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Paternidades e masculinidades em contextos diversos

Paternidades e masculinidades em contextos diversos

Paternidades en América Latina.

Fuller, Norma (Ed.).

Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Fondo Editorial, 2000. 418 p.

Tem sido possível pontuar uma mudança de enfoque nos estudos de gênero, particularmente a partir de 1994, pós-Conferência Internacional sobre População e Desevolvimento, no Cairo, e pós-Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), que direcionaram sua atenção para a participação masculina e a responsabilidade dos homens nas questões que afetam o cuidado com os filhos e as decisões com relação à reprodução e à sexualidade. Ao se acompanhar o fluxo da produção sobre identidade masculina e paternidade percebe-se que nos anos 90 o tema ganha um fôlego especial, aglutinando boa parte das pesquisas desenvolvidas no campo dos estudos de gênero no Brasil. É também nesse período que o tema da masculinidade aparece com maior ênfase em outros países da América Latina. Até então, nos estudos sobre a vida privada, a fala de mulheres de diferentes camadas sociais era predominante. Sobre a subjetividade masculina pairava um quase silêncio, quebrado apenas por alguns pesquisadores/psicólogos que chamavam a atenção para uma suposta "crise da masculinidade".

A constatação de que muitas demandas colocadas pelo movimento feminista ainda não haviam sido equacionadas redefiniu, por outro lado, uma agenda de pesquisa e intervenção, sobretudo com questões relativas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Não surpreende, portanto, que a década de 1990 tenha como referência um interesse específico pela construção social da masculinidade como objeto de pesquisa, sobretudo entre pesquisadores do campo da saúde reprodutiva e da sexualidade. Ainda que a noção de gênero aponte para o caráter implicitamente relacional do feminino e masculino, até então os estudos de gênero vinham privilegiando pesquisas sobre a condição das mulheres na família, no trabalho, nos diferentes espaços de poder. Os movimentos feminista, gay e lésbico tiveram papel fundamental ao alertar para as desigualdades de gênero, para os direitos sexuais e reprodutivos. A evidência das diferenças de sexo e de como estas diferenças constroem as desigualdades de gênero e as relações de subordinação constitui, portanto, a base para o crescimento de pesquisas focalizando os homens e a construção das masculinidades.

Na América Latina, incluindo o Brasil, o interesse está relacionado, no âmbito mais geral, às mudanças nas relações de gênero e à inadequação dos paradigmas explicativos diante da complexidade da dinâmica social; no âmbito mais restrito, político até, relaciona-se à constatação de que a compreensão das práticas masculinas, por exemplo, pode contribuir para melhorar os resultados de programas voltados para a saúde das crianças, para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e para as decisões de planejamento familiar. Em parte, essa temática surge como reflexo do desenvolvimento que os estudos feministas e de gênero alcançaram desde a década de 1970 e que demonstravam a necessidade de novas e diferentes estratégias para maior eqüidade entre homens e mulheres, bem como para expressão das sexualidades e culturas sexuais. Os modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade heterossexuais como via única na conformação das identidades sexuais e dos comportamentos são colocados em questionamento.

Este preâmbulo nos ajuda a dimensionar a importância de uma coletânea como Paternidades en América Latina, organizada por Norma Fuller. Os/as autores/as reunidos/as neste livro passam a ser, na atualidade, fonte básica para novos estudos sobre masculinidade e paternidade. Mara Viveros, José Olavarria, Benno de Keijzer, Teresa Valdés, Ondina Fachel Leal e a própria Norma Fuller, entre outros, versam em seus textos sobre o significado que a paternidade tem para os homens, para o seu projeto de vida, problematizando as dificuldades que os homens enfrentam e o impacto das transformações conjugais para o exercício da paternidade.

Os artigos resultaram da Conferência Paternidades na América, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC do Peru. Por isso, além dos textos, que permitem uma leitura comparativa das análises e das informações colhidas em pesquisas em diferentes países, é possível acompanhar o debate subjacente à temática, em geral privilégio apenas daqueles que estiveram fisicamente presentes ao evento. O debate assim explicitado acaba contribuindo, juntamente com as pesquisas apresentadas, para o delineamento de metodologias de trabalho e políticas públicas voltadas para a população masculina e para as demandas desta.

Apesar das perspectivas teóricas e analíticas distintas, os textos coincidem ao expressar a paternidade como uma dimensão fundamental na vida dos homens, sejam eles dos segmentos populares, sejam dos médios, para os quais o exercício da paternidade está relacionado a fatores específicos que precisam ser considerados quando se for estudar esse assunto. Entre os fatores que influenciam a construção social da paternidade está a relação familiar (com o pai, com a mãe e depois com a própria mulher ou mãe de seu filho); as condições sociais e econômicas; a relação com o grupo de pares. Também a estrutura sociocultural de uma dada sociedade marca a vida de homens (e de mulheres) e por conseqüência exerce efeito sobre a paternidade, até mesmo na disponibilidade de tempo que os homens têm para se dedicar aos filhos e à família. Algumas tarefas com relação aos filhos e à casa demandam mais tempo do que outras, influenciando a divisão social e sexual do trabalho, da mesma forma que certos valores e costumes estabelecem expectativas com relação à masculinidade e à paternidade.

A paternidade, assim como a maternidade, é um momento de transformação, marcada, sobretudo na sociedade latino-americana, pela assunção da responsabilidade (de prover, de cuidar, de proteger). Essa relação aparece em quase todos os artigos que compõem a coletânea. A precarização do trabalho remunerado entre os homens, por exemplo, tem afetado sobremaneira a identidade masculina, ao colocar em risco o lugar de provedores econômicos do grupo familiar, outro aspecto discutido pelos/as autores/as. Mara Viveros argumenta que as novas exigências das mulheres e as crescentes demandas afetivas dos filhos têm aumentado, em muitos casos, os sentimentos de frustração dos homens, por não conseguirem mais sustentar o ideal de provedores e de modelo paterno para seus filhos. Esses temores podem resultar muitas vezes em situações de violência familiar. Ao ler os relatos descritos nos artigos, percebe-se claramente um questionamento dos homens pesquisados sobre a forma como têm vivenciado a paternidade. Numa atitude claramente reflexiva, esses homens percebem as contradições sobre como têm exercido sua paternidade e nem sempre as expectativas por eles mesmos criadas têm sido alcançadas (Este é outro ponto em comum nos artigos: há um modelo de paternidade ideal que tanto permeia o imaginário social dos homens pesquisados como o dos/as pesquisadores/as.).

O encontro de pesquisadores com diferentes pontos de vista, que adotam procedimentos analíticos e teóricos distintos, como é o caso desta coletânea, resulta num panorama das principais questões ainda em aberto, clamando por serem investigadas. Algumas delas puderam ser pinçadas durante a leitura, tais como o impacto do divórcio e dos pais separados de seus filhos nas relações familiares e de gênero; casais homossexuais e o estabelecimento de relações familiares e de filiação; a jornada de trabalho e as implicações na articulação família/filhos/trabalho, e o efeito disso nas atribuições paternas e maternas; o impacto das novas tecnologias reprodutivas na definição de parentalidade; a equação autoridade/poder relacionada à paternidade e aos novos arranjos familiares; o lugar masculino na saúde reprodutiva e no planejamento familiar, incluindo a decisão por eventual aborto etc. O livro suscita estes e outros temas, mas sobretudo permite cotejar hipóteses para as pesquisas sobre famílias e relações de gênero.

SANDRA UNBEHAUN

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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