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A regra secreta

RESENHAS

A regra secreta

Ondina Pena Pereira

Universidade Católica de Brasília

Las estructuras elementales de la violencia. Ensayos sobre género entre a antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos.

SEGATO, Rita.

Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003. 264 p.

A riqueza do conjunto de ensaios que compõem o livro de Rita Laura Segato reside no grande fôlego teórico e na força crítica da autora, que resultam de sua honestidade intelectual insubmissa. Já o título da obra, As estruturas elementares da violência, explicita o reconhecimento da presença do sistema clássico de Lévi-Strauss na construção de sua teoria, o que não impede que a autora – mantendo diálogo aberto com a tradição – reinvente as possibilidades de aplicação do método estruturalista.

Lévi-Strauss descreveu os fundamentos da cultura humana através de um estudo minucioso dos sistemas de parentesco em que descobre a universalidade da proibição do incesto, que se realiza através da troca de mulheres entre os grupos. Trata-se, segundo o autor, da Lei Primordial, que permitiu a passagem dos humanos do estado de natureza para o estado de cultura. Se a história da espécie tem início na exigência de buscar alianças fora do grupo e essas alianças se constituem na medida em que as mulheres são trocadas, a história do gênero não tem distinção com relação à história da espécie.

Nesse ponto intervém a sutileza da argumentação de Rita Segato. Embora a autora concorde com a realidade da confusão entre as histórias – de gênero e espécie – é capaz, no entanto, de criar um lugar, deslocar a "casa vazia" da estrutura, a partir de onde desentrelaça as duas temporalidades e vê as duas histórias correndo paralelas. Com esse procedimento, aponta o que Lévi-Strauss não viu: o ato de violência que funda o sistema de trocas dessa forma instituído. No desvelamento desse ato de violência, Rita dá um lugar decisivo à história do gênero na condução da história da espécie.

Com e contra o estruturalismo, a construção da argumentação de Rita Segato nos conduz ao núcleo mesmo da Lei: a hierarquia que surge nas relações entre os gêneros – hierarquia adocicada nas páginas de Lévi-Strauss, assim como nas de Lacan – constitui-se como forma paradigmática do poder. Ao ver o poder surgir primordialmente nas relações entre os gêneros e estender-se às demais relações sociais, a autora fornece um modelo que dá visibilidade às diversas formas de usurpação, seja em termos étnicos, de classe, de organização das regiões e das nações, etc.

A teoria da usurpação "primeva" é sofisticada. Trata-se de associar ao modelo estruturalista de Lévi-Strauss a dinâmica da violência. A estrutura, tão minuciosamente descrita pelo clássico da antropologia, na perspectiva de Rita Segato só se realiza e se sustenta através de uma violência cotidiana, que, por sua vez, só ganha visibilidade na medida em que é analisada como elemento da estrutura geral. Os dois eixos da estrutura são, de acordo com Lévi-Strauss, o horizontal, correspondendo ao eixo das trocas, da circulação de dádivas e mercadorias; e o vertical, correspondendo às trocas conjugais e à progenitura. Este último é condição de possibilidade para a constituição do primeiro. Analisado com as lentes da autora, o eixo vertical, formado por relações de hierarquia e graus de valor, permite ver uma rede de relações marcadas pela violência da cobrança de tributo. No caso específico do parentesco, que dá forma às relações de gênero, "o tributo é de natureza sexual".

Tal noção de tributo dá um sentido pungente ao exercício de poder e ao fenômeno da violência, que a autora parece ter capturado de forma possivelmente definitiva: a ordem formada por pares, por iguais, depende da capacidade de cobrança de tributos que se faz na ordem dos desiguais, em que o outro passa a valer menos porque tem como carga a obrigatoriedade de pagar, de se doar ao extremo de poder vir a tornar-se vítima sacrificial. É como se a autora tivesse encontrado, entrelaçada a uma lei universal, uma regra do jogo que circula secretamente entre os pares, mas não é jamais explicitada, pois se constitui como crime à luz da lei.

Com esse modelo, é possível levar mais longe até mesmo os termos do mito da horda primitiva de Freud. Se a entrada na linguagem pressupõe o crime dos irmãos, o assassinato do pai para garantir acesso às mulheres do grupo, aqui, ao mesmo tempo em que internalizaram a lei, os irmãos se tornaram cúmplices no estabelecimento de uma regra que compensa a lei. Enquanto esta interdita o crime, a regra partilhada pelos iguais os condena a perpetrarem a dominação exercida pelo pai sobre o corpo feminino, única forma de se manterem iguais. Ou seja, a lei universal, garantia da igualdade entre os irmãos, sustenta-se na regra do tributo, que vitimiza sacrificialmente os subalternos.

O paradigma desenhado por Rita Segato torna-se mais claro ainda quando a autora, no último capítulo do livro, refere-se ao femicídio que se pratica na fronteira do México com os Estados Unidos. Esses assassinatos de extrema crueldade cometidos contra jovens mulheres têm entre si características semelhantes, mas permaneceram e continuam insondáveis durante muito tempo, já que a suposição mais óbvia de crime de estupro não é capaz de iluminar o fenômeno. No entanto, a investigação atenta da autora revelou exatamente a existência da regra secreta das fraternidades mafiosas. Trata-se de realizar, diante dos pares – o eixo horizontal, no caso em questão, dos poderosos, dos traficantes –, uma demonstração de força, de poder, condição para que não sejam expulsos da confraria e passem a ocupar o lugar de subordinados na ordem hierárquica. Saltam aos olhos, então, as atrocidades cometidas em nome do equilíbrio instável da comunidade de pares na ordem patriarcal. Bem poderíamos aqui falar numa mais-valia de gênero. Se, do ponto de vista econômico, a injustiça social do capitalismo se revelou com a noção marxista de extração de mais-valia, n'As estruturas elementares da violência vê-se claramente quem paga o preço do ingresso e da sustentação nessa ordem humana, demasiado humana.

Ao colocar às claras essa regra secreta, Rita mostra em relevo aquilo que fica mais escondido pela estrutura patriarcal, o regime que a alimenta e a mantém, levando Lacan e Lévi-Strauss às últimas conseqüências. Nas palavras da autora, "o tributo, rendido em um festim macabro, aqui coincide com a própria vida subalterna, e seu destino é dar crédito aos confrades para o ingresso ou a permanência na ordem dos pares. Neste sentido, esta nova modalidade de femicídio – o femicidio mafioso ou femicidio de fratrias – é a alegoria perfeita, o caso extremo e a concreção mesma do modelo que aqui apresento" (p. 255).

Intelectual argentina vivendo no Brasil há mais de vinte anos, Rita Segato desenvolveu a singularidade do seu olhar antropológico movida pela fina sensibilidade para com o outro: a partir do intenso contato com a tradição religiosa afro-brasileira do Recife, abriu-se a possibilidade de polimento do seu principal instrumento de trabalho – a lente do relativismo –, tornando-a apta a ver as relações de gênero ganharem novo movimento e uma nova estatura na construção de suas futuras análises sobre as relações de poder e sobre a violência. A autora faz questão de reconhecer essa dívida, ao dizer na introdução: "O culto Xangô do Recife foi minha grande escola de análise de gênero, o que me facilitou, mais tarde, a leitura da completa produção intelectual desta área de estudos e também a leitura da perspectiva psicanalítica lacaniana" (p. 18).

Longe de pretender resumir aqui o rico conteúdo dos artigos de Rita, quis-se indicar apenas o seu fio condutor, que testemunha a sua saudável desconfiança no mito da maioridade do ser humano, associada, por outro lado, à sua aposta, apesar de tudo, em nossa capacidade de reflexão. Para além dos conteúdos transmitidos pela sua obra, a autora nos ensina, com sua inquietação, que é necessário deixar para trás a pergunta sobre se existe ou não um pensamento próprio na América do Sul. Em vez disso, ela constrói seu lugar de fala, marcado pela complexidade multifacetada da sua trajetória e, simplesmente, pensa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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