Teoria feminista: da margem ao centro foi escrito por Bell Hooks em 1984, porém traduzido e publicado no Brasil apenas em 2019. A obra faz a crítica do feminismo branco burguês, trazendo para o debate feminista a discussão interseccional, atravessada pelas questões de classe, raça, gênero e sexualidade. A autora nos revela que o livro emerge da necessidade de criar uma teoria voltada para as populações empobrecidas e subalternizadas, uma teoria feminista radical que abarcasse a experiência das mulheres negras e das não brancas empobrecidas.
Bell Hooks, escritora, professora e ativista estadunidense, é considerada uma das mais importantes intelectuais da atualidade, publicou mais de trinta livros, vários deles traduzidos recentemente para o português. Por meio de uma linguagem acessível, a autora aborda temas profundos, expressando um pensamento complexo, que recusa binarismos e não cabe em formulações simplistas.
No início dos anos 1980, Bell Hooks acede à prestigiada Universidade de Yale como docente de Estudos Afro-Americanos, e no mesmo período publica Teoria feminista: da margem ao centro, na qual denuncia como o feminismo criado pelas mulheres brancas, ao insistir na tese de opressão comum, acaba por fechar os olhos para a injustiça social sofrida pelas mulheres negras. Ao enfocar os dramas vividos pelas esposas brancas privilegiadas, o movimento feminista se utilizou da ideia de opressão comum para promover liberdade individual a um seleto grupo de mulheres, que estava mais preocupado em defender seus interesses de classe do que em promover justiça social, argumenta a autora.
Ao narrar sua experiência na academia e no movimento feminista, Bell Hooks (2019HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.) apresenta relatos impactantes do modo como ela própria e outras mulheres negras eram tratadas nestes espaços, supostamente inclusivos. Ela evidencia a condescendência das mulheres brancas que apenas valorizavam o conhecimento das negras como relatos pessoais de experiência, mostrando pouco interesse e, não raro, desprezo pelas perspectivas teóricas interseccionais. As feministas brancas da época estavam preocupadas demais com a estrutura do movimento feminista, que era hierárquico e racista, embora nem sempre as mulheres tivessem consciência disso, e não permitiam modificações que pudessem abalar esta estrutura.
A partir da sua experiência e de suas trajetórias política e acadêmica, Hooks formula análises concisas que refletem a necessidade de criar uma teoria feminista que pudesse promover solidariedade política e transformação social, não apenas para as mulheres, mas para todas as pessoas oprimidas pelo sistema capitalista. O feminismo radical e visionário da autora borra as fronteiras entre classismo, rascismo e sexismo, mostrando que é preciso romper com as estruturas capitalistas e patriarcais, que estão na origem de toda a forma de dominação que nos afeta hoje. As duras críticas de Bell Hooks ao feminismo branco burguês estão vinculadas à tendência deste movimento a ignorar a codependência entre os preconceitos de raça, classe, gênero e sexualidade, tendência que resultou no silenciamento das pessoas negras e empobrecidas - principalmente das mulheres - e na manutenção do sistema capitalista.
Se o feminismo é a luta para acabar com a opressão sexista, ele precisa atender às demandas de todas as mulheres e não apenas das brancas burguesas, declara Bell Hooks. O feminismo não pode ser apenas um estilo de vida, não pode atender a demandas individuais, precisa ser encarado como uma política radical e, para isso, precisamos assumir e compreender as diferenças entre as opressões que sofrem as diferentes mulheres. Enquanto a casa e a família são lugares de opressão para as mulheres brancas, para as mulheres negras, muitas vezes, estes são os espaços mais seguros, onde há menor discriminação, maior compressão e apoio. E por isso é preciso considerar que, assim como as mulheres, os homens não formam um todo homogêneo. Os homens negros estão abaixo das mulheres brancas na pirâmide social de muitos países, lugares onde o racismo é ainda mais excludente que o sexismo.
Assim como não há opressão comum, não há inimigo comum: se os homens, de todas as cores, são os grandes inimigos das mulheres brancas, não ocorre o mesmo no caso das mulheres negras. Os homens negros são, muitas vezes, aliados das mulheres negras na luta contra o racismo e contra o classismo, e isso, inclusive, explica por que as mulheres negras tendem a relativizar o sexismo que sofrem no contexto familiar, de acordo com Bell Hooks.
A ideia de inimigo comum criada pelo feminismo burguês precisa ser combatida se quisermos avançar na luta feminista. A luta antirracista aproxima homens e mulheres de cor, na mesma medida em que afasta as mulheres de cor das mulheres brancas burguesas. Hooks mostra que o separatismo reacionário da supremacia feminina branca afastou muitas mulheres do movimento; sua ênfase na polarização entre os sexos resultou num modo de frear o impulso do feminismo, enfraquecendo a luta da resistência. Por esse motivo, devemos buscar formas de incluir os homens na luta feminista, alerta a autora, destacando que, embora os homens não sejam explorados pelo sexismo, são afetados por ele de diversas formas e este sofrimento não deveria ser ignorado. Além disso, ao colocar os homens como inimigos e ao atribuir o feminismo como obra das mulheres, as feministas burguesas atribuíram às mulheres uma outra tarefa baseada em papéis sexuais: a tarefa de fazer a revolução feminista.
O texto de Bell Hooks traz questionamentos cruciais para a teoria feminista contemporânea. A forma direta, assertiva e sensível como a feminista negra desenvolve sua narrativa encontra eco nas pautas trazidas para o debate, que falam sobre solidariedade política e sobre a busca de uma irmandade que perceba e aceite as diferenças entre as mulheres. Não há superação do machismo sem superação do racismo, do classismo e da lgbtfobia; precisamos abandonar as ideias de opressão comum e de identidade partilhada entre todas as mulheres para não mascarar os preconceitos de raça e de classe, que reforçam a opressão das mulheres brancas sobre as mulheres negras.
Teoria feminista: da margem ao centro não é um texto fácil de ser lido por mulheres que aprenderam a ser feministas a partir de vivências e leituras do feminismo branco burguês. Nossos privilégios e preconceitos tornam-se evidentes e precisamos encará-los. A leitura da obra me fez refletir sobre minha experiência como mulher não-branca - lida como branca em muitos contextos - que desde o Ensino Médio se autodefine como feminista, mas que poucas vezes parou para refletir como a sua luta afeta a vivência de mulheres de classes e raças/etnias diferentes. Ao mesmo tempo, me senti contemplada ao perceber que alguns dos meus incômodos com o movimento feminista branco burguês, que eu mal conseguia nomear, são apontados e enfrentados por Bell Hooks com maestria e sabedoria. Hooks põe o dedo na ferida e o faz de modo honesto e envolvente, comprometido com a justiça social para todas as mulheres.
Compartilho do desejo de erradicação do binarismo defendido por Bell Hooks e da busca por uma união que precisa começar no combate ao inimigo interno. Assumir os próprios privilégios é fundamental para o desenvolvimento de uma consciência política radical. Não nos interessa uma irmandade baseada em pressupostos racistas e classistas, que prega o amor incondicional entre as mulheres e a minimização de conflitos entre elas, mas que na prática está apenas preocupada em defender os interesses de seu próprio grupo.
Hooks e outras feministas visionárias, citadas pela autora ao longo do volume, como Ângela Davis, Audre Lorde, Maya Angelou, Charlotte Bunch e Heleieth Saffioti, nos ensinam que nós mulheres precisamos criar nossos próprios termos, aprender a dialogar sem competir pelo protagonismo no movimento. Precisamos perceber os tensionamentos e conflitos como molas propulsoras, que nos fazem crescer e progredir. Num primeiro momento as tensões podem parecer negativas e até traumáticas, alerta Bell Hooks, mas num momento posterior surgem os insights, as reflexões, o amadurecimento, a compreensão, a transformação. Devemos rejeitar os ideais de igualdade e liberdade individual, identificando-os como liberais, capitalistas, racistas, patriarcais, opressores, se queremos avançar em termos de garantia de direitos para todos, todas e todes. Isso não quer dizer que devemos desvalorizar as singularidades de cada sujeito, mas que precisamos estar atentos e atentas às armadilhas da ideologia capitalista que polariza igualdade e diferença.
Teoria feminista: da margem ao centro é uma obra basilar do feminismo negro estadunidense, tendo impactado profundamente a teoria feminista interseccional na contemporaneidade. O livro ensina que para acabar com a opressão sexista é preciso desafiar a noção vigente de poder e de dominação, pois não há transformação possível, em termos de melhoria de vida de todas as mulheres, sem mexer nos pilares que sustentam a sociedade capitalista. Enquanto as mulheres brancas acharem que precisam tomar o poder na sociedade, não há libertação possível para as mulheres de cor. A união vem da percepção da diferença e da tomada de consciência de classe, raça e gênero.
Referência
- HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SILVA, Juliana Ben Brizola da. “Por uma teoria feminista radical e libertadora”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e82302, 2022.
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Financiamento: Não se aplica.
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Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Fev 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
17 Jun 2021 -
Aceito
24 Ago 2021