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Entre o saber e o fazer: entrevista com Marysa Navarro

PONTO DE VISTA

Entre o saber e o fazer: entrevista com Marysa Navarro

Claudia de Lima Costa; Simone Pereira Schmidt

Universidade Federal de Santa Catarina

Marysa Navarro nasceu na Espanha e, durante a ditadura de Franco, exilou-se na França e, posteriormente, no Uruguai, onde teve oportunidade de estudar no Instituto Artigas, de Montevidéu. Realizou estudos de Pós-Graduação na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e atualmente ocupa a cátedra Charles Collis de História em Dartmouth College, onde também exerce o cargo de diretora do Latin American, Latino and Caribbean Studies Program. Foi professora visitante nas seguintes instituições: Universidad de Barcelona, University of California at Santa Cruz, University College (Londres), Universidad de la República Oriental del Uruguay, Universidade del País Vasco e Universidad Internacional de Andalucía. É autora de Los nacionalistas (1969) e Evita (Corregidor, 1981; Planeta, 1994 e 1998) e co-organizou The Reader's Companion to U.S. Women's History (Houghton Mifflin, 1998), Women in Latin America and the Caribbean (Indiana, 1999) e La construcción de un nuevo saber: ¿Que son los estudios de mujeres? (volumes I-III) (Fondo de Cultura Económica, 1999 e 2000). Publicou mais de 60 artigos em livros e periódicos sobre o pensamento da direita na Argentina, os tupamaros, Eva Perón, mulher e o movimento operário, gênero e democratização, e sobre o movimento feminista latino-americano. Foi membro do comitê editorial da revista Signs (1976-1996) e integra os comitês editoriais da Revista Estudos Feministas, Debate Feminista (México) e Política y Cultura (México). Exerce, no momento, o cargo de presidente da Associação de Estudos Latino-Americanos (Latin American Studies Association/LASA).

Marysa Navarro esteve em Florianópolis, entre 26 e 28 de novembro de 2003, para participar do I Encontro Internacional e II Encontro Nacional de Publicações Feministas, promovido pela Revista Estudos Feministas. Aproveitamos essa rara ocasião e o privilégio de sua simpática companhia para uma conversa instigante sobre Evita, sua perene paixão, e sobre os estudos feministas nas academias norte-americana e brasileira.

Revista Estudos Feministas: Queríamos que você começasse nos dizendo um pouco da sua história de vida.

Marysa Navarro: Para falar de minha vida, começo dizendo que eu não tenho dois pés apenas, um na América Latina e outro nos Estados Unidos; devo ter três pés, porque não nasci na América Latina. Nasci na Espanha, sou basca. Nasci em Pamplona, soy navarra, mas saí da Espanha muito cedo, com a Guerra Civil. Passei minha infância na França e só vim para a América Latina em 1949, quando me mudei para o Uruguai. Morei e estudei no Uruguai em um período muito bonito, quando o país era considerado a Suíça da América e tinha um nível de educação impressionante. Estudei no Instituto de Professores Artigas, depois de concluir a licenciatura. Era um instituto que tinha, por exemplo, na literatura, professores como os críticos literários Angel Rama e Emir Rodriguez Monegal, Carlos Real de Asúa, que era um grande intelectual uruguaio, e Eugenio Coseriu, um lingüista de renome internacional. Ou seja, as melhores mentes do Uruguai estavam lá. Depois muitos foram embora, alguns foram exilados, outros morreram. Mas esse foi um período muito especial. Eu me eduquei lá e depois fui para os Estados Unidos por um ano. Retornei ao Uruguai, casei-me com um norte-americano e fui novamente para os Estados Unidos. Continuei os meus estudos na Universidade de Columbia, Nova Yorque. Fiz o mestrado e o doutorado em História. Aí comecei a ter problemas para estudar em um mundo masculino (acho que no Uruguai não enfrentei nada parecido). No Instituto Artigas - na área de História - éramos sete mulheres e um homem; portanto, as mulheres eram maioria. Mas quando fui fazer o doutorado nos Estados Unidos, um professor me perguntou por que eu estava estudando em vez de estar tomando conta da minha filha e do meu marido! Encontrei lá uma visão completamente diferente da experiência que eu havia tido no Uruguai. Bem, acho que lá começou o problema do feminismo. Havia barreiras acadêmicas para as mulheres, o que resultava em poucas mulheres na academia. Não havia, naquela época, professoras mulheres em Columbia. Enfim, eu decidi que queria fazer História Latino-Americana, e então teve início um processo de idas e vindas, vindas e idas entre América Latina e Estados Unidos, que continua até hoje. Nessa viagem interminável, para mim, não existem barreiras. Eu decidi que iria ignorar as barreiras nacionais - sei que elas existem, eu as enfrento o tempo todo, mas trato de viver como se não existissem.

Tento também produzir um tipo de conhecimento desde já comprometido e, ao mesmo tempo, preciso ter uma produção que me permita atuar na academia norte-americana com as regras que lá existem. É o que venho fazendo, mas acho que isso foi um princípio que me orientou também quando comecei a fazer outro tipo de trabalho intelectual, que é o trabalho feminista. Quando fui para Dartmouth College, em 1968 (e onde leciono até hoje), fui a primeira mulher contratada segundo os termos de contrato do mercado livre, isto é, como contratavam os homens. Acredito que na universidade eles não sabiam se eu era homem ou mulher, e erraram... acharam, talvez, que eu fosse uma travesti! Bem, na realidade eu sei as razões pelas quais eles me empregaram. No ano anterior, havia no Departamento de História de Dartmouth um historiador muito bom, dos Estados Unidos, chamado Ernest Young, casado com uma historiadora, Marilyn Young. Os dois tinham doutorado de Harvard, em História. Ele estava contratado; ela não. Houve então uma abertura de vaga na universidade e ela se apresentou. Não a empregaram por ser mulher. Como ela não obteve o posto, os dois procuraram outro lugar e receberam oferta de emprego (para ambos) na universidade de Michigan e aceitaram. Assim, o meu departamento perdeu um bom historiador por não querer contratar uma boa historiadora. Acho que, a partir daí, aprenderam a lição e quando, no ano seguinte, abriu-se a vaga de História da América Latina, alguém que me conhecia no departamento convidou-me a me apresentar. Então fui, e me contrataram. Não havia outras mulheres na universidade - apenas esposas. Naquela época, nas universidades norte-americanas, esposas de professores, apesar de também terem doutorado, não podiam dar aula porque eram esposas de professores.

REF: E quando essa situação começou a mudar?

MN: Entrei em Darmouth College antes da mudança, em 1968. Dartmouth forma parte de um grupo de universidades denominado Ivy League - sete universidades que desde o século XVIII vinha educando tradicionalmente a elite masculina norteamericana. Todas essas sete universidades eram para homens e seus professores eram também homens. Mas, nos anos 1960, começaram, uma a uma, a aceitar as mulheres: Harvard, Yale, Columbia, uma depois da outra. Exceto Dartmouth. Dartmouth foi a última das instituição do Ivy League que ainda não havia assumido o sistema de co-educação, ou seja, ainda não aceitava mulheres. Então, quando cheguei lá, apenas se iniciava uma campanha para que as mulheres pudessem entrar. Foi através dessa batalha que me converti ainda mais ao feminismo, e era também o momento em que as lutas feministas se articulavam nos Estados Unidos. Eu vi que o meu lugar de luta era Dartmouth. A briga era para que as mulheres entrassem como estudantes e também como professoras contratadas pelos departamentos. Depois, em 1972, comecei a dar aulas de História das Mulheres. Imagina, não tínhamos - nada nem livros, nem revistas, nenhuma bibliografia. Mas o movimento feminista crescia em todos os Estados Unidos, em todas as associações profissionais, incluindo, é claro, a LASA (Associação dos Estudos Latino-Americanos). Contudo, o problema era escrever historia das mulheres a partir do feminismo. Retrocedendo um pouco, minha tese para doutorado e, conseqüentemente, o meu primeiro livro foi sobre a direita na Argentina. Depois quis fazer uma pesquisa sobre o Brasil. Como havia estudado a direita na Argentina, queria pesquisar a direita brasileira - o integralismo no Brasil. Estive aqui uns meses, pesquisei, mas nesse ínterim publicaram um livro sobre o integralismo. Então já não fazia mais sentido eu continuar estudando o integralismo. Foi no meio disso, em 1968, que o feminismo entrou na minha vida, ou melhor, eu entrei no feminismo. Foi quando decidi que era hora de ter um pouco de coerência na minha vida intelectual e de estudar a história das mulheres.

REF: É então que foi despertado seu interesse por Evita?

MN: Sim, foi quando iniciei minhas pesquisas sobre Eva Perón. Consegui uma bolsa e fui para a Argentina. Foi quanto teve início minha relação sem fim com essa mulher, que é impossível abandonar, porque agora estão sendo divulgados mais documentos, muito mais do que existiam quando fiz minhas primeiras pesquisas.

REF: Fale um pouco sobre essa relação.

MN: É uma relação muito complicada, porque ela é um mito fenomenal, um mito cultural, de profundas raízes políticas e enorme força para milhões de argentinos. Aliás, eu estou trabalhando nisto: as raízes políticas do mito. Mas quando eu comecei a pesquisar isso, em pouco tempo começou também a apropriação comercial de Evita.

REF: Uma espécie de marketização.

MN: Uma marketização que terminaria com Madonna em Evita e com Bloomingdale's, em Nova Iorque, vendendo pinturas dela. Foi incrível. Porém, na Argentina ela era ainda um símbolo proibido. Teoricamente, se você possuísse uma foto dela, poderia então ser preso.

REF: Era durante a ditadura militar?

MN: Sim, quando eu comecei minha pesquisa sobre Evita era o período de Lanusse, em 1972.

REF: Naquela época se preparava já a volta de Perón. Os muros da capital se cobriram das palavras de ordem "Evita vive".

MN: Evita era um poderoso símbolo político do peronismo. Perón estava voltando com Isabel depois de 18 anos de exílio, e ele seria eleito, junto com ela, uma vez que Cámpora havia renunciado. Para as feministas argentinas, que representavam um grupo pequeno naquele momento, isso era terrível. Elas eram majoritariamente anti-peronistas e no país não se podia falar em feminismo; era só "Evita, Evita, Evita". Naturalmente as peronistas tinham uma paixão cega por Evita nesse momento. Portanto, ela era um ser muito problemático. Para mim, no entanto, ela era uma personagem histórica e eu a enxergava como historiadora, tentando entender quem era a figura histórica por detrás dessa confusão que eu via na Argentina. Era muito interessante porque eu presenciava uma briga terrível por uma personagem morta há muito tempo, mas que parecia estar viva porque Buenos Aires se encontrava cheia da presença dela, invadida pela voz dela e pelas frases dela. Era muito fascinante tentar entender tudo isso, estando no meio dos acontecimentos, e buscar esse entendimento indo ao passado. E nesse momento, apesar de ainda ser muito complicado, era também mais fácil fazer pesquisa histórica, porque as pessoas podiam e tinham vontade de falar. E eu consegui entrevistas com pessoas importantes dos dois governos peronistas, muitas das quais já morreram. Consegui conversar, perguntar... tive uma sorte enorme. Foi uma oportunidade muito especial. Porém, o problema para mim era entender o que essas pessoas contavam. Porque, ao serem entrevistadas, elas contavam sempre a mesma história: "Ah! Evita era assim, assim e assim". Falar com essa gente era uma experiência interessante do ponto de vista da antropologia, mas não tinha nada a ver com a história que eu estava pesquisando. Então, era muito esquizofrênico para mim, pois significava reconstruir a história da vida dessa mulher, quando sua vida era totalmente conhecida por todo mundo. Contudo, essa vida conhecida era falsa, pois constituía um mito, uma espécie de alcachofra: tem que descascar, descascar até chegar à parte que você pode comer. Para mim foi muito interessante reconstruir essa outra versão da história, buscando formular as primeiras perguntas sobre, por exemplo, como foi possível para uma mulher, naquele momento, entrar no poder. Todo mundo respondia: "Porque ela estava lá!". Ou porque Perón deixou que ela entrasse - ela seria a mulher por detrás do trono - ou então porque era normal que estivesse lá. Além do mais, para a maioria, ela nada tinha a ver com o poder; era só coração, a mãe dos pobres. Então, minha pergunta era: como, em 1947, quando as mulheres na Argentina não podiam nem votar, se introduz uma mulher no poder? Por quê? Não era nada fácil, visto que não havia mulheres no poder em parte alguma. Então, na Argentina, onde as mulheres nem sequer podiam votar, Evita entra no poder e se converte em uma figura política importante, a qual ninguém quer reconhecer. Nem os peronistas, nem os anti-peronistas querem reconhecer a figura política de Evita. Então, de certo modo, minha posição vai de encontro às perspectivas de todo mundo.

REF: Poderíamos dizer que os peronistas a vêem como uma santa, e os anti-peronistas, como uma prostituta?

MN: Quase isso, mas de qualquer maneira, como alguém que não tem nada a ver com o poder. Não a vêem como personagem política. Na realidade feminizam-na de uma maneira essencialista. Tive por isso que esboçar um caminho que ainda não havia sido trilhado e estou convencida de que sofri as conseqüências disso. Recuperei uma figura histórica com uma atuação política que, no fundo, nem uns nem outros queriam reconhecer e ainda têm dificuldades em reconhecer. Minha pesquisa revela que o peronismo no poder precisa da figura de Evita. Acho que demonstrei isso ao evidenciar o que ela faz a partir o poder. Ainda que Perón fosse absolutamente essencial para a transformação do poder político e social na Argentina, no momento em que chega à presidência, não pode manter a força política que o leva ao poder sem a figura dela. E ela se insere lá. Não sei se é ele quem assim o quis e permitiu, ou se é ela quem assim o quis e ele o permitiu, ou é uma conjunção das intenções dos dois. Eu não sei como isso aconteceu. Posso seguir os seus passos, reconstruindo-os desde o primeiro dia em que ela vai ao escritório dele. Tudo isso eu sei, mas a sua vontade, a origem primeira da decisão, não sei... Sei também, e posso demonstrar, que ela se transforma. A pessoa que começa a trabalhar em 1946 não é a mesma em 1948 ou 1949, quando funda o partido político peronista feminino. Vejo aí a transformação de uma pessoa, de um ser humano, de carne e osso, que faz certas coisas em 1949, as quais jamais teria feito em 1945, porque ainda não era ninguém, nem podia falar direito. Não sabia de que falar. Mas ela usa a sua experiência como atriz de radio-teatro como una ferramenta para se transformar em uma figura política e fazer um papel político fundamental no peronismo, o que em parte explica por que ela continua sendo um mito político, mesmo 40 anos após sua morte. O mito político de Evita é uma questão mais complexa que se forma aproximadamente no ano de 1952. Isso faz parte de um trabalho que realizo agora e que enfoca as relações da Argentina, da esquerda argentina, com os Estados Unidos. E tem a ver também com a política externa dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

REF: A política da 'boa vizinhança' dos Estados Unidos com a América Latina?

MN: Exatamente. A Argentina é o único país, a princípio seguido do Chile, a se opor à declaração de guerra ao Eixo. O Brasil, que tinha um governo corporativista e era o único país formalmente fascista na América Latina - era a época de Getúlio Vargas -, foi o grande amigo dos Estados Unidos. Estou interessada em comparar, nesse período, as políticas externas dos Estados Unidos, da Argentina e do Brasil. Estou pesquisando sobre esse período porque acho que ele é muito importante para entendermos a relação que se estrutura entre Estados Unidos e Argentina, que é completamente diferente da relação que se dá entre Estados Unidos e Brasil.

REF: O que você, na verdade, está trabalhando é um tema fundamental para a América Latina - o populismo.

MN: Sim, é isso.

REF: Peronismo e trabalhismo são, normalmente, tratados como fenômenos semelhantes.

MN: Sim, mas, a bem da verdade, são muito diferentes.

REF: E o que você pretende é justamente trabalhar sobre essas diferenças, assinalando, por exemplo, a diferença representada pela figura de Evita no peronismo. Porque o que parece claro é que no Brasil não houve uma Evita, não é?

MN: Não. Não houve mesmo. Aliás, tampouco houve aqui a mobilização popular que o peronismo teve. Peronismo é mobilização. E getulismo, não. Getúlio Vargas contou, até certo ponto, com a mobilização do povo, especialmente em torno de seu ministro do Trabalho, João Goulart. Mas são fenômenos muito diferentes, até porque a sociedade argentina era muito diferente da sociedade brasileira. Embora o Brasil já contasse então com uma grande indústria local, em especial em São Paulo, a industrialização Argentina era muito maior.

REF: Havia uma profunda tradição cultural na Argentina nessa época.

MN: Sim. No Brasil também havia, mas era muito menor. Há histórias paralelas nos dois países, até certo ponto, e histórias muito divergentes, com alguns pontos comuns, traços comuns, aos quais devemos dar atenção, mas são histórias que vão a direções diferentes. Aliás, acho que brasileiros e argentinos não gostam de ser comparados entre si! Voltando a minha pesquisa, como vêem, ela abrange muitos temas: é sobre a mulher, sobre a Argentina, sobre o Brasil, sobre política externa, Estados Unidos. Ainda estou enfocando os anos 1940 e não posso me afastar de Evita. Ainda mais agora, que estão abrindo novos arquivos sobre e no Departamento de Estado, no período de 1943-1946. Quero ver se encontro lá também alguns dados sobre o Brasil.

REF: E o que você acha das megaproduções sobre Evita? Houve duas importantes, uma realizada em Hollywood e a outra na Argentina.

MN: Achei o filme da Madonna horrível, insuportável. Trata-se de um musical baseado em um texto chamado La mujer del látigo. E a mulher do látego quem era? Eva Perón, porque, segundo essa versão, ela era a mulher que estava por detrás do trono, que dormia com todos os militares. Encontrou o mais idiota de todos, o coronel Juan Perón, a quem ela levou ao governo. Essa visão não tem sentido! Mas foi incorporada à mitologia em torno de Evita. Segundo essa mitologia, é ela quem inventa Perón. Isso é o que diz o musical.

REF: Essa versão trata de mostrá-la como uma mulher pérfida, carreirista.

MN: Isso mesmo. Mas minha pergunta é: como uma garota de 22 anos (que era a idade que ela tinha então) vai ser responsável por levar ao poder um coronel - veja bem, um coronel, um professor de estratégia militar!Trata-se de uma mitologia que tem o duplo sentido de desacreditá-la (a Evita) e de diminuí-lo (a Perón).

REF: Segundo essa visão, ele se transforma em um imbecil, que fica nas mãos dela.

MN: Sim, ela o domina completamente. E, além do mais, ela se converte, posteriormente, em uma santa: a mulher do látego. Assim ela está representada no livro, que foi publicado na Argentina em 1952, escrito por uma anglo-argentina que morava nos Estados Unidos. O livro foi também publicado nos Estados Unidos, e aí surgiu o tema para o musical hollywoodiano.

REF: E o filme argentino sobre Evita? É uma espécie de resposta à versão norte-americana da história, não?

MN: Sim, e essa resposta tem um outro problema para mim. O problema é que o filme pretende mostrar a verdadeira mulher, a Evita montonera, a Evita forte, revolucionária, que não fazia concessões aos militares. E o Perón da Evita argentina é o Perón militar. Ao fim das contas, ele não será, segundo essa versão, um revolucionário, pois a revolucionária é ela. Isso é falso. Trata-se de uma Evita muito mais simpática, mas é falsa também. Além do mais, tem outra coisa: nesse filme, o problema dela é que ela era filha natural.

REF: Uma filha ilegítima?

MN: Sim, o problema é que isso foi escrito por um homem. Uma mulher sabe que nas nossas sociedades você pode ter uma origem duvidosa, mas o que a legitima é o casamento. Você se converte em 'senhora de' e esse 'senhora de' limpa todo o seu passado. E 'senhora de', naquele tempo - 1945, 1946, 1947 - era coisa importante. Assim, uma vez que ela se casou, esse casamento significou a consolidação da sua vida e a solução de todos os problemas que ela poderia ter tido antes. Quer dizer, em relação ao filme, eu tenho uma interpretação completamente diferente sobre a importância do nascimento natural e a importância do casamento. Socialmente, o casamento tinha a função de 'limpar' a origem. O certificado, a 'limpeza' promovida pelo casamento era absolutamente essencial. Então esse filme argentino apresenta também, segundo penso, uma interpretação complicada de Evita.

REF: Mas houve também um outro filme, uma série produzida nos Estados Unidos, de que inclusive você participa.

MN: Ah, mas esse foi feito muito antes. Nesse filme eu fui entrevistada. Trata-se de uma biografia e a interpretação de Evita que ali oferecem não tem nada a ver com o que eu digo.

REF: Mas você costuma aparecer como uma referência. Por exemplo, houve há alguns anos em Buenos Aires uma exposição sobre "as mil faces de Evita Perón", em que você aparecia como consultora da exposição.

MN: Não fui consultora. Lá usaram o meu livro, partes do meu livro, sem que eu desse permissão. Páginas inteiras. Parece mentira, não? Aqui no Brasil também fazem isso, não é? Não pedem autorização e às vezes abusam. Mais eu continuo trabalhando com Evita. Há, por exemplo, duas irmãs vivas de Evita e ainda não consegui falar com elas.

REF: E por quê?

MN: Acho que é porque tenho dados que me dão uma informação diferente da versão que elas têm. Falo com a sobrinha-neta da Evita. Peço a ela para entrar em contato com as duas irmãs e ela apenas me diz que não pode ser. Eu lhe digo: "Olhe, eu só quero acesso; não publico nada, só escrevo e tranco tudo em um cofre para não publicar em 100 anos, 50 anos!". Quero apenas saber se estou errada. Uma delas (das duas irmãs) está muito doente. A outra me cumprimenta, me trata muito bem, mas não quer falar. Então, acho que não devo estar muito errada. Porque, de outro jeito, elas falariam comigo. Acredito também que elas sabem que fiz um trabalho de respeito. Eu não sou peronista, mas gosto muito da Evita como personagem histórica.

REF: Você está lidando em um campo minado, que é, de um lado, a vida de uma pessoa, e de outro, a sua imagem.

MN: E, ao mesmo tempo, as memórias das pessoas. As memórias pessoais e familiares contra a figura pública. E a figura pública, como todas as figuras públicas, é complicada. O único sujeito que se parece absolutamente com um santo em sua vida é o Nelson Mandela, não é? Estava na cadeia, saiu e continua sendo um santo! Mas eu acho que Evita não era, de jeito nenhum, uma santa. Era um ser humano com muitas falhas, mas também com características incríveis para uma mulher que fez o que fez aos 33 anos.

REF: Vamos agora dar um salto da Argentina de Evita para a LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos) sob a presidência de Marysa Navarro. Poderíamos dizer que está configurada uma chapa feminista na LASA, uma direção feminista?

MN: Sim, há uma direção feminista, eu diria, e uma herança também, porque tenho uma vice-presidente feminista, Sonia Alvarez, que é também brasilianista. É a primeira vez, por enquanto, que essa entidade tem, como presidente e vice-presidente, feministas. Anteriormente, tivemos mulheres-presidentas, mas, abertamente feministas, não.

REF: Podemos considerar este um momento único. E como é que isso repercute? Isso representa um momento dos Women's Studies nos Estados Unidos? Como é que o que está acontecendo na LASA dialoga com o atual momento da academia norte-americana?

MN: Acho que diz respeito à LASA. A LASA teve desde seu início a presença de mulheres e elas começaram a exigir mais representação nos painéis, no comitê executivo (com direito a serem eleitas) e também maior participação nos debates, não apenas em painéis femininos, mas também em palestras, juntamente com os homens. Mais mulheres em painéis com homens. Eu acho que isso começa no final dos anos 1970 e continua progressivamente até termos mulheres presidindo a associação. Mas isso também é fruto de um processo organizativo da LASA, que não encontramos em outras associações (por exemplo, a Associação de História e o Modern Language Association).

REF: Poderímos então dizer que a LASA, sendo presidida por duas acadêmicas abertamente feministas, é sintoma do espaço de legitimidade que o feminismo alcançou na academia norte-americana?

MN: Acredito que, tanto lá como aqui na América Latina, as feministas acadêmicas têm conquistado um espaço importante. Mas o espaço norte-americano e o latino-americano são diferentes. Na América do Norte as feministas acadêmicas ganharam bastante legitimidade, o que ainda não vemos na América Latina. No entanto, apesar disso, em ambos os lugares os homens não levam em consideração a produção intelectual que nosostras fazemos. Eles continuam teorizando como se nós não estivéssemos subvertendo suas teorias.

REF: É aquele exemplo de "falamos, mas eles não ouvem".

MN: Os nossos livros estão aí. Quando eles os lêem, dizem "ah, interessante!", mas não os citam nas suas bibliografias. Se os citam ou usam, não os incorporam ao texto! Às vezes a resposta pode ser pior: colocam na bibliografia o que acham que têm que colocar, mesmo que não tenha nada a ver com a pesquisa que estão fazendo. Faz cinco anos, Susan Bourque e eu escrevemos um artigo sobre democratização na América Latina. Era para um livro sobre democracia na América Latina e, de todas as contribuições, nós éramos as únicas que falavam sobre mulher. Os outros (e as outras autoras) falavam supostamente sobre temas mais amplos - democracia, sociedade civil, etc. - esvaziados de qualquer problematização sobre a mulher em relação a esses temas. Então posso dizer que temos certa legitimidade, temos produção intelectual, mas não a incorporação. Uma espécie de legitimidade não incorporada. Mas, além da bibliografia, o problema é que precisa haver uma mudança da leitura. A leitura tem que produzir um efeito.

REF: E como você vê a situação da produção feminista e sua incorporação acadêmica na América Latina?

MN: Acho a situação das feministas na América Latina pior. As políticas e as coalizões históricas, bem como as condições das universidades fazem com que o processo da legitimação acadêmica do feminismo na América Latina seja diferente e muito mais precário. Outro fator importante é que nos Estados Unidos a universidade é muito mais flexível que na América Latina. Então a incorporação de planos de estudo, de programas de estudos e até de doutorado se torna mais fácil e contribuem para um maior impacto dos estudos feministas na produção do conhecimento. Na América Latina a incorporação dos estudos de mulheres na universidade é muito mais difusa, o que resulta em menos publicações, mais dificuldades, menos revistas e menos verba para fazer pesquisa.

REF: Como você compara a produção teórica feminista norte-america e a latino-americana?

MN: Acho que não podemos compará-las, pois as condições de produção são muito desiguais. Por um lado, as condições nos Estados Unidos são de uma facilidade e generosidade incríveis se comparadas com a dificuldade na América Latina. Eu me admiro como é possível produzir na América Latina diante da falta de bibliotecas e de acesso à informação. Há trabalhos na América Latina muito importantes e de alto nível. Aliás, há muita produção nos Estados Unidos que seria melhor que não fosse produzida! Por outro lado, há muita pesquisa nos Estados Unidos sobre a América Latina que não usa bibliografia latino-americana - e vejo isso como um sério problema, pois estamos desvalorizando o que está sendo produzido em outros espaços que o da academia norte-americana.

REF: É aquela velha história: somos mais objeto do que sujeito.

MN: Um dos problemas é que circulação da informação se dá mais facilmente no sentido Norte-Sul do que Sul-Norte.

REF: Para encerrar a entrevista, como você vê o feminismo acadêmico norte-americano no momento atual?

MN: Acho que está em crise. O problema maior é a despolitização. A separação da pesquisa e, sobretudo, da teorização e da mulher, junto com seus problemas concretos. Há também nos Estados Unidos um terrível assalto às liberdades tradicionais, inclusive ao direito ao aborto. Por um lado, se a generização dos estudos feministas contribuiu para sua despolitização, por outro a paixão pela teorização - necessária em um dado momento para a conquista da legitimidade acadêmica - acabou por distanciar as feministas acadêmicas do movimento de mulheres.

REF: Você está dizendo que está havendo um retrocesso nas conquistas em um momento político muito delicado, não? Essa legitimação acadêmica pode ter sido acomodada, no sentido de causar um certo desmerecimento da política?

MN: Sim. Os estudos feministas, desde o começo, enfrentaram uma contradição muito grande: a existência, dentro da academia, de um pensamento antitético ao pensamento hegemônico. O pensamento feminista, ou a crítica feminista, instala-se no começo como política. Ao instalar-se como política ataca a falta de política na universidade, que é política também, pois a suposta falta de política é uma forma de fazer política. A crítica feminista, para instalar-se e se manter na academia, tem que entrar no jogo acadêmico e usar suas regras. Muito bem. Eu defenderia até o final da minha vida que o conteúdo é absolutamente essencial e que uma resistência em forma de luta para criação de condições de possibilidade para o pensamento feminista nos é absolutamente crucial. Ao mesmo tempo, sei que se não posso ser aceita nos termos deles (da academia), eu não posso prosseguir lutando. Isso é uma contradição muito dura. Por isso que eu digo: eu sou acadêmica, essencialmente acadêmica, e sei que isso traz um custo muito alto. Por isso preciso militar. Porque senão me absorvem. Se a gente permanecer somente na teoria dentro dos estudos feministas, dos estudos culturais, pós-modernos, etc., então ficaremos totalmente fechadas. O corte com a base, o corte com a vida, o corte com o sangue que vai até o coração será total. Devemos, ao contrário, buscar os mecanismos para manter a vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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