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Universal e transcultural: desafios para a terminologia de Enfermagem

A construção de uma terminologia de enfermagem exige comprometimento entre pares e trabalho coletivo. Propor que ela seja universal é um desafio justificado pela diversidade dos cenários das práticas e contextos culturais, seja no âmbito nacional, num país heterogêneo como o Brasil, ou no âmbito internacional. Uma terminologia universal é formada em culturas distintas e deve estender-se a todos os contextos. De fato, essa foi uma ousadia do International Council of Nurses, entidade responsável pela Classificação Internacional para as Práticas de Enfermagem (CIPE®).

O desejado consenso para denominações de termos e seus significados é determinado pelas especialidades profissionais dos enfermeiros desenvolvedores, os quais, em primeira instância, são influenciados pela cultura, organização da sociedade e pelo modelo hegemônico de atenção à saúde.

A utilização de uma terminologia adequada a uma linguagem universal deve considerar a cultura, a organização social, a prática clínica e as particularidades profissionais no uso de termos técnicos(1Clares JWB, Freitas MC, Guedes MVC, Nóbrega MML. Construction of terminology subsets: contributions to clinical nursing practice. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(4):962-6.).

Como é o caso de outras terminologias, a língua-fonte do conjunto de termos e significados incluídos na CIPE® é a inglesa. A língua é um sistema de representação de palavras e regras, entendido por uma determinada comunidade linguística em seu processo de comunicação. Quando a classificação é utilizada em países que não compartilham a língua-fonte, faz-se necessária a tradução e adaptação transcultural. Essa tarefa não é fácil e sua operacionalização, por vezes, é pouco compartilhada.

Ora, inúmeros são os termos empregados pela enfermagem que são comuns a todos os contextos e domínios profissionais. Os termos comuns não geram dúvidas quando submetidos a processos de tradução. Ao incluir numa terminologia da área da saúde uma palavra relacionada a um local do corpo, como o braço, o mesmo será denominado, representado e compreendido como parte do membro superior humano em todas as culturas e contextos das práticas, tornando desnecessária a adaptação transcultural, bem como o detalhamento de sua definição na terminologia, bastando dizer que o braço é uma região corporal.

Entretanto, para outro conjunto de termos esta lógica não se aplica. Em países que compartilham de um mesmo idioma, a exemplo do Brasil e Portugal, uma única tradução do inglês para o português pode não abrigar diferenças de sentido, originárias das transformações históricas da linguagem e da cultura. Existe a necessidade, portanto, de adaptação transcultural, pois a historicidade e as raízes culturais particulares resultam em diferentes formas de compreender e aceitar proposições de termos, que não são traduzidos e entendidos da mesma maneira.

Fenômenos que são fortemente influenciados pela cultura e organização de grupos sociais são imersos em complexidade. Estudos, que se dedicaram à avaliação da aplicabilidade do subconjunto terminológico da CIPE® para promoção de uma morte digna, apontam para este fato(2Doorenbos AZ, Juntasopeepun P, Eaton LH, Rue T, Hong E, Coenen A. Palliative care nursing interventions in Thailand. J Transcult Nurs. 2013; 24(4):332-9.

Coenen A, Doorenbos AZ, Wilson SA. Nursing Interventions to Promote Dignified Dying in Four Countries. Oncol Nurs Forum. 2007;34(6):1151-6.
-4Jo KH, Doorenbos AZ, Sung KW, Hong E, Rue T,. Coenen A Nursing interventions to promote dignified dying in South Korea. Int J Palliat Nurs. 2011;17(8):392-7.).

Esperar que as intervenções de enfermagem para um fenômeno como a morte sejam contempladas em um padrão universal pode não levar em conta uma cultura, como a Tailandesa: nela o budismo é a religião da quase totalidade da população, sendo a morte um fenômeno bem-vindo, cabendo aos enfermeiros proporcionar discussões de assuntos de família e incentivar os familiares a se despedirem(2Doorenbos AZ, Juntasopeepun P, Eaton LH, Rue T, Hong E, Coenen A. Palliative care nursing interventions in Thailand. J Transcult Nurs. 2013; 24(4):332-9.).

No contexto da assistência a uma morte digna, os enfermeiros tailandeses indicam que integrar o conhecimento religioso e cultural em sua prática clínica é de suma importância(2Doorenbos AZ, Juntasopeepun P, Eaton LH, Rue T, Hong E, Coenen A. Palliative care nursing interventions in Thailand. J Transcult Nurs. 2013; 24(4):332-9.); os enfermeiros hindus sugerem inserir o cuidado holístico e a ioga para o manejo da dor(3Coenen A, Doorenbos AZ, Wilson SA. Nursing Interventions to Promote Dignified Dying in Four Countries. Oncol Nurs Forum. 2007;34(6):1151-6.); e os enfermeiros sul-coreanos apontam que estabelecer confiança é essencial(4Jo KH, Doorenbos AZ, Sung KW, Hong E, Rue T,. Coenen A Nursing interventions to promote dignified dying in South Korea. Int J Palliat Nurs. 2011;17(8):392-7.).

Para que ocorra a adaptação transcultural também é necessário o conhecimento do sistema de saúde e dos modelos assistenciais que o constitui, pois as práticas são determinadas pelas políticas e pelos movimentos, hegemônicos e contra-hegemônicos que ocorrem em distintas realidades. Assim, se a pesquisa que se dedicou a avaliar o subconjunto para promoção de uma morte digna fosse replicada no Brasil, uma das hipóteses é que enfermeiros indiquem como prioritárias as intervenções oriundas da política nacional de humanização.

No Brasil, espera-se que as práticas de enfermagem no espaço da atenção primária estejam ancoradas nos princípios do Sistema Único de Saúde e nas bases conceituais da saúde coletiva, no sentido de superar o modelo assistencial biomédico. Desta forma, uma terminologia universal e transcultural capaz de representar a prática da enfermagem brasileira deve ser fortalecida com a presença de fenômenos oriundos dessa prática e da visão de mundo da saúde coletiva. Levanta-se, como exemplo, a questão de que a CIPE®, ao relacionar apenas uma vez a palavra vulnerabilidade em toda a extensão das definições de seus termos, pode estar limitada no sentido de contextualizar fenômenos determinados socialmente.

Não menos importante, um dos objetivos das terminologias é apoiar o processo de raciocínio clínico do enfermeiro e ancorar a nominação de fenômenos de interesse da disciplina(5Carvalho EC, Cruz DALM, Herdman TH. Contribuição das linguagens padronizadas para a produção do conhecimento, raciocínio clínico e prática clínica da Nursing. Rev Bras Enferm. 2013;66(n.esp):134-41.). Portanto, propiciar a amplitude da CIPE® para apoiar o raciocínio epidemiológico e ancorar a nominação de fenômenos socialmente determinados poderá contribuir para sua representatividade universal e transcultural.

No início deste editorial, afirmou-se que a construção de uma terminologia é fruto do comprometimento entre pares e de um trabalho coletivo, portanto, para responder ao desafio aqui discutido, a Enfermagem deve criar movimentos eficazes para contribuir com a inclusão de termos à CIPE®, bem como discutir a amplitude ou limitação das definições apresentadas nessa terminologia.

  • 1
    Clares JWB, Freitas MC, Guedes MVC, Nóbrega MML. Construction of terminology subsets: contributions to clinical nursing practice. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(4):962-6.
  • 2
    Doorenbos AZ, Juntasopeepun P, Eaton LH, Rue T, Hong E, Coenen A. Palliative care nursing interventions in Thailand. J Transcult Nurs. 2013; 24(4):332-9.
  • 3
    Coenen A, Doorenbos AZ, Wilson SA. Nursing Interventions to Promote Dignified Dying in Four Countries. Oncol Nurs Forum. 2007;34(6):1151-6.
  • 4
    Jo KH, Doorenbos AZ, Sung KW, Hong E, Rue T,. Coenen A Nursing interventions to promote dignified dying in South Korea. Int J Palliat Nurs. 2011;17(8):392-7.
  • 5
    Carvalho EC, Cruz DALM, Herdman TH. Contribuição das linguagens padronizadas para a produção do conhecimento, raciocínio clínico e prática clínica da Nursing. Rev Bras Enferm. 2013;66(n.esp):134-41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2015
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