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De raça, sexo e nação: uma epistemologia feminista em perspectiva histórico-política

RESENHAS

De raça, sexo e nação: uma epistemologia feminista em perspectiva histórico-política1 1 Uma versão modificada desta resenha encontra-se em Revue d'Anthropologie des Connaissances, Suíça.

Marta Magda Antunes Machado

Universidade Federal de Santa Catarina

La matrice de la race: généalogie sexuelle et coloniale de la nation française.

DORLIN, Elsa.

Paris: Éditions La Découverte, 2009. 308 p.

Como compreender a matriz da raça pelas relações entre a história do sexo (e da sexualidade) e a história da política? Da série Gênero e sexualidade organizada por Éric Fassin, e publicado inicialmente em 2006, o livro da feminista e filósofa Elsa Dorlin - reeditado como Le livre de poche em 2009 - se inscreve no conjunto de trabalhos cuja tradição crítica, sobretudo a partir dos anos 1980, ganhou relevo com as transformações e os aprofundamentos do conceito de cultura e suas implicações para a produção do conhecimento nas Ciências Humanas. Nesse sentido, trata-se de uma obra de fôlego que se situa no campo da história e da filosofia das ciências. A autora faz parte das novas gerações de pensadores/as franceses/as que discutem problemas de gênero, sexo e sexualidade articulando-os com as lógicas sociais, percebendo-os em seu cruzamento com questões econômicas, religiosas, étnicas e/ou raciais etc. Especialmente entre os anos 1990 e 2000, as perspectivas abertas pelos estudos feministas nesse campo do conhecimento seguiam sendo exploradas mediante temas como política, violência, identidade, dentre outros. Com os novos impulsos do pensamento feminista e filosófico francês, esta obra se apresenta como uma história da construção da nação francesa moderna e da produção científica (ciência médica) e política das diferenças sexuais e dos corpos sexuados e racializados. Prefaciado pela historiadora norte-americana Joan Wallace Scott, o estudo de Dorlin constitui um esforço singular no sentido de entender "como o gênero constrói a política e a política constrói o gênero" (p. 6).

Na introdução, a autora enuncia o tom de sua obra: "Este livro trabalha fundamentalmente os sistemas categoriais históricos do sexismo e do racismo, antes que as representações, ele trata de categorias do pensamento, de esquemas de inteligibilidade, da racionalidade própria à dominação". Assim, ela procura dar continuidade a uma "epistemologia da dominação", avançando em duas direções: na primeira, fazendo a genealogia das acepções modernas do "sexo" e da "raça" - como significantes para dada cultura - e mostrando seu recíproco engendramento de um ponto de vista histórico; na segunda, concentrando-se nas racionalidades dominantes e, particularmente, em suas crises, as quais atestariam a sua historicidade. De fato, inspirada em Foucault, Dorlin aponta para a complexidade das relações de saber/poder na França dos séculos XVII e XVIII, partindo do conceito de temperamento como o que funda, na "natureza", a diferença hierárquica entre homens e mulheres; por outro lado, a autora compreende igualmente os discursos da época que atacam o referido conceito, como acontece com as filosofias da "igualdade dos sexos" (século XVII), tentando perceber as estratégias discursivas e políticas, e suas contradições, mediante as quais as ideias (sobre mulheres, homens, sexo, raça e nação) se movem, vacilam e se transformam. Desse modo, a autora oferece uma história política das ciências, sugerindo uma desnaturalização das relações sociais de dominação.

A primeira parte do livro coloca o/a leitor/a diante das "doenças das mulheres", são as concepções de natureza ligadas à saúde e à doença que potencializam as diferenças entre homens e mulheres. O corpo feminino é naturalmente predisposto a doenças, contrastando com o corpo masculino, cujo atributo é a saúde. Os matizes das "categorias mutantes" pelas quais se observa a hierarquização dos sexos remontam à ciência médica da Antiguidade até o século XVII e assinalam os interesses políticos - e seus contrastes e resistências - na "natureza" (temperamento) inferior das mulheres. A segunda parte do livro mostra como as mudanças categoriais correspondem estrategicamente ao "engendramento da nação", o século XVIII valoriza o corpo "da mãe" (o da procriação), sendo esse corpo, daí em diante, definido pela saúde. Ora, assim pensado, o corpo feminino remeteria, então, ao corpo da nação francesa, e, nesse caso, a noção de raça seria gerada nas "entranhas" maternas - a matriz da raça! -, matéria para jogos políticos nacionais e transnacionais. Finalmente, a terceira e última parte do livro desvela "a fábrica da raça", a feitura de ideias e práticas de poder no encontro da nação com os "outros" (colônias, escravos e/ou indígenas, mulheres) em dimensão local e global, por assim dizer. Pelas complicadas teias de saberes/poderes entre nação e colônias, entre corpos racializados e sexualizados, entre políticas médicas e coloniais (e nacionais), uma história moderna da nação francesa se inscreve na contramão das genealogias racistas, apontando para o potencial das mutações categoriais presentes ao título da obra como pistas teóricas e políticas para uma compreensão feminista da desigualdade entre mulheres e homens, e suas resistências. Em todo caso, numa perspectiva militante.

Talvez seja oportuno sublinhar também o caráter metodológico pelo qual Elsa Dorlin desafia as linhas diretrizes das historiografias "dominantes", articulando "relações de poder" e "crise das racionalidades", imbricando saberes/poderes e política com as questões de sexo (sexualidade) e raça, para pensá-las segundo uma epistemologia feminista e política da nação francesa, como tem sido enfatizado aqui. Nesse sentido, a originalidade do seu texto é bem-vinda hoje. Por outro lado, a complexidade sugerida por Dorlin quanto à aproximação dos sistemas categoriais do sexismo e do racismo parece sofrer de uma "categorização epistemológica" no interior da própria obra, que reserva ao assunto da "raça" especialmente a última parte do livro. O tema do sexismo parece marcar certa precedência teórica no corpo argumentativo da obra (e que depõe contra o seu título), algo que se pode supor já na introdução. Quem sabe, aqui, a antropologia não teria o que dizer? Tomar "categorias nativas" em sua dimensão política, como bem faz a autora, não implicaria pensar a política dos conceitos numa perspectiva etno-histórica, por exemplo, e refletir sobre qual é a "matriz" do pensamento dito ocidental? Esse é apenas um sinal de que a excelente obra não fecha, antes, abre muitas e interessantes possibilidades de estudo e pesquisa.

Notas

  • 1
    Uma versão modificada desta resenha encontra-se em Revue d'Anthropologie des Connaissances, Suíça.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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