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Releitura da "mulher de bandido"

RESENHAS

Releitura da "mulher de bandido"

Liana Aragão

Universidade de Brasília

Ao homem que não me quis.

LEITE, Ivana Arruda.

Rio de Janeiro: Agir, 2005. 87 p.

Ao que parece, há algumas décadas temos o que se pode chamar de sistema literário efetivamente consolidado e mais: há quem afirme que a inclusão feminina nessa ágora, como leitoras, críticas e produtoras, é plena. Sim, podemos considerar que o sistema literário brasileiro foi consolidado (salve Antonio Candido), mas a inclusão, independentemente das discussões relativas a gênero, é ainda uma sombra herdada de um passado confuso, desigual e violento.

Ivana Arruda Leite, ao lado de outras escritoras contemporâneas, presenteia esse nosso sistema consolidado com uma luz – ainda fraca – distinta do que o senso comum já se acostumou a chamar de literatura feminina. Eis as pilhas da lanterninha de Ivana: a autora trabalha com personagens mulheres, atuais, livres, emancipadas, bem resolvidas.

Mas não se iluda o leitor que esperar dos textos dela a perspectiva do sucesso absoluto, contrapondo a realidade atual com a problemática representação da figura feminina na literatura do passado (ops, na do presente também). Nem uma coisa nem outra. É impensável esperar de um texto de Ivana uma leitura agradável, doce, melosa, romântica, como é igualmente impensável esperar um texto político, comprometido com lemas de movimentos sociais, repetidos à exaustão e de modo equivocado por aí.

Ao homem que não me quis, o mais recente texto da escritora paulista, é um bom exemplo de como ela trabalha o tema. O mote do livro, que traz quinze minicontos e três contos, é a perspectiva que não podia ser mais realista e atual: a dominação masculina permanece, não menos forte, porém mais disfarçada. E a releitura de personagens emblemáticas como Madame Bovary, em textos como o de Ivana ou de Clarah Averbuck (mais jovem e ainda menos ligada aos clichês da literatura piegas e melosa atribuída às mulheres), torna-se necessária não para um reforço dos estereótipos geradores de preconceitos, mas para sutilmente evidenciar que o problema permanece.

Ivana abstrai os dois pólos perigosos: coloca-se à parte, num terceiro caminho, ainda pouco explorado, quando se recusa a escrever como "mulherzinha" ou a levantar bandeiras. As personagens falam de si, sofrem, apanham, morrem de amor. Evocam vozes distintas, assumidas, corajosas, que gritam: foda-se tudo. As questões aqui trabalhadas são humanas, mas não deixam de ser extremamente femininas por conta disso. O miniconto "Por Deus", de apenas uma frase (abaixo), é bastante significativo:

Tira essa faca do meu peito e enterra o pau. É muito mais confortável.

Essa voz melancólica mistura uma submissão, evidente pelo tom clemente que o título e a primeira frase evocam, e desprendimento com a frugalidade e superfi-cialidade da dor de amor, quando se coloca o sexo em primeiro plano. Não é para ser amada o que ela pede ao interlocutor invisível: é pau, sexo, gozo. Mais confortável no seu direito de ter voz, a mulher aqui pede o que melhor lhe parece.

Outros dois contos, dos maiores, seguem a mesma linha. Quem nos fala são vozes novas, sofridas, machucadas, mas vivas, confiantes e efetivamente maduras. "Da difícil vida das rêmoras" é um exagero. Narrado por uma mulher que ama um cafajeste confesso, o texto é anunciado pela epígrafe: "Todo exagero é mentiroso. A virtude está na linha do meio. Mas quem anda nela?". Logo nessa introdução, Ivana esclarece ao leitor que ainda espera uma tomada de partido que não há intenção de se alinhar com o que nos acostumamos a entender como certo. O conto é construído pela perspectiva intencional da vencida: uma mulher independente que luta, inclusive num cara-a-cara com uma rival, por um amor vagabundo. É mais uma figuração do tipo "mulher de bandido", com uma diferença: não há vínculo com o estereótipo imposto pelo "sexo dominante" e o crime de se apaixonar é deliberado e assumido. Briga-se pelo direito a amar o que não é politicamente correto ou moralmente recomendável.

"Ao homem que não me quis", que dá título ao livro, conta a história de uma funcionária pública apaixonada por seu colega de trabalho, Lúcio. É importante se considerar, antes de qualquer coisa, que o "apaixonada" foi inadequadamente aplicado. O que nos faz supor qualquer descontrole passional é, na verdade, o que move certo desejo da personagem. Paixão, sim, mas fruto de um capricho, de uma vontade quase somente física, sexual. O texto tem muito humor. Torna risíveis situações que deixariam alguns de cabelo em pé. É, enfim, um descompromisso com formas, conteúdos, perspectivas e tratamentos.

Ivana não tem medo. E, por isso mesmo, acaba por causar certas sensações de vitória, um sentimento compartilhado de emancipação conjunta, social. Sim, somos mulheres, vamos conseguir vencer o preconceito! Mas atenção, leitor, não se iluda mais uma vez. Não há bandeiras levantadas aqui. Muito menos uma tentativa de erguê-las a todo custo. As mulheres de Ivana são deliberadamente auto-incluídas, plenas, seguras, inclusive para assumir fraquezas (antes ligadas ao "sexo frágil"). Não são aquelas atrizes sob holofotes intencionalmente guiados, mas as próprias operadoras de luz. São diretoras de arte ou simples donas da lanterna de plástico, herdada do pai ou do ex-marido. Senhoras de vozes conquistadas e eficazes para a abertura de um novo horizonte, um novo discurso, uma nova realidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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