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Experiências e expectativas de enfermeiros no cuidado ao doador de órgãos e à sua família

Experiencias y expectativas de las enfermeras en la atención de los donantes de órganos y sus famílias

RESUMO

Objetivo

Compreender as experiências e expectativas dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva no cuidado ao doador de órgãos para transplantes e à sua família.

Método

Pesquisa qualitativa, com abordagem da Fenomenologia Social realizada em 2013, com 20 enfermeiros.

Resultados

As experiências dos enfermeiros com as famílias dos doadores foram representadas pelas categorias: obstáculos vivenciados e intervenções realizadas no cuidado às famílias dos doadores. As expectativas desses profissionais na assistência às famílias e aos doadores de órgãos foram descritas pela categoria: cuidar para salvar vidas.

Conclusão

O estudo mostrou que o cotidiano dos enfermeiros de terapia intensiva no cuidado às famílias e aos doadores de órgãos é permeado por obstáculos que interferem no processo de doação. Diante desse cenário têm como expectativas oferecer uma assistência intensiva ao doador falecido e um cuidado humanizado às famílias, intencionando possibilitar a aceitação da doação de órgãos pelos familiares e viabilizar órgãos para transplantes.

Enfermagem; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Transplante de Órgãos; Morte Encefálica; Unidades de Terapia Intensiva; Relações Profissional-Família

RESUMEN

Objetivo

Comprender las experiencias y expectativas delas enfermeras de las unidades de cuidados intensivos en la atención al donante de órganos para trasplante y su familia.

Método

: Investigación cualitativa, con el enfoque dela Fenomenología Social que ocurrió en 2013, con 20 enfermeras.

Resultados

Las experiencias delos enfermeros conlas familias de losdonantesestuvieron representadas porcategorías: obstáculos experimentados y intervenciones en la atención a las familias de los donantes. Las expectativas de estos profesionales en la asistencia a las familias y a los donantes de órganos fueron descriptas en la categoría: cuidar para salvar vidas.

Conclusión

El estudio mostró quela rutina diaria delos enfermeros de cuidados intensivos en relación a la atención de las familias y los donantes de órganos está permeado por los obstáculos que interfieren con el proceso de donación. Ante este escenario, la expectativa primordial es ofrecer asistencia intensiva a los donantes fallecidos y atención humanizadaa las familias, con la intención de posibilitarla aceptación dela donación de órganos por parte de familiares y hacer factible la potencian de los órganos para trasplantes.

Enfermería; Obtención de Tejidos y Órganos; Trasplante de Órganos; Muerte Encefálica; Unidades de Cuidados Intensivos; Relaciones Profesional-Familia

ABSTRACT

Objective

Understand the experiences and expectations of intensive care unit nurses in caring for organ donors and their families.

Method

Qualitative research, with a social phenomenological approach, conducted in 2013 with 20 nurses.

Results

The experiences of the nurses with the families of donors were represented by two categories: obstacles encountered and interventions performed in the care of the donors’ families. The expectations of these professionals in caring for organ donors and their families were described in the category: care to save lives.

Conclusion

The study showed that the day-to-day work of intensive care nurses in their care of organ donors and their families is permeated with obstacles that interfere in the donation process. In light of this, their goal is to provide intensive care to deceased donors and humanized care to the families, to help family members agree to organ donation and enable organs to be made available for transplants.

Nursing; Tissue and Organ Procurement; Organ Transplantation; Brain Death; Intensive Care Units; Professional-Family Relations

INTRODUÇÃO

O processo de doação e transplante é complexoe a participação do enfermeiro da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é essencial no tocante à viabilização de órgãos e tecidos para transplantes. Sendo assim, uma das atividades desse profissional consiste em prestar assistência de enfermagem ao doador elegível em morte encefálica e à sua família(11. Moraes EL, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experience of nurses in the process of donation of organs and tissues for transplant. Rev Latino AmEnfermagem. 2014;22(2):226-33.-22. Peiffer KMZ. Brain death and organ procurement. Am J Nurs. 2007;107(3):58-67.).

A participação desse profissional no cuidadoprestado àfamília e ao doador elegível éprimordial no processo de acolhimento, humanização e esclarecimento, possibilitando aos parentes do doador uma tomada de decisão com autonomia sobre o destino que darão aos órgãos e tecidos do ente querido(33. Santos MJ, Moraes EL, Massarollo MCKB. Comunicação de más notícias: dilemas éticos frente à situação de morte encefálica. MundoSaúde. 2012;36(1):34-40.).

Além disso, devemos enfatizar o relevante papel do enfermeirono suporte oferecido às famíliasdos doadores, no momento da comunicação do diagnóstico de morte encefálica pela equipe médica. O enfermeiro que atua nesse contexto sabe que a comunicação da má notícia às famílias dos doadores falecidos é crucial para que as mesmas compreendam que morte encefálica é morte(11. Moraes EL, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experience of nurses in the process of donation of organs and tissues for transplant. Rev Latino AmEnfermagem. 2014;22(2):226-33.).

Na comunicação de más notícias a informação tem uma conotação especial, pois conduzirá as famílias dos doadores falecidos a um estado de crise emocional e para os profissionais de saúde essa situação gera tensão(33. Santos MJ, Moraes EL, Massarollo MCKB. Comunicação de más notícias: dilemas éticos frente à situação de morte encefálica. MundoSaúde. 2012;36(1):34-40.).

A comunicação de má notícia pode ser definida como sendo a que altera drástica e negativamente a perspectiva do próprio indivíduo ou de sua família em relação ao futuro. O resultado é uma desordem emocional ou do comportamento que persiste por certo tempo, depois que a má notícia é recebida. A reação da família do doador frente à comunicação da morte de um ente querido depende dos mecanismos de enfrentamento mobilizados por cada indivíduo diante da situação, de experiências anteriores, de crenças religiosas, de fatores sociais e culturais(44. Díaz FG. Breakingbadnews in medicine: strategiesthatturnnecessityinto a virtue. Med Intensiva. 2006;30(9):452-9.).

Todavia, a forma como as famílias dos doadores falecidos são informadas sobre a morte é essencial para a discussão e tomada de decisão sobre doação de órgãos e tecidos para transplantes. Nessa situação é essencial que as famílias compreendam esse conceito e aceitem que a pessoa morreu. Sendo assim, a habilidade do profissional de saúde em comunicação é ponto-chave para garantir a clareza e a objetividade da informação transmitida a essas famílias(11. Moraes EL, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experience of nurses in the process of donation of organs and tissues for transplant. Rev Latino AmEnfermagem. 2014;22(2):226-33.).

Os profissionais de saúde que trabalham com pacientes críticos devem receber formação específica em comunicação, uma vez que esta é uma ferramenta básica para a realização de suas atividades diárias e a assistência prestada intenciona humanizar o processo de doação, por meio da relação de ajuda oferecida às famílias dos doadores(55. Siminoff LA, Marshall HM, Dumenci L, Bowen G, Swaminathan A, Gordon N. Communicating effectively about donation: an educational intervention to increase consent to donation. ProgTransplant. 2009;19(1):35-43.).

Desse modo, algumas inquietações emergiram: como o enfermeiro de terapia intensiva vivencia o cuidado ao doador de órgãos e à sua família? Que importância ele atribui à sua atuação nesse processo de cuidar? Quais os elementos facilitadores e dificultadores frente ao cuidado oferecido ao doador de órgãos eà sua família? Quais os motivos considerados para cuidar do doador de órgãos e da família? O que o enfermeiro espera com sua atuação nesse cenário?

O objetivo desta pesquisa foi compreender as experiências e expectativas dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva no cuidado ao doador de órgãos para transplante e à sua família. Ao desvelar as experiências desse grupo social, esta investigação traz contribuições aos profissionais de saúde que atuam em diferentes realidades, oferecendo elementos que possam balizar as ações nesse campo da saúde e nortear as práticas de ensino, assistência e implementar estratégias para otimizar a qualidades dos órgãos disponibilizados para transplante.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo fundamentado na fenomenologia social de Alfred Schutz. Esse referencial possibilita compreender os fenômenos humanos pautados em uma experiência concreta, vivida no cotidiano, permitindo, assim, conhecer o grupo de enfermeiros de UTI que atua no cuidado ao doador de órgãos para transplante e à sua família.

A pesquisa foi realizada com enfermeiros deUTI de um hospital-escola da cidade de São Paulo. O contato foi feito pessoalmente com os enfermeiros dos plantões diurno e noturno, para saber sobre seu interesse em participar do estudo, momento em que se apresentou o objetivo do projeto, esclareceram-se as dúvidas pertinentese, caso fosse manifestado desejo de participar, agendou-se o encontro, conforme sua disponibilidade quanto ao dia, horário e local onde a entrevista pudesse ocorrer. Os enfermeiros que concordaram em participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TLC).

Utilizou-se a entrevista fenomenológica para obtenção dos discursos dos participantes do estudo, uma vez que esta é formada por perguntas abertas que permitem à pessoa se manter acessível aos atos intencionais do outro, possibilitando que o fluxo da consciência do indivíduo se apresente ao pesquisador(66. Schutz A. El problema de larealidad social: escritos I. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu; 2008.).

Foram realizadas e utilizadas 20 entrevistas com enfermeiros de UTI, com idade entre 27 e 48 anos, tempo de formado entre 3 e 15 anos e tempo de atuação nessa especialidade entre 2 e 15 anos. As entrevistas foram gravadas no próprio hospital, cenário do estudo, em local privativo e com o consentimento dos participantes. Os critérios de inclusão para participar do estudo foram: enfermeiros com especialização em cuidados intensivos e que prestavam assistência ao doador de órgãos para transplante e à sua família.

Cabe ressaltar que o número de participantes não foi estabelecido previamente, mas, sim, no transcorrer das entrevistas e, quando se percebeu que estava havendo repetição dos discursos, que as inquietações dos pesquisadores foram respondidas e o objetivo do estudo foi alcançado, as entrevistas foram encerradas.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas individuais, com tempo médio de duração de 2 horas e foram obtidas entre agosto e dezembro de 2013, guiadas pelas seguintes questões norteadoras: Você poderia me contar sua experiência no cuidado ao doador de órgãos para transplante eà sua família? e O que você espera com sua atuação nesse cuidado?

A análise dos resultados foi conduzida conforme as etapas propostas pelos pesquisadores da Fenomenologia Social(77. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schutz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41.), que consiste no procedimento sistemático da análise das entrevistas, por meio de leitura e releitura criteriosa, sempre buscando compreender a essência das experiências e expectativas dos enfermeiros no cuidado à família e ao doador de órgãos; agrupamento dos aspectos significativos extraídos dos discursos dos sujeitos por meio das convergências temáticas, com o objetivo de apreender o significado subjetivo que os enfermeiros atribuíram às suas próprias ações; análise dessas categorias buscando a compreensão dos “motivos para” e “motivos porque” da ação dos enfermeiros no cuidado à família e ao doador de órgãos; e por fim a discussão dos resultados à luz da Fenomenologia Social de Alfred Schutz e outros referenciais relacionados ao tema.

Para a identificação das diferentes entrevistas, utilizou-se a denominação de E1, E2... E20 com o intuito de preservar o anonimato dos enfermeiros.

O estudo atendeu às normas internacionais de ética em pesquisa, envolvendo seres humanos, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o nº 0599/11.

RESULTADOS

As experiências dos enfermeiros de UTI no cuidado às famílias dos doadores de órgãos para transplante desvelam aspectos pessoais, sociais e profissionais, expressos em duas categorias: obstáculos vivenciados e intervenções realizadas no cuidado às famílias dos doadores.

Obstáculos vivenciados

O cotidiano dos enfermeiros de UTI no cuidado às famílias dos doadores de órgãos para transplante é marcado por obstáculos, representados pela dificuldade que essas famílias têm em aceitar e compreender o significado da morte encefálica, principalmente quando o evento envolve causas traumáticas e o doador é jovem. Na assistência prestada a essas famílias interferem a falta de habilidade da equipe médica na comunicação de más notícias e o despreparo dos enfermeiros para lidar com familiares vivenciando a perda de um ente querido.

Os enfermeiros participantes do estudo referiram que a dificuldade dos familiares em aceitar a morte do ente querido é alimentada pela esperança de que a situação possa mudar, dificultando a aceitação da doação e a assistência oferecida às famílias, como mostram os trechos das falas extraídas das entrevistas:

(...) é complicado para a família ver o coração da pessoa batendo. (...) os familiares dizem: muitos ficam em coma e depois voltam. (...) muitos não aceitam a doação justamente por causa disso, o medo de matar o familiar. Nessa situação é difícil o diálogo com as famílias e a assistência fica complicada (E4).

(...) às vezes, a dúvida que a família tem é se o parente está morto, pois o coração ainda bate e o monitor está ligado mostrando os sinais vitais. (...) o coração para a sociedade é sinônimo de vida, os familiares não entendem e não aceitam que o paciente está morto. Esse aspecto dificulta a assistência, pois se você tenta esclarecer que a pessoa está morta, a família pode achar que você deseja a morte do paciente (E7).

A aceitação dessa condição torna-se mais difícil para as famílias quando a morte é ocasionada por trauma e a pessoa é jovem, fatores que interferem no cuidado oferecido às famílias dos doadores:

(...) muitas vezes os familiares não estão preparados e na grande maioria das situações são pacientes jovens, que de repente, por algum motivo qualquer sofreram um acidente fatal, então é um choque para a família e fica difícil atuar nesse momento (E17).

(...) a família fica perdida, ela ainda tem esperança até os últimos minutos, acha que a situação pode mudar, principalmente quando é criança (E19).

A falta de habilidade da equipe médica com a comunicação da morte aos familiares dificulta a compreensão e aceitação da morte do parente:

(...) então às vezes, o médico quando vai falar, têm que dar uma noção, muitas vezes as famílias não sabem o que é encéfalo.O médico tem que falar na linguagem e no nível de entendimento do familiar, utilizar uma linguagem que ele possa entender a informação (E5).

(...) são os médicos que conversam com os familiares e eles colocam para a família que não tem fluxo, que a pupila não reage, mas não é passada a informação de forma clara e simples, então a família fica questionando se existe algum processo que reverta isso, porque eles não entenderam a informação passada pelo médico (E9).

Nesse cenário, o enfermeiro sente-se despreparado para lidar com as famílias que vivenciam a situação crítica de perder um ente querido:

(...) em relação aos familiares, percebo muita indecisão quanto à doação de órgãos, por conta do sofrimento, da dor da perda, e, também devido ao despreparo do enfermeiro para lidar com essa situação de perda, dificultando a relação com os familiares (E13).

(...) tenho pouca habilidade para lidar com situações de crise e perda, a gente tenta acolher e explicar o quadro, mas é muito complexo, não é fácil lidar com sentimentos humanos frente à perda repentina de um ente querido (E14).

A dificuldade em oferecer assistência aos familiares em situação de crise ocorre devido à falta de treinamento, por meio de cursos que ofereçam ferramentas para atuar nesse cenário:

(...) falta curso, informação, não tive um treinamento para cuidar de um doador de órgãos e dos familiares vivenciando uma situação de crise e de perda, (...)acho que falta treinamento que possa melhorar a nossa assistência, o nosso cuidado (E1).

(...) é uma situação bastante complicada que a família vai enfrentar e a falta de treinamento dificulta a minha interação com essa família (E20).

Foi unânime o relato de barreiras vivenciadas pelos enfermeiros de unidades de terapia intensiva no cuidado aos familiares de doadores de órgãos para transplante e, frente a essas dificuldades, esses profissionais realizam intervenções no cuidado às famílias dos doadores objetivando superar tais obstáculos por meio da transparência e humanização da assistência.

Intervenções realizadas no cuidado às famílias dos doadores

Diante da dificuldade apresentada pelas famílias em aceitar a perda de seu ente querido, o enfermeiro tenta intervir por meio da relação de ajuda aos familiares, sendo a empatia e acomunicação eficaz ferramentas de grande importância nesse complexo contexto:

(...) a gente explica o que está acontecendo, leva a beira leito, mostra a situação, para que a família possa entender o que está acontecendo. É preciso estabelecer um elo com essa família e ajudar (E16).

(...) você tem que ter um cuidado especial com a família, nós temos queajudar independente se a família vai doar ou não. (...)de repente a família acha que o parente está vivo, então você tem que explicar, você tem que ter empatia nesse momento (E2).

(...) é um momento muito difícil para a família, porque são mortes não esperadas e é uma situação difícil, a gente tem que compreender e respeitar essa família, proporcionar um conforto da melhor forma possível, fazer uso de uma linguagem adequada para que essa família se sinta segura e tenha confiança no que foi realizado (E3).

(...) desde a comunicação quando o médico senta para esclarecer sobre o diagnóstico da morte, quando a equipe da captação de órgãos vai solicitar a doação, a presença do enfermeiro da terapia intensiva é importante, porque a gente tem mais contato todo dia com a família, a gente tem uma relação mais próxima, porque a gente está ao lado do paciente todo dia, então eu acho que a nossa presença confere credibilidade, transparência nesse momento e pode ajudar a família a aceitar a doação (E10).

Permitir que os familiares permaneçam o maior tempo possível ao lado do seu ente querido, é uma estratégia utilizada pelo enfermeiro para possibilitar a transparência, humanizar a assistência e facilitar a doação:

(...) a gente libera a família para ver o seu ente querido, quantas vezes ela achar necessário, fora do horário da visita. (...) liberar a família para entrar e ficar ao lado do seu parente o tempo que ela quiser para se despedir, isso favorece a humanização da assistência (E8).

O enfermeiro, ao intervir no cuidado às famílias dos doadores, ancorado em sua experiência acumulada ao longo de sua trajetória profissional, vislumbra possibilidades, percebidas por meio de projeções que intencionam salvar vidas. Portanto, as expectativas no cuidado aos doadores de órgãos e suas famílias foram representadas na categoria: cuidar para salvar vidas.

Cuidar para salvar vidas

As expectativas dos enfermeiros são projetadas no intuito de salvar vidas. Dessa forma, reconhecem a importância de sua atuação no cuidado aos doadores intencionando obter e viabilizar órgãos para os receptores que, para esses profissionais, não possuem nome nem rosto, porém motivam e dão significado ao trabalho.

(...) o meu papel é oferecer assistência de qualidade ao doador, pois aquele indivíduo que não participa do nosso mundo real pode dar condições de outras pessoas continuarem vivendo (E6).

(...) a minha motivação é saber que outras pessoas podem ter qualidade de vida, isso é o principal motivo para cuidar do doador (E15).

Dessa forma, o enfermeiro intensifica o cuidado ao doador e à sua família, motivado pela necessidade de viabilizar órgãos para transplante.

(...) a minha motivação é saber que esse doador vai salvar a vida de muita gente, então eu preciso intensificar a minha atenção à família e ao doador (E11).

Frente a essa possibilidade, esse profissional acredita que o seu papel é educar os familiares do doador sobre a importância da doação e com essa ação ajudar a salvar vidas.

(...) conscientizar os familiares o quanto é importante a doação de órgãos, sobre a importância da vida, da continuidade da vida, que eles vão ajudar outras pessoas que estão precisando e que podem morrer por falta de um órgão, que estão na fila esperando órgãos (E12).

(...) cuidar da família para que ela possa tomar uma decisão extremamente importante para a sociedade, porque elavai dar a oportunidade e apossibilidade de outras famílias ficarem felizes (E18).

DISCUSSÃO

A vida diária dos enfermeiros de UTI é intersubjetiva e suas ações são eminentemente sociais, pois a vida coloca esses indivíduos em relação uns com os outros, em constante comunicação em uma relação face a face. Nela, a intersubjetividade aparece em toda a sua densidade. Portanto, o mundo da vida é um mundo social e cultural dentro do qual o indivíduo se relaciona com seus semelhantes em diversos graus de intimidade(66. Schutz A. El problema de larealidad social: escritos I. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu; 2008.

7. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schutz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41.
-88. Wagner HR. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.). Dessa forma, esses profissionais interpretam o seu cotidiano de trabalho conforme a leitura que eles fazem da realidade vivenciada, e percebem que a dificuldade da família em aceitar a morte do ente querido dificulta a assistência.

Os estudos mostram que muitas famílias têm dificuldade em compreender e aceitar a morte encefálica (ME) como sendo a morte da pessoa, confundindo essa situação com outras condições cerebrais, tais como: coma e estado vegetativo persistente. O entendimento do conceito de ME tem sido destacado, nessas pesquisas, como sendo o maior obstáculo na doação de órgãos para transplante(99. Long T, Sque M, Addington-Hall J. What does a diagnosis of brain death mean to family members approached about organ donation? A review of the literature. Prog Transplant. 2008;18(2):118-26.

10. Newton JD. How does the general public view posthumous organ donation? A meta-synthesis of the qualitative literature. BMC Public Health [Internet]. 2011 [cited 2014 Oct 22];11:791. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3209456/
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...

11. Flodén A, Foreberg A. A phenomenographic study of ICU-nurses’ perceptions of and attitudes to organ donation and care of potential donors. Intensive Crit Care Nurs. 2009;25(6):306-13.
-1212. Ralph A, Chapman JR, Gillis J, Craiq JC, Butow P Howard K, et al. Family perspectives on deceased organ donation: thematic synthesis of qualitative studies. Am J Transplant. 2014;14(4):923-35.).

Além disso, quando a morte é decorrente de um evento traumático e envolve indivíduos jovens, existe grande probabilidade dos familiares recusarem a doação, principalmente quando os pais estão envolvidos diretamente na tomada de decisão(1313. Moraes BN, Bacal F, Teixeira MCTV, Fiorelli AI, Leite PL, Fiorelli LR, etal. Behavior profile of family members of donors and nondonors of organ. Transplant Proc. 2009;41(3):799-801.). Nesse contexto, é fundamental que a equipe multiprofissional tenha habilidade em lidar com famílias vivenciando a perda inesperada de um ente querido.

A comunicação ineficaz é um dos fatores que dificulta a aceitação da morte pelos familiares do doador elegível e, consequentemente, a doação de órgãos para transplante. Assim, a implantação de programas de treinamento para os profissionais de saúde, objetivando melhorar as habilidades em comunicação de más notícias, pode ser o caminho para otimizar as taxas de consentimento familiar(55. Siminoff LA, Marshall HM, Dumenci L, Bowen G, Swaminathan A, Gordon N. Communicating effectively about donation: an educational intervention to increase consent to donation. ProgTransplant. 2009;19(1):35-43.,1414. Sque M, Long T, Payne S. Organ donation: key factors influencing families’decision-making. Transplant Proc. 2012;37(2):543-6.).

O mundo social é constituído por meio da comunicação e da ação intersubjetiva dos sujeitos empenhados nesta interação significativa(66. Schutz A. El problema de larealidad social: escritos I. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu; 2008.). Assim, o mundo cotidiano dos enfermeiros que atuam na UTI é intersubjetivo, pois suas ações são eminentemente sociais. A todo momento, esses profissionais comunicam-se e relacionam-se com a equipe de saúde e familiares de doadores elegíveis, em uma relação face a face.

Portanto, o mundo da vida é o cenário das experiências, expectativas e ações sociais desses profissionais, sendo entendido como um mundo natural que impõe limites às suas atitudes, onde atuam e operam como atores em uma realidade que é modificada mediante seus atos e que, por outro lado, transforma suas ações(66. Schutz A. El problema de larealidad social: escritos I. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu; 2008.).

Quando os profissionais de saúde estabelecem um bom relacionamento com os familiares do doador elegível em morte encefálica, gera um clima positivo e pode influenciar, favoravelmente, a tomada de decisão referente à doação de órgãos para transplante(1515. López Martínez JS, Martín López MJ, Scandroglio B, Martínez García JM. Family perception of the processo f organ donation. Qualitative psychosocial analysis of the subjective interpretation of donor and nondonor families. SpanJPsychol. 2008;11(1):125-36.).

É recomendável permitir a presença dos familiares do potencial doador o maior tempo possível ao lado do seu ente querido, inclusive durante a determinação do diagnóstico de morte encefálica, conferindo transparência e credibilidade ao processo de doação perante os parentes do doador. Além desse aspecto, tanto as famílias doadoras como as não doadoras valorizaram a presença e a interação com a equipe de enfermagem, a atenção e o cuidado oferecidos pelo enfermeiro aos familiares do falecido sãoimportantes para a tomada de decisão sobre a doação de órgãos para transplantes(1616. Kompanje EJO, Groot YJ, Bakker J, IJzermans JNM. A nation multicenter trial on family presence during brain death determination: the FABRA study. Neurocrit Care. 2012;17(2):301-8.-1717. Jacoby LH, Jaccard J. Perceived support among families deciding about organ donation for their loved ones: donor vsnondonor next of kin. Am J Crit Care. 2010;19(5):52-61.).

Ao refletir sobre seu papel no cuidado às famílias e aos doadores elegíveis, o enfermeiro encontra em suas experiências e expectativas a motivação para salvar vidas. A doação de órgãos e tecidos para transplante está fundamentada na lei da reciprocidade. Ajudar alguém pressupõe fazer uma reflexão sobre a finitude humana. Esta reflexão e decisão envolvem questões de ordem afetiva, ética, moral e individual. Ao se questionar sobre a possibilidade da doação, esse profissional percebe que a vida é uma equação de reciprocidade, pois estará na mesma condição das famílias dos doadores falecidos, receptores e equipes de saúde, quando se torna consciente da própria vulnerabilidade, dependência, responsabilidade, finitude e humanidade.

A ação é a conduta humana projetada pelo ator de modo autoconsciente. Os homens agem em função de motivações dirigidas a objetivos, que apontam para o futuro, estes são denominados de motivos para. Por outro lado, os homens têm razões para suas ações e preocupam-se com elas. Essas razões enraizadas em experiências passadas e na personalidade que um homem desenvolveu ao longo de sua vida, são denominadas de motivos porque(88. Wagner HR. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.).

Por motivo, entende-se um estado de coisas, o objetivo que se pretende alcançar com a ação. Assim, motivos para, são as orientações para a ação futura e motivos porque, estão relacionados às vivências passadas. A compreensão do outro passa impreterivelmente pelos conhecimentos dos motivos que determinam a realização de seus atos(88. Wagner HR. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.). Os enfermeiros de unidades de terapia intensiva constituem-se em um grupo social com projetos e motivos para atuar no cuidado ao doador de órgãos e seus familiares, objetivando otimizar os transplantes.

Diante da perspectiva de salvar vidas, o enfermeiro age em função de motivações dirigidas a objetivos, que apontam para o futuro. Esses objetivos são denominados motivos para, podendo ter um sentido subjetivo e outro objetivo. Subjetivamente, refere-se à experiência do ator que vive o processo em curso de sua atividade. Para ele, o motivo significa o que realmente tem em vista e que dá sentido à ação que cumpre, intencionando criar um estado de coisas para alcançar um fim preconcebido(66. Schutz A. El problema de larealidad social: escritos I. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu; 2008.

7. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schutz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41.
-88. Wagner HR. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.).

A qualidade do cuidado oferecido à família e ao doador elegível em morte encefálica tem sido valorizada pelos familiares do falecido, influenciando positivamente a tomada de decisão referente à doação de órgãos para transplante(1818. Simpkin AL, Robertson LC, Barber VS, Young JD. Modifiable factors influencing relatives` decision to offer organ donation: systematic review. BMJ [Internet]. 2009 [cited 2014 Oct 22];338:b991. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2671586/
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
).

Os benefícios dos transplantes de órgãos incluem salvar ou melhorar a qualidade de vida dos receptores em lista de espera e para os familiares do doador elegível a doação de órgãos pode resultar em algo positivo diante da perda do seu ente querido. Portanto, a equipe multiprofissional tem um papel essencial no processo de doação e transplante, proporcionando benefícios aos receptores, familiares do doador e à sociedade em geral(1919. O’Connor KJ, Wood KE, Lord K. Intensive management of organ donors to maximize transplantation. Crit Care Nurse. 2006;26(2):94-100.).

CONCLUSÃO

O cotidiano dos enfermeiros que atuam no cenário da terapia intensiva é permeado por obstáculos, valores e significados no cuidado oferecido às famíliase aosdoadoresde órgãos para transplantes. Esses aspectos são percebidos por meio das experiências acumuladas ao longo da trajetória desses profissionais, possibilitando que esses enfermeiros projetem suas expectativas, no tocante à viabilização de órgãos para transplantes, motivados pela perspectiva de salvar vidas.

Ao refletirem sobre as experiências no cuidado às famílias dos doadores de órgãos, esses enfermeiros percebem que os obstáculos, representados pela falta de habilidade da equipe médica na comunicação de más notícias, pelo despreparo dos enfermeiros para lidar com familiares vivenciando a perda repentina de um ente querido, pela dificuldade que as famílias têm em aceitar e compreender o significado da morte encefálica, principalmente quando o evento envolve causas traumáticas e o doador é jovem, interferem na assistência prestada a essas famílias.

Diante desse cenário, esses profissionais realizam intervenções para superar os obstáculos por meio da relação de ajuda aos familiares, humanização e transparência do processo de doação e revelam projetos futuros, que têm como meta intensificar o cuidado e educar as famílias sobre a importância da doação e com essas ações ajudar a salvar vidas.

Os resultados deste estudo poderão contribuir para a compreensão das necessidades de cuidados oferecidos ao doador e à sua família, e subsidiar novas estratégias de assistência, ensino e pesquisa nessa especialidade da área da saúde com o objetivo de superar os obstáculos e otimizar a viabilização de órgãos para transplantes.

Pode-se considerar como aspecto limitante deste estudo, o fato de envolver apenas um contexto social, não permitindo generalizar seus resultados. Todavia, sua importância reside na experiência dos enfermeiros que vivenciam em seu cotidiano de trabalho o cuidado ao doador de órgãos para transplante e à sua família.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2014
  • Aceito
    13 Maio 2015
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