Open-access Narrativas midiáticas sobre doação e transplante de órgãos e tecidos: análise reflexiva do conteúdo publicado

RESUMO

Objetivo:  Analisar a frequência e o conteúdo das publicações sobre doação e transplante de órgãos e tecidos nos jornais digitais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo” entre 2018 e 2023.

Método:  Por meio de uma abordagem quanti-qualitativa, 317 reportagens foram examinadas a partir de critérios temáticos e discursivos, com auxílio dos softwares SPSS® e IRAMUTEQ®.

Resultados:  Os dados revelaram predominância de conteúdos com conteúdo positivo (71,9%) concentrados no tema “transplante” (60,57%) e, no ano de 2023, com picos em agosto e setembro. As principais categorias foram “incentivo/promoção” e “informação”, com destaque para o coração como órgão mais citado. A análise textual destacou temas como transplante, recusa familiar, xenotransplante e impacto da pandemia.

Conclusão:  A mídia digital exerce influência relevante na percepção pública sobre doação e transplante. No entanto, há ênfase isolada em etapas do processo, o que pode comprometer a compreensão global. Estratégias comunicacionais contínuas e integradas são essenciais para fortalecer a cultura da doação.

DESCRITORES
Publicações Eletrônicas; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Notícias

ABSTRACT

Objective  To analyze the frequency and content of publications on organ and tissue donation and transplantation in the digital newspapers “Folha de São Paulo” and “O Estado de São Paulo” between 2018 and 2023.

Method  Through a quantitative-qualitative approach, 317 reports were examined based on thematic and discursive criteria, with the aid of SPSS® and IRAMUTEQ® software.

Results  The data revealed a predominance of positive content (71.9%), concentrated on the topic “transplant” (60.57%), and in 2023, with peaks in August and September. The main categories were “incentive/promotion” and “information”, with the heart being the most cited organ. Textual analysis highlighted topics such as transplantation, family refusal, xenotransplantation, and the impact of the pandemic.

Conclusion  Digital media exerts significant influence on public perception of donation and transplantation. However, there is isolated emphasis on certain stages of the process, which can compromise overall understanding. Continuous and integrated communication strategies are essential to strengthen the donation culture.

DESCRIPTORS
Electronic Publications; Tissue and Organ Procurement; News

RESUMEN

Objetivo:  Analizar la frecuencia y el contenido de las publicaciones sobre donación y trasplante de órganos y tejidos en los periódicos digitales “Folha de São Paulo” y “O Estado de São Paulo” entre 2018 y 2023.

Método:  Mediante un enfoque cuantitativo-cualitativo, se examinaron 317 informes con base en criterios temáticos y discursivos, con la ayuda del software SPSS® e IRAMUTEQ®.

Resultados:  Los datos revelaron un predominio de contenido positivo (71,9%), centrado en el tema del “trasplante” (60,57%), con picos en agosto y septiembre de 2023. Las categorías principales fueron “incentivo/promoción” e “información”, siendo el corazón el órgano más citado. El análisis textual destacó temas como el trasplante, la negativa familiar, el xenotrasplante y el impacto de la pandemia.

Conclusión:  Los medios digitales influyen significativamente en la percepción pública sobre la donación y el trasplante. Sin embargo, se hace hincapié en ciertas etapas del proceso, lo que puede comprometer su comprensión general. Las estrategias de comunicación continuas e integradas son esenciales para fortalecer la cultura de la donación.

DESCRIPTORES
Publicaciones Electrónicas; Obtención de Tejidos y Órganos; Noticias

INTRODUÇÃO

A doação de órgãos e tecidos representa um ato de relevância social capaz de salvar ou melhorar a qualidade de vida ao oferecer esperança a milhares de pacientes em lista de espera(1). No Brasil, a demanda por transplantes permanece crescente, com cerca de 59 mil pessoas aguardando por um órgão ou tecido em 2023(2). Apesar dos avanços, desafios persistentes, como a recusa familiar, a falta de conhecimento sobre critérios de morte encefálica e a escassez de doadores efetivos, limitam o alcance desse processo, evidenciando a necessidade de estratégias para ampliar a conscientização pública(35).

Nesse contexto, a mídia, por meio das novelas, séries, filmes, campanhas publicitárias, revistas e jornais digitais, desempenha um papel de destaque como ferramenta informacional e promocional em questões relacionadas à saúde, visto que é um meio de fácil acesso e baixo custo para a obtenção de referências. A mídia, com isso, torna-se detentora do conhecimento e pode impactar, direta ou indiretamente, conforme o conteúdo e estruturação de suas publicações, as atitudes e tomada de decisão da comunidade, influenciando de forma positiva ou negativa o processo de doação de órgãos e tecidos(69). Contudo, o impacto da mídia é ambivalente: conteúdos sensacionalistas ou deturpados podem reforçar mitos, prejudicando a confiança da sociedade(8).

As publicações acerca da doação de órgãos de famosos, como o caso do apresentador brasileiro Augusto Liberato, que doou seus órgãos e tecidos após um acidente doméstico que causou sua morte encefálica em novembro de 2019 na Flórida, Estados Unidos da América, repercutiram em larga escala, sendo associadas ao aumento do número de doações pelo Registro Brasileiro de Transplantes(10). Em contrapartida, notícias com informações deturpadas e apelativas sobre o tráfico de órgãos e diagnósticos errôneos desfavorecem a importância da doação de órgãos e tecidos(8).

Apesar de a mídia executar um papel importante nas questões de saúde, a maior parte dos estudos disponíveis avalia as repercussões das mídias em campanhas publicitárias sobre tabagismo, alcoolismo, câncer, HIV/AIDS, entre outros(6,9). Existe uma escassez de pesquisas nacionais que analisem especificamente o papel das publicações midiáticas no processo de doação de órgãos e tecidos. A maior parte dos trabalhos se limita a dados institucionais, como os da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e Ministério da Saúde, que são pouco acessíveis ao público geral. Essa lacuna torna relevante investigar como os veículos de maior alcance populacional — como jornais digitais — abordam o tema, já que são fontes primárias de informação para a maioria da população.

Diante disso, este estudo propõe-se a analisar a frequência e o conteúdo das publicações sobre doação e transplante de órgãos em dois jornais digitais de grande circulação no Brasil entre 2018 e 2023.

MÉTODO

Desenho do Estudo

Trata-se de estudo quanti-qualitativo de caráter documental acerca do conteúdo das reportagens e notícias veiculadas em dois jornais digitais de circulação nacional, sendo eles “O Estado de São Paulo”, conhecido como “Estadão”, e “Folha de São Paulo”.

Local e População do Estudo

O estudo foi realizado em dois jornais digitais de grande circulação no Brasil. O jornal “O Estado de São Paulo” foi fundado, em 1875, com o nome “A Província de São Paulo”, quando o Brasil ainda vivia na Monarquia de Dom Pedro II. Em 1889, com a Proclamação da República, houve a mudança do nome para “O Estado de São Paulo”. O jornal apresenta-se na forma online desde 1995.

O jornal “Folha de São Paulo” surgiu em 1960 após a fusão de três diários, sendo eles “Folha da Manhã”, “Folha da Noite” e “Folha da Tarde”. Em 1995, é lançado o primeiro site de notícias online: a “FolhaWeb”.

Critérios de Seleção

Foram incluídas todas as notícias que abordaram a temática na versão paga e gratuita. Houve a exclusão de quatro notícias, pois abordavam a doação de cadáveres e partes do corpo para fins científicos e questões pessoais que se sobrepunham à temática.

Coleta de Dados

A coleta de dados ocorreu de setembro de 2023 a janeiro de 2024. Na primeira etapa, foi realizada a coleta das notícias e reportagens utilizando filtros com palavras-chave (doação de órgãos; doação de órgãos e tecidos; doação de tecidos; doador de órgãos; doador de tecidos; doador(es) vivo(s); doador(es) falecido(s); transplante de órgãos; transplante de órgãos e tecidos; transplante de tecidos; transplantado; transplantado de órgãos; transplantado de tecidos; tráfico de órgãos; recusa familiar da doação; recusa familiar; morte encefálica; morte encefálica; e doação) publicados no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2023. Nessa fase, os artigos foram selecionados com base em seu título e resumo.

A segunda etapa compreendeu a leitura minuciosa das notícias e sua organização nos programas Microsoft Excel® e Microsoft Word® para aprofundar e ampliar a visualização dos conteúdos das publicações.

Análise e Tratamento dos Dados

Na análise quantitativa, os dados foram extraídos da planilha do Microsoft Excel® e importados para o software Statistical Package for the Social Sciences, versão 20.0, para análise das frequências simples (n) e relativas (%). Para isso, os conteúdos das publicações foram agrupados de acordo com sua semelhança de significados no Microsoft Excel® e, posteriormente, enquadrados em categorias, sendo guiados pelo referencial de análise de conteúdo temática-categorial proposta por Bardin, que compreende as fases de pré-análise, exploração do material, e tratamento dos dados, inferência e interpretação(11).

Para conceituar a categoria mídia, utilizou-se a mídia positiva para as notícias que promoviam e enalteciam a temática; negativa, para as notícias que depreciavam, problematizam e criticavam a temática(12); e neutra, para aquelas que não expressaram um viés preponderante. A definição de cada código para as categorias foi realizada com leitura flutuante, conforme referencial. Após, definia-se o código conforme o conteúdo da notícia, e na sequência, foram realizadas avaliações por pares para confirmação das codificações para construção de cada categoria/classe, sendo as divergências dirimidas em rodadas de consenso em grupo.

A partir da análise, emergiram as codificações que geraram as categorias: mídia (positiva, negativa ou neutra); tema da notícia (doação, transplante ou transplante/doação); órgãos/tecidos e classe da notícia (incentivo/promoção, informação, impacto da pandemia de COVID-19, inovação, xenotransplante, desinformação acerca da doação/transplante, legislação, lista de espera, complicações no processo de doação/transplante, quebra de sigilo da identidade do doador, recusa familiar, e transporte de órgãos e tecidos).

Além disso, na análise qualitativa, foram utilizados os softwares Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), versão 0.7 alpha 2, e R, versão 3.2.3. Dessa forma, os conteúdos das notícias e reportagens (corpus textual) foram transcritos para o Microsoft Word® e revisados para se adequar às especificações do software, como a introdução de linhas de comando, retirada de parágrafos, correção de pontuações, padronização das siglas e agrupamento das palavras significativas por underline. Para facilitar a análise, o IRAMUTEQ divide os textos do corpus em segmento de texto (ST), geralmente de três linhas(13).

Para a presente pesquisa, utilizaram-se: 1) Nuvem de palavras, representação visual da frequência dos termos no corpus de acordo com seu tamanho; 2) Árvore de similitude, que é baseada na teoria de grafos, que indica as conexões entre as palavras; e 3) Dendrograma e apresentação fatorial, confeccionados através da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que agrupa as palavras em classes com o intuito de demonstrar a ligação delas entre si por meio do teste qui-quadrado (χ2).

A interpretação das classes resultantes da CHD seguiu critérios teóricos fundamentados na análise de conteúdo(11), combinada com a perspectiva da análise textual discursiva(14). Cada classe foi examinada a partir dos vocábulos mais característicos (com maior valor de qui-quadrado), do conteúdo dos STs associados e da sua relação com o corpus completo. A atribuição de sentido às classes considerou tanto a frequência e associação dos termos quanto os contextos semânticos emergentes, possibilitando uma interpretação que extrapola a coocorrência lexical, ancorada na literatura da área temática da pesquisa. Essa abordagem parte de pressupostos epistemológicos construtivistas, compreendendo que o sentido dos discursos é construído socialmente e pode ser acessado por meio de estruturas lexicais compartilhadas. A análise textual clássica (CHD) utilizada pelo IRAMUTEQ busca identificar regularidades e padrões nos discursos, permitindo ao pesquisador interpretar significados latentes, preservando a coerência com os objetivos exploratórios e qualitativos da pesquisa(15).

Aspectos Éticos

Os dados coletados nesta pesquisa foram retirados de fontes documentais de domínio público. Conforme a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, não há necessidade de avaliação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

O banco de dados foi composto por 317 notícias e reportagens, sendo 185 (58,36%) publicações da “Folha de São Paulo” e 132 (41,64%) do “O Estado de São Paulo”. As publicações ocorreram no período de 2018 a 2023, tendo um número significativo no ano de 2023, com 159 notícias (50,16%), enquanto há um menor número no ano de 2020, com apenas 20 reportagens (6,31%). Ao examinar a distribuição das notícias em relação aos meses de suas publicações, agosto e setembro se mostram sobressalentes aos outros meses. Em relação ao conteúdo das notícias, 228 (71,9%) são consideradas positivas e 54 (17,03%), negativas. Já as temáticas estão associadas, sobretudo, ao transplante, com 192 (60,57%), seguido de doação, com 81 (25,55%) das publicações (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização das notícias publicadas nos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” (2018–2023) – São Paulo, SP, Brasil, 2024.

Para aprimorar a caracterização e quantificação das notícias, elas foram divididas em 12 classes, na qual a classe incentivo/promoção se mostrou predominante, com 107 (33,75%) das publicações, e, em último lugar, com apenas quatro notícias (1,27%), a classe transporte. Além disso, em 145 notícias (45,74%), não foram citados órgãos e/ou tecidos especificamente, seguidos do coração, com 95 notícias (29,97%) (Tabela 2).

Tabela 2
Classificação das notícias publicadas nos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” quanto ao conteúdo e órgãos e tecidos doados/transplantados e citados – São Paulo, SP, Brasil, 2024.

Na análise qualitativa, as palavras “paciente”, “ano”, “transplante”, “dizer”, “órgão”, “médico”, “coração”, entre outras, aparecem em destaque na nuvem de palavras (Figura 1). Em contrapartida, outras palavras se apresentam menos frequentes, como “receber”, “cirurgia”, “doador” e “procedimento”.

Figura 1
Nuvem de palavras identificadas nas reportagens dos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” sobre doação e transplante de órgãos e tecidos – São Paulo, SP, Brasil, 2024.

Pode-se relacionar à árvore de similitude (Figura 2), que mostra a relação do ST “paciente” com a “fila de espera” de indivíduos (“pessoas”) que aguardam (“receber”) por um órgão ou tecido para transplante. A figura do “médico” faz referência aos profissionais que fazem parte da equipe que atua no processo de doação (“doador”) e (“transplante”) de órgãos e tecidos, e o “coração”.

Figura 2
Árvore de similitude das palavras encontradas nos textos publicados nos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” referentes à doação e transplantes de órgãos e tecidos – São Paulo, SP, Brasil, 2024.

Na apresentação fatorial e CHD (Figura 3), o conteúdo gerou seis classes, com 20,4%, 12,8%, 10,5%, 21,5%, 22,3% e 12,5% dos STs, respectivamente. A classe 1 aborda a importância do indivíduo dizer para a família a sua vontade sobre a doação e a decisão que os familiares tomaram a partir disso; a classe 2 destaca as complicações de saúde que são utilizadas como critérios de prioridade para um transplante de órgãos e tecidos; a classe 3 fala sobre a importância da família decidir respeitar o desejo de doar os órgãos e tecidos; a classe 4 se refere aos estudos para utilizar os órgãos de porcos nos humanos (xenotransplante) como recurso para diminuir a escassez de órgãos para transplante e, com isso, diminuir a lista de espera; a classe 5 relaciona os impactos da COVID-19 às taxas de transplante no Brasil; e a classe 6 refere-se a questões relacionadas à divulgação dos casos nas redes sociais, como o transplante de coração do apresentador Faustão e a doação dos órgãos do apresentador Gugu.

Figura 3
Apresentação fatorial e dendrograma da Classificação Hierárquica Descendente, encontrados nos textos publicados nos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”, referentes à doação e transplantes de órgãos e tecidos – São Paulo, SP, Brasil, 2024.

DISCUSSÃO

A análise evidenciou o protagonismo dos meios digitais na promoção da doação e transplante de órgãos, especialmente por meio de conteúdos com viés positivo e caráter testemunhal capazes de mobilizar afetos e ampliar o debate público sobre o tema. A literatura corrobora esse achado ao demonstrar que narrativas transformacionais tendem a ser mais eficazes do que as exclusivamente informativas para gerar engajamento social(6,16,17). Esse efeito é potencializado por estratégias indiretas, como a intensificação das publicações em datas comemorativas e o predomínio de tonalidades positivas nas matérias, o que contribui para uma percepção mais acolhedora do processo de doação(6,16). Estudo publicado em 2023 analisou o conteúdo de 313 publicações em inglês acerca da doação de órgãos na plataforma de rede social TikTok® e verificou que uma quantidade significativa dos vídeos promovia a doação de órgãos e combate à desinformação, com uma predominância de conteúdos positivos(12). Dessa forma, pode-se afirmar que a disponibilidade de órgãos para transplante é influenciada pelo juízo social, que pode se modificar com estímulos adequados(7).

Casos de grande repercussão, como os dos apresentadores brasileiros Fausto Silva (Faustão) e Augusto Liberato (Gugu), funcionam como gatilhos para a intensificação das publicações. Embora sirvam como oportunidade para esclarecer o funcionamento do sistema de transplantes e combater desinformações, essas coberturas também revelam a influência de fatores externos como a fama e o status social na visibilidade midiática do tema, o que gera percepções ambíguas sobre justiça e acesso ao sistema(18). A resposta da imprensa diante dessas situações demonstra um potencial educativo importante, mas reforça a necessidade de diretrizes mais claras sobre a abordagem responsável dessas narrativas.

Diante disso, a predominância do tema “transplante” em relação à “doação” e a sub-representação de órgãos e tecidos específicos, como córneas, ossos e pele, revelam uma assimetria na cobertura jornalística. Tal desequilíbrio pode comprometer a compreensão pública sobre a interdependência entre essas etapas, conforme já apontado em outras investigações(5,19,20). Ao priorizar o receptor e sua recuperação — frequentemente associado a sentimentos de superação e gratidão — em detrimento do processo de doação e da figura do doador, os meios de comunicação contribuem para uma narrativa parcial, que silencia a complexidade e a carga emocional envolvida na decisão familiar pela doação(21).

Outro ponto crítico é o tratamento fragmentado das etapas do processo, que pode decorrer da estrutura editorial dos meios de comunicação. Embora compreensível do ponto de vista jornalístico, essa abordagem corre o risco de dificultar a percepção da doação e do transplante como um ciclo integrado, comprometendo o engajamento informado da população. Essa fragmentação também contribui para a invisibilidade de temas relevantes, como recusa familiar, morte encefálica e doação de tecidos — questões que exigem não apenas informação técnica, mas também sensibilidade cultural e ética(4,5,22,23).

A pandemia de COVID-19 reforçou esse cenário de instabilidade ao impactar negativamente as taxas de doação e transplante por motivos clínicos, logísticos e de biossegurança(24,25). Ainda assim, o uso ampliado da telemedicina para o acompanhamento de receptores demonstra a capacidade adaptativa do sistema, sugerindo possibilidades de inovação para o futuro.

Nesse contexto, destaca-se também o avanço das pesquisas sobre xenotransplante como uma resposta à escassez de doadores, com iniciativas nacionais e internacionais que reforçam a urgência de soluções complementares sem, no entanto, substituir a importância da doação humana(2628).

As evidências desta investigação indicam que o fortalecimento da cultura da doação requer um esforço articulado entre imprensa, profissionais de saúde e gestores públicos. A criação de guias orientativos, como o desenvolvido por instituições internacionais(18), pode inspirar iniciativas nacionais voltadas à qualificação das práticas comunicacionais, combatendo o sensacionalismo e promovendo informação ética, clara e baseada em evidências. Esses achados apontam para a necessidade de articulação intersetorial entre mídia, serviços de saúde e instituições públicas, com vistas à construção de estratégias comunicacionais contínuas e responsáveis sobre a doação e o transplante de órgãos e tecidos. Recomenda-se o desenvolvimento de materiais de apoio — como guias para jornalistas — que contemplem aspectos éticos, técnicos e culturais, promovendo uma cobertura sensível, educativa e baseada em evidências.

Este estudo apresenta como limitação a análise restrita a dois jornais digitais de circulação nacional, o que pode não representar a diversidade de abordagens adotadas por veículos regionais, alternativos ou outras plataformas digitais. Além disso, o recorte temporal e o uso de palavras-chave específicas podem ter excluído conteúdos relevantes à temática. Por fim, ao privilegiar a análise do discurso publicado, não foi possível captar os efeitos da recepção dessas mensagens pelo público, o que limita inferências sobre seu impacto social direto.

Do ponto de vista da pesquisa, futuras investigações podem ampliar a análise para outros veículos midiáticos e redes sociais, bem como explorar a recepção das mensagens por diferentes públicos. Estudos qualitativos com familiares de potenciais doadores também podem aprofundar a compreensão sobre como as mensagens midiáticas impactam a decisão pela doação. Ademais, recomenda-se examinar as estratégias de comunicação sobre a doação de tecidos, cuja visibilidade ainda é limitada.

CONCLUSÃO

Devido ao exposto, é possível evidenciar que, embora os jornais digitais analisem a temática da doação e transplante de órgãos e tecidos sob uma perspectiva positiva, a abordagem ainda é fragmentada, com ênfase no transplante em relação à doação. Esse desequilíbrio pode limitar a compreensão pública sobre a interdependência entre essas etapas e comprometer o engajamento da população com a causa.

Os resultados demonstram que eventos de grande repercussão midiática, como os casos envolvendo figuras públicas, influenciam diretamente o volume e o tom das publicações, indicando que a mídia responde a fatores temporários mais do que adota uma estratégia informacional contínua. Dessa forma, reforça-se a necessidade de uma articulação mais sólida entre profissionais de saúde, jornalistas e gestores públicos para promover uma cobertura ética e educativa, com o intuito de reduzir a desinformação e combater os estigmas. Investir em estratégias comunicativas é fundamental para fortalecer a cultura da doação no Brasil e reduzir a distância entre a informação divulgada e a tomada de decisão pela sociedade.

DISPONIBILIDAD DE DATOS

Os dados da pesquisa só estão disponíveis mediante solicitação.

  • Apoio financeiro
    Essa pesquisa recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil - Código de Financiamento 001 e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico com bolsa de iniciação científica.

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Editado por

  • EDITORA ASSOCIADA
    Cristina Lavareda Baixinho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2024
  • Aceito
    14 Jun 2025
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