Acessibilidade / Reportar erro

Entre o acadêmico e o popular: os rumos do feminismo atual

A Debate between the academic and the popular

SEÇÃO DEBATES

Entre o acadêmico e o popular: os rumos do feminismo atual

A Debate between the academic and the popular

Márcia Hoppe Navarro

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

O objetivo deste artigo é fazer uma breve comparação entre trabalhos recentes de duas feministas inglesas. O primeiro é o ensaio "Contando estórias feministas", de Clare Hemmings, e o segundo é o livro da jornalista Natasha Walter The New Feminism (O novo feminismo). O meu ponto de vista é que, embora a perspectiva de Hemmings seja acadêmica e teórica, e a de Walter, mais popular e prática, elas de certa forma coincidem sobre os rumos que o feminismo está tomando nos dias atuais.

Palavras-chave: feminismo; "Contando estórias feministas"; O novo feminismo.

ABSTRACT

The aim of this article is to draw a brief comparison between two recent British feminist works, the essay by Clare Hemmings, "Telling Feminist Stories", and the book by journalist Natasha Walter, The New Feminism. My viewpoint is that, although Hemmings' approach is academic and theoretical and Walter's more popular and practical, they come to the same conclusions about the paths feminism is taking nowadays.

Key Words: Feminism; "Telling Feminist Stories"; The New Feminism.

Este breve artigo pretende fazer um comentário sobre um artigo e um livro, publicados por duas feministas britânicas, a respeito dos rumos que está tomando o feminismo nos dias de hoje. Meu enfoque parte do artigo "Telling Feminist Stories" ("Contando estórias feministas"),1 1 HEMMINGS, 2005. O texto traduzido está sendo publicado nesta edição da REF e as citações aqui utilizadas são desta tradução (HEMMINGS, 2009). da pesquisadora e professora da London School of Economics Clare Hemmings, publicado originalmente em 2005 (e que deverá em breve ser expandido para a publicação de um livro com o mesmo título), comparando-o a seguir com o livro The New Feminism2 2 Neste artigo utilizo a segunda edição: WALTER, 1999. Todas as citações dessa obra são traduções minhas. (O novo feminismo), da jornalista Natasha Walter, publicado em 1998, e reeditado várias vezes nos últimos anos. O artigo, de certa forma, confirma alguns questionamentos e previsões sobre o futuro do feminismo que aparecem no livro.

O objetivo de Hemmings, no artigo abrangente e lúcido, é traçar uma espécie de história do feminismo da década de 70 ao começo dos anos 2000, através das várias estórias contadas ao longo dessas três décadas pelas teóricas e críticas feministas sobre as origens, o desenvolvimento e as consequências do movimento feminista ocidental.3 3 Como pesquisadora há mais de vinte anos sobre gênero e literatura latino-americana, e um pouco incomodada com a afirmação de Hemmings de estar interessada na tecnologia da construção narrativa do feminismo ocidental, enquanto o seu "ocidental" não dá nem um aceno a publicações de países latino-americanos, pensei em aproveitar o seu artigo para estabelecer uma comparação dessa construção narrativa do feminismo em países anglófonos e latino-americanos. Depois de exaustiva pesquisa, fui obrigada a desistir, pois o que existe sobre o tema é reflexo, é consequência do que é publicado ao norte. Refiro-me às estórias do feminismo, a teorização, sua forma, função e efeitos, de que fala Hemmings. Algumas críticas literárias feministas hispano-americanas que abordaram o tema de forma lúcida, mas não no sentido contemplado por Hemmings, são Lucía Guerra, Sara Castro-Klarén, Gabriela Mora, Helena Araujo, Cynthia Steele, Márgara Russoto, Luisa Campuzano, Nara Araujo, Francine Mansiello, Elizabeth Ordoñez, Nelly Richard, Carmem Beranguer, Elena Urrutia, entre outras. Dessa forma, sou obrigada a aceitar o "ocidental" de Hemmings como uma categoria inclusiva, ou seja, engloba também os países da América Latina. Como ela explica, "Por fim, essa estória circula tão amplamente que fixar suas origens como anglo-americanas não chega a capturar as transições e traduções entre contextos de enunciação feministas, tanto de língua inglesa como de outras línguas, os quais marcam o progresso da estória. Assim, prefiro permanecer com o termo "ocidental", ciente das omissões que este ao mesmo tempo cria e demonstra." (HEMMINGS, 2009, p. 217). Enfatizo aqui o termo "estórias" como narrativas para chamar a atenção ao ponto de vista da professora inglesa, que é demonstrar que as várias versões apresentadas sobre a história do feminismo não têm necessariamente um compromisso sólido com uma verdade mais ampla, já que cada uma narra de acordo com sua interpretação da realidade, ou, às vezes, repetindo citações descontextualizadas de outras feministas, criando uma miríade de narrativas, que podem ser até vistas como ficção e chamadas, portanto, de estórias (stories). Apesar disso, foi-se criando uma série de 'verdades' sobre o feminismo que foram sendo repetidas, às vezes de forma muito superficial, pois já eram consideradas 'estabelecidas', em citações de artigos acadêmicos, simplificando processos e determinando exclusões se não perigosas, pelo menos lamentáveis. Nadando contra essa correnteza que ramifica e secciona o feminismo, a teórica examina a emergência do movimento feminista e o desenvolvimento do feminismo – feminismo no singular, pois é assim que vê o feminismo. Ou, pelo menos, como ela apregoa que deveria ser vista esta que foi a mais relevante mudança nas relações sociais no mundo nos últimos 40 anos. Ou seja, Hemmings busca o ideal de feminismo valorizando a sequência e não o corte, enfatizando as relações e rejeitando as rupturas.

Clare Hemmings propõe a necessidade de estabelecer relações entre os diferentes momentos do feminismo desde a década de 70. Essas relações, aponta a teórica, seriam muito mais produtivas do que considerar que houve rupturas intransponíveis e diferenças irreconciliáveis entre as diferentes fases pelas quais passou o feminismo. De acordo com o enfoque tradicional, é comum a forma de ver o feminismo como o desenvolvimento de um processo tripartido, dividido cronologicamente em décadas, nas quais a preocupação com a unidade, a semelhança, a 'irmandade' dos anos 70, radicais e socialistas, passam para a busca da identidade e a aceitação da diversidade nos anos 80, para rumar, na década seguinte, à explicação do feminismo a partir da noção da diferença e da fragmentação, noções básicas para as feministas pós-estruturalistas.

Sintetizando a perspectiva historiográfica de Hemmings, dessas três décadas, a de 80 é muitas vezes destituída de importância, ou vista como uma ponte entre a década precedente e a década posterior, que são, por sua vez, ou glorificadas, ou demonizadas, dependendo do relato, de quem e de onde é narrada aquela estória. Por exemplo, as feministas pós-estruturalistas da década de 90 acusam as feministas da década de 70 de essencialismo, enquanto as simpatizantes destas rebatem denunciando o caminho apolítico tomado pelas correntes feministas pós-estruturalistas. Muito do artigo em questão é, então, dedicado à crítica de umas ou de outras posturas sobre o feminismo através de recortes de citações de periódicos feministas interdisciplinares publicados no mundo anglo-americano, principalmente a partir dos anos 2000.

O artigo de Clare Hemmings poderia ser mais bem definido como um projeto que promete um futuro aprofundamento,4 4 Na conclusão de seu artigo, Hemmings promete este aprofundamento: "Meu ponto de partida, no que será inevitavelmente uma série mais longa de reflexões, diz respeito ao papel das citações de importantes teóricas feministas" (HEMMINGS, 2009, p. 235). No site da London School of Economics há a referência a um livro no prelo, a ser lançado ainda em 2009, com o mesmo nome do artigo que aqui se discute. comprovando aquilo que ela propõe, por meio de uma espécie de ampla análise do discurso. A base dessa análise, como já mencionei, são as citações de jornais feministas interdisciplinares recentes (seu artigo não cita as autoras5 5 Refiro-me aqui às citações apenas, pois seu artigo como um todo examina várias feministas proeminentes, sendo uma demonstração de sua erudição sobre o tema. individualmente, apenas os periódicos e suas propostas). A professora, porém, mesmo com um número ainda reduzido de excertos, já consegue dar uma sólida ideia de suas pretensões. Por meio de uma análise textual minuciosa ela visa a desconstruir a forma como as feministas narram suas estórias sobre o feminismo, para chegar à conclusão de que é preciso, antes de mais nada, embarcar num processo de revalorização das relações entre o passado e o presente. É por isso que Hemmings não se refere a feminismos, no plural, nem à 'morte' de um feminismo e substituição por outro, mas sim a relações que precisam ser restauradas entre ambos. Ela defende uma revalorização das teóricas feministas do passado e a incorporação de seu legado histórico nas práticas de conjugação de conhecimento no presente, seu texto sendo a expressão do desejo de transformações produtivas no plano da cultura dominante. O objetivo do trabalho de Clare Hemmings é de valorização do antigo feminismo tão renegado pelas correntes modernas e de articulação daquele com essas vertentes em que o feminismo teria se dividido, para criar um feminismo que possa efetivamente cumprir sua função primordial: diminuir as desigualdades e assimetrias do poder.

O meu objetivo em estabelecer uma comparação entre esse artigo de Clare Hemmings e o livro de Natasha Walter é mostrar a defasagem entre o que circula na esfera da academia e o que é de apelo mais popular. Enquanto os trabalhos de extração erudita têm ressonância apenas entre os pares, não penetrando, portanto, no imaginário das mulheres em geral, os de apelo mais jornalístico e popular têm grande repercussão, pois há consenso sobre a necessidade de mudança e de rever o que os detratores do feminismo acusam: que este teria chegado a um beco sem saída. Não sei se as duas autoras gostariam dessa aproximação, e tampouco tenho conhecimento se os textos foram lidos reciprocamente, mas a considero relevante para exemplificar esse aspecto e mostrar como ambas tentam reverter as perspectivas pessimistas e com isso criar novas possibilidades.

Assim como Hemmings usa (e pretende utilizar no anunciado livro) como objeto de sua análise os periódicos feministas recentes6 6 Vale lembrar aqui a proposta de Hemmings: "Como a narrativa dominante da passagem da semelhança nos anos 70, para a identidade nos anos 80, e para a diferença nos anos 90 é preservada textual e retoricamente dentro da teoria feminista anglófona? Qual o trabalho discursivo e político dessa narrativa, em termos da legitimação de temas ou escolas feministas, ou do privilégio concedido a uma biografia intelectual em particular ou a uma nacionalidade? No fundo, estou interessada na tecnologia da construção narrativa do feminismo ocidental – sua forma, função e efeitos. Concentro-me em artigos recentes de periódicos inter-disciplinares feministas ou de teoria cultural, ao invés de livros acadêmicos ou antologias, para explorar essas questões. Embora livros didáticos e antologias carreguem provas claras da abordagem de década a década da teoria feminista que me interessa analisar, eles não são tão úteis para o exame das técnicas de citação que garantem uma história como prelúdio aos insights específicos das próprias autoras. Livros didáticos universitários são menos úteis para indicar um entendimento de "senso comum" do passado recente feminista, pois pretendem produzir tal passado, e não transcendê-lo." (HEMMINGS, 2009, p. 218). Apenas com relação a esta última frase e pensando em termos da comparação que aqui formulo, ela não se aplica ao livro de Walter. Creio que o livro de Natasha Walter The New Feminism produz o passado, mas também o transcende. Exemplificando isso, cito o último capítulo, intitulado "Where do we go from here?", onde ela propõe cinco metas para o novo feminismo: "one: the new feminism gets to work" (p. 223); "two: a new strategy for childcare" (p. 244); "three: men in the home" (p. 246); "four: opening the poverty trap" (p. 248); "five: support for women experiencing violence" (p. 251). Essa transcendência é também evidenciada no epílogo: "The future is feminist" (WALTER, 1999, p. 254). do mundo anglo-americano, Walter, em The New Feminism, refere-se particularmente ao significado do feminismo na Inglaterra de hoje. Considerando as enormes transformações proporcionadas pelas lutas feministas em um país como a Inglaterra, ela parte do questionamento se o feminismo já teria esgotado o seu tempo, se já poderia ser considerado algo que pertence ao passado. As jovens britânicas alcançaram um grau de liberdade jamais sonhado por suas mães ou avós, mas ao lado desse poder de agir na sociedade de acordo com sua própria determinação, sem as restrições impostas no passado aos seres humanos do gênero feminino, aparece uma verdade inquestionável: apesar da liberdade que desfrutam as mulheres, continua existindo vergonhosa desigualdade entre homens e mulheres, uma desigualdade material que a autora evidencia através de estarrecedoras estatísticas.7 7 Mostrando dados oficiais, por exemplo, Walter exemplifica essa desigualdade: 93% dos professores universitários titulares são homens, para apenas 7% de mulheres; 96% dos médicos-cirurgiões e dos diretores de empresas para apenas 4% de mulheres nessas profissões (WALTER, 1999, p. 3). Ela sugere que é muito difícil para as mulheres confrontarem a realidade de sua própria desigualdade, e por isso a permanência do feminismo é crucial. Mas para que o feminismo signifique alguma coisa para as mulheres (inglesas) desta geração é preciso mudar o enfoque antes mais voltado a uma busca de transformação na atitude das mulheres e na cultura da sociedade. Ou seja, se outrora as feministas encorajavam as mulheres a atacar as manifestações culturais da desigualdade, acreditando que isso mudaria radicalmente a sua posição na sociedade, essa hipótese não se confirmou e as mudanças na balança de poder deixam muito a desejar, principalmente no que concerne à igualdade fundamental: as mulheres são muito mais pobres8 8 Só para dar um exemplo, as mulheres inglesas ganham, em média, 79 libras por semana, enquanto os homens ganham em média 174 libras (WALTER, 1999, p.19). e continuam bem menos poderosas que os homens em todas as instâncias da sociedade.

Natasha Walter demonstra que o feminismo penetrou com tanta força na sociedade inglesa nas últimas décadas que se torna totalmente fora de lugar a ideia de que ele existe numa espécie de gueto. Como pode, pergunta ela, um jornalista9 9 Ela se refere a Richard Littlejohn. do Daily Mail escrever que para as mulheres modernas o feminismo se tornou uma irrelevância embaraçosa e arcaica, se no mesmo jornal são publicados os resultados de uma pesquisa revelando que 71% das mulheres acham que o feminismo foi muito importante e totalmente positivo? Como é possível ler numa manchete de primeira página do diário: "O feminismo foi um desastre para as mulheres",10 10 WALTER, 1999, p. 41. e as próprias páginas do jornal serem uma incontestável celebração das vitórias do feminismo? As ideias que surgiram com o feminismo certamente nunca estiveram restritas a um gueto, embora muitos críticos continuem se empenhando em difundir que elas não correspondem aos desejos da maioria das mulheres. O feminismo começou e permaneceu profundamente ligado às bases, e os anseios das mulheres comuns por educação, pelo voto, por melhores creches, por salários iguais, por contracepção, por aborto, e por uma divisão mais justa do trabalho doméstico, têm sido ouvidos através das vozes das feministas e da força das organizações feministas.

A jornalista demonstra com estatísticas que, embora grande número de mulheres ainda relute em se declarar feministas, todas são favoráveis à igualdade entre homens e mulheres, que afirmam não existir. Essa discrepância ocorre porque as mulheres foram desencorajadas a confiar no movimento feminista e a ter orgulho de suas conquistas. Elas foram continuamente levadas a acreditar que tudo que se refere ao feminismo é irrelevante às necessidades das mulheres em geral, que só diz respeito a um grupinho de feministas que pertencem ao gueto, sem ter olhos para ver como o feminismo floresce no trabalho e nas atitudes das mulheres de toda a Inglaterra. Não pagar tributo à força política e intelectual do feminismo é um sério erro histórico, pois, enfatiza a jornalista, se as mulheres inglesas acreditarem que o movimento não existe, que não conseguiu nada, que traiu as mulheres, que pertence a uma pequena facção, que foi uma ilusão, milhões de feministas perderão sua força, sentir-se-ão isoladas e sem apoio. Se, pelo contrário, as mulheres apoiarem e reivindicarem para si mesmas esse feminismo fragmentado, diversificado e tolerante dos dias atuais, elas não serão dispersadas e fragmentadas e poderão reconhecer a verdadeira força e potencial do feminismo que

é composto de um milhão de pequenas luzes, e podemos celebrar os muitos minúsculos avanços sem pedir a nenhuma delas que seja a resposta única e derradeira. Mas uma a uma, enquanto a pequena luz se espalha, compreenderemos que uma nova aurora brilha bem na face de cada uma de nós.11 11 Tradução minha. No original: "This feminism is composed by a million points of light, and we can celebrate many little advances without asking any of them to be the whole answer. But one by one, as the little light spreads, we will realize that a new dawn is shining full into the faces of every one of us" (WALTER, 1999, p. 54).

Embora a frase anterior possa parecer mera retórica, ela descreve, com uma metáfora iluminada, o trabalho de disseminação do conhecimento no qual cada uma de nós, feministas, precisa se empenhar para, através de cada pequena vitória, podermos chegar à tão necessária conscientização mais abrangente do quanto o feminismo alterou para melhor a vida de cada mulher ocidental. Mas isso não significa que o novo feminismo seja fadado apenas a considerar os aspectos locais e pessoais. Não, pelo contrário, enfatiza Natasha Walter em um dos capítulos intitulado "O novo feminismo é menos pessoal e mais político". Nos últimos anos, na Grã-Bretanha, muito do feminismo ficou preso na armadilha das obsessões pessoais. O feminismo superpersonalizou o político e superpolitizou o pessoal e, no processo, perdeu de vista os seus dois grandes objetivos: a igualdade política e a liberdade pessoal.12 12 WALTER, 1999, p. 62.

A preocupação exagerada com a inclusão dos aspectos pessoais em todas as suas nuances na agenda reivindicatória do feminismo fez com que o mesmo se extraviasse de seu objetivo político de promover a igualdade e a liberdade do gênero feminino. O novo feminismo tem como enfoque primordial a busca contínua da igualdade, que obviamente deverá reverberar mais entre as camadas de mulheres menos favorecidas, que ainda não sentiram o impacto significativo das mudanças, especialmente aquelas relacionadas à igualdade material. E este é um ponto para reflexão aqui entre nós, feministas latino-americanas, já que as condições ideais em nossos países estão longe do alcance obtido em um país como a Inglaterra, que é o foco de Natasha Walter.

O distanciamento13 13 Esse distanciamento reflete o temor que muitas críticas hispano-americanas têm de que o trabalho acadêmico seja demasiadamente elitista e separado da vida concreta da maioria das mulheres. As feministas hispano-americanas em geral mencionam um fator crucial para se empreender um estudo da implantação do feminismo na América Latina, que é a heterogeneidade da situação sociocultural da mulher. Dependendo da classe social e área cultural a que pertencem, as mulheres na América Latina vivem experiências totalmente dissímiles que impedem generalizações e interpretações globalizantes. Mas o que existe é um consenso sobre as dificuldades de adotar as categorias da produção teórica feminista anglo-americana e francesa na pesquisa sobre a atividade narrativa de escritoras latino-americanas. que as mulheres comuns britânicas crescentemente sentiam com relação às (por vezes não apenas para elas) incompreensíveis diatribes entre as feministas acadêmicas contribuiu para que se sentissem de fora e negassem ser feministas. Na academia, por exemplo, o comportamento excessivamente crítico e agressivo de algumas vertentes do feminismo com relação às outras impedia as feministas de verem os pontos em comum que as unia, o que não permitia que novas metas fossem atingidas e barreiras mais difíceis derrubadas. Às vezes as disputas e diferenças se estabeleciam por questões ínfimas que, na bola de neve dos artigos acadêmicos bem ou mal digeridos sobre o tema em pauta, se juntavam à polêmica inicial e logo se transformavam em abismos intransponíveis entre as partes em contenda. Essas disputas só enfraqueceram o feminismo, que perdeu o apoio mais popular, mas isso não levou a algo tão trágico como a assim chamada morte do feminismo. E é por isso que tanto o apelo erudito de Hemmings quanto o apelo jornalístico de Walter não visam a recuperar ingenuamente aquela 'irmandade' apregoada nos anos 70, mas sim estabelecer relações construtivas entre os pontos em comum das várias perspectivas feministas atuais, na academia e nas ruas, almejando sempre à evolução da sociedade em direção à igualdade total,14 14 Talvez refletindo essa necessidade de busca sem trégua da igualdade respeitando as vicissitudes da sociedade moderna, a Virago publicará em junho de 2009 um novo livro de Natasha Walter, intitulado Living Dolls ( Bonecas vivas). O objetivo do livro, como já diz o título, é discorrer sobre a cultura erotizada atual, em que as meninas desde cedo são pressionadas a assumir papéis de natureza altamente sexualizada, que pareciam enterrados depois das conquistas do feminismo, a ponto de se transformarem em bonecas vivas. Usando entrevistas e novas pesquisas, Walter examina uma cultura que ensina às mulheres que sua atratividade sexual é tudo que interessa, analisando o determinismo biológico e o choque entre civilizações que impede as mulheres de trabalharem juntas em busca de igualdade através das culturas e dos países. num futuro em que a palavra "feminismo" possa realmente significar apenas uma luta do passado.

[Recebido em dezembro de 2008

e aceito para publicação em fevereiro de 2009]

  • GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historias de un signo Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006. 3Ş edição para esta editora.
  • HEMMINGS, Clare. "Telling Feminist Stories." Femist Theory, v. 6, n. 2, 2005. p. 115-139.
  • ______. "Telling Feminist Stories". Revista Estudos Femistas, v. 17, n. 1, p. 215-241, 2009.
  • SCHMIDT, Rita. "Recortes de uma história: a construção de um fazer/saber". In: RAMALHO, Cristina (Org.). Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999.
  • VIDAL, Hernán (Org.). Cultural and Historical Grounding for Hispanic and Luso-Brazilian Feminist Literary Criticism Minneapolis: Institute for the Study of Ideologies and Literature, 1999.
  • WALTER, Natasha. The New Feminism 2. ed. Londres: Virago, 1999.
  • 1
    HEMMINGS, 2005. O texto traduzido está sendo publicado nesta edição da REF e as citações aqui utilizadas são desta tradução (HEMMINGS, 2009).
  • 2
    Neste artigo utilizo a segunda edição: WALTER, 1999. Todas as citações dessa obra são traduções minhas.
  • 3
    Como pesquisadora há mais de vinte anos sobre gênero e literatura latino-americana, e um pouco incomodada com a afirmação de Hemmings de estar interessada na tecnologia da construção narrativa do feminismo ocidental, enquanto o seu "ocidental" não dá nem um aceno a publicações de países latino-americanos, pensei em aproveitar o seu artigo para estabelecer uma comparação dessa construção narrativa do feminismo em países anglófonos e latino-americanos. Depois de exaustiva pesquisa, fui obrigada a desistir, pois o que existe sobre o tema é reflexo, é consequência do que é publicado ao norte. Refiro-me às estórias do feminismo, a teorização, sua forma, função e efeitos, de que fala Hemmings. Algumas críticas literárias feministas hispano-americanas que abordaram o tema de forma lúcida, mas não no sentido contemplado por Hemmings, são Lucía Guerra, Sara Castro-Klarén, Gabriela Mora, Helena Araujo, Cynthia Steele, Márgara Russoto, Luisa Campuzano, Nara Araujo, Francine Mansiello, Elizabeth Ordoñez, Nelly Richard, Carmem Beranguer, Elena Urrutia, entre outras. Dessa forma, sou obrigada a aceitar o "ocidental" de Hemmings como uma categoria inclusiva, ou seja, engloba também os países da América Latina. Como ela explica, "Por fim, essa estória circula tão amplamente que fixar suas origens como anglo-americanas não chega a capturar as transições e traduções entre contextos de enunciação feministas, tanto de língua inglesa como de outras línguas, os quais marcam o progresso da estória. Assim, prefiro permanecer com o termo "ocidental", ciente das omissões que este ao mesmo tempo cria e demonstra." (HEMMINGS, 2009, p. 217).
  • 4
    Na conclusão de seu artigo, Hemmings promete este aprofundamento: "Meu ponto de partida, no que será inevitavelmente uma série mais longa de reflexões, diz respeito ao papel das citações de importantes teóricas feministas" (HEMMINGS, 2009, p. 235). No site da London School of Economics há a referência a um livro no prelo, a ser lançado ainda em 2009, com o mesmo nome do artigo que aqui se discute.
  • 5
    Refiro-me aqui às citações apenas, pois seu artigo como um todo examina várias feministas proeminentes, sendo uma demonstração de sua erudição sobre o tema.
  • 6
    Vale lembrar aqui a proposta de Hemmings: "Como a narrativa dominante da passagem da semelhança nos anos 70, para a identidade nos anos 80, e para a diferença nos anos 90 é preservada textual e retoricamente dentro da teoria feminista anglófona? Qual o trabalho discursivo e político dessa narrativa, em termos da legitimação de temas ou escolas feministas, ou do privilégio concedido a uma biografia intelectual em particular ou a uma nacionalidade? No fundo, estou interessada na tecnologia da construção narrativa do feminismo ocidental – sua forma, função e efeitos. Concentro-me em artigos recentes de periódicos inter-disciplinares feministas ou de teoria cultural, ao invés de livros acadêmicos ou antologias, para explorar essas questões. Embora livros didáticos e antologias carreguem provas claras da abordagem de década a década da teoria feminista que me interessa analisar, eles não são tão úteis para o exame das técnicas de citação que garantem uma história como
    prelúdio aos insights específicos das próprias autoras. Livros didáticos universitários são menos úteis para indicar um entendimento de "senso comum" do passado recente feminista, pois pretendem produzir tal passado, e não transcendê-lo." (HEMMINGS, 2009, p. 218). Apenas com relação a esta última frase e pensando em termos da comparação que aqui formulo, ela não se aplica ao livro de Walter. Creio que o livro de Natasha Walter
    The New Feminism produz o passado, mas também o transcende. Exemplificando isso, cito o último capítulo, intitulado "Where do we go from here?", onde ela propõe cinco metas para o novo feminismo: "one: the new feminism gets to work" (p. 223); "two: a new strategy for childcare" (p. 244); "three: men in the home" (p. 246); "four: opening the poverty trap" (p. 248); "five: support for women experiencing violence" (p. 251). Essa transcendência é também evidenciada no epílogo: "The future is feminist" (WALTER, 1999, p. 254).
  • 7
    Mostrando dados oficiais, por exemplo, Walter exemplifica essa desigualdade: 93% dos professores universitários titulares são homens, para apenas 7% de mulheres; 96% dos médicos-cirurgiões e dos diretores de empresas para apenas 4% de mulheres nessas profissões (WALTER, 1999, p. 3).
  • 8
    Só para dar um exemplo, as mulheres inglesas ganham, em média, 79 libras por semana, enquanto os homens ganham em média 174 libras (WALTER, 1999, p.19).
  • 9
    Ela se refere a Richard Littlejohn.
  • 10
    WALTER, 1999, p. 41.
  • 11
    Tradução minha. No original: "This feminism is composed by a million points of light, and we can celebrate many little advances without asking any of them to be the whole answer. But one by one, as the little light spreads, we will realize that a new dawn is shining full into the faces of every one of us" (WALTER, 1999, p. 54).
  • 12
    WALTER, 1999, p. 62.
  • 13
    Esse distanciamento reflete o temor que muitas críticas hispano-americanas têm de que o trabalho acadêmico seja demasiadamente elitista e separado da vida concreta da maioria das mulheres. As feministas hispano-americanas em geral mencionam um fator crucial para se empreender um estudo da implantação do feminismo na América Latina, que é a heterogeneidade da situação sociocultural da mulher. Dependendo da classe social e área cultural a que pertencem, as mulheres na América Latina vivem experiências totalmente dissímiles que impedem generalizações e interpretações globalizantes. Mas o que existe é um consenso sobre as dificuldades de adotar as categorias da produção teórica feminista anglo-americana e francesa na pesquisa sobre a atividade narrativa de escritoras latino-americanas.
  • 14
    Talvez refletindo essa necessidade de busca sem trégua da igualdade respeitando as vicissitudes da sociedade moderna, a Virago publicará em junho de 2009 um novo livro de Natasha Walter, intitulado
    Living Dolls (
    Bonecas vivas). O objetivo do livro, como já diz o título, é discorrer sobre a cultura erotizada atual, em que as meninas desde cedo são pressionadas a assumir papéis de natureza altamente sexualizada, que pareciam enterrados depois das conquistas do feminismo, a ponto de se transformarem em bonecas vivas. Usando entrevistas e novas pesquisas, Walter examina uma cultura que ensina às mulheres que sua atratividade sexual é tudo que interessa, analisando o determinismo biológico e o choque entre civilizações que impede as mulheres de trabalharem juntas em busca de igualdade através das culturas e dos países.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br