucidar a relação da malformação com o problema do sono. Ressalta-se também a necessidade de estudos que relacionem os impactos das alterações estruturais do cérebro e da infecção do Zika vírus nas anormalidades do sono e do EEG(¹¹).

Embora se tenham observado características comportamentais de choro e irritabilidade, estas parecem não ter afetado a qualidade e quantidade do sono dessa população. Isso ocorre talvez porque as alterações no sono apresentadas por essa população poderiam estar mais relacionadas às alterações neurológicas, cujas alterações nas atividades cerebrais, como as crises epilépticas, sintoma frequentemente relatado nos estudos incluídos, podem ter sido controladas por meio do uso de medicação. Essa é provavelmente a causa das alterações comportamentais, não se constituindo em mais um problema a ser relatado no desenvolvimento dessas crianças(³⁵).

Problemas do sono são relatados em crianças com alterações no desenvolvimento(³⁶–³⁷). Alteração da frequência cardíaca, aumento da percepção dolorosa, estresse, irritabilidade e o choro foram relatados em recém-nascidos prematuros com privação do sono(³⁸). Em crianças com paralisia cerebral, alterações no padrão sono-vigília também podem estar presentes, dados os fatores relacionados aos distúrbios motores, lesões de vias ou estruturas relacionadas ao controle de ritmos biológicos e resultantes da infecção pelo ZikV(³²). Distúrbios respiratórios e a hiperidrose do sono foram os sintomas mais frequentes em indivíduos com paralisia cerebral, o que afeta diretamente o bem-estar físico e emocional(³⁹).

As alterações neuromotoras, como espasmos musculares e alterações no tônus presentes nessa população(²⁸,⁴⁰), podem dificultar a mobilidade espontânea da criança e as trocas posturais, ocasionando choro e irritabilidade e prejudicando o sono. Alterações visuais graves também podem afetar o sono, pois a falta da percepção da luz, que está relacionada com a secreção de melatonina, altera o ciclo sono-vigília, impactando no tempo e manutenção do sono(⁴¹).

Problemas no sono podem acarretar prejuízos no desenvolvimento infantil, o que pode ser potencialmente mais grave em lactentes com microcefalia por Zika vírus. Conhecer os hábitos do sono e possíveis alterações possibilita o desenvolvimento de uma rede de suporte profissional para essas crianças e famílias.

Apesar dos resultados relevantes, observa-se na literatura científica até o momento carência de pesquisas que investiguem a relação entre as alterações na qualidade do sono em crianças com microcefalia e a infecção por ZikV, o que pode ser justificado pela grave situação epidemiológica da época e consequente dificuldade para se compreender as suas diversas implicações, cujas alterações na qualidade do sono não eram relatadas ou consideradas um problema(¹⁷). Além disso, as limitações dos diferentes desenhos metodológicos dos estudos revisados demonstram a importância de estudos com desenhos de coorte ou seguimento longitudinal com amostras e faixas etárias maiores, com grupos de comparação e variáveis controladas, de modo a apresentar conclusões sobre os resultados do sono desta população no contexto em que vivem, para que melhores evidências possam ser geradas a partir de estudos realizados com rigor metodológico.

CONCLUSÃO

A qualidade do sono em crianças com microcefalia por ZikV demonstrou ser semelhante à de crianças com desenvolvimento típico e as alterações comportamentais apresentadas podem estar relacionadas a alterações na atividade elétrica cerebral.

REFERENCES

• ^1.
  Eickmann SH, Carvalho MDCG, Ramos RCF, Rocha MÂW, Van der Linden V, Silva PFS. Síndrome da infecção congênita pelo vírus Zika. Cad Saude Publica. 2016;32(7):e00047716. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00047716
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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  23 Nov 2020
• Aceito
  21 Maio 2021