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EDITORIAL

Este primeiro número da Revista Estudos Feministas do ano de 2012 chega junto com a eleição, pelo voto da comunidade acadêmica, da primeira reitora na Universidade Federal de Santa Catarina. Fundada há 50 anos, essa será a primeira vez que a UFSC terá uma reitora e uma vice-reitora, mulheres e feministas. A professora Roselane Neckel, do Departamento de História, foi também diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, desde 2008, e sempre apoiou a publicação da REF, assim como participou em outros momentos do Instituto de Estudos de Gênero (IEG). A vice-reitora, Lucia Helena Martins Pacheco, é professora do Centro Tecnológico, do Departamento de Informática e Estatística. Reitoras já se destacaram em outros lugares do Brasil, mas na UFSC não tínhamos ainda mulheres na Reitoria, a não ser pela vice-reitora Nilcéa Lemos Pelandré, entre 1992 e 1996. Fazemos votos de que a administração Roselane e Lúcia atinja os objetivos de transparência, diálogo, promoção da cidadania e da ética, além, é claro, da excelência acadêmica, colocados como diretrizes da gestão.

Além disso, assinalamos também, neste início de 2012, a passagem da Secretaria de Políticas para as Mulheres da ministra Iriny Lopes para a professora Eleonora Menicucci de Oliveira. Iriny Lopes sai com o projeto de uma candidatura à Prefeitura de Vitória, no Espírito Santo, reforçando o campo da participação das mulheres na política. Feminista que participou da constituição dos movimentos nas décadas de 1970 e 1980, a nova ministra Eleonora Menicucci de Oliveira construiu sua carreira acadêmica em estudos sobre a saúde das mulheres, a saúde reprodutiva e o trabalho de mulheres. Em 2008, organizou a Seção Temática da REF (volume 16, número 1) intitulada A contribuição do feminismo às pesquisas sociológicas contemporâneas, na qual publicou o artigo "O feminismo desconstruindo e reconstruindo o conhecimento". Em outro momento já havia publicado na Revista em 1993 (volume 1, número 1), junto com Lucila Amaral Carneiro Vianna, o artigo "Violência conjugal na gravidez".

Este é um número que trata especialmente de mulheres, numa perspectiva de gênero, o que se espera de uma revista feminista. Acontecimentos que nos alegram sobre mulheres, mulheres que vencem e se destacam, e também aqueles que muito nos entristecem: uma mulher que nos deixa. Maria Cristina Aranha Bruschini, mais uma voz acadêmica feminista que se cala. Este número publica o último artigo de Cristina para a REF. Sua voz se cala, mas sua escrita permanece, e permanece também aqui na Revista em que veio publicando, desde os volumes iniciais, textos sobre os temas que ocuparam suas reflexões e pesquisas acadêmicas: trabalho, divisão sexual do trabalho, trabalho feminino, trabalho doméstico. No Número Especial de 1994, a REF publicou seu artigo "O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes"; ainda em 1994, a Revista publicou o artigo "Trabalho feminino: trajetória de um tema, perspectivas para o futuro" (número 3), de sua autoria; em 1995, publicou o artigo que escreveu em coautoria com Sandra Ridenti, "Trabalho domiciliar masculino" (volume 3, número 2); em 1999, quando ocorreu a transição da Revista entre o Rio de Janeiro e Florianópolis, foi dela o primeiro artigo, em coautoria com Maria Rosa Lombardi, "Médicas, arquitetas, advogadas e engenheiras: mulheres em carreiras profissionais de prestígio" (volume 7, números 1 e 2).

Neste número, em vez de uma seção temática ou dossiê, a editoria da Revista resolveu publicar uma quantidade maior de artigos, que continuam a ser recebidos em fluxo contínuo, passando pela avaliação de pareceristas ad hoc e pela revisão cuidadosa de editoras e revisoras/es. Os textos seguintes trazem reflexões suscitadas por pesquisas que se debruçaram sobre documentos.

No artigo "Mães 'abandonantes': fragmentos de uma história silenciada", Claudia Fonseca, a partir de entrevistas com pessoas que buscam conhecer os motivos por que foram dadas em adoção e o silenciamento sistemático em torno dos detalhes de sua adoção, analisa relatórios de hospital/maternidade, processos jurídicos e informações fornecidas por instituições de acolhimento a mães solteiras referentes a processos de adoção ocorridos entre as décadas de 1950-1970 em Porto Alegre. Numa época em que a burocracia estatal ainda não tinha penetrado de forma eficaz no cotidiano da população, segundo suas palavras, a autora analisa procedimentos da "adoção à brasileira", que, embora ilegal, era generalizada pela prática, buscando desviar a ênfase costumeira dos estudos sobre adoção nas crianças e nas formas de institucionalização dessas para centrá-la nas mães que doam os filhos e na dificuldade de restabelecer essas histórias de abandono. Histórias que poderiam falar das condições das mães abandonantes e das circunstâncias que permitiram o silenciamento em torno dos processos de doação de seus filhos.

O artigo "Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres", de Jussara Reis Prá e Léa Epping, reflete sobre as ações das mulheres em movimentos feministas, relacionadas às agendas públicas nacionais para participação nos acordos internacionais de defesa e reconhecimento dos direitos femininos, nas três últimas décadas. Analisando os documentos e a participação brasileira nas conferências mundiais que compuseram a Agenda Social das Nações Unidas, desde as Conferências do México (1975), Copenhagen e Nairóbi (1980 e 1985), que precederam a Conferência de Beijing, as autoras refletem sobre as ações participativas das mulheres nos movimentos globais pelo reconhecimento de direitos humanos, das populações e das mulheres.

Margarita Danielle Ramos, em suas "Reflexões sobre o processo histórico-discursivo do uso da legítima defesa da honra no Brasil e a construção das mulheres", analisa os códigos jurídicos brasileiros desde o período colonial, buscando compreender/acompanhar neles a permanência, até décadas recentes, de argumentos que justificam e despenalizam autores de assassinatos de mulheres, pela utilização do apelo ao recurso da legítima defesa da honra masculina. Essa análise é feita considerando as mudanças nas constituições e nos códigos brasileiros referentes às reivindicações e às lutas dos movimentos pelos direitos e pela igualdade das mulheres no país.

Verónica Giordano, por sua vez, analisa as repercussões da participação do governo e de associações de mulheres argentinas no Ano Internacional da Mulher instituído pela ONU, desde a Conferência do México, em meio aos conflitos políticos pelos quais passava o país, que culminaram com o retorno e o recrudescimento da ditadura militar na Argentina, em março de 1976. Ao mesmo tempo que ressalta os limites e a resistência do Estado e de grupos à participação nessa convocatória, a autora destaca a visibilidade das mulheres como sujeitos políticos com demandas específicas, como ganhos pela participação em "La celebración del Año Internacional de la Mujer en Argentina".

Com uma abordagem mais teórica e filosófica, o artigo de Sofia Aboim "Do público e do privado: uma perspectiva de género sobre uma dicotomia moderna" nos oferece a oportunidade de refletir novamente sobre essa dicotomia tão cara à modernidade e que tem sido alvo de tantas discussões a partir do feminismo. A autora portuguesa argumenta, baseada na reflexão de muitos autores, que, diante das recentes mudanças nas sociedades contemporâneas e dos desdobramentos da cidadania nessas sociedades, essa dicotomia entre público e privado tem sido suavizada e deve ser revista.

O artigo "La influencia del género en las decisiones de los tribunales: del paternalismo judicial a los papeles familiares", elabora uma retrospectiva dos estudos sobre o peso de fatores externos em decisões judiciais. Com relação às influências dos estudos de gênero, Andreia de Castro-Rodrigues e Ana Sacau consideram que esses estudos provocaram uma sofisticação crítica na atribuição de sentenças a homens e mulheres relacionadas a perspectivas complexas dos diferentes papéis familiares exercidos por eles e elas.

Mariana Santos Damasco, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro conceituam o que se denomina "Feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993)", que dá título ao esclarecedor artigo. E, tendo como foco a importância da saúde reprodutiva, com recorte racial, os autores investigam o contexto em que emergiram as denúncias de esterilizações cirúrgicas entre mulheres negras e a relevância dessas denúncias para a formação de uma identidade entre as ativistas negras.

No artigo "Minha mãe ficou amarga; expectativas de performances de maternidade negociadas na fala-em- interação", Mariléia Sell analisa diálogos de uma psicóloga do Programa de Planejamento Familiar do SUS com mulher e homens que se submeteram à avaliação da profissional para obterem o direito à esterilização. Utilizando a análise da conversa de base etnometodológica, a articulista detém-se nos discursos em interação no intuito de melhor entender o processo de construção social da maternidade que neles se reitera como exercício de abnegação e doação, mantido no esforço compartilhado de diálogo, tanto pela/os paciente/s como pela profissional.

No artigo "Ley de matrimonio igualitario y aborto en Argentina: notas sobre una revolución incompleta", Milagros Belgrano Rawson defende a ideia de que a lei do matrimônio igualitário na Argentina, o primeiro país da América Latina que legalizou a união entre pessoas do mesmo sexo, foi um "episódio isolado" e não o coroamento de uma política em que as reivindicações dos movimentos feministas e democráticos estariam alcançando suas metas. Para a autora, a maioria dos países democráticos começou por estabelecer leis que garantiriam os direitos reprodutivos, como o uso de anticoncepcionais e a possibilidade legal do aborto, sendo as leis ligadas aos direitos mais recentes dos homossexuais. Na Argentina o processo foi inverso, e até o momento não é reconhecido o direito de livre disposição do próprio corpo, de forma gratuita e segura.

Com uma imagem instigante desde o título, "Maternizando lo político: mujeres y género en el Movimiento Sindical de la Industria Salmonera Chilena", Beatriz Eugenia Cid Aguayo apresenta em seu artigo como se configuram as questões de gênero e os discursos das líderes na indústria salmoneira do Chile, e como nessa função de liderança as mulheres organizam a sua subjetividade, maternizando o trabalho sindical e politizando a sua privacidade.

De autoria de Michelle da Silva Lima, o texto "Cooperativismo: uma experiência feminina na arte de produzir conquistas" analisa a participação de mulheres em trabalho de mutirão para a construção de casas próprias. A cooperativa, organizada por iniciativa de padre católico da comunidade estudada, em parceria de ONG, proporcionou às mulheres a oportunidade de desenvolverem conhecimento e habilidades em tarefas consideradas masculinas. Possibilitou também a atualização de seu potencial de mobilização coletiva, bem como o exercício de formas próprias de liderança.

O artigo "Novas práticas corporais no espaço doméstico: a domesticidade pop na revista Casa & Jardim durante os anos 1970", de Marinês Ribeiro dos Santos, Joana Maria Pedro e Carmen Rial, apresenta uma leitura inovadora da revista Casa & Jardim nos anos 1960 e 1970, mostrando a revista como divulgadora da linguagem pop, que propunha novas formas de interação com o espaço doméstico para as pessoas, influenciada também por movimentos como o feminismo e os da juventude da época. Ao apresentar essas novas propostas na construção das casas, nos objetos de decoração e na organização dos ambientes, a revista apresentava também novos modelos de feminilidade.

No contexto do que se poderia chamar de entendimento de re(a)presentações e reconfigurações familiares, destaca-se o artigo de Maria Cristina Aranha Bruschini e Arlene Martinez Ricoldi sobre o papel dos homens no trabalho da casa, com o provocativo título "Revendo estereótipos: o papel dos homens no trabalho doméstico". Através da análise de dados e de uma perspectiva crítica, as autoras apresentam interessantes resultados de uma pesquisa sobre a participação masculina no cotidiano doméstico.

A entrevista deste número, realizada por Soraya Resende Fleischer e Carmen Susana Tornquist, relata a trajetória de Nalu Faria, atual coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres e feminista atuante na Sempreviva Organização Feminista. Na entrevista, Nalu fala de suas vivências como feminista militante e, especialmente, da organização da Marcha Mundial a partir de um encontro no Quebec, em 1998, suas formas de atuação e sua articulação com outros movimentos, como a Via Campesina e alguns indígenas de vários países. Na entrevista são discutidos também outros temas, como aborto, saúde das mulheres, economia feminista.

Mais uma vez a seção de resenhas nos traz leitoras, leitores e leituras interdisciplinares sobre trabalho, corpo, sexualidade, maternidade, imbuídas da perspectiva feminista e de gênero. A produção teórica e crítica, bem como textos de criação têm recebido o merecido espaço, como semente ou possibilidade de se transformarem em novos estudos acadêmicos.

Cristina Scheibe Wolff

Mara Coelho de Souza Lago

Tânia Regina de Oliveira Ramos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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