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Qualidade de vida sob a ótica de pessoas que apresentam lesão medular

Life quality under the people´s optics that they present lesion medular

Resumos

Diante da vivência em tratar de indivíduos que apresentam lesão medular, nos deparamos com a problemática envolvida no cotidiano dessas pessoas após uma situação de trauma súbito e inesperado. Com a intenção de prestar cuidados efetivos a estas pessoas nos preocupamos, neste estudo, em identificar a situação pela qual elas estão passando, se houve mudanças e quais foram elas, tanto em nível psíquico como físico e social. Para tanto, optou-se pela realização de urna entrevista individual semi-estruturada, utilizando-se o recurso da gravação, o instrumento de coleta de dados consta de dados de identificação e dados a respeito da vida do entrevistado. O discurso livre com gravação e posterior transcrição caracteriza um estudo de caso de natureza, sobretudo, exploratória. Os dados obtidos receberam uma análise temática utilizando concepções sobre qualidade de vida segundo FORATTINI (1991). Neste estudo foram identificadas uma deficiência física e uma série de incapacidades. A deambulação é a primeira perda notada pelo paciente após a lesão e a sua primeira questão ao profissional mais próximo dele, é que se estabeleça um canal de comunicação que permita esta expressão. Mas devemos lembrar do processo possível de reabilitação que não aborda somente a busca pela locomoção, permeando o reaprendizado nesta nova situação de vida. Constatamos modificações em todas as esferas (física, social, psicológica), sendo que as mais afetadas, segundo os dados colhidos, foram a psicológica e a social devido às alterações físicas. A principal sensação de perda refere-se ao papel social, sendo que esta é caracterizada, principalmente, pela impossibilidade de retornar ao trabalho. As mudanças nas concepções de auto-imagem e auto-estima também foram identificadas, em menor grau, pela sensação de incapacidade. A perda física mais importante e compreensivelmente mais relatada refere-se a perda de sensibilidade e capacidade motora dos membros.

Qualidade de vida; Reabilitação; Enfermagem


Before the existence in negotiating of individuals that present lesion medular, we came across the problem involved in the daily of those people after a situation of sudden and unexpected trauma. With the intention of rendering effective cares to these people worried, in this study, in identifying the situation for the which they are passing, there were been, changes and which were them, so much in psychic level as physicist and sodal,. For so much, he/she/it opted for the accomplishment of a semistructured individual interview, being used the resource of the recording, the instrument of collection, of data consists of identification data and data regarding the interviewee's life. The speech free with recording and posterior transcription characterizes a study of case of nature, above all., exploratory. The obtained data received a thematic analysis using conceptions about life quality according to FORATTINI (1991) . In this study they were identified a physical deficiency and a series of inabilities. The deambulação is the first loss noticed by the patient after the lesion and its first subject to the professional closer of him, it is that settles down a communication, channel that al lows this expression. But we should remember the possible process of rehabilitation that doesn' t approach only the search for the locomoção, permeating the re-learning. in this new life situation. We verified modifications in all the spheres (physics, social, psychological), and the most affected, according to the picked data, went the psychological and to social due to the physical alterations. The main loss sensation refers to the social paper, and this is characterized, mainly, for the impossibility of coming back to the work. The changes in the solemnity-image conceptions and self-esteem, were also identified, in smaller degree, for the sensation, of inability. The more important and comprehensibly told physical loss refers the sensibility loss and motive capacity of the members.

Life quality; Rehabilitation; Enfermagem


ARTIGOS ORIGINAIS

Qualidade de vida sob a ótica de pessoas que apresentam lesão medular

Life quality under the people´s optics that they present lesion medular

Sandra Cristina Correia LoureiroI; Ana Cristina Mancussi e FaroII; Eliane Correa ChavesII

IAluna do Curso de Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP

IIProfessor Doutor do Departamento de Enfermagem Módico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da USP

RESUMO

Diante da vivência em tratar de indivíduos que apresentam lesão medular, nos deparamos com a problemática envolvida no cotidiano dessas pessoas após uma situação de trauma súbito e inesperado. Com a intenção de prestar cuidados efetivos a estas pessoas nos preocupamos, neste estudo, em identificar a situação pela qual elas estão passando, se houve mudanças e quais foram elas, tanto em nível psíquico como físico e social. Para tanto, optou-se pela realização de urna entrevista individual semi-estruturada, utilizando-se o recurso da gravação, o instrumento de coleta de dados consta de dados de identificação e dados a respeito da vida do entrevistado. O discurso livre com gravação e posterior transcrição caracteriza um estudo de caso de natureza, sobretudo, exploratória. Os dados obtidos receberam uma análise temática utilizando concepções sobre qualidade de vida segundo FORATTINI (1991). Neste estudo foram identificadas uma deficiência física e uma série de incapacidades. A deambulação é a primeira perda notada pelo paciente após a lesão e a sua primeira questão ao profissional mais próximo dele, é que se estabeleça um canal de comunicação que permita esta expressão. Mas devemos lembrar do processo possível de reabilitação que não aborda somente a busca pela locomoção, permeando o reaprendizado nesta nova situação de vida. Constatamos modificações em todas as esferas (física, social, psicológica), sendo que as mais afetadas, segundo os dados colhidos, foram a psicológica e a social devido às alterações físicas. A principal sensação de perda refere-se ao papel social, sendo que esta é caracterizada, principalmente, pela impossibilidade de retornar ao trabalho. As mudanças nas concepções de auto-imagem e auto-estima também foram identificadas, em menor grau, pela sensação de incapacidade. A perda física mais importante e compreensivelmente mais relatada refere-se a perda de sensibilidade e capacidade motora dos membros.

Unitermos: Qualidade de vida. Reabilitação. Enfermagem.

ABSTRACT

Before the existence in negotiating of individuals that present lesion medular, we came across the problem involved in the daily of those people after a situation of sudden and unexpected trauma. With the intention of rendering effective cares to these people worried, in this study, in identifying the situation for the which they are passing, there were been, changes and which were them, so much in psychic level as physicist and sodal,. For so much, he/she/it opted for the accomplishment of a semistructured individual interview, being used the resource of the recording, the instrument of collection, of data consists of identification data and data regarding the interviewee's life. The speech free with recording and posterior transcription characterizes a study of case of nature, above all., exploratory. The obtained data received a thematic analysis using conceptions about life quality according to FORATTINI (1991) . In this study they were identified a physical deficiency and a series of inabilities. The deambulação is the first loss noticed by the patient after the lesion and its first subject to the professional closer of him, it is that settles down a communication, channel that al lows this expression. But we should remember the possible process of rehabilitation that doesn' t approach only the search for the locomoção, permeating the re-learning. in this new life situation. We verified modifications in all the spheres (physics, social, psychological), and the most affected, according to the picked data, went the psychological and to social due to the physical alterations. The main loss sensation refers to the social paper, and this is characterized, mainly, for the impossibility of coming back to the work. The changes in the solemnity-image conceptions and self-esteem, were also identified, in smaller degree, for the sensation, of inability. The more important and comprehensibly told physical loss refers the sensibility loss and motive capacity of the members.

Unitermos: Life quality. Rehabilitation. Enfermagem.

1 INTRODUÇÃO

O número crescente de acidentes, especialmente os automobilísticos, os traumatismos por arma de fogo e as quedas, têm contribuído para um número, também crescente, de lesados medulares (SPÓSITO et al, 1986; FARO, 1991; FARO, 1995).

Após a fase aguda da lesão medular, a internação inicial é cercada de cuidados, na maioria deles, de ordem física, assim ao receber alta hospitalar a pessoa apresenta não só uma deficiência física mas também uma série de incapacidades. A lesão medular, advinda do Traumatismo Raquimedular (TRM), é portanto uma agressão à medula espinal, que pode resultar em alterações de função normal motora, sensitiva e autonômica. Um tratamento adequado a pessoa com TRM requer uma equipe multidisciplinar trabalhando dentro de um sistema que promova interação efetiva, estando familiarizados com os problemas e abordagens terapêuticas de outros membros da equipe. Assim compreendemos a pessoa que sofreu lesão medular como o núcleo da equipe de reabilitação.

Entendemos a necessidade de abordar de forma global e integrada o paciente incapacitado, desenvolvendo todo o potencial remanescente e limitando a lesão incapacitante. É preciso, porém, considerar a expectativa deste paciente, pois ao iniciar o programa de recuperação física, este almeja adquirir condições para a deambulação independente, mesmo que com o auxílio de órteses. A incapacidade para a locomoção independente assume, para o paciente ,o maior entrave para o exercício de uma vida social e produtiva (LIANZA; SPÓSITO,1994).

O TRM, por sua vez, leva o paciente a uma incapacidade física iminente, ou seja, não é uma incapacidade adquirida devido a uma doença pré estabelecida e de longa data, não é uma condição esperada pelo paciente, é um mal nítido que o atinge desesperadamente, sendo comum que os pacientes se revoltem, se culpem e se arrependam de ter feito "a coisa" que o levou a esta condição (assalto, dirigir em alta velocidade, mergulhar em águas rasas, etc).

Grande parte dos pacientes acometidos subitamente por uma deficiência podem apresentar determinadas reações, mesmo que em ordem de acontecimentos diferente, que são divididos em três estágios como apontam BRUNNER, SUDDART (1993):

-o primeiro estágio refere-se passagem do estado de saúde para o estado de doença, isto provoca em alguns pacientes, negação de sua condição atual, levando-o a procura de outros médicos para saber o verdadeiro diagnóstico, ou até mesmo adiam consultas médicas, e de enfermagem, não aceitando nenhum tipo de cuidado prescrito pela equipe de saúde; vergonha por não poder mais fazer tudo o que era possível, ou até mesmo por sentir-se inferiorizado diante de pessoas "normais", culpa por ter algo que o levou a ficar neste estado e ansiedade pelo medo do desconhecido, daquilo que pode vir a acontecer;

- o segundo estágio é representado pela aceitação da doença, onde o paciente expressa falta de interesse por assuntos atuais e familiares. O paciente perde as esperanças em relação às suas expectativas anteriores por perceber que, na condição em que se encontra, estas são impossíveis de se concretizar, por exemplo, indivíduos portadores de lesão medular em T10: andar independentemente sem o auxilio de órteses. A regressão é outra característica do segundo estágio que ocorre pela conscientização da dependência permanente para algumas atividades; a raiva, que se expressa como uma agressão às pessoas que o estão assistindo é uma forma de defesa para diminuir as pressões psicológicas de incapacidades versus dependência e frustração. A negação aparece como uma resistência à dependência ; o paciente culpa-se por não poder fazer tudo o que deseja, de forma independente, além disso, o ressentimento, sensação aguda de desespero, tristeza e raiva, levam-no à depressão. A raiva pode expressar-se através de lamentações culposas a seres divinos;

-o terceiro e último estágio é o período de canvalescença ou restabelecimento, marcado pela tomada de decisões mais maduras e o afastamento de dependências. O paciente sente receio de tentar novas experiências, apresenta ansiedade e pesar, não conseguindo utilizar os grupos de apoio por ser doloroso e por ter que assumir publicamente a conotação de "diferente". Este assunto será melhor tratado a seguir.

AMARAL (1995) comenta sobre os mecanismos de defesa do ego descrevendo-os como as estratégias utilizadas pela pessoa para manutenção do equilíbrio intrapsíquico, através da eliminação de uma fonte de insegurança , perigo,tensão ou ansiedade. Isto significa que os mecanismos defensivos estão presentes no ajustamento e desenvolvimento da personalidade e não apenas em processos patológicos.

Na tentativa de compreender os significados de qualidade de vida para os lesados medulares, considerando o impacto da deficiência na vida destas pessoas, bem como o processo de reabilitação no qual estão envolvidos, comentaremos, a seguir o tema qualidade de vida.

Qualidade é definido por FERREIRA (1986), como sendo as condições favoráveis ou desfavoráveis de uma determinada coisa, numa escala de valores, qualidade que permite avaliar e conseqüentemente aprovar, aceitar ou recusar algo. O termo vida, segundo o mesmo autor é o conjunto de propriedades e qualidades graças às quais, animais e plantas se mantém em contínua atividade manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e outras.

Para FORATTINI (1991), a qualidade de vida seria a somatória de fatores decorrentes da interação entre sociedade e ambiente, atingindo a vida no que se concerne às suas necessidades biológicas e psíquicas. Acompanhando ainda o raciocínio do mesmo autor, a qualidade de vida envolve portanto níveis orgânicos, psiclógicos, sociais, comportamentais, materiais e estruturais. De acordo com esta definição discutiremos a seguir esses aspectos, conceituando e/ ou discutindo a respeito de saúde, trabalho, lazer, auto-imagem, imagem corporal, adaptação social e sexualidade.

A saúde engloba uma esfera muito complexa de definições e conceitos, partindo da origem da palavra "salute", que em latim, significa salvação, conservação de vida; estágio cujas funções orgânicas, físicas e mentais se encontram em situação desejável. Pensando nas condições do lesado este aspecto pode encontrar-se desfavorável, sendo que tanto este indivíduo quanto a sua família necessitam adaptar-se às perdas e mudanças ocorridas (MILLER, 1983).

Quanto ao trabalho e ao lazer, o primeiro, permite ao homem certo domínio sobre a natureza; é uma atividade coordenada de caráter físico e/ou intelectual, necessária à realização de qualquer serviço. O lazer implica num descanso que tem que estar em equilíbrio com as atividades de trabalho, para que assim seja evitado o tédio ou o stress (FERRREIRA, 1986). Segundo GOFFMAN (1982), muitos pacientes que possuem uma deformidade são estigmatizados frente à sociedade que preconiza o modelo do ser ideal. Sentindo-se estigmatizados, estes encontram um certo receio de sair na rua para se divertirem, passearem e até mesmo trabalharem, pois sentem-se agredidos quando as crianças os olham fixamente com expressão de zombaria ou curiosidade, quando alguém se aproxima especulando a sua vida, invadindo a sua privacidade e por outro lado por sentir-se indefeso dentro de um centro urbano que representa uma ameaça a ele (roubo, calçadas sem nível de rebaixamento dificultando a passagem da cadeira de rodas, multidões que correm e ele não segue o mesmo ritmo, além de achar que é um estorno, carros que avançam sem ao menos respeitar sua condição, etc).

Manter a esperança na vida está asso da do a ter algo ou alguém por quem viver, ou seja, um relacionamento bom com familiares e amigos leva o paciente a manter a esperança e enfrentar melhor os desafios provocados pela doença (MILLER, 1983).

Ainda abordando os aspectos a respeito da qualidade de vida, não podemos ignorar que a auto-imagem e a imagem corporal têm influência sobre o bem estar do indivíduo. Entende-se por auto imagem, a imagem que o indivíduo tem de si próprio diante de sua inserção no meio em que vive. Imagem corporal no entanto, refere-se ao conceito de corpo que o indivíduo tem de si, ou seja, a forma física de seu corpo enquanto algo aceitável ou não segundo seus próprios conceitos de beleza (SAWEY; TELFORD, 1971). Portanto a pessoa tem um quadro mental e social de si mesma e tem por base as inúmeras experiências do passado, presente e futuro previsto. A doença ou as lesões graves interferem de forma súbita na auto-imagem; a adaptação às mudanças impostas pela doença podem afetar a identidade do indivíduo. Para algumas pessoas a incapacidade importante pode ser vista como uma limitação a ser superada, outras consideram-se inválidas, o que reforça a incapacidade e é estigmatizante.

A adaptação social exige energia, criatividade e persistência. Algumas vezes a pessoa com deficiência limita seu espaço e atividades cotidianas para tornar as situações mais previsíveis. Embora possa ser mais seguro isto também limita a participação integral desta pessoa à vida. Geralmente torna-se insegura, em especial com estranhos e também inseguro de si mesmo, já que o processo de adaptação e auto-aceitação é dinâmico.

O último aspecto a ser abordado neste trabalho, ainda em relação à qualidade de vida, é a sexualidade.

Antes de comentar a respeito da sexualidade, faz-se necessário conceituá-la. Conforme HOGAN (1994) "sexualidade é a expressão de duas personalidades e a fusão de seus sentimentos simbólicos e físicos de ternura, respeito, aceitação e prazer entre um ser e outro. Sexualidade não está restrita ao quarto ou a áreas do corpo. É o que nós fazemos e também o que somos".

A imagem do corpo e a imagem internalizada que o indivíduo tem de sua própria aparência física, é um aliado importante para a sua autoconcepção. Mudanças ou distúrbios na imagem do corpo podem afetar negativamente a própria concepção sexual.

Segundo DUCHARME et al (1992), as questões sexuais de pessoas com deficiência não são tão diferentes da população sem deficiência . Todavia, há uma tendência a dar-se ênfase às diferenças, e não às semelhanças que existem entre pessoas deficientes ou não. Ao discutirmos os aspectos fisiológicos e psicológicos envolvidos na sexualidade de pessoas com lesão medular, há de se considerar atitudes e experiências sexuais anteriores à lesão (FARO, 1991; 1995). A reabilitação sexual, do lesado medular irá depender das condições sobre as quais se desenvolvia a sexualidade da pessoa, o conhecimento sexual, dificuldades de relacionamento, crenças, valores e tabus presentes antes da deficiência.

LIMA (1987) afirma que uma estrutura social dominada por modelos e convenções físicas, dos quais pessoas com deficiências visíveis raramente podem se aproximar; os portadores de lesão medular são, na maioria das vezes, compelidos a assumir um papel que nega os aspectos sexuais do seu ser.

Poderíamos pressupor que somente as pessoas jovens e fisicamente perfeitas, imbuídas de beleza física é que teriam "direito" a uma vida afetivo-sexual.

Em se discutindo qualidade de vida devemos considerar, ou melhor, repensar alguns mitos sobre sexualidade e deficiência física, conforme apontados por PINEL (1984): as pessoas deficientes são assexuadas ou perigosamente hipersexuadas; pervertidas; devem se casar com deficientes; os problemas sexuais do deficiente são decorrentes da deficiência , entre outros que estigmatizam tais pessoas e, certamente, interferindo na sua qualidade de vida.

Finalizando,o ser humano ,assim como qualquer animal tem necessidades básicas próprias comuns à sua espécie, ou até mesmo semelhantes entre as diversas espécies,ainda que seguindo um ritual diferente, exemplo, dormir, beber, limpar-se, etc. Além dessas necessidades presentes na nossa vida cotidiana de forma concreta, há as necessidades abstratas que são, as de expressão, afetividade, atenção, decisão, inclusão,controle,etc.

Cada ser humano é capaz de reconhecer as suas maiores necessidades num dado momento de sua vida, e de forma, às vezes inconsciente, é capaz de manter o equilibrio entre os pólos que agem em cada necessidade; por exemplo, a inclusão é um sentimento de estar "fora ou dentro" , o controle é um sentimento de estar "alto ou baixo", e assim por diante. Mas às vezes somos surpreendidos. Temos que ter consciência de que essas pessoas que são surpeendidas, sofrem tanto fisicamente quanto psicologicamente, prevalecendo a parte física de inicio e a parte psicológica a médio , longo prazo.

Cabe a nós profissionais de saúde identificar o momento em que o paciente está vivendo , quais as suas maiores necessidades nesse dado momento e usar de todos os recursos disponíveis de que somos capazes. Deve-se lembrar porém, que através de um tratamento intensivo e o consequente aproveitamento e fortalecimento das funções restantes é sempre possível reabilitar o paciente para uma vida suportável e útil.

Diante desta problemática, propusemos o seguinte objetivo para este estudo:

-identificar e discutir as perspectivas de vida verbalizadas por pessoas com lesão medular.

2 METODOLOGIA

2.1 Local de estudo e população

Este estudo foi realizado no ambulatório de um Serviço de Medicina Física e de Reabilitação de um hospital governamental no município de São Paulo.

A população consta de pacientes em tratamento ambulatorial e que apresentam lesão medular por diferentes etiologias. Foram entrevistados cinco pacientes,que apresentavam lesão medular e estavam em tratamento ambulatorial neste serviço.

2.2 Coleta de dados

Em busca de uma análise a respeito da qualidade de vida sob a visão da pessoa com lesão medular, e a importância de ter conhecimento do significado atribuído a ela, optou-se pela realização da entrevista individual, semi-estruturada. Com o intuito de se obter dados fidedignos, foi utilizado o recurso da gravação, permitindo assim uma transcrição completa dos dados referidos e posterior análise de informações. As gravações foram realizadas sob concordância dos entrevistados e com garantia de não identificação.

2.3 Operacionalização da coleta

O local da entrevista foi previamente determinado, sendo este calmo e silencioso, para que a entrevista pudesse transcorrer sem interrupções e com gravação nítida a fim de garantir a transcrição correta posteriormente. O gravador ficou posicionado próximo ao entrevistado para melhor captação da fala de forma que não o inibisse de prosseguir a mesma, permanecendo fixo num local.

2.4 Instrumento de coleta de dados

O instrumento utilizado (ANEXO ANEXO ) consta de dados que caracterizam a população como idade, sexo, ocupação, instrução, número de dependentes, procedência , nível da lesão, tempo de lesão e etiologia, estado civil.

A entrevista não diretiva favorece a captação de uma informação mais profunda ou menos censurada do que no caso de outros procedimentos. A profundidade aqui estaria ligada ao fato da entrevista não diretiva favorecer expressões inclusive de conteúdo afetivo, capazes de comunicar modelos culturais das vivências dos indivíduos ou grupos considerados. Desta maneira foi feita uma única questão a cada um dos pacientes conforme consta no instrumento (ANEXO ANEXO ). A parte de identificação pessoal inclui os elementos considerados convencionais, tais como: iniciais do nome completo, idade, sexo, profissão, estado civil entre outros. Com o levantamento da história de vida pregressa buscou-se dar consistência às respostas obtidas no discurso livre.

Para a realização da entrevista, foi utilizado um gravador sob permissão do entrevistado e da instituição.

2.5 Tratamento dos dados

Como a análise dos dados desta investigação foi realizada dentro de uma concepção qualitativa, onde a complexidade do texto, presença de determinados temas e relacionamento entre eles apontam os diversos valores de referência e significados presentes no discurso, optamos pela técnica de análise temática utilizando as concepções sobre qualidade de vida de FORATTINI (1991). Este tipo de técnica possibilita averiguar uma concepção dinâmica de linguagem, onde a investigação dos objetivos da pesquisa, assentam-se na comunicação, tendo por finalidade, produzir interferências sobre qualquer um dos elementos básicos dessa comunicação. Permitimo-nos apresentar as concepções sobre qualidade de vida de FORATTINI (1991) juntamente com os resultados e comentários, por acreditarmos que esta proximidade facilite a compreensão do leitor.

3. RESULTADOS E COMENTÁRIOS

A apresentação dos resultados seguirá seqüência que, inicialmente, aborda a caracterização da população e a análise dos resultados da entrevista gravada e transcrita, segundo a proposta de FORATTINI (1991). Para melhor visualização e compreensão dos resultados numéricos, serão apresentados sob a forma de quadro.

Segundo os dados apresentados no quadro 1, é possível observar que, os entrevistados encontram-se numa faixa etária de 23 a 40 anos, sendo que a idade média entre eles é de 35,8 anos. Todos são do sexo masculino, visto que em dados estatísticos o número de lesados medulares é maior no sexo masculino quando comparado ao sexo feminino (FARO, 1991; FARO, 1995; SPÓSITO, 1986). Quanto à fonte de renda, observa-se que a totalidade dos entrevistados possui uma ocupação, embora não a estivessem exercendo após a lesão. Ainda 3 deles têm dependentes como filhos e esposa, sendo que a maioria deles (4) são procedentes de São Paulo. No que se refere ao nível de lesão, verificamos que 3 pacientes apresentam lesão medular em nível de coluna torácica e 2 em nível de coluna cervical. Ressaltamos que a etiologia traumática caracteriza-se por causas externas como acidentes (automobilísticos, mergulho e queda e apenas 1 paciente apresentava tumor.


Pela apresentação dos dados de identificação; observa-se que estes entrevistados perfazem um tempo médio de lesão medular de 6 meses, fator este fundamental para que se possa compreender as diferentes fases pelas quais estas pessoas estão passando.

Quanto aos dados obtidos no discurso livre, foram categorizados utilizando-se a proposta de FORATTINI (1991).

FORATTINI (1991), divide os fatores determinantes da qualidade de vida, nas seguintes categorias:

1. Orgânica: que inclui dados sobre saúde e estado funcional;

2. Psicológica: que soma uma gama de informações, onde se pretende discutir dados sobre a identidade, auto-estima e aprendizado;

3. Comportamental: onde serão discutidos hábito de vida profissional e de lazer;

4. Social: onde estudaremos relacionamento, privacidade, sexualidade conjuntamente com a categoria estrutural que será comentada a seguir;

5. Estrutura: discutiremos dados. sobre a posição social e significado da própria vida;

6. Material: que engloba dados referentes economia conjuntamente com as categorias social e estrutural.

O tempo médio de duração das entrevistas foi de 19 minutos e 15 segundos, sendo que a mais extensa durou 30 minutos e a mais curta 5 minutos.

As informações obtidas através das entrevistas deram origem às seis categorias propostas por FORATTINI (1991), ou seja, os indivíduos que apresentam lesão medular enfrentam modificações importantes em vários níveis: orgânicos, psicológicos, comportamentais, estruturais, sociais e materiais

3.1 Modificações orgânicas: pretende-se nesta categoria estudar as modificações ocorridas no estado de saúde e estado funcional referidas nas entrevistas.

Os resultados obtidos nesta categoria revelam que em 5 entrevistas feitas, 4 delas revelaram mudanças no estado de saúde e no estado funcional principalmente quanto à nível da incapacidade de locomoção independente. Esta alteração dará origem a problemática de enfrentamento a qual subsidia a qualidade de vida deles. Ou seja, este fator é o fundamental gerador de alterações em nível psicológico, comportamental, estrutural, social e material, conforme veremos nas falas que se seguem.

"Num ando, tô andando no braço dos outros por enquanto, e as partes de baixo; desde quando eu caí, naquele acidente, né? Só não é a mesma coisa do que quando eu tinha saúde, porque eu andava, tudo o que quisesse eu mesmo fazia, num ficava ocupando os outros e agora se ando, eu, ando nos braços dos outros".

Apenas um entrevistado citou como alteração orgânica, a mudança do estado funcional dos órgãos genitais como; objeto de preocupação e de importância no momento, levando a uma mudança em sua vida social.

"Eu não tenho namorada, mas também não dá, para ter"... "Não tenho sentimento, sensibilidade, você não sente nada, então namorada... é melhor amigo."

A dificuldade de não poder estar vindo mais vezes, embora eu precise e queira, eu não posso, porque atrapalha o trabalho dos meus irmãos...

"Então, antes eu não mexia nem os dedos, ai eu comecei a ser tratado aqui, conheci um monte de gente nova na mesma condição que eu, ai agente fez amizade, trocava experiências, cada um contava um pouco de si, e com, o tempo eu fui melhorando, agora, olha, eu mexo os braços, as mãos, não dá ainda para empurrar a cadeira porque ela é pesada e eu não tenho muita força, mas agora olha, eu consigo me mexer...."

3.2 Modificações psicológicas: Entende-se por modificações psicológicas as condições que interferem na identidade, auto-estima e aprendizado. Os resultados obtidos nas entrevistas possibilitaram identificar subcategorias quais sejam: cisão entre o antes e o depois; incapacidade de aceitação embora haja consciência de que o problema existe; culpa; castigo; causalidade; necessidade de apoio e agradecimento; desespero pós-lesão e sensação de fim de vida, descritos a seguir.

3.2.1 Cisão entre o antes e o depois: Três dos cinco entrevistados, no decorrer da entrevista, dividiam as suas vidas em antes da lesão e após a mesma, onde o após caracteriza-se pela forte presença das perdas ocorridas. Ou seja, percebe-se pelos discursos que as pessoas que sofrem uma mudança brusca no estado de saúde ou em sua integridade física, não têm chance de se preparar para uma adaptação gradativa às modificações, diferente daquilo que acontece em indivíduos portadores de doença crônica. Portanto esta mudança súbita faz com que o indivíduo perca a sua identidade do antes e busque outra do depois baseando-se nas mudanças físicas. sociais, estruturais, etc. Antes ele era um ser "sem problemas", hoje ele é outro e quase tudo que fazia antes agora não pode fazer mais.

“Falar da minha vida... Hoje em dia não é como antes, né? Antes eu podia fazer tudo o que eu quisesse, dava para fazer tudo. Agora eu passo mais tempo em casa.”

"A minha vida, agora, bom, antigamente era boa, e hoje também, tá sendo a mesma coisa, né? Num ando, tô andando no braço dos outros por enquanto e as partes de baixo, desde quando caí, naquele acidente, só não é a mesma coisa do que quando eu tinha saúde."

Segundo BRUNNER; SUDDART (1993) os pacientes que são acometidos subitamente, por uma doença ou trauma com seqüelas, concentram inicialmente a sua atenção à doença e/ ou nas seqüelas que se apresentam, muitas vezes negando a sua nova condição.

3.2.2 Aceitação e conscientização do problema: Na análise dos discursos, apareceram com freqüência relatos em que os entrevistados, mesmo tendo conhecimento do problema e estando conscientes das seqüelas permanentes, apresentavam dificuldades em aceitar a sua nova condição. Para SAWEY; TELFORD (1971), quando as exigências internas ou externas estão além dos recursos da pessoa, esta sofre uma tensão que pode ser enfrentada de diversas maneiras. A tensão que engendra altos níveis de ansiedade resulta, com freqüência, no desenvolvimento de padrões de comportamento defensivo. Ou seja, as exigências internas de cobrança da própria liberdade, e externas de que tem que voltar ao mundo e cumprir com o seu papel, geram uma tensão que o faz agir de forma defensiva evitando e retirando-se do convívio social em casos mais extremos, além de que estas exigências propiciam a dificuldade de aceitação, pois esta implica em fazer com que o indivíduo reconheça que seus sonhos e os seus objetivos têm que tomar provavelmente um outro rumo daquele planejado, e que a solução para esta problemática nem sempre é clara e simples.

"Mas a minha vida é assim, é a mesma coisa, graças a Deus eu tô vivo ainda eu tô satisfeito, é a mesma coisa ainda."

"Eu não sei o que falar da minha vida, eu não quero, eu não gosto de /alar da minha vida."

"Dificuldade nenhuma não... eu, ainda quero melhorar mais ainda, quem sabe até voltar a andar, e a minha esperança é voltar a trabalhar, sustentar os filhos e a esposa."

3.2.3 Culpa e castigo: Em duas das entrevistas realizadas apareceu a culpa referente indisciplina em utilizar equipamentos de segurança que os protegesse contra o ocorrido, e não no sentido do fato ocorrido em si. Segundo BRUNNER; SUDDART (1993), na presença de uma anormalidade física, onde haja uma causalidade, o indivíduo passa por diferentes estágios de adaptação, cada um com uma característica peculiar. Estes estágios, são desde a passagem do estado de saúde para o estado de doença até a convalescença, e entre estes estágios o indivíduo apresenta geralmente uma sensação de culpa parcial do ocorrido, outros encaram a sua situação corno um castigo divino por algum erro que tenham cometido no seu passado, ou seja a culpa aparece de forma indireta; a culpa por ter feito algum mal no passado o levou ao castigo do presente.

"Eu tenho os problemas do que falta na minha vida, mas tenho que me conformar, nó? É que tô passando, né?, mas graças a Deus... ta faltando, né?, mas fazer o quê? tem que se conformar, você não pode mandar nas vontades de Deus, vai fazer o quê, mas aí tem que se conformar mesmo, daí, falta mesmo o que eu era antigamente, mas não pode fazer nada, né? Só Deus..."

A causalidade anula a sensação de culpa que o indivíduo possa vir a assumir, ajudando-o assim a defender-se do peso da culpa.

"Isso que aconteceu poderia ter acontecido com qualquer outra pessoa, comigo, com mas eu não tive culpa."

3.2.4 Vergonha: a vergonha aparece pela sensação de incapacidade de autocontrole das necessidades fisiológicas, assim como a incapacidade do autocuidado, e não aparece sob a forma de sensação de inferioridade e de indivíduo estigmatizado.

ROCHA (1991), afirma que a partir da estigmatização, o deficiente físico compreende seu corpo enquanto objeto de vergonha ao experimentar incapacidades em relação ao padrão vigente de produtividade, afetividade e 'sexualidade. Os atributos desabonadores parecem-lhes naturais, sentem pena de si, raiva do mundo como se o mesmo os tivessem levado à fatalidade, sem no entanto compreenderem a lógica das relações que se instauram sobre a sua diferença.

Diferente daquilo que foi exposto por ROCHA (1991), este estudo revelou a despreocupação dos portadores de lesão medular em se exporem em público por sentirem vergonha do seu corpo, inclusive, eles percebem que são estigmatizados mas não permitem que este fato interfira de forma radical em suas vidas sociais, conforme mostra esta fala.

"Eu não me sinto envergonhado de mim, as pessoas te olham, a gente percebe que elas olham de forma diferente porque eu também olhava assim, mas eu não ligo, não tenho vergonha. Eu acho que as pessoas te olham, porque não ó comum, ver um tetraplégico na rua andando numa cadeira de rodas, eu acho que não são as pessoas normais que discriminaram os tetraplégicos, são eles que se escondem."

O contrário, portanto, aparece ao se tratar da incapacidade para o autocuidado e autocontrole das necessidades fisiológicas,

Eu não gosto de falar mas eu vou falar, né?, tudo depende de uma pessoa, para fazer as coisas eu faço na cama, o banheiro eu ainda não posso usar, né? Eu num saio da cadeira , e num vô para a cama, só que meu, banho é na cama, tudo isso é feito na cama.”

3.2.5 A mercê do destino: em três das cinco entrevistas realizadas aparecem trechos dos discursos que deixam explícitas a falta de perspectiva futura e independência para agir. Segundo ROCHA (1991), as condições de vida que tendem a perpetuar seu processo de subordinação às regras e normas de caráter marginalizadores, torna o sujeito passivo diante de sua história, incapaz de rever o destino que a cultura dominante lhe impôs como meta:

"Eu sei que não há esperança, mas eu quero ter esperança, mas se Deus quer assim, ele é quem, sabe."

"Fazer o quê?, é a vontade de Deus a gente tem que se acostumar, né ?”

"Eu vou levar vida do jeito que der e da forma que se apresentar, ta?

3.2.6 Desespero pós-lesão: Assim como foi dito anteriormente, e que será reforçado, o indivíduo que sofre uma mudança brusca do estado de saúde para o estado de doença ou da integridade física para o seu distúrbio grave, sofre mudanças em todos os níveis que influenciam a qualidade de vida e muitos destas pessoas não possuem estrutura psicológica compatível com a sensação de perda, encontrando então, dificuldade para adaptar-se a essa nova situação. A perda de esperanças e a perspectiva de que a situação pós-lesão medular é permanente, associada á situação de desespero inicial, pode levar o indivíduo, em alguns casos, a atitudes dramáticas:

"eu ficava o tempo todo só pensando besteira, em me suicidar..."

"No inicio eu só pensava besteira, pensei que nunca mais ia voltar a me mexer, nem um pouco."

Para finalizar a categoria mudanças psicológicas comentaremos a respeito do componente que se segue:

3.2.7 O fim da vida: É difícil a discussão deste componente, pois o fim da vida refere-se ao produto da análise onde foi referido, pelos entrevistados, quanto ao término de suas obrigações, compromissos e até mesmo sonhos desta vida, ou seja , tudo aquilo que foi vivido pelo entrevistado foi a sua história de vida , e a sua perspectiva de vida agora resume-se em ver o tempo passar.

“Enquanto eu pude andar eu aprovetei bastante, não posso reclamar, eu fiz tudo o que eu tinha que fazer.”

"Sem pressa leio revista, vejo TV vejo TV, sempre tem uma, interrupção de visitas, de amigos da minha mãe, da minha família, entre uma visita e outra, jornal, revista, televisão... e vai passando o tempo.”

3.3 Modificações comportamentais: Esta categoria, envolve os componentes referentes às modificações nos hábitos, na vida profissional e no lazer.

- Ausência de lazer e profissionalismo: Como foi observado nos dados de identificação, nenhum dos entrevistados possuía curso universitário, portanto não possuía também uma profissão e sim uma ocupação como fonte de renda. Portanto, a ausência de profissionalismo não desempenha um papel importante nesta discussão, pois não é uma característica da população em estudo. Em relação ao trabalho, ocupação, como papel social discutiremos a seguir na próxima categoria. Quanto ao lazer, nota-se uma mudança considerável, sendo que a maioria das mudanças nas atividades de lazer estão associadas à incapacidade física dependência de terceiros, dificuldade de transporte e preocupação em incomodar as pessoas, prejudicando assim as atividades de lazer como viagens e passeios principalmente.

"eu não saio assim tanto, porque não dá, eu também não fico pedindo para os outros me levarem para passear, se não eu sei que vou incomodar, aí quando os outros me chamam para passear eu sempre aceito, né"

"Do resto, ser livre, eu tenho vontade de ser, o que preocupa para gente é dar trabalho para os outros."

Neste discurso, podemos observar que além da sensação de incômodo, estas pessoas sentem uma necessidade muito grande de serem livres.

Quanto aos hábitos, os discursos revelam mudanças radicais, tal como descritas nesta fala.

"A minha vida perdeu a atividade que tinha antes, hoje não tem atividade, sem graça porque era bastante ativo, trabalhava bastante, não era de ficar nada em casa, de sair assim, agora perdeu bastante a objetividade, né?".

3.4 Modificações estruturais, sociais e materiais: Optou-se pela discussão simultânea dessas categorias supracitadas para melhor compreensão dos dados obtidos nas entrevistas.

De acordo com FORATTINI (1991) , os componentes envolvidos na categoria modificações estruturais referem-se à posição social e significado da própria vida. Nesta categoria serão estudadas a importância do trabalho, perda do papel social, status e significado que envolvem o relacionamento, privacidade e sexualidade. Onde serão abordados os dados referentes à perda do convívio social, necessidade de apoio e agradecimento e ausência de relações sexuais.

No que concerne aos dados de mudanças materiais, será discutido a dificuldade enfrentada pelo lesado medular no sustento da família.

A categoria modificações estruturais revelou forte presença em todas as entrevistas, além de importante influência sobre as outras duas categorias (modificações sociais e materiais).

Dada a complexidade do que será discutido, a apresentação dos resultados que aqui se encaixam será feita de forma contínua, de alguns componentes, e não mais subdivididas em itens, pois alguns deles fazem conexão com outros, como peças de um quebra cabeças.

Para SAWEY; TELFORD (1971), o homem atua em dois níveis, o biológico, onde luta pela sobrevivência e procura a satisfação para as suas necessidades orgânicas, e o social onde o indivíduo busca a aceitação, a afeição e o prestígio. O homem almeja a coesão interna e a sua própria valorização. Quando é ameaçado de desvalorização social ou quando a integridade e o amor próprio correm perigo, ele empenha-se em várias atividades defensivas. Estas atividades não alteram a situação objetiva, mas diminuem a ansiedade, na medida em que reduzem a ameaça sentida pelo indivíduo. Seguindo ainda o raciocínio do mesmo autor, as características físicas marcadas pela falta de atrativos podem constituir um meio sem propósitos para a interação social, é provavelmente verdadeiro que a avaliação feita pela pessoa de si mesma como possuidora dessas características opera como barreira mais eficaz à socialização. As avaliações sociais de sua compleição física, somadas as características físicas da pessoa, podem influir indiretamente em seu eu social e em seu conceito de "eu-mesmo." As suas características físicas podem impedir ou facilitar a aceitação social. O tratamento que as pessoas lhe facultam, pode ser determinado por suas características físicas, o que por sua vez, influenciarão seu próprio comportamento social.

"Aí num sei quando vou ter no corpo assim, estas coisas, mas num pode ser a força, tem que ser devagar, num dá, para desenvolver o corpo de uma hora para outra... quero viver que nem, os outros."

"Agora eu, quero voltar a ser mais ou menos como eu era antes, normal, quer dizer, eu sou normal."

A atribuição da concepção de deficiente leva-o a uma vida social diferente de acordo com os limites que o seu corpo impõe. A condição de viver corno pessoas normais implica em ter uma capacidade física semelhante aos demais indivíduos da sociedade, e para tanto necessita de uma estrutura física compatível.

Para ROCHA (1991), as representações sociais da deficiência física sempre tomam o corpo do deficiente como problemas fundamentais. Este é o princípio sob o qual vão se erigir todas as construções do estigma, as justificativas da segregação e propostas de intervenção. Aqui portanto, a condição corporal do deficiente é entendida dentro da lógica do desvio da normalidade, onde existem "eficientes."

A pessoa portadora de uma deficiência física permanente pode evitar o relacionamento com amigos e conhecidos devido à diminuição de sua energia física ou devido à diminuição de auto-conceito, sentindo-se indigno de contatos sociais ou simplesmente incapaz de participar de atividades sociais (TRENTINI et al, 1990).

Os resultados das entrevistas revelam que as pessoas portadoras de lesão medular necessitam de um convívio cercado por pessoas significativas a ele para uma melhor superação e adaptação à sua nova condição. TRENTINI et al (1990)- expõem que a convivência com estas pessoas afirmam o seu conceito de eu, fazendo com que o indivíduo lesado restabeleça a sua identidade pautada nas modificações ocorridas.

Para. SAWEY; TELFORD (1971), o conceito de "eu" é, na maioria das vezes, o produto das apreciações das pessoas e grupos significativos que compõem o meio social de um indivíduo, a estabilidade do conceito de "eu" pode se mantida de diferentes modos. Neste estudo destacaremos apenas aquele que nos é importante enquanto material de estudo: uma pessoa tende a repetir e prolongar as relações interpessoais que confirmam o seu próprio conceito de "eu". Por ex: o indivíduo dependente preferirá associar-se às pessoas que o auxilia e apoia, dado que tal comportamento é congruente com a imagem que se faz da pessoa dependente. Quando as pessoas que a cercam, principalmente aquelas que são significativas e cujas opiniões ela considera, se portam uniformemente de novas maneiras em relação a ela, a pessoa analisa primeiro e depois revê a concepção que tem sobre si. A seus próprios olhos torna-se uma pessoa diferente. Vejamos esta fala:

"Quando eu voltei para a minha casa eu comecei a receber visitas de amigos, parentes, que me davam muito apoio, que me ajudaram muito a superar este estado."

Necessidade de apoio de pessoas significativas para a superação e adaptação da transição de normalidade para. deficiência:

"Eu sei que eu não posso fazer um, monte de coisas, para coisas, para quase tudo eu preciso de ajuda, minha esposa ajuda, eu preciso de ajuda para me trocar, para tomar banho, para usar o banheiro, para quase tudo eu não consigo fazer sozinho, e a minha esposa é a pessoa mais importante para mim."

Da mesma forma que os resultados mostraram necessidade de apoio enquanto superação da mudança do padrão de normalidade para deficiência, a necessidade de agradecimento assume papel importante nas discussões, levando os a um tratamento melhor das pessoas com as quais ele convive.

"Eu aprendi a dar mais valor à vida, a tratar bem as pessoas. " ... "os meus amigos me ajudaram, a superar as dificuldades, me dão a maior força, eu não posso decepcioná-los, por isso faço de tudo, tenho forças para isso."

Segundo TRENTINI et al (1990), o rumo dos acontecimentos em relação à doença crônica, aqui especificamente em relação à deficiência física permanente, imprevisível. Manter a esperança na vida está associada a ter alguém ou algo por quem viver, ou seja um relacionamento bom com familiares e amigos leva o paciente a manter a esperança e enfrentar melhor os desafios provocados pela deficiência.

Passaremos agora à discussão da importância dada ao trabalho enquanto determinante cio papel social e resgate da identidade.

A sociedade capitalista desenvolveu técnicas capazes de transformar o corpo numa máquina de trabalho, a partir dos princípios da racionalização puritana, onde o trabalho ocupa o lugar da principal virtude do homem (CHAUÍ, 1984)

"Eu trabalho fazendo o meu papel de vida."

A representação social dada ao corpo condiciona-se a uma super repressão de sua expressão própria aliada ao princípio de rendimento na produção (CHAUÍ, 1984). Culpa-se, humilha-se, diminui-se aquele que não produz o proposto e não consome o estipulado, submetendo cada homem aos critérios de status quo e não mais aos da relação que estabelecemos, em sua totalidade, entre nosso corpo, a natureza e a cultura (ROCHA, 1991).

Para ROCHA (1991), a pessoa portadora de uma deficiência física, ao apresentar um corpo dotado de alguma anormalidade transgride tabus tornando-se um desviante social. Com seu corpo imperfeito ela vivencia impossibilidades e incapacidades corporais, que além de indesejáveis a partir do padrão de produtividade que exige um corpo máquina perfeito e eficiente, foge aos padrões estéticos de beleza, consumo e de prazer. Assim, a pessoa com deficiência física torna-se um estigmatizado social.

Devido ao tempo relativamente curto de lesão que os entrevistados possuem, talvez eles ainda não tenham experimentado a sensação de serem estigmatizados frente a um acontecimento ou simplesmente eles não se consideram estigmatizados, pois em nenhum momento dos discursos aparecerem dados referentes a este tipo de sensação. A impossibilidade de trabalhar é preocupante para os entrevistados no sentido da necessidade de adquirir rendas e de assumir um papel social como resgate à sua identidade, e não no sentido de sentir-se um estigmatizado.

"Preocupação assim que eu tô, é eu num posso trabalhar, é como se eu fosse pegar peso para ganhar um, dinheirinho para não faltar pão, nó? De cada, o alimento, mas o pão de padaria, não pode faltar."

"Minha esperança é poder voltar a trabalhar, sustentar os filhos e a esposa."

Finalizando a discussão dessas três ultimas categorias, trataremos do assunto sexualidade.

Sexualidade: foi observado apenas em uma das entrevistas o papel da sexualidade enquanto problema de relacionamento social. Ou seja, pela história de vida pregressa, deste entrevistado, quando foi abordado o nível sócioeconômico-cultural em que vive, assumindo um caráter mais físico que sentimental. Para deixar mais claro, em todo o discurso do entrevistado, o lado afetivo estava ausente, em nenhum momento ele se referiu ao seu relacionamento com as pessoas com a qual ele convive, ao contrário, houve forte presença do lado ativo no sentido de fazer, trabalhar, etc. Portanto nas informações obtidas a respeito da sexualidade já era esperado que ele tratasse este assunto como o tratou; ele acredita na impossibilidade da construção de um relacionamento afetivo entre homem e mulher por considerar-se uma pessoa incapaz de ter relações sexuais e portanto incapaz de satisfazer uma mulher.

"Eu não tenho namorada, mas também não dá para ter."..."Não tenho sentimento, sensibilidade, não sente nada, então namorar... é melhor ser amigo.

4 CONCLUSÃO

Neste trabalho foi constatado que pessoas que apresentam lesão medular enfrentam uma mudança brusca de estado de saúde para o de doença. Diante desse fato sofrem alterações nos diversos níveis que permeiam a qualidade de vida. Níveis estes expostos por FORATTINI (1991) onde foi baseada a discussão desta pesquisa. As modificações orgânicas são marcadas principalmente pelo deficit de locomoção e movimentação dos membros. A cisão entre o antes e o após lesão, dificuldade de aceitação, embora haja conscientização do problema, culpa parcial do acontecimento, castigo divino, vergonha da impossibilidade de autocuidado e controle das necessidades fisiológicas, colocar-se a mercê do destino, desespero pós-lesão e sensação de fim de viela, foram os resultados obtidos nas discussões que permeiam as modificações psicológicas, um dos ramos da discussão mais vastos e complexos. Quanto ao aspecto comportamental, foram abordadas as modificações dos hábitos e a ausência de lazer, também sofre modificações estruturais, sociais e materiais onde concentram a sua maior preocupação na sensação de perda, perda do trabalho, perda do papel social, status, significado da vida e convívio social, assim como expressam também a necessidade de apoio e agradecimento, onde a razão do seu viver pode ser algo ou alguém.

O maior número de respostas obtidas se enquadram nas categorias psicológicas e sociais o que denota a importância do realinhamento da abordagem a esses pacientes pelo enfermeiro, vislumbrando a importância desses aspectos na qualidade de vida dessas pessoas.

ANEXO

FORMULÁRIO

1. Coleta de dados para a caracterização da população

Nome:__________________________________________________________________

Idade: _________________________________________________________________

Grau de instrução:________________________________________________________

Ocupação:______________________________________________________________

N° de dependentes: ______________________________________________________

Nível Social: _________________________________ (sal. min.)

Procedência: ____________________ Estado civil: ______________________________

Tempo de lesão medular (meses): ____________________________________________

Nível da lesão: _________________

etiologia: _______________________

2. Fale-me sobre sua vida

  • AMARAL, L.A. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules) . São Paulo, Robe, 1995.
  • BRUNNER, L.S.; SUDDART, D.S. Tratado de enfermagem médico-cirúrgica 7 ed., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 199:3. cap. 10, p.11-27: Resposta humana à doença.
  • CHAUI, M. Repressão sexual: essa nossa (des) conhecida. 4 ed. São Paulo, Brasiliense, 1984.
  • DUCHARME, S. et al. Função sexual: aspectos clínicos e psicológicos. In: DE LISA, J.A. (ed) Medicina de reabilitação: princípios e prática, São Paulo, Manole, 1992. cap 27, p.601-22.
  • FARO, A.C.M. e. Estudo das alterações da função sexual em homens paraplégicos São Paulo, 1991. 98p. Dissertação (mestrado)-Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • FARO, A.C.M. e. Do diagnóstico conduta de enfermagem: a trajetória cio cuidar na reabilitação do lesado medular. São Paulo, 1995, 207p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • FERREIRA, A.B. de H. Novo Dicionário Aurélio 2 ed., Rio cie Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
  • FORATTINI, O.P. Qualidade de vida e meio urbano: a cidade de São Paulo, Brasil. Rev.Saúde Públ. São Paulo, v. 25, n.2, p.75-86, 1991.
  • GOFFMAN, E. Estigma - Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
  • HOGAN, R. Human Sexuality: a nursing perspective. 2 ed. Connecticut, Appleton Century Crofis, 1994.
  • LIANZA, S.; SPOSITO, M.M.M. Reabilitação: a locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, Sarvier, 1994.
  • LIMA,M.C.P. Aspectos psicossociais da sexualidade de pessoas portadoras de lesão medular. Rev.Psicol., v.5 ,n.2, p.1:3-21,1987.
  • MILLER, J.F. Coping with chronic illness overcaming power-lessness Philadelphia, Davis, 1983.
  • PINEL,A. Mitos sobre sexualidade e deficiência . In: CAVALCANTI, R.C. ; VITIELLO, N.(ed.) Sexologia - I: textos cio 1ş Encontro Nacional do Sexologia. São Paulo, Femina Livro, 1984. p. 83-8
  • ROCHA, E.F. Corpo deficiente em busca da reabilitação? urna reflexão a partir da ótica das pessoas portadoras de deficiência física. São Paulo, 1991, 301 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
  • SAWEY, J.M.; TELFORD, C.W. Psicologia do ajustamento. São Paulo, Cultrix, 1971.
  • SPÓSITO,M.M.de M.et al . Paraplegia por lesão medular-estudo epidemiológico em pacientes atendidos para reabilitação. Rev.Paul.Med., v.104, n.4, p.196-202,1986
  • TRENTINI, M. et al. Mudanças no estilo de vida enfrentadas por pacientes em condições crônicas de saúde. Rev. Cancha Enf. , v.1 1, n. 1 , p.18-28, 1990.

ANEXO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 1997
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