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Paradoxo da vida entre sobreviventes do câncer de bexiga e tratamentos* 3 *Extraído da tese "Os significados da depressão entre pacientes com câncer de bexiga em seguimento terapêutico", Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2014.

Resumo

OBJETIVO:

Interpretar o significado atribuído à experiência do câncer de bexiga entre sobreviventes em seguimento terapêutico.

MÉTODO:

Empregou-se a abordagem metodológica qualitativa, embasado pela antropologia médica e método narrativo. Após aprovação do Comitê de Ética, os dados foram coletados de janeiro 2014 a fevereiro de 2015, por meio de entrevistas semiestruturadas gravadas, observação direta e registros no diário de imersão com grupo de seis homens e seis mulheres, entre 57 e 82 anos, em seguimento terapêutico em um hospital público universitário. As narrativas foram analisadas por meio da análise temática indutiva.

RESULTADOS:

Os sentidos revelam as dificuldades com o processo da doença e do tratamento, como rupturas na vida, futuro incerto pela possibilidade de recidiva da doença, continuidade do tratamento e controle emocional, relacionando-se com as ponderações contraditórias da vida atual. Assim, o significado desta síntese narrativa é de paradoxo.

CONCLUSÃO:

A interpretação do significado da experiência com câncer de bexiga entre os adoecidos permite ao enfermeiro um olhar integralizado do cuidado que perpasse as dimensões biopsicossociais dos adoecidos e, com isso, sistematize a assistência de maneira humanizada.

Descritores:
Neoplasias da Bexiga Urinária; Sobrevivência; Cultura; Antropologia Médica; Enfermagem Oncológica

Abstract

OBJECTIVE:

To interpret the meanings attributed to the experience of bladder cancer among survivors in therapeutic follow-up.

METHOD:

Qualitative methodological approach, based on medical anthropology and narrative methodology. After approval by the research ethics committee of a public university hospital, data were collected from January 2014 to February 2015, by means of recorded semi-structured interviews, direct observation and field journal entries on daily immersion with a group of six men and six women, aged between 57 and 82 years, in therapeutic follow-up. Narratives were analyzed by means of inductive thematic analysis.

RESULTS:

The meanings revealed difficulties with the processes of disease and treatment, such as breakdown of normal life, uncertainty about the future due to possible recurrence of the disease, difficulty with continuity of care and emotional control, relating it to conflicting ways of understanding the present life. Thus, the meaning of this narrative synthesis is paradox.

CONCLUSION:

Interpretation of the meaning of experience with bladder cancer among patients provides nurses with a comprehensive view of care, which encompasses biological, psychological and social dimensions, and thereby systematizes humanized care.

Descriptors:
Urinary Bladder Neoplasms; Survival; Culture; Anthropology, Medical; Oncology Nursing

Resumen

OBJETIVO:

Interpretar el significado atribuido a la experiencia del cáncer de vejiga entre supervivientes en seguimiento terapéutico.

MÉTODO:

Se empleó el abordaje metodológico cualitativo, fundado en la antropología médica y el método narrativo. Después de la aprobación del Comité de Ética, los datos fueron recogidos de enero de 2014 a febrero de 2015, por medio de entrevistas semiestructuradas grabadas, observación directa y registros en el diario de inmersión con grupo de seis hombres y seis mujeres, entre 57 y 82 años, en seguimiento terapéutico en un hospital público universitario. Las narrativas fueron analizadas mediante el análisis temático inductivo.

RESULTADOS:

Los sentidos desvelan las dificultades con el progreso de la enfermedad y del tratamiento, como rupturas en la vida futura incierta por la posibilidad de recidiva de la enfermedad, continuidad del tratamiento y control emocional, relacionándose con las ponderaciones contradictorias de la vida actual. Así, el significado de esta síntesis narrativa es de paradoja.

CONCLUSIÓN:

La interpretación del significado de la experiencia con cáncer de vejiga entre los enfermos le permite al enfermero una mirada integrada del cuidado que supere las dimensiones biopsicosociales de los enfermos y, con eso, sistematice la asistencia de manera humanizada.

Descriptores:
Neoplasias de la Vejiga Urinaria; Supervivencia; Cultura; Antropología Médica; Enfermería Oncológica

Introdução

Segundo levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre as estimativas globais de câncer realizado em 2012, houve 429.800 novos casos de câncer de bexiga e 165.100 óbitos decorrentes desta enfermidade1Torre LA, Bray F, Siegel RL, Ferlay J, Lortet-Tieulent J, Jemal A. Global Cancer Statistics, 2012. CA Cancer J Clin [Internet]. 2015 [cited 2015 May 04];65(2):87-108. Available from: Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.3322/caac.21262/pdf
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. No Brasil, para o ano de 2014, esperava-se 6.750 novos casos em homens e 2.190 em mulheres2Brasil. Ministério da Saúde; Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2014: Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2013..

Tratando-se do câncer de bexiga, o tabagismo é o principal fator de risco, além de ser o tipo mais comum de câncer do trato urinário e uma neoplasia que acomete mais homens do que mulheres1Torre LA, Bray F, Siegel RL, Ferlay J, Lortet-Tieulent J, Jemal A. Global Cancer Statistics, 2012. CA Cancer J Clin [Internet]. 2015 [cited 2015 May 04];65(2):87-108. Available from: Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.3322/caac.21262/pdf
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,3 Hall MC, Chang SS, Dalbagni G, Pruthi RS, Seigne JD, Skinner EC, et al.; American Urological Association. Guideline for the management of nonmuscle invasive bladder cancer (stages Ta, T1, and Tis): 2007 update. J Urol. 2007;178(6):2314-30. . Há outros fatores ligados ao desenvolvimento deste tipo de câncer, como infecções crônicas por meio do parasita Schistosoma haematobium e exposição ocupacional a carcinógenos, como as aminas aromáticas e hidrocarbonetos, usualmente utilizados pelas indústrias no processamento de tintas, tinturas, metal e produtos petrolíferos1Torre LA, Bray F, Siegel RL, Ferlay J, Lortet-Tieulent J, Jemal A. Global Cancer Statistics, 2012. CA Cancer J Clin [Internet]. 2015 [cited 2015 May 04];65(2):87-108. Available from: Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.3322/caac.21262/pdf
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.

O câncer de bexiga, também conhecido como carcinoma urotelial, apresenta-se como um grupo heterogêneo de tumores com comportamentos, tratamentos e prognósticos distintos4Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Manual de condutas. Gramado (RS): SBOC; 2011. Câncer de bexiga; p. 173-90.. O principal sinal da doença é a presença de hematúria na urina em quantidade e frequência variáveis, cujo diagnóstico se faz com a realização de exame de urina, cistoscopia e biópsia do tumor por meio da ressecção transuretral da bexiga (RTUb). Este último também é utilizado para fazer o estadiamento da doença, que orientará o profissional na melhor conduta terapêutica3 Hall MC, Chang SS, Dalbagni G, Pruthi RS, Seigne JD, Skinner EC, et al.; American Urological Association. Guideline for the management of nonmuscle invasive bladder cancer (stages Ta, T1, and Tis): 2007 update. J Urol. 2007;178(6):2314-30. .

De acordo com estudos clínicos, em 80% dos acometidos, o câncer de bexiga é diagnosticado em um estágio não invasivo e os tratamentos conservadores são mais eficazes e o prognóstico é melhor5Hardt J, Gillitzer R, Schneider S, Fischbeck S, Thüroff JW. Coping styles as predictors of survival time in bladder cancer. Health [Internet]. 2010 [cited 2015 May 25];2(5):429-34. Available from: Available from: http://file.scirp.org/Html/1776.html
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. Entretanto, o prognóstico depende de diversos fatores, como estágio, grau histológico do tumor, multifocalidade (mais que três lesões), presença de invasão linfática, associação com carcinoma in situ, morfologia e padrão de mutação genética4Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Manual de condutas. Gramado (RS): SBOC; 2011. Câncer de bexiga; p. 173-90..

Os procedimentos terapêuticos comumente utilizados de acordo com o estágio do câncer de bexiga são a ressecção transuretral do tumor da bexiga (RTUb), terapia intravesical do bacilo Calmette-Guérin (BCG), quimioterapia adjuvante e neoadjuvante e a cistectomia parcial ou radical3 Hall MC, Chang SS, Dalbagni G, Pruthi RS, Seigne JD, Skinner EC, et al.; American Urological Association. Guideline for the management of nonmuscle invasive bladder cancer (stages Ta, T1, and Tis): 2007 update. J Urol. 2007;178(6):2314-30. . Estudo identificou que, mesmo tratando-se de um tipo de câncer em que a terapêutica difere dos demais, pacientes que realizam tratamento para o câncer de bexiga apresentam algumas reações e atitudes semelhantes aos outros pacientes oncológicos, mas as experiências quanto aos tratamentos cirúrgicos são individuais6Fitch MI, Miller D, Sharir S, McAndrew A. Radical cystectomy for bladder cancer: a qualitative study of patients experiences and implications for practice. Can Oncol Nurs J [Internet]. 2010 [cited 2015 May 06];20(4):177-81. Available from: Available from: http://canadianoncologynursingjournal.com/index.php/conj/article/view/172/180
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.

Após o diagnóstico, inicia-se o período de sobrevivência do paciente oncológico e de sua família. Segundo o National Cancer Institute7National Cancer Institute. Survivorship [Internet]. Bethesda (MD); 2014 [cited 2015 Jun 18]. Available from: Available from: http://www.cancer.gov/about-cancer/coping/survivorship
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, será considerado sobrevivente aquele que foi diagnosticado com câncer e transita para o alcance do equilíbrio de uma nova vida e bem-estar, com novos ajustes às mudanças físicas e emocionais, por meio de um suporte social e do seguimento médico, apesar do medo de recorrência da doença.

A cirurgia de RTUb, principal terapia para remoção do tumor vesical, é considerada menos mutilatória, e a terapia intravesical de imunoterapia com BCG provoca menos reações do que a quimioterapia e radioterapia antineoplásicas. Embora o câncer de bexiga pareça ser "menos agressivo", os efeitos psicológicos e corporais interferem na vida das pessoas, as quais necessitam de um olhar integralizado por parte dos profissionais de saúde que as assistem.

Tanto na literatura nacional quanto na internacional, há poucos estudos com abordagem qualitativa centrados na experiência do paciente com câncer de bexiga. Desta maneira, este estudo objetiva interpretar o significado atribuído à experiência do câncer de bexiga entre sobreviventes em seguimento terapêutico. A questão norteadora do estudo foi: Como o adoecido pelo câncer de bexiga narra a experiência pela doença e tratamentos?

Método

A pesquisa foi realizada embasada no referencial teórico-metodológico da antropologia médica e da metodologia narrativa. A antropologia médica integra saúde, doença e cultura no intuito de investigar as crenças e práticas, relacionando-as com as alterações psicobiológicas e socioculturais das pessoas no processo saúde-doença8Helman C. Cultura, saúde e doença. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. . A cultura é considerada como um sistema simbólico, público e centrado no indivíduo que o emprega para interpretar seu mundo e seu agir. Desse modo, a cultura é aprendida, compartilhada e padronizada, e tem como elementos constituintes os valores, símbolos, normas e práticas9Buetto LS, Zago MMF. Meanings of quality of life held by patients with colorectal cancer in the context of chemotherapy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 04];23(3):427-34. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n3/0104-1169-rlae-0455-2572.pdf
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. Para a compreensão do processo da doença, o modelo explanatório (ME) estrutura a investigação dos modelos adotados por diferentes grupos sociais quando estes vivenciam a doença. Portanto, os MEs são modelos culturais em que as pessoas organizam as experiências da doença, conferindo-lhe sentido tanto para si quanto para os membros de seu contexto, perfazendo-as numa experiência cultural10Kleinman A. Patients and healers in the context of the culture: an exploration of the borderland between anthropology, medicine and psychiatry. Berkeley: University of California Press; 1980..

Na metodologia narrativa, as narrativas individuais da doença são vias de acesso aos sentidos compartilhados sobre enfermidade11Mattingly C. Healing dramas and clinical plots: the narrative structure of experience. 7nd ed. Cambridge: Cambridge University Press; 2007.. A proposta metodológica de Squire12Squire C. From experience-centred to socioculturally-oriented approaches to narrative. In: Andrews M, Squire C, Tamboukou M, editors. Doing narrative research. 2nd ed. London: Sage; 2012. p. 47-71. , do método narrativo individual centrado na experiência do câncer que seguiremos, produz estórias sequenciais, significativas, representam as experiências, sua reconstituição e expressão, revelando as transformações ou mudanças na identidade social e na vida com a doença. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos protocolo CAEE nº 07484212.0.0000.5393. Todos os adoecidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para assegurar o anonimato, os seus nomes são fictícios, selecionados por eles próprios.

Os participantes foram abordados no ambulatório de urologia oncológica e via telefone de um hospital universitário do interior do estado de São Paulo, a partir dos seguintes critérios de seleção: pacientes com diagnóstico de câncer de bexiga pós-tratamento cirúrgico, RTU e/ou cistectomia; com no mínimo 3 meses de pós-operatório em seguimento terapêutico; de ambos os sexos; maiores de 18 anos; sem restrições de nível de escolaridade e socioeconômico; que reportassem condições físicas e psicológicas para participação e fossem residentes no município de Ribeirão Preto/SP ou nos municípios pertencentes à DRS XIII, localizados em um raio de 100 quilômetros (Km). Os dados foram coletados neste serviço e no domicílio dos adoecidos, no período de janeiro de 2014 a fevereiro de 2015.

As técnicas de coleta de dados foram observações diretas e entrevistas semiestruturadas gravadas, norteadas pelas questões: Quando e como você descobriu o câncer?, O que passou pela sua cabeça quando recebeu a notícia?, Quais os tratamentos realizados para a doença?, Como está a sua vida hoje com o câncer e os tratamentos? e A doença interferiu em alguma atividade que fazia antes e hoje não consegue mais ou não tem mais vontade? Outras questões foram formuladas, conforme o teor das narrativas dos participantes. Além disso, algumas informações foram complementadas para a obtenção de dados socioculturais e terapêuticos. Em média, foram realizadas duas entrevistas com cada participante, alguns requereram outras para aprofundamento dos dados.

Após as transcrições de cada entrevista, das observações e dos registros do diário de imersão, foram elaboradas as narrativas individuais de cada participante, sendo complementadas a cada nova entrevista, e submetidas à análise temática indutiva13Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006;3(2):77-101.. Após a leitura de cada narrativa e do conjunto de narrativa, os dados foram classificados em categorias com as quais elaboramos as unidades de sentido, isto é, as descrições dos processos vividos pelos participantes, com seus conhecimentos e ações sobre a doença e os tratamentos, explicadas por meio de motivações e justificativas. Estas unidades de sentidos compõem os modelos explanatórios de cada participante.

Na etapa seguinte, buscou-se por temas nos discursos narrativos que representassem crenças, valores e simbolismos embutidos nas ideias e práticas empregadas nas experiências. A partir desta etapa, construiu-se a síntese narrativa relacionada à experiência com o câncer de bexiga e tratamentos. Nessa síntese narrativa, os sentidos foram organizados sequencialmente, assim como os modelos explanatórios narrados por todos os adoecidos, discutindo-os com os conceitos teóricos e a literatura sobre as temáticas. Para interpretar o significado expresso por um tema, analisaram-se as partes e a totalidade de cada narrativa individual e síntese narrativa, dialogando com os sentidos, o referencial teórico e a literatura, para a construção de explicações coerentes. Desse modo, desenvolvemos o círculo hermenêutico e obtivemos a fusão de horizontes entre participantes e pesquisadores12Squire C. From experience-centred to socioculturally-oriented approaches to narrative. In: Andrews M, Squire C, Tamboukou M, editors. Doing narrative research. 2nd ed. London: Sage; 2012. p. 47-71. .

Para alcançar o rigor metodológico do estudo, descrevemos o desenvolvimento da investigação em detalhes, selecionamos participantes que vivenciavam o fenômeno de ter câncer em seguimento terapêutico, realizamos várias sessões de coleta de dados com a maioria, mantivemos contato duradouro com eles, empregamos seus relatos nas narrativas, descrevemos os seus contextos de vida e clínicos. Cada etapa da análise foi desenvolvida em contínua discussão entre a pesquisadora principal e a orientadora do estudo, e os resultados foram argumentados de modo articulado com a teoria e a literatura atualizada14Noble H, Smith J. Issues of validity and reliability in qualitative research. Evid Based Nurs. 2015;8(2):34-5. .

O grupo de participantes foi composto por seis homens e seis mulheres (Rubão, Manuel, Paulo, Antônio, Pedro, José, Lourdes, Rosa, Letícia, Ira, Ana, Marília), uma amostra homogênea não intencional quanto ao sexo, com idade entre 57 e 82 anos, a maioria casada (8), com escolaridade variável de ensino fundamental incompleto (5) com nível superior incompleto (1), aposentados (10), católicos (8) e residentes na cidade local do estudo e região. O estadiamento do carcinoma urotelial foi variável desde o estágio inicial ao avançado. O tempo de diagnóstico da doença variou de 1 a 10 anos. Para tratamento, todos realizaram RTU, com associação da BCG para a maioria, e houve três cistectomizados. Apenas uma participante necessitou de aplicação de quimioterápicos antineoplásicos temporária, a quantidade de RTU foi de uma a três cirurgias, enquanto a realização da cistoscopia foi de uma a 11. As comorbidades presentes foram hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, dislipidemia, prostatismo, hipertireoidismo, trombose, angina, obesidade, acidente vascular cerebral prévio, infarto agudo do miocárdio e asma.

As expressões apresentadas em itálico são as que foram referidas pelos sobreviventes e exemplificam a análise das autoras.

Resultados

Os sentidos do câncer de bexiga e seu tratamento

No modelo exploratório leigo dos participantes, as mudanças corporais ou sinais e sintomas de sangramento, coágulos na urina e dor para urinar implicam que o corpo não está funcionando corretamente, podendo ser temporário ou não, como por exemplo, uma possível infecção, veia solta ou pedra que soltou e requerer solução. Inicialmente, o entendimento dos adoecidos minimizou a gravidade da condição em que estavam enrolando, deixando que vários sangramentos ocorressem até que o sangramento com coágulos se acentuasse.

Segundo as estórias narradas, o atraso no diagnóstico esteve relacionado aos fatores sociais, culturais e econômicos, tanto por parte dos adoecidos e familiares quanto do sistema oficial de saúde. O diagnóstico tardio implicou menor chance de cura, com necessidade de continuidade de avaliação médica por vários anos, tratamento mais agressivo, como a remoção da bexiga (cistectomia) com confecção de urostomia nos casos de Rubão, Lourdes e Rosa, e aplicações de BCG frequentes.

Em algumas situações a comunicação médica ocorreu de modo a suavizar o diagnóstico, empregando os termos tumor, tumorzinho maligno ou mesmo evitando o nome da doença segundo Ana, Paulo e Pedro. Em outras, foi chutando o balde de maneira incisiva. A forma como os adoecidos souberam do diagnóstico foi um momento de surpresa ou de confirmação do que já era esperado, visto que o câncer fazia parte da vida social deles.

O modo como lidaram com a situação foi com desespero, apreensão, tristeza, choque, emoções aprendidas na vida social após a avaliação da gravidade da doença - câncer, doença maligna. Uma forma de simbolizar a situação, na cultura dos sobreviventes, é por meio de metáforas: É um momento que baqueia qualquer um! Você perde o chão, você fala: e agora, para onde eu corro?; parece que o mundo veio abaixo!

O câncer é visto como uma doença grave, incurável, como destacam Antônio e Paulo, é uma doença perigosa, que todo mundo tem medo, é algo do demônio. Há também a rejeição quanto à pronúncia de seu nome, como expressam Paulo e Letícia, não falam nem o nome, só podia ser o dito cujo. Para a maioria dos participantes, homens e mulheres, considerando a gravidade da doença, cabem-lhes proteger a família do caos e sofrimento que se aproximam, demonstrando força para lutar e encarar o adoecimento: A gente tem que ser forte e tem que enfrentar; a fé de vencer.

No relato de Rubão, a causa foi vista como de responsabilidade por algum comportamento inadequado do passado ou coisa errada; pelo trabalho com uso de substâncias cancerígenas, como tinta, e o tabagismo, nos casos de Antônio, José e Letícia. Segundo Paulo e Marília, a causa é dada por uma explicação mágico-religiosa e de destino; Manuel refere a um defeito de nascença ou causa natural - próstata estrangulada. Entretanto, a causa hereditária (referida como genética) da doença, presente em familiares, também foi associada à explicação, você vem com uma sementinha que pode desencadear um câncer.

A forma como as narrativas sobre o tratamento foi elaborada destaca a aceitação dos tratamentos médicos propostos. Implicitamente, os adoecidos entendem que esta é a melhor opção, embora promovam desconfortos e mudanças nos planos de vida. Todas as terapias geram dificuldades temporárias ou permanentes, como expressa Manuel, se falar que uma cirurgia não dói, não sangra, é conversa fiada! Mas é um mal necessário. Se você não sangra, o organismo nem se defende.

Rubão, Lourdes e Rosa apresentaram estágios mais graves da doença e submeteram-se à cistectomia radical com confecção de urostomia. Este é o procedimento que agride os adoecidos, altera a vida cotidiana impondo o cuidado diário com a estomia e sua bolsa coletora, gerando preocupações com o odor e a excreção da urina, requerendo mudanças no estilo de vestimenta, nem sempre aceitas, além da dependência dos outros e danos na concepção de autoimagem. Com o passar do tempo, a presença da urostomia é encarada como normal.

Os outros participantes realizaram tratamentos com a RTU e aplicação de BCG. A RTU é um procedimento cirúrgico que requer internação hospitalar e procedimentos pré e pós-operatórios: interna um ou dois dias antes de fazer a raspagem. A cirurgia exige alguns dias de recuperação e podem ocorrer complicações como hemorragia apresentada pelo Manuel. A presença da sonda vesical foi a dificuldade mais destacada devido ao tempo de permanência e incômodos gerados: ficava com a sonda até clarear porque saía sangue e muita sujeira da doença. A aplicação de BCG também tem reações difíceis de serem suportadas, independentemente do sexo dos adoecidos: ela é forte prá caramba. Depois que você vai a primeira vez no banheiro, aí incomoda, arde; desregula a urina.

Em todas as narrativas, o enredo da experiência com essas terapias focou no sofrimento físico, é um sofrimento horrível, terrível, e na ruptura da vida cotidiana, como a impossibilidade de exercer atividades laborais, profissionais ou domésticas, como reportado pelo Antônio, Paulo, Pedro, Rosa, Lourdes. As terapias relatadas, embora apresentem complicações para a vida, ainda são as que possibilitam a sobrevivência dos adoecidos. O número de procedimentos de RTU é realizado por causa da recidiva da doença no próprio órgão, e os participantes têm consciência deste aspecto. Por isso, o seguimento médico periódico é necessário para o controle da doença, como diz Antônio, até hoje não voltou, mas pode voltar. Assim, a continuidade da vida sem a doença é sempre uma incerteza, fica a dúvida, sempre, se ela vai voltar! Tem que ter acompanhamento, é normal. Isso deixa a gente cansado, mas não é de abalar!

Uma lógica compensatória para lidar e suportar as reações das terapias para o câncer de bexiga é a avaliação que os adoecidos fazem em relação às reações da quimioterapia antineoplásica sistêmica: quando soube que não precisava, fiquei com alívio, porque cai o cabelo. Se você sai na rua, a pessoa já sabe que você está com isso... É melhor fazer a BCG.

Além do tratamento médico proposto, percebemos que o uso de ervas passa por avaliação quanto a sua propriedade curativa ou paliativa para a sua doença: Uso o chá da buva - uma raiz medicinal. Eu retiro umas duas lascas da raiz e coloco num litro de pinga. Todos os dias, antes do almoço, tomo um pouco. Toda planta que tem espinho é forte é boa! Uso a babosa, um anti-inflamatório natural..., a pessoa tem que ter estômago de urubu! É ruim como uma praga.

Como intervenção terapêutica, o sistema religioso foi outra fonte de apoio: tínhamos uma amiga que disse que seria bom fazer umas orações! Eu tenho que temer a Deus e não a doença, porque Ele é maior.

Com os tratamentos em andamento, mesmo sofrendo, os participantes se sentem com obrigação moral de fazer parte do tratamento, o que mantém a sua confiança para alcançar o resultado desejado: eu faço minha obrigação, faço tudo o que os médicos pedem.

Nessa trajetória, os adoecidos repensaram sobre suas experiências, buscando lógicas e práticas compensatórias a fim de recuperar o sentido da normalidade anterior à doença, como dizem os participantes ao narrarem sobre a vida atual: continuo com a vida normal que eu tinha, ...me sinto bem, ... estou boa, ...a vida é gostosa, sabendo vivê-la.

A atividade sexual foi pouco referida pelos adoecidos. Apenas três participantes lastimaram a vida sexual perdida. Rosa (urostomizada), com risadas, justifica que o marido não mais a procura por estar com a sua saúde debilitada ou pela sua idade, 70 anos. José referiu problemas de ereção e impotência sexual.

Quanto aos planos futuros, mesmo sendo idosos, com câncer e outras doenças crônicas associadas (hipertensão arterial e diabetes mellitus, entre outras), a sobrevivência e os significados do futuro são reelaborados. Rubão diz não fazer planos para o futuro, ele está se mantendo, enquanto Paulo pretende adquirir bens materiais, viajar, e Rosa, só quer ver os netos se casarem.

Discussão

A doença como processo9Buetto LS, Zago MMF. Meanings of quality of life held by patients with colorectal cancer in the context of chemotherapy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 04];23(3):427-34. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n3/0104-1169-rlae-0455-2572.pdf
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é caracterizada pelo reconhecimento dos sinais e sintomas indicativos de que o corpo não está saudável. A definição do diagnóstico e a escolha do tratamento são negociadas, em geral, pelo adoecido e familiares, por amigos, como o farmacêutico amigo; assim como a avaliação dos resultados do tratamento realizado que, quando avaliado como não resolutivo ou grave, busca-se outro tratamento. No senso comum da sociedade ocidental, a dor e o sangramento são indicativos de que há algo grave com o corpo, impedindo as atividades cotidianas e são causadores de preocupação8Helman C. Cultura, saúde e doença. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. .

A comunicação médica sobre o diagnóstico ocorre muitas vezes de maneira inadequada, seja de modo a suavizá-lo ou considerá-lo crítico, pois perpetuam os símbolos da doença estigmatizada como muito grave15Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspective de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [citado 2007 jul. 15];21(2):426-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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.

Ao descrever a doença como maligna, o adoecido a reconhece como geradora de sofrimento e que abala a vida futura. O uso de metáforas, que são figuras de linguagem, ajuda a compreender e a dar sentido a um processo de vida complexo. Esta forma de se expressar é comum entre os adoecidos oncológicos da sociedade ocidental e entre brasileiros16Carpenter J. Metaphors in qualitative research: shedding light or casting shadows? Res Nurs Health. 2008;31(3):274-82.. O estigma social criado em torno da doença, veiculado pelos próprios profissionais de saúde e mídia15Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspective de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [citado 2007 jul. 15];21(2):426-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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, provoca a rejeição na pronúncia do seu nome. Assim, a doença se torna real, pois é significada a partir de uma construção pessoal, cultural e social.

Com o diagnóstico de câncer, os adoecidos reconhecem a mudança na sua identidade de ser saudável para a de sobrevivente oncológico quando a doença é corporificada ao indivíduo17Víctora C. Social suffering and the embodiment of the world: contributions from anthropology. Rev Eletrôn Comun Inform Inov Saúde [Internet]. 2011 [citado 2014 jul. 12];5(4):1-17. Disponível em: Disponível em: http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/viewFile/552/944
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. Atitudes de enfrentamento da doença, como força para lutar e encarar o adoecimento, são necessárias para cumprir a expectativa da norma social de encarar situações difíceis18Karnilowicz W. Identity and psychological ownership in chronic illness and disease state. Eur J Cancer Care. 2011;20(2):276-82. .

Um dos aspectos fundamentais para se apreender o sentido da experiência da doença refere-se às explicações e crenças que os adoecidos têm para a sua causa9Buetto LS, Zago MMF. Meanings of quality of life held by patients with colorectal cancer in the context of chemotherapy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 04];23(3):427-34. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n3/0104-1169-rlae-0455-2572.pdf
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. No modelo médico, o tabagismo é a etiologia para o câncer de bexiga3 Hall MC, Chang SS, Dalbagni G, Pruthi RS, Seigne JD, Skinner EC, et al.; American Urological Association. Guideline for the management of nonmuscle invasive bladder cancer (stages Ta, T1, and Tis): 2007 update. J Urol. 2007;178(6):2314-30. . As explicações para a etiologia do câncer envolvem aspectos psíquicos, sociais (relacionamentos familiares e sociais), espirituais e biológicos. Apreendemos que há uma atribuição da causa aos comportamentos morais e às características individuais. Essas explicações para o câncer nos permitem entender que os modelos explicativos empregados não são puros, há influência da linguagem do modelo médico, considerando que todos os participantes estão em seguimento terapêutico, convivem com profissionais de saúde e outros pacientes. Essa influência é importante, pois as pessoas precisam das imagens construídas pelo seu meio sociocultural e do meio médico para que possam compreender o porquê da doença ou os seus sentidos. Para isso, requerem uma explicação que transcenda o corpo individual e o diagnóstico médico9Buetto LS, Zago MMF. Meanings of quality of life held by patients with colorectal cancer in the context of chemotherapy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 04];23(3):427-34. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n3/0104-1169-rlae-0455-2572.pdf
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,15Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspective de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [citado 2007 jul. 15];21(2):426-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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.

A confiança no tratamento médico é definida pela relação médico-paciente, fundamentada no reconhecimento social do conhecimento médico e dos recursos tecnológicos empregados na terapêutica que podem favorecer resultados de sucesso8Helman C. Cultura, saúde e doença. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. .

Em relação ao tratamento cirúrgico por meio da cistectomia e consequente presença de estomia, estudo19Mota MS, Gomes GC, Petuco VM, Heck RM, Barros EJL, Gomes VLO. Facilitators of the transition process for the self-care of the person with stoma: subsidies for nursing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2015 [cited 2015 Ago 03];49(1):82-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n1/0080-6234-reeusp-49-01-0082.pdf
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aponta que os facilitadores, relacionados à pessoa, para o autocuidado, são atribuir significado positivo ao estoma; receber orientações sobre os cuidados com o estoma e as transformações no viver, e sobre o preparo para essa experiência ainda no pré-operatório; apresentar estabilidade psicológica; e buscar conforto na fé e na religiosidade. Já os condicionantes relacionados à comunidade são receber equipamentos pelo governo de forma gratuita; o apoio da família e da equipe multiprofissional, em especial do enfermeiro; e o contato com outras pessoas com estomas.

A medicina trata o corpo do doente, mas os males da alma requerem outras intervenções terapêuticas8Helman C. Cultura, saúde e doença. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. . Entre os grupos de brasileiros, culturalmente é reconhecido que a cura de uma doença também requer ações do sistema folclórico de saúde. Uma prática popular de cuidado aprendida no contexto familiar e social para o corpo doente é a utilização de fitoterápicos, os chás e líquidos terapêuticos.

A religião, outra modalidade de intervenção terapêutica, ajuda as pessoas em situação limite para a compreensão do inexplicável e a aceitação da situação atual, buscando um sentido espiritual que as incentive a lidar com as adversidades da doença grave e dos tratamentos, como expressaram todos os participantes. As concepções religiosas são apreendidas no âmbito familiar e no grupo social onde a pessoa está inserida e são empregadas em todas as etapas da experiência com a doença. Num estudo narrativo com adoecidos oncológicos20Spadaccio C, Barros NF. Terapêuticas convencionais e não convencionais no tratamento do câncer: os sentidos das práticas religiosas. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2009 [citado 2011 out. 23];13(30):45-52. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v13n30/v13n30a05.pdf
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, os autores relataram que a prática religiosa é uma forma de suporte crucial para o sucesso no tratamento convencional e superação da doença.

Ao repensarem sobre suas experiências, os adoecidos embasam-se na lógica do senso comum de que necessitam passar por situações inesperadas para recuperar o sentido da normalidade anterior à doença, ou pelo menos, o mais normal possível para esta nova vida com a doença, forma de pensar comum a vários grupos de adoecidos pelo câncer9Buetto LS, Zago MMF. Meanings of quality of life held by patients with colorectal cancer in the context of chemotherapy. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 04];23(3):427-34. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n3/0104-1169-rlae-0455-2572.pdf
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O modo como a sexualidade foi reportada por alguns dos participantes é como dizer que o sexo não tem importância por ser idoso. A prática sexual é parte da sexualidade das pessoas, ela se modifica com a idade, mas a capacidade de externar seus afetos ainda é importante21Alencar DL, Marques APO, Leal MCC, Vieira JCM. Fatores que interferem na sexualidade de idosos: uma revisão integrative [Internet]. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2014 [citado 2016 jan. 04];19(8):3533-42. Disponível em: Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csc/v19n8/1413-8123-csc-19-08-03533.pdf
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. Considerando o contexto sociocultural dos participantes, observamos que as questões do sexo e sexualidade são reprimidas.

A experiência da doença e dos tratamentos expõe os adoecidos à necessidade de superar a vulnerabilidade pessoal e social, que implica gradações e mudanças ao longo do processo. Os adoecidos não são vulneráveis, eles estão vulneráveis em razão da experiência com a doença grave e num certo tempo e espaço22Gama CAP, Campos RTO, Ferrer AL. Saúde mental e vulnerabilidade social: a direção do tratamento. Rev Latinoam Psicopatol Fundam [Internet]. 2014 [citado 2015 jun. 10];17(1):69-84. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v17n1/v17n1a06.pdf
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.

As formas de pensar e agir dos adoecidos perante a experiência do câncer de bexiga e tratamentos são resultados da racionalidade leiga com influência do modelo médico que lhes dão sentidos e sustentam suas ações para lidarem com o vivido. A racionalidade empregada pelos participantes revela as relações do corpo com a mente, dos mundos individual e social, cultural, natural e espiritual. A lógica é de lutar contra as consequências da doença e dos efeitos terapêuticos, de buscar estratégias internas e externas para evitar a continuidade do sofrimento23Silva LF, Alves F. Compreender as racionalidades leigas sobre saúde e doença. Physis. 2011;21(4):1207-29.. A incerteza da recidiva da doença e a finitude da vida são pensadas de modo a não interferir na sua continuidade. Esta é uma negociação com o destino, com a espiritualidade e com a família.

Os sentidos atribuídos à experiência da doença e aos tratamentos apresentadas na síntese narrativa são semelhantes a um estudo nacional realizado com adoecidos oncológicos adultos e idosos, na abordagem da antropologia médica interpretativa15Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspective de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [citado 2007 jul. 15];21(2):426-35. Disponível em: Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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, demonstrando que há o reconhecimento de que pensamentos e práticas são culturalmente padronizados e incorporam sentimentos valorizados pelos grupos de adoecidos, independentemente do tipo de câncer e tratamento empregado. O sofrimento por ter o câncer e a incerteza no futuro são unidades de sentidos identificadas em estudo interpretativo internacional com diferentes grupos de pacientes oncológicos idosos24Karlsson M, Friberg F, Wallengren C, Öhlén J. Meanings of existential uncertainty and certainty for people diagnosed with cancer and receiving palliative treatment: a life-world phenomenological study. BMC Palliat Care [Internet]. 2014 [cited 2015 Jun 20];13:28. Available from: Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4059734/
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. Nesses estudos, o apoio da família e a atividade religiosa foram considerados as principais estratégias para os adoecidos porque possibilitam segurança e esperança para a sobrevivência.

Comparando os resultados deste estudo com os de um estudo qualitativo internacional com pessoas com câncer urológico25Heyes SM, Harrington A, Bond JM, Belan I. The lived experiences of people with bladder cancer and their partners. Cancer Nurs Pract. 2014;13(9):25-30., vale reportar que os temas da experiência com a doença foram semelhantes aos identificados neste estudo, como a interferência do tratamento na manutenção do emprego dos adoecidos, que se sentiram forçados a se aposentar e a expressarem o sentimento de punição por ter a doença, e a frequência das aplicações de BCG em virtude da recorrência do tumor, a qual gerou depressão.

Os sentidos descritos neste estudo ampliam e aprofundam as características das experiências dos adoecidos pelo câncer de bexiga e suas terapias divulgadas na literatura.

As estórias narradas sobre as dificuldades com o processo da doença e tratamentos e a relação com as ponderações contraditórias da vida atual nos leva a interpretar que esta síntese narrativa, como essência, tem o significado de paradoxo26Barret LF. Solving the emotion paradox: categorization and the experience of emotion. Pers Soc Psychol Rev. 2006;10(1):20-46.-27Leal I, Engebretson J, Cohen L, Rodriguez A, Wangyal T, Lopez G, et al. Experiences of paradox: a qualitative analysis of living with cancer using a framework approach. Psychooncology. 2015;24(2):138-46..

As narrativas descrevem sentimentos intensos com o diagnóstico, com uma junção de angústia, tristeza, finitude, e a lógica de compensação foi a de controle emocional, pois é um mal necessário. Diante do sofrimento vivido, das rupturas na vida, do futuro incerto pela possibilidade de recidiva da doença e da necessidade de continuidade do tratamento para o controle da doença, moralmente é preciso ressignificar a vida com ajuda do suporte religioso e da família e, assim, a gente cresce, a gente muda. Há um modo de pensar e agir de movimento à frente, de sobreviver com uma nova vida normal, e com otimismo, me sinto bem; eu sou feliz, deu tudo certo. Só assim a sobrevivência à doença é possível, como um paradoxo. Esta é uma prática valorizada e aprendida no contexto sociocultural dos adoecidos com doenças crônicas não esperadas. Essas atitudes também foram evidenciadas em um estudo de revisão sistemática qualitativa28Hugles N, Closs SJ, Clark D. Experiencing cancer in old age: a qualitative systematic review. Qual Health Res. 2009;19(8):1139-53., sobre a experiência com o câncer entre idosos. Os autores apresentaram que entre idosos oncológicos, recursos e estratégias são recolocados para suprir sentimentos de incerteza, medo e ansiedade. Atitudes para "combater" os sentimentos negativos são frequentemente buscadas pela espiritualidade e esperança, evitando falar sobre a doença e se posicionando aos outros como um ser feliz e sem medo do futuro.

O paradoxo da vida com câncer não significa que as experiências são resolvidas. A experiência do paradoxo é cíclica, depende da evolução da doença e ocorre com diferentes intensidades, da capacidade das pessoas em reagir e resistir, pois o câncer é uma experiência que leva às interações complexas das dimensões psicológica, existencial, espiritual, física, cultural e socioeconômica dos adoecidos, com situações dinâmicas, fluidas e ambíguas27Leal I, Engebretson J, Cohen L, Rodriguez A, Wangyal T, Lopez G, et al. Experiences of paradox: a qualitative analysis of living with cancer using a framework approach. Psychooncology. 2015;24(2):138-46..

Conclusão

Uma das limitações presentes no estudo foi a recusa de alguns participantes em fornecer novos encontros para que pudéssemos ampliar a densidade das narrativas.

A identificação dos modelos explanatórios nas narrativas individuais centradas na experiência do câncer mostrou-se como uma estratégia essencial para identificar e descrever as dimensões subjetivas da pessoa que vivencia o câncer de bexiga. Fica evidente que ter câncer de bexiga é ter "a doença", independentemente do tipo da neoplasia. Os sentidos revelam semelhanças com outros estudos já realizados sobre a temática com outros grupos sociais.

Apesar de todo o sofrimento oriundo das transformações da experiência, todos tiveram a obrigação moral de lutar, de vencer, para reequilibrar a vida com apoio familiar e religioso. O significado de paradoxo consiste nesse modo de pensar e agir de movimento à frente, e visa obter a sobrevivência à doença a partir da retomada da vida normal.

O conhecimento dos sentidos e do significado atribuídos à experiência do câncer de bexiga entre adoecidos em seguimento terapêutico permite ao enfermeiro ter o olhar integralizado do cuidado, perpassando pelas dimensões biopsicossociais dos adoecidos e, com isso, sistematizar a assistência de maneira humanizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2015
  • Aceito
    06 Fev 2016
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