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A dinâmica familiar diante da doença de Alzheimer em um de seus membros * * Extraído do relatório submetido ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) " A dinâmica familiar frente à doença de Alzheimer em um de seus membros", Universidade Federal de São Paulo, 2014.

Resumo

OBJETIVO

Compreender a dinâmica familiar quando há um membro com Alzheimer em domicílio.

MÉTODO

Estudo com abordagem qualitativa, Método Criativo-Sensível (MCS), do qual participaram duas famílias que possuíam em domicílio um membro com Alzheimer.

RESULTADOS

Tiveram origem três categorias: Repercussões da doença de Alzheimer e a dinâmica familiar; Processo de desenvolvimento da doença de Alzheimer e Estratégias de enfrentamento diante da doença.

CONCLUSÃO

Foi possível conhecer as manifestações e repercussões da doença de Alzheimer na família, como ajuda mútua, mobilização de recursos para ativar as lembranças do passado, espiritualidade e fé. Houve também entendimento da estrutura da dinâmica familiar.

Descritores
Doença de Alzheimer; Demência; Família; Enfermagem Familiar; Enfermagem Geriátrica

Abstract

OBJECTIVE

To understand the family dynamics when there is a member in the residence with Alzheimer's disease.

METHOD

A study of qualitative approach, using the creative sensitive method (CSM), and with participation of two families who had a member with Alzheimer's disease at home.

RESULTS

Three categories emerged: Effects of Alzheimer's disease and the family dynamics; Development process of Alzheimer's disease and Coping strategies in face of the disease.

CONCLUSION

It was possible to know the manifestations and consequences of Alzheimer's disease in the family, such as mutual help, the mobilization of resources to activate memories of the past, spirituality and faith. There was also understanding of the structure of family dynamics.

Descriptors
Alzheimer Disease; Dementia; Family; Family Nursing; Geriatric Nursing

Resumen

OBJETIVO

Comprender la dinámica familiar cuando hay un miembro con Alzheimer en domicilio.

MÉTODO

Estudio con abordaje cualitativo, Método Creativo Sensible (MSC), del que participaron dos familias que tenían en domicilio un miembro con Alzheimer.

RESULTADOS

Tuvieron origen tres categorías: Repercusiones de la enfermedad de Alzheimer y la dinámica familiar; Proceso de desarrollo de la enfermedad de Alzheimer; y Estrategias de enfrentamiento a la enfermedad.

CONCLUSIÓN

Fue posible conocer las manifestaciones y repercusiones de la enfermedad de Alzheimer en la familia, como ayuda mutua, movilización de recursos para poner en marcha los recuerdos del pasado, espiritualidad y fe. Hubo también entendimiento de la estructura de la dinámica familiar.

Descriptores
Enfermedad de Alzheimer; Demencia; Familia; Enfermería de la Familia; Enfermería Geriátrica

Introdução

O envelhecimento populacional é um processo global relacionado a alguns fatores, como o aumento da expectativa de vida, avanços na medicina e melhoria na qualidade de vida, implicando crescimento progressivo de casos de doenças crônico-degenerativas, dentre elas a demência. A doença de Alzheimer (DA) é a causa mais frequente de demência em todo o mundo, impactando diretamente na vida de familiares, principalmente pelo aumento da carga de cuidados (11 Abdollahpour I, Noroozian M, Nedjat S, Majdzadeh R. Caregiver burden and its determinants among the family members of patients with dementia in Iran. Int J Prev Med. 2012;3(8):544-51.).

A expectativa em relação ao crescimento populacional de idosos no mundo está relacionada ao crescimento de demências, conforme estimativa de estudo em Portugal concluindo que no grupo de pessoas acima de 80 anos, 64% das pessoas desenvolvem demências, alertando para a importância do reconhecimento da doença e definição de estratégias de apoio e tratamento (22 Santana I, Farinha F, Freitas S, Rodrigues V, Carvalho A. The epidemiology of dementia and Alzheimer disease in Portugal estimations of prevalence and treatment-costs. Acta Med Port. 2015;28(2):182-8.).

A DA é uma doença neurológica, que se caracteriza por quadro demencial progressivo com comprometimento inicial da memória para fatos recentes. Em seguida, há deterioração das funções cognitivas, como apraxias construtivas, agnosias e distúrbios afásicos. O quadro é de evolução lenta, variável e irreversível, caminhando para estado vegetativo num período de 10 a 15 anos a partir do início dos sintomas (33 Wajman JR, Schultz RR, Marin SMC, Bertolucci PHF. Correlation and adaptation among functional and cognitive instruments for staging and monitoring Alzheimer's disease in advanced stages. Rev Psiquiatr Clín. 2014;41(1):5-8.).

Sua sintomatologia pode ser descrita em três estágios, que correspondem às fases inicial, intermediária e terminal. A fase inicial dura, em média, de 2 a 4 anos e é caracterizada pela dificuldade de linguagem, perda significativa de memória recente, desorientação em tempo e espaço, sinais de depressão, agressividade e perda de interesse em atividades. A fase intermediária varia de 2 a 10 anos, apresentando crescente perda de memória e início das alterações na linguagem, raciocínio e dificuldades motoras. A fase terminal é caracterizada por restrição ao leito, mutismo, retenção intestinal ou urinária, e adoção da posição fetal, devido às contraturas. Esses sintomas progressivos, cognitivos e comportamentais influenciam na dificuldade de realização das Atividades da Vida Diária, tornando os doentes cada vez mais dependentes de seus familiares (33 Wajman JR, Schultz RR, Marin SMC, Bertolucci PHF. Correlation and adaptation among functional and cognitive instruments for staging and monitoring Alzheimer's disease in advanced stages. Rev Psiquiatr Clín. 2014;41(1):5-8.).

Em relação aos cuidados com a pessoa com DA, a tendência atual é de indicar a permanência desses idosos em suas casas, sob os cuidados de suas famílias, visando também ao conforto e à dignidade. Essa situação implica que alguns familiares responsabilizem-se pelo cuidado desse idoso, sem ter recebido nenhum preparo ou treinamento específico, com subsequente ônus físico, psicológico, social e financeiro.

As relações afetivas dos familiares estão em constante modificação, decorrente de fatores inesperados, como o aparecimento de uma doença crônico-degenerativa, como a DA. A maneira da família avaliar e manejar o cuidado depende da disponibilidade de redes de apoio, de estratégias de enfrentamento e características de cada indivíduo e da família, além do significado de cuidar para os envolvidos no processo. O engajamento da família no cuidado está diretamente relacionado à percepção da família sobre os benefícios ou não que as intervenções promovem tanto para a pessoa com DA como para os familiares. Neste sentido, é importante explorar aspectos emocionais e relacionais, os fatores de personalidade e o relacionamento anterior à doença entre os membros (44 Kaitlyn PR, Neena LC. Meaningful activity for persons with dementia: family caregiver perspectives. AM J Alzheimer Dis Other Demen. 2015;30:559-68.-55 Schiffczyk C, Romero B, Jonas C, Lahmeyer C, Müller F, Riepe MW. Appraising the need for care in Alzheimer's disease. BMC Psychiatry. 2013;13:73.).

Dessa maneira, aumenta cada vez mais a necessidade de compreender como é, para a família, viver com um membro que está fisicamente presente, mas psicologicamente ausente, além de saber sobre as mudanças que ocorrem na rotina da família, as quais envolvem os aspectos psicológicos e sociais dos envolvidos. Assim, os profissionais de enfermagem devem atuar junto às famílias, exercendo seu papel de diagnosticar e planejar as necessidades do cliente/família, que são de extrema importância no cuidado e apoio ao paciente, considerando que a dinâmica familiar possa ter alterações.

Mediante ao exposto, este estudo teve por objetivo compreender a dinâmica familiar quando há um portador de Alzheimer em domicílio, a fim de contribuir com as famílias e a equipe de enfermagem na elaboração de estratégias de enfrentamento da doença.

Método

Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, desenvolvido por meio do Método Criativo-Sensível (MCS) adaptado, considerando as experiências específicas das famílias e dificuldades encontradas em reunir o maior número de familiares no momento da coleta de dados. O MCS tem como princípio básico a combinação das discussões de grupo com as produções artísticas, proporcionando um espaço favorável para (re)construir estratégias para o fortalecimento do cuidado à saúde dessas pessoas e criando uma relação dialógico-dialética entre os participantes, fundamentada no referencial de Paulo Freire, caracterizando-se pela valorização da singularidade de cada participante do grupo (66 Soratto J, Pires DEP, Cabral IE, Lazzari DD, Witt RR, Souza SCA. A maneira criativa e sensível de pesquisar. Rev Bras Enferm. 2014;67(6):994-9.).

Os participantes do estudo foram selecionados aleatoriamente, sendo convidadas as famílias que possuíam em domicílio um portador da DA. O contato foi feito a partir da lista de pacientes cadastrados no serviço do grupo de atendimento do Centro de Assistência e Educação em Enfermagem (CAENF), não participando da investigação as pessoas com DA.

Este estudo foi apreciado e aprovado pelo CEP/UNIFESP sob o n° 203.104, respeitando os preceitos éticos e legais a serem seguidos nas investigações envolvendo seres humanos, conforme preconiza a resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Duas famílias participaram deste estudo. A coleta de dados ocorreu durante o ano de 2014, em domicílios, e foi realizada em três momentos. No primeiro momento, foi elaborado o genograma com os membros da família presente, desenvolvido com a finalidade principal de levantar um mapeamento das relações existentes(77 Wright LM, Leahey M. Enfermeira e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 4ª ed. São Paulo: Roca; 2009.). Em seguida, foi realizada a entrevista semiestrutura, gravada, com a seguinte questão norteadora: Como é para vocês viverem em família tendo um membro com a doença de Alzheimer ?

No segundo momento, foi adaptado o MCS para realização de uma produção artística construtiva, que consistiu em colagem de palavras e figuras, indicando, na linha de tempo da família, o processo da DA. Essa atividade foi seguida de um momento de reflexão sobre as mudanças na dinâmica familiar e nos sentimentos e dificuldades dos envolvidos, além de explorar as estratégias de enfrentamento, que consistiu no terceiro passo da pesquisa.

Para a análise, as entrevistas foram transcritas na íntegra, delineadas, analisadas e discutidas. A partir da saturação dos dados, as categorias emergiram sem a necessidade de retorno aos participantes, porém com o compromisso de apresentar os resultados às famílias. Com a finalidade de preservar a identidade das famílias, optou-se por identificá-las a partir da relação com o paciente com DA.

Resultados

A análise das entrevistas transcritas deu origem a três categorias:Repercussões da doença de Alzheimer e a dinâmica familiar ;Processo de desenvolvimento da doença de Alzheimer e Estratégias de enfrentamento diante da doença .

Repercussões da doença de Alzheimer e a dinâmica familiar

Os familiares descreveram que, pela necessidade do cuidado, podiam refletir sobre a educação, a paciência e o amor que receberam durante seu crescimento do familiar doente. A única maneira que eles viam como forma de retribuição era realizando o cuidado com o mesmo amor ao familiar com Alzheimer. Como consequência, havia o sentimento de troca de papéis, no qual a filha assumia o papel de cuidadora.

Parece que eu tô cuidando de uma criança, parece que ela se descaracterizou, minha mãe se infantilizou. E a gente dá dura como se fosse criança, a mesma coisa de falar com seu filho. Eu digo a ela: Mãe, tá cheirando suor, fez 40º hoje, precisa ir tomar banho, tá calor (Mandacaru, Família 2).

Nos relatos, o familiar que se apresentou como cuidador principal, independentemente se por imposição, referiu se sentir sobrecarregado, devido à complexidade do cuidado e à grande carga emocional envolvida para cuidar de uma pessoa, pela qual se possuía afeição.

Eu falo: pai, ela está doente, o senhor sabe que ela não é assim, nunca se comportou dessa forma, ela está doente, por isso que ela esquece, deixa de fazer as coisas, tem que ter paciência". Aí ele fala: "ah, filha, mas essa cruz está pesada demais para mim. (...) Às vezes eu também acho que está pesado. Mas eu estou tão acostumada, a gente tem que acostumar, não tem outro jeito (Sansão do Campo, Família 2).

O familiar estava exposto ao risco de o doente de Alzheimer apresentar queda, infecção ou úlcera por pressão, não necessariamente devido à omissão ou à negligência do cuidado, mas em virtude das próprias condições clínicas do doente. Porém, isso não ausentava o sentimento de culpa por parte do familiar, pois, segundo os relatos, os familiares carregavam consigo o remorso e o sentimento de impotência diante da doença e de suas inferências. Eles se sentiam responsáveis por não terem conseguido fazer com que o sofrimento do doente diminuísse, agravando tal sentimento quando acreditavam terem aumentado sua dor.

No dia que minha mãe teve convulsão na UTI, eu quase deixei o médico mais preocupado ainda. Eu fiz um escândalo... Eu achava que aquela situação era minha culpa. Eu achava que não tinha cuidado direito, que não a tinha protegido o suficiente (Avenca, Família 1).

Ela (Rosa - irmã) foi trocar a fralda da minha mãe, mas não percebeu e acabou trançando a perna dela, e como é mais sensível, acabou quebrando o fêmur. Não parava de chorar, e ficava falando que nossa mãe não podia passar por mais uma coisa, porque ela já está com a doença, já está com a demência (Girassol, Família 1).

Com a progressão da doença, as famílias cogitavam a contratação de um cuidador para ajudá-las ou para assumir a rotina dos cuidados, ou até mesmo levar seus familiares a uma casa de apoio, devido à dificuldade de vincular a demanda de cuidados do familiar doente com o trabalho. Essa opção, porém, nem sempre era bem-vista pelos próprios familiares, pois consideravam esse ato um abandono.

A gente já pensou em contratar um cuidador, mas ela (Palmeira Imperial) não aceitou. O nosso problema maior são os remédios, porque não é apenas dar os remédios nos horários corretos, tem que de fazê-la tomar, convencer, ficar do lado, fiscalizar... E meu pai não tem paciência para isso (Mandacaru, Família 2).

Ela sempre cuidou da gente sem babá, sem creche, porque a gente não pode cuidar dela? Ela era uma só e nós somos em cinco! (Girassol, Família 1).

Processo de desenvolvimento da doença de Alzheimer

Com o diagnóstico de DA, surgiram, nas famílias, diversos sentimentos e pensamentos. Eles tiveram de enfrentar a tristeza do diagnóstico e se conformarem com a gravidade da doença. Com evolução de um mal prognóstico, o familiar com DA se tornou cada vez mais dependente.

São notáveis a ambivalência aceitação versus negação da doença, os questionamentos e a visão de que a doença é um castigo, evidenciados nos relatos. Quando o familiar presenciou e vivenciou o assentimento da doença, foi possível buscar o entendimento da doença e a adaptabilidade de seus cuidados.

Vivemos os primeiros meses da doença com dificuldade, que é a descoberta, depois vai tendo aceitação... Só que uns aceitam a doença mais rápido e outros demoram um pouco mais, por isso que a gente brigava mais nessa época (Girassol, Família 1).

Acho que ele (pai) não entende o que é realmente a doença de Alzheimer, acho que esse é o grande problema. É igual, fazendo uma analogia com a depressão... Quem não conhece, não convive, não sabe, acha que depressão é frescura. E é como ele enxerga isso (Sansão do Campo, Família 2).

A fase mais difícil vivenciada durante o processo da DA declarada pela família foi referente ao familiar estar acamado, evidenciando a gravidade da doença, e não conseguindo mais ter a participação do familiar doente, nem fisicamente, nos momentos em família.

O mais difícil pra mim é agora, que ela está de cama... Porque quando ela estava de cadeira de rodas, na sala, assistindo TV com a gente, estava um pouco melhor, mas depois que ela teve essa úlcera e só pode ficar deitada é pior. A gente não vê a hora de ela ficar sentadinha na sala assistindo TV com a gente, aí é mais reconfortante (Girassol, Família 1).

Com a evolução da doença, aparecem os medos com relação ao futuro e a angústia de ser esquecido.

Meu maior receio é a hora dela me olhar e não me reconhecer (Mandacaru, Família 2).

A DA na fase grave fez com que o doente perdesse a capacidade de falar, reconhecer seus entes queridos e expressar seus sentimentos. Os familiares se sentiam felizes e recompensados por todo o esforço quando este conseguia demonstrar seu sentimento, seja por meio de gestos ou palavras, e recordavam o passado como uma lembrança boa e com saudade do tempo em que a pessoa apresentava-se participante.

É raro, mas quando ela dá é a coisa mais linda, é um sorriso (Avenca, Família 1).

Eu chegava em casa e ela me contava sobre todas as novelas, nem sei como ela conseguia assistir todas... e eu nunca assisti, eu não entendia nada do que ela estava falando, mas eu a ouvia falar. Agora ela não interage mais, com nada, nem ninguém (Sansão do Campo, Família 2).

Em decorrência da DA, a família passou a conviver em constante interação com a equipe de saúde. Nos relatos, os familiares ressaltaram a importância da orientação da enfermeira sobre o cuidado com o membro com Alzheimer. Em contrapartida, declararam a falta de confiança em relação à equipe de saúde hospitalar, devido ao aparecimento de úlcera por pressão em seu familiar doente.

A palestra foi muito boa para nós, a enfermeira foi ótima (...) porque a gente aprendeu, falou que não podemos questionar, nem brigar (Girassol, Família 1).

Foi descuido do hospital ao surgir essa escara... Porque aconteceu lá, enquanto que eu cuidei por 10 anos da minha mãe e nunca apareceu nada disso (Rosa, Família 1).

Estratégias de enfrentamento diante da doença

O sistema familiar foi afetado durante todo o processo da DA, podendo ocorrer uma desorganização. As mudanças afetaram em diferente grau de intensidade os integrantes da família. Para encarar tal condição, os familiares relataram a importância da união familiar e a esperança.

Temos que ter esperança. De um dia encontrar a cura, nem que não dê tempo de ser para minha mãe, mas que ajude outras pessoas e elas não tenham que passar por isso (Avenca, Família 1).

A crença em Deus no processo da DA foi identificada nas falas das famílias participantes. Em relatos sobre os momentos de crise, como o descobrimento da doença, diziam buscar conforto e ajuda em Deus. O pensamento sobre o momento da morte do familiar também é depositado em Deus. Para os participantes do estudo, a crença estava presente, e Deus era visto como alguém próximo, em quem a família podia se apoiar no enfrentamento dos momentos difíceis da DA.

A gente se apegou em Deus, porque só Deus pra ajudar a gente, pra dar força para nós lidarmos com isso (Avenca, Família 1).

Peço para Deus dar uma morte serena, que ela não sofra, que ela simplesmente durma um dia e não acorde mais... Não quero que vá para o hospital, ela já sofreu muito (Rosa, Família 1).

Discussão

Os resultados deste estudo evidenciaram que a vivência da família com um de seus membros, acometido pela DA requer uma reorganização na estrutura e na dinâmica familiares, envolvendo sentimentos e emoções. As interações entre os membros, o comportamento e a postura diante dos acontecimentos relacionados à DA são influenciados pelos valores transgeracionais resgatados dos componentes. Tais processos são transmitidos pela família e se mantêm presentes ao longo da história familiar e das gerações, fazendo com que seus membros deem importância distinta a valores, crenças, mitos e segredos.

O diagnóstico da DA é uma ameaça à estabilidade e à homeostasia da família, pois traz consigo perdas sucessivas de independência, gerando medos e, consequentemente, sensações comuns ao processo de luto, como sentimentos de ansiedade, tristeza e irritação (88 Borghi AC, Castro VC, Marcon SS, Carreira L. Sobrecarga de familiares cuidadores de idosos com doença de Alzheimer: um estudo comparativo. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(4):876-83.). Os familiares referiram tristeza pelo diagnóstico, e medo devido à incerteza do futuro e à falta de conhecimento, além da dificuldade de aceitação da doença.

O familiar da pessoa com Alzheimer passa por várias fases, do diagnóstico até a fase avançada da doença, além de estarem presentes sentimentos de negação e aceitação frente ao envolvimento excessivo (33 Wajman JR, Schultz RR, Marin SMC, Bertolucci PHF. Correlation and adaptation among functional and cognitive instruments for staging and monitoring Alzheimer's disease in advanced stages. Rev Psiquiatr Clín. 2014;41(1):5-8.,88 Borghi AC, Castro VC, Marcon SS, Carreira L. Sobrecarga de familiares cuidadores de idosos com doença de Alzheimer: um estudo comparativo. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(4):876-83.). Normalmente, a família tem dificuldade para dimensionar as modificações que ocorrerão em seu cotidiano, principalmente quando não tem muito conhecimento sobre a doença, os cuidados a serem realizados e os manejos de cuidado. É necessário amparar adequadamente o familiar doente diante do sofrimento, do medo e da ansiedade que se estabelecem. Esses fatores diminuem conforme a família adquire conhecimento sobre a doença e sua evolução. A busca por informações sobre o diagnóstico médico e suas explicações não são suficientes para suprimir os sentimentos vivenciados na DA. Nesse aspecto, a atuação de equipe multidisciplinar pode contribuir com as famílias no entendimento do processo.

Os familiares relataram raiva e indignação, além da visão da doença como um castigo ou provação. Esses sentimentos se originaram em resposta à interrupção prematura e abrupta de atividades existenciais, de construções que ficarão inacabadas. Com o tempo, a conscientização da doença e a aceitação surgem, e as famílias alcançam a recuperação do equilíbrio para manejar a ansiedade e a angústia (99 Oliveira APP, Caldana RHL. As repercussões do cuidado na vida do cuidador familiar do idoso com demência de Alzheimer. Saude Soc. 201;21(3):675-85.).

O familiar cuidador, papel aqui assumido pelas filhas que retribuíram o cuidado recebido, possui sobrecarga emocional e financeira. A maioria dos cuidadores não possui vínculo empregatício porque o cuidado do doente ocupa totalmente sua agenda diária. Além disso, pode faltar interesse dos demais membros da família pelo cuidado, agravando a sobrecarga física e psicológica do cuidador principal. Essa situação pode acarretar quadros de depressão, angústia, medo, frustração, tensão e, consequentemente, o uso de diversos medicamentos, principalmente os psicotrópicos (1010 Palmer JL. Preserving personhood of individuals with advanced dementia: lessons from family caregivers. Geriatr Nurs. 2013;34(3):224-9.).

A sobrecarga e a dificuldade de aceitação da doença podem assumir características do processo de luto antecipatório vivenciado pela família, iniciando na etapa diagnóstica da DA, e pelas perdas relacionadas aos aspectos concretos, tais como da saúde, da memória, e o afastamento do cotidiano habitual, juntamente de aspectos subjetivos, como a perda da autonomia, a ansiedade, a angústia(1111 Cardoso EAO, Santos MA. Luto antecipatório em pacientes com indicação para o transplante de células-tronco hematopoéticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(9):2567-75.).

Os processos de construção, (des)construção e (re)construção são vivenciados diariamente pelas famílias, fazendo com que elas se reconheçam, readaptem e ajustem a uma nova realidade. Um exemplo disso é a inversão de papéis na relação pai/filho, que foi descrita pelos familiares como algo que traz muito sofrimento e dificuldade de aceitação e convivência. A inversão de papéis no quadro demencial requer dos filhos ou pessoas mais jovens, enquanto cuidadores, revisão e vigilância emocional e psicológica, pois altera a estrutura elaborada pelo desenvolvimento das relações estabelecida ao longo da vida (44 Kaitlyn PR, Neena LC. Meaningful activity for persons with dementia: family caregiver perspectives. AM J Alzheimer Dis Other Demen. 2015;30:559-68.).

Estudo concluiu que, com a evolução da doença, os cuidadores principais assumem maior responsabilidade, passando a dedicar-se quase que integralmente à pessoa com DA (88 Borghi AC, Castro VC, Marcon SS, Carreira L. Sobrecarga de familiares cuidadores de idosos com doença de Alzheimer: um estudo comparativo. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(4):876-83.). Observa-se que para os participantes deste estudo, aqueles que antes eram vistos como pilares da família, torna-se cada vez mais dependentes dos familiares para realizar as atividades do dia a dia (55 Schiffczyk C, Romero B, Jonas C, Lahmeyer C, Müller F, Riepe MW. Appraising the need for care in Alzheimer's disease. BMC Psychiatry. 2013;13:73.). Neste sentido, o cuidador principal sente-se mais sobrecarregado que os cuidadores secundários (88 Borghi AC, Castro VC, Marcon SS, Carreira L. Sobrecarga de familiares cuidadores de idosos com doença de Alzheimer: um estudo comparativo. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(4):876-83.). Neste cenário, a enfermagem, além da missão de assistir e tratar o paciente, necessita incluir a família nos cuidados integrais, promovendo espaços de diálogo e estratégias de cuidados à medida que a DA progride, para que a família se sinta mais confortada, orientada e ouvida em relação a suas preocupações e medos.

É necessário despertar a atenção dos profissionais da saúde para que ampliem seu olhar para o contexto das pessoas envolvidas no processo da DA. Para tanto, espera-se que sejam elaboradas ações de educação em saúde, além do cuidado integrado do doente, realizando grupos de autoajuda e/ou ajuda mútua, visitas em domicílio, consultas de enfermagem e, a partir disso, sejam desenvolvidas ações e intervenções (99 Oliveira APP, Caldana RHL. As repercussões do cuidado na vida do cuidador familiar do idoso com demência de Alzheimer. Saude Soc. 201;21(3):675-85.). Uma das maneiras de aproximar essas famílias da equipe de saúde é por meio de proposta de estratégia definida para oferecer o cuidado mais resolutivo e humanizado.

Alguns participantes relataram o surgimento da úlcera por pressão durante a internação hospitalar, que foi atribuída à falta de intervenção e à negligência por parte dos profissionais. Esse agravamento foi relatado por familiares como um processo marcado pela dor, pelo mal-estar e pelo sofrimento, surgindo um sentimento de culpa por parte do familiar, que carrega consigo o remorso e o sentimento de impotência, por não ser capaz de impedir o episódio ou fazer com que o sofrimento do doente diminua (1010 Palmer JL. Preserving personhood of individuals with advanced dementia: lessons from family caregivers. Geriatr Nurs. 2013;34(3):224-9.).

A percepção de que o familiar com DA está fisicamente presente, mas psicologicamente ou emocionalmente ausente, leva a pessoa a não apresentar as características que a fizeram reconhecer-se como alguém que sempre foi - o mesmo ocorrendo com seu papel e função na família (99 Oliveira APP, Caldana RHL. As repercussões do cuidado na vida do cuidador familiar do idoso com demência de Alzheimer. Saude Soc. 201;21(3):675-85.). A ambiguidade vivida pelos familiares é permeada de sentimentos conflituosos e pode ser observada nas falas das famílias, pois ao mesmo tempo que temem pensar e/ou falar sobre a morte do familiar, desejam que essa situação tenha um fim.

A resposta psicológica mais comum diante da morte é o medo, sentimento universal e que atinge a todos, independentemente de idade, nível socioeconômico, sexo e religião, fazendo-se presente com diversas facetas. A pessoa, ao pensar sobre a morte do outro, pode relacioná-la à dificuldade de ver o sofrimento e a desintegração do outro, os sentimentos de impotência, o medo do que vem após a morte, do julgamento, do castigo divino, da rejeição e da perda da relação. Há ainda o medo da extinção e da ameaça do desconhecido (1212 Menezes TMD, Lopes RLM. Significados do vivido pela pessoa idosa longeva no processo de morte/morrer e luto. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(8):3309-16.). Dentre as estratégias utilizadas pelas famílias para diminuir o sofrimento, está a de ajudarem-se uns aos outros nas tarefas básicas da vida diária do doente, para a promoção e a manutenção dos cuidados, na fase inicial. Há ainda a mobilização de recursos para recordação do passado, despertando suas lembranças e suas memórias, dando-lhes força para conviver com a doença.

A espiritualidade e a fé foram facilitadoras no processo do desenvolvimento da doença, associando-se à esperança e à crença de uma existência superior/divina, que dá força e realimenta diariamente o desejo da melhora e da cura. Entende-se que a religiosidade, enquanto prática de cuidado à saúde, em algumas famílias, faz parte da formação cultural e possui significado importante no processo de cuidar - em especial no caso das condições de doença crônica (1313 Koenig HG. Religion, spirituality, and health: the research and clinical implications. ISRN Psychiatry. 2012;2012:278730.). A religiosidade e a espiritualidade atuam como mediadoras na percepção de ônus ou benefícios decorrentes da tarefa do cuidar, amenizando o impacto negativo da DA. Os ensinamentos espirituais apreendidos proporcionam fé para que os momentos futuros sejam, então, vivenciados com mais tranquilidade e serenidade, possibilitando melhor aceitação da realidade e oferecendo respostas àquilo que o homem não consegue explicar. É por isso que, comumente, muitos indivíduos buscam apoio na religião e no sagrado, que passam a ocupar um espaço importante em suas vidas, ajudando-os a encontrar respostas para os enfrentamentos necessários(1313 Koenig HG. Religion, spirituality, and health: the research and clinical implications. ISRN Psychiatry. 2012;2012:278730.).

Conclusão

Consideramos que os objetivos desta pesquisa foram alcançados, pois foi possível conhecer as manifestações e repercussões da doença de Alzheimer na família, além de identificar as estratégias de enfrentamento e entender como a dinâmica familiar é estruturada, demonstrada em sentimentos e maneiras diferentes de identificar as mudanças que a doença traz para a família.

Entre as limitações do presente estudo, destaca-se a dificuldade em incluir maior número de integrantes da família nas entrevistas e em aplicar o Método Criativo-Sensível. Esses instrumentos foram selecionados por facilitarem as narrativas dos participantes em relação à doença de Alzheimer, posto que as informações obtidas, poderiam se aplicar a outros contextos familiares. Assim, este estudo refletiu a necessidade de incluir os cuidadores e a família como pessoas que também necessitam de cuidado.

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  • *
    Extraído do relatório submetido ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) " A dinâmica familiar frente à doença de Alzheimer em um de seus membros", Universidade Federal de São Paulo, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2015
  • Aceito
    29 Ago 2015
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