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Poder e igualdade: as relações de gênero entre sindicalistas rurais de Chapecó, Santa Catarina

Power and equality: the relations of gender between agricutural syndicalists Chapecó, Santa Catarina

Resumos

A participação das mulheres na direção dos sindicatos, incluindo o Sindicato de Trabalhadores Rurais, tem aumentado nos últimos anos. O movimento sindical rural, historicamente masculino, não aceitava mulheres associadas até início dos anos 1980. Hoje, as mulheres vêm ocupando cargos nas direções executivas, o que não significa que os sindicatos tenham mudado suas práticas discriminatórias. Neste texto analiso as relações de gênero e poder que envolvem homens e mulheres dirigentes no oeste do estado de Santa Catarina. Mesmo com a abertura do espaço sindical para as mulheres e a instauração da cota mínima de 30% de participação feminina estabelecida pela CUT, não há muitas mulheres nos cargos de direção. Elas ficam 'escondidas' nos quadros de apoio, ou não participam igualmente, já que o sindicato não evoluiu quanto às suas práticas cotidianas, ainda discriminatórias. É uma batalha constante aliar reivindicações de classe à busca por igualdade de gênero e poder. Às vezes, as mulheres precisam escolher uma das bandeiras.

gênero; sindicalismo; empoderamento


The participation of the women in the direction of the unions, including Agricultural Workers, has increased in recent years. Until the 80's, the agricultural syndical movement, specially male, did not accept women associates. Nowadays, women are occupying positions in the executive directory but it does not mean that the unions have changed its pratical discriminatory. This paper presents an analysis concernig gender and power, i.e., a relation between men and women leadership in the west of Santa Catarina State. In spite of improving their participation in the unions and to be established by CUT that 30% of the minimum quota should be women, there are not enough women in the directory positions. They are effectly ocuppying administrative positions or they do not participate equally since the union did not improve its discriminatory participation. It is a frequently war to combine class claims and the search of equality and power gender. Sometimes, they have to choose one claim.

gender; syndicalism; empowerment


DOSSIÊ

Poder e igualdade: as relações de gênero entre sindicalistas rurais de Chapecó, Santa Catarina

Power and equality: the relations of gender between agricutural syndicalists Chapecó, Santa Catarina

Valdete Boni

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

A participação das mulheres na direção dos sindicatos, incluindo o Sindicato de Trabalhadores Rurais, tem aumentado nos últimos anos. O movimento sindical rural, historicamente masculino, não aceitava mulheres associadas até início dos anos 1980. Hoje, as mulheres vêm ocupando cargos nas direções executivas, o que não significa que os sindicatos tenham mudado suas práticas discriminatórias. Neste texto analiso as relações de gênero e poder que envolvem homens e mulheres dirigentes no oeste do estado de Santa Catarina. Mesmo com a abertura do espaço sindical para as mulheres e a instauração da cota mínima de 30% de participação feminina estabelecida pela CUT, não há muitas mulheres nos cargos de direção. Elas ficam 'escondidas' nos quadros de apoio, ou não participam igualmente, já que o sindicato não evoluiu quanto às suas práticas cotidianas, ainda discriminatórias. É uma batalha constante aliar reivindicações de classe à busca por igualdade de gênero e poder. Às vezes, as mulheres precisam escolher uma das bandeiras.

Palavras-chave: gênero, sindicalismo, empoderamento.

ABSTRACT

The participation of the women in the direction of the unions, including Agricultural Workers, has increased in recent years. Until the 80's, the agricultural syndical movement, specially male, did not accept women associates. Nowadays, women are occupying positions in the executive directory but it does not mean that the unions have changed its pratical discriminatory. This paper presents an analysis concernig gender and power, i.e., a relation between men and women leadership in the west of Santa Catarina State. In spite of improving their participation in the unions and to be established by CUT that 30% of the minimum quota should be women, there are not enough women in the directory positions. They are effectly ocuppying administrative positions or they do not participate equally since the union did not improve its discriminatory participation. It is a frequently war to combine class claims and the search of equality and power gender. Sometimes, they have to choose one claim.

Key words: gender, syndicalism, empowerment.

O campo, no Brasil, passou por significativas mudanças nas últimas três décadas.1 1 Este trabalho é parte da pesquisa de conclusão de curso em Ciências Sociais. Agradeço ao CNPq a bolsa de pesquisa que permitiu a sua realização. A modernização da agricultura alterou as relações sociais no meio rural: os pequenos proprietários, arrendatários e meeiros sofreram um intenso processo de empobrecimento por não poderem acompanhar os preços dos novos insumos, enquanto a mecanização das lavouras substituiu a mão-de-obra, fazendo com que os assalariados formassem contingentes de desempregados. Isso se refletiu na organização de vários movimentos sociais. Entre eles, destacam-se o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), que em Santa Catarina tem o nome de Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), e o Movimento de Oposições Sindicais aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) existentes.

O oeste de Santa Catarina foi palco do surgimento desses movimentos. Apoiadas pelo trabalho das alas progressistas da Igreja Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base e das Pastorais Rurais, as oposições sindicais foram conquistando vários sindicatos considerados conservadores, entre eles o STR de Chapecó, conquistado em 1982, um dos maiores sindicatos de trabalhadores rurais do estado.

A sindicalização das trabalhadoras foi uma das principais bandeiras da campanha da oposição sindical em Chapecó, uma vez que até o início dos anos 1980 eram poucas as mulheres rurais associadas a sindicatos da categoria. Dessas associadas, muitas eram viúvas. As casadas, na sua maioria, eram tidas como dependentes do marido, enquanto as solteiras, dependentes do pai. Poucas insistiam em se associar, e os sindicatos não incentivavam a filiação das mulheres. Elas não eram consideradas agricultoras; eram 'esposas de agricultor'.

Uma vez conquistada a direção do STR de Chapecó, em 1982, foi promovida uma campanha para a sindicalização da mulher. Logo depois desencadearam-se campanhas também pela documentação, ou seja, as mulheres foram incentivadas a requerer Carteira de Identidade, Título de Eleitora, CPF, e a insistir para que seu nome constasse no bloco de produtor rural, documento que registra as transações comerciais da propriedade. Isso fazia com que a mulher se tornasse reconhecida como trabalhadora rural, o que garantia seus direitos à aposentadoria, a salário maternidade e a auxílio-doença, direitos já garantidos às trabalhadoras urbanas. Em 1983 o MMA é criado.

Ainda na década de 1980, mesmo com a forte presença feminina na luta pelos direitos dos trabalhadores e o avanço do MMA, as mulheres detinham poucos cargos nas direções dos STRs e estes eram, geralmente, menos importantes que os ocupados pelos homens.

A partir dos anos 1990 foram surgindo, com mais intensidade, os questionamentos de gênero e uma participação mais efetiva por parte das mulheres nas direções. Em 1996, no STR de Chapecó, uma mulher ocupava o cargo de presidente, e na direção executiva ela era a única liberada.2 2 O termo 'liberada' é utilizado quando a dirigente sindical participa de atividades de interesse da entidade e é remunerada. Outros STRs da região tinham mulheres como presidentes ou em outro cargo na direção executiva, entre eles os de São Carlos, Quilombo, Marema, Nova Itaberaba e Coronel Freitas.

Porém, mesmo que as mulheres tenham ocupado esses cargos de presidência, isso não significa que os sindicatos acabaram totalmente com suas práticas discriminatórias. Diante disso, mostrar a situação vivida por elas é um dos principais objetivos deste trabalho.

O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Chapecó e Região representa cinco municípios: Chapecó, com uma população de aproximadamente 130 mil habitantes, e Nova Itaberaba, Guatambu, Cordilheira Alta e Arvoredo, nos quais em cada um a população não passa de 5 mil habitantes.3 3 Dados de 1996 do IBGE. Nesses quatro municípios menores a economia predominante é a agricultura, com destaques para avicultura, suinocultura e fumicultura. Em Chapecó encontram-se as agroindústrias.

A atual diretoria executiva do sindicato é composta por cinco homens e seis mulheres, mas toda a direção compreende mais de 50 agricultores e agricultoras dirigentes nos cinco municípios. Tanto os dirigentes homens como as mulheres vieram de outras militâncias, ou seja, de outros movimentos sociais, e em geral todos começaram pela Igreja. Mas hoje, pelo menos grande parte deles, acumulam em seus currículos vários movimentos, como partidos políticos, Igreja (catequese, pastorais, ministros de eucaristia), cooperativas de crédito, associações de agricultores, grupos de cooperação e conselhos municipais.

A construção de um novo sindicalismo no campo

O surgimento, no campo, dos movimentos de oposição sindical no final da década de 1970 coincide com o surgimento e o fortalecimento de outros movimentos sociais ligados ao campo. Não apenas o movimento de oposição sindical, mas também os demais movimentos tiveram em sua organização a presença de lideranças católicas: setores progressistas da Igreja Católica foram formando essas lideranças para que pudessem assumir a coordenação dos movimentos, processo que era parte das ações de grupos da Igreja identificados com a Teologia da Libertação,4 4 Processo que se iniciou com o Concílio Vaticano II (19621965) e foi reforçado pelos encontros episcopais de Medellín e Puebla em 1969 e 1979 respectivamente. Nesses encontros foram elaboradas as novas diretrizes da Igreja na América Latina. É no encontro de Puebla que os bispos latino-americanos fazem a opção preferencial pelos pobres. que buscava a construção de um sindicalismo 'autêntico', combativo, envolvido com as bases.5 5 Cláudia SCHMITT, 1996.

Esse novo sindicalismo procurou romper com a postura assistencialista e paternalista dos sindicatos tradicionais ou 'acomodados'. Enquanto o antigo priorizava audiências com o governo e também alianças feitas apenas pela direção, o novo preferia a mobilização dos agricultores e o engajamento do maior número possível de trabalhadores.

Na região oeste de Santa Catarina, o movimento de oposição sindical e também os outros movimentos sociais surgiram no final da década de 1970 e início dos anos 1980. Vale destacar que a base de seu surgimento foram principalmente movimentos como o MST e o MAB, apoiados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Diocese de Chapecó.

A Igreja Católica, com a Teologia da Libertação, desencadeou um movimento de renovação de suas práticas e concepções, e na América Latina esse movimento foi bastante forte. Na região Oeste de Santa Catarina essas idéias foram largamente difundidas, principalmente após a chegada do bispo Dom José Gomes à Diocese de Chapecó em 1968.

Com a conquista da direção pela oposição sindical, em 1982, através de eleições, o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Chapecó passou a se organizar com base nas propostas de sua campanha. Assim, começou a promover ações, mobilizações e manifestações em favor dos preços dos produtos agrícolas, contra os altos juros dos financiamentos e a política agrícola como um todo.

E com a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, a maioria dos sindicatos da região, que haviam se reestruturado segundo os moldes do sindicalismo autêntico e de base - entre eles o STR de Chapecó -, filiaram-se à entidade, acrescentando assim mais força às suas reivindicações. Os dirigentes sindicais do campo tiveram e ainda têm uma participação expressiva na CUT, o que, no início, foi alvo de intensas discussões em torno da categoria de trabalhadores rurais. Segundo algumas posições, os pequenos proprietários poderiam ser enquadrados como empresários rurais e assim não poderiam ser representados pela entidade. Essa postura foi vencida com o tempo, também por terem sido as oposições sindicais rurais responsáveis pela consolidação da CUT no campo.

Não podemos nos esquecer da participação e influência que tiveram o Partido dos Trabalhadores (PT) e as Pastorais da Igreja. Na verdade foram, muitas vezes, as próprias lideranças dos movimentos sociais ligados ao campo que estruturaram o PT na região, tanto que várias lideranças do partido destacaram-se nesses movimentos.

Os movimentos sociais do oeste de Santa Catarina, nos quais se incluem as Oposições Sindicais, fazem parte de um movimento mais amplo chamado, pelos cientistas sociais, de Novos Movimentos Sociais. Segundo Ilse Scherer-Warren e Paulo Krische,6 6 SCHERER-WARREN e KRISCHE, 1987, p. 42. os novos movimentos sociais são movimentos contestadores da realidade excludente gerada pelo modelo capitalista, assumindo uma forma de participação mais igualitária, democrática. Eles também "representam um novo momento dentro da história do campesinato brasileiro, o qual passa a romper com alguns dos seus principais limites no que diz respeito à sua participação política".7 7 Odilon POLI, 1999,p. 165.

Tais movimentos também apontam para a construção de um novo projeto para a sociedade, um projeto alternativo que vai sendo elaborado com a vivência dos próprios militantes.

Gênero e sindicalismo

A participação das mulheres na força de trabalho no setor industrial aumentou entre as décadas de 1970 e 1980, e juntamente com esse crescimento houve também um aumento significativo da sindicalização das mulheres. Esse crescimento pode ser explicado por vários motivos. O primeiro deles diz respeito à renovação na prática sindical que se deu a partir de meados de 1970. Outro fator determinante na sindicalização das mulheres foram os movimentos de mulheres, muitos dos quais surgidos por volta de 1975, considerado pela ONU como Ano Internacional da Mulher. Entre eles podemos citar o Movimento das Mulheres pela Anistia, movimentos de lutas por berçários e creches, grupos de mães, movimentos de bairros, grupos de mulheres organizados pela Igreja através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e demais grupos que levantaram a problemática dos direitos de homens e mulheres. Além disso, os serviços de assistência prestados pelos sindicatos também podem ter influenciado na sindicalização das mulheres, principalmente no período anterior a 1978, quando o sindicalismo brasileiro passou por uma séria transformação nas práticas de atuação, como será dito adiante.

No período de 1970 a 1980, as trabalhadoras tiveram importante participação nas lutas sindicais, que vão desde as diferentes formas de resistência interna nas fábricas até as mobilizações e greves,8 8 Elizabeth SOUSA-LOBO, 1991. mas a participação na vida sindical (reuniões, direção) não avançou muito, mesmo no chamado 'novo sindicalismo'. No final dos anos 70 e início dos anos 80, o sindicalismo no Brasil passou por intensas transformações: greves, grandes mobilizações, novas formas de luta tornaram-se práticas desse novo sindicalismo, que se denominava classista, autêntico e combativo. Isso contribuiu intensamente na criação, em 1980, do PT e, em 1983, da CUT. Somente com a consolidação do novo sindicalismo enquanto ator coletivo nos anos 80 é que as questões de gênero passaram a ter importância no movimento sindical.9 9 Angela ARAÚJO e Verônica FERREIRA, 2000.

Quanto às trabalhadoras rurais, pode-se dizer que sua participação nos sindicatos e nos demais movimentos e organizações também teve início na década de 1980, e o principal movimento que colocou em discussão a temática de gênero em Santa Catarina foi o MMA.

O passo inicial para a criação do MMA foi dado no ano de 1981, no distrito de Nova Itaberaba, pertencente a Chapecó, durante a comemoração do Dia do Colono, em 25 de julho. Nesse evento surgiu também a proposta de chapa de oposição para o Sindicato de Trabalhadores Rurais do município. Como vemos, um movimento é ligado ao outro, pelo menos no seu início, uma vez que tiveram na Igreja a sua raiz organizacional e que os interesses que os movem são semelhantes. Na equipe que articulava a oposição ao sindicato havia mulheres "que na oportunidade levantaram a questão da impossibilidade da sindicalização da mulher agricultora, propondo que essa questão fosse assumida pela chapa de oposição".10 10 POLI, 1999, p. 123. A chapa, então, levantou a bandeira da sindicalização da mulher agricultora, o que gerou uma discussão maior em torno da participação da mulher, ganhando mais força nas comunidades e trazendo mais mulheres para esse debate.

Com a vitória da oposição nas eleições de 1982, as mulheres puderam, enfim, associar-se ao sindicato, o que foi mais um estímulo à construção do movimento de mulheres. No ano de 1983, o MMA surge enquanto movimento e, segundo relatório, os principais temas debatidos no I Encontro foram: 1) A necessidade da mulher entrar na luta; 2) Igualdade entre homens e mulheres; 3) A necessidade das agricultoras se unirem e se organizarem para terem seus direitos e dignidade respeitados.

A partir disso, nota-se que não eram apenas interesses de classe que moviam as mulheres, como sugerem alguns trabalhos. As lutas pelos direitos previdenciários - aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença - e o reconhecimento da profissão de agricultora eram bandeiras do movimento, mas se buscava também um espaço de participação mais igualitário para as mulheres dentro dos movimentos populares e das próprias unidades de produção. O MMA, sendo um movimento autônomo e com a participação apenas mulheres, torna-se um lugar privilegiado para as discussões de gênero.

Para Jacir Casagrande,11 11 CASAGRANDE, 1991. o Movimento das Mulheres Agricultoras surge com as perspectivas de gênero e de classe, mas o que movia as mulheres, no início, eram as questões ligadas à classe.

Já Odilon Poli12 12 POLI, 1999. questiona essa afirmação. Segundo ele, não se trata de negar que o MMA tenha surgido com as perspectivas de gênero e classe. O que Poli coloca em dúvida é o fato de uma dessas perspectivas - no caso a classe - ter sido principal ou única em um primeiro momento e que as questões de gênero só teriam sido levantadas posteriormente, o que, para ele, não aconteceu, pois as duas perspectivas estiveram sempre presentes.

É muito difícil falar das dirigentes sindicais do STR de Chapecó sem mencionar a influência que o MMA exerceu sobre elas: as primeiras dirigentes mulheres vieram do MMA, e algumas ainda participam do movimento. Hoje pode-se dizer que está se formando uma nova geração que não vem do MMA, mas que já tem sua formação através do próprio movimento sindical.

Porém, dentro da estrutura sindical, a discussão de classe é mais forte que a de gênero. E se a discussão de classe está mais presente no discurso das sindicalistas é devido à representação de classe e gênero que elas próprias fazem. Para a historiadora Joan Scott, classe e gênero são construções/representações.13 13 SCOTT, 1995. Assim, se levarmos em conta que as mulheres fazem parte da classe trabalhadora, classe e gênero andariam juntos. Mas na história das idéias essas duas representações se excluem, uma vez que o universo do trabalho e os direitos trabalhistas trazem em suas origens iluministas uma visão masculina de mundo na qual as mulheres aparecem como subordinadas. Portanto, o próprio conceito de classe trabalhadora enquanto categoria universal traz consigo essa discriminação.

Para as sindicalistas, então, a concepção de gênero se subordina à de classe, uma vez que as trabalhadoras são vistas como um exemplo específico do fenômeno geral das classes sociais.

Scott separa o conceito de sexo biológico do conceito de gênero e, sendo este último uma construção social, a cada mudança na organização do poder ocorre também uma mudança na representação do poder. As sindicalistas buscam essa representação do poder no espaço público, procurando ocupar espaços historicamente ocupados pelos homens.

Scott lembra ainda que é necessário "desconstruir" o caráter da oposição masculinofeminino.14 14 SCOTT, 1995. Guacira Louro, analisando o texto de Joan Scott, argumenta que essa oposição binária dos gêneros masculino e feminino faz surgir outros conceitos dicotômicos derivados deste, como por exemplo "produção-reprodução", "públicoprivado", "razão-sentimento", etc. Essa lógica torna possível naturalizar e tornar fixo um lugar para cada gênero. Segundo esta autora, a idéia de desconstrução trabalha contra essa lógica dicotômica na medida em que mostra que a oposição é construída e não inerente e fixa.15 15 LOURO, 1997, p. 32.

Já Deis Siqueira defende idéias diferentes: classe e gênero não se opõem; se complementam. Segundo ela, gênero e classe social encontram-se entrelaçadas, uma vez que o "gênero se realiza numa sociedade de classes". Assim, não importa se a discussão de gênero se inicia pela maternidade ou por questões salariais, pois "ambas chegarão, em sua continuidade, ao entrelaçamento dos lugares sociais simultânea e historicamente definidos tanto pela classe social quanto pelo gênero".16 16 SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.

A busca pelo poder dentro dos sindicatos se dá através do discurso da capacidade da mulher, e a viabilização desse discurso ocorre por meio da ocupação de cargos na direção. "Ou seja, foi escolhido como estratégia inicial a ocupação dos espaços políticos já definidos pela estrutura sindical - os cargos - e não a criação de novos espaços e de novas redes de estruturação de poder dentro do sindicalismo rural brasileiro".17 17 SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.

As trabalhadoras rurais querem, assim, demonstrar que são capazes de exercer as mesmas funções que seus companheiros e que, para participarem do Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais (MSTR), têm de participar de sua estrutura através dos cargos eletivos. Essa ocupação é também uma forma de superação da suposta incapacidade feminina e a garantia, para si e para as demais companheiras, da participação efetiva nas decisões e nos espaços sindicais, inclusive a posse da fala. O uso da fala é a manifestação de sua legitimidade: "Ocupar espaços significa ocupar espaços de fala, de tomada de decisões e de poder, antes reservados aos homens dentro da estrutura sindical".18 18 SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.

A análise das relações de gênero parte da premissa de que a divisão de trabalho e as relações entre homens e mulheres não são construídas em função de suas características biológicas, mas sim são um produto social que legitima as relações de poder. Segundo Miriam Abramovay e Rosicleide da Silva, gênero é uma categoria social que possibilita a análise de papéis que ocorrem de maneiras distintas para homens e mulheres.19 19 ABRAMOVAY e SILVA, 2000.

Aqui, essas autoras se aproximam do conceito de gênero proposto pela historiadora Joan Scott, que se baseia em duas pressuposições. A primeira é a de gênero como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, ou seja, como a sociedade, baseada no sexo biológico, constrói as diferenças. E a segunda é a de gênero como forma de dar significado às relações de poder. Segundo a autora, gênero e poder não podem ser dissociados; para se analisar um, deve-se levar em conta o outro.

Para Abramovay e Silva, a participação das mulheres tem crescido no movimento sindical, porém a sua incorporação nas direções é lenta. A cultura masculina na sociedade, que reserva ao homem o espaço público e os cargos de direção, funciona dessa maneira também nas instituições e sindicatos rurais.

Pierre Bourdieu20 20 BOURDIEU, 1995. afirma que, nas sociedades onde predomina a dominação masculina, mudar esse quadro não é tão fácil, porque uma ruptura supõe mudança de consciência não apenas dos dominados, mas também dos dominantes. A divisão sexual, que assegura a dominação masculina, está fortemente presente nas práticas cotidianas, na ocupação e divisão do espaço, na organização do tempo, ou seja, no habitus de cada indivíduo e de tal forma que pareça natural.

A naturalidade com que é construída a divisão social entre os sexos a torna legítima. A diferença biológica entre masculino e feminino aparece para justificar a diferença socialmente construída entre os sexos. Bourdieu justifica que esse sexismo é um essencialismo que, como no caso de etnia ou de classe, serve para atribuir diferenças sociais a características naturais e biológicas, funcionando como essência de onde se justificam os atos da existência. Esse essencialismo é muito difícil de desarraigar, há vista todo um trabalho milenar de socialização do biológico e de biologização do social que faz "uma construção social naturalizada aparecer como a justificação natural da representação arbitrária da natureza que está no princípio da realidade e da representação da realidade".21 21 BOURDIEU, 1995, p. 145.

As mulheres muitas vezes são admitidas como companheiras de luta, mas não de poder, e a discussão das cotas22 22 A aprovação da cota mínima de 30% e máxima de 70% para cada sexo aconteceu na IV Plenária Nacional da CUT, em 1993. Essa medida tinha a preocupação inicial de construir relações políticas igualitárias. Também para os sindicatos e entidades filiadas foi recomendada a adoção dessa porcentagem para compor as direções. mínimas de participação de mulheres nas direções é um tanto difícil. Os argumentos são muitos. Há os que sustentam - inclusive mulheres - que a política de cotas pode se transformar em uma simples formalidade para conquistar espaços, o que não significa poder. Porém, o próprio processo de discussão sobre as cotas trouxe as mulheres para o debate, o que gerou nelas a consciência de brigar por seus espaços de decisão e de poder.

As dirigentes sindicais do STR de Chapecó e região: gênero, poder e igualdade

Mesmo com a vitória da oposição sindical em Chapecó, em 1982, e com o direito à sindicalização garantido, as mulheres não se sentiram representadas nesse órgão. Afinal, não participavam efetivamente da estrutura organizativa do sindicato.

Como nós tínhamos a bandeira sindicalização, a gente tinha também a bandeira muito forte que a mulher deveria fazer parte da direção do sindicato também. Então na primeira eleição a gente não teve mulheres, em vista que a gente não tinha passado por uma aprovação antes, não tinha sindicalização, então já na segunda eleição já começou duas companheiras fazendo parte da direção e eu entrei a partir da terceira eleição. A partir do momento da oposição ter vencido, eu comecei a fazer parte da direção do sindicato, não de linha de frente mas sempre atuando (Dirigente sindical - mulher).

As mulheres que lutaram pela mudança no sindicato participavam também do MMA, onde elas se sentiam mais representadas e também mais à vontade para se exporem e exporem suas idéias. Porém, esse movimento constituiu-se mais em um meio do que em um fim. Ele funciona, como afirmam algumas militantes, como uma instância preparatória para as mulheres assumirem outros movimentos.

[...] eu acho que o movimento de mulheres, o movimento específico de mulheres, e a gente atuou no MMA, é pra preparar realmente as mulheres e qualificar as mulheres. É um espaço onde a mulher passa a sair de casa, participar, a não ver aquele mundo somente de casa, mas começar a participar dos debates das organizações e tal. E é um espaço onde a mulher adquire a consciência política, por exemplo, de poder se qualificar pra ir podendo ocupar outros espaços. Então, minha atuação também foi forte no MMA, e acho que foi um dos espaços que também me convenceu mais do espaço que deveria trabalhar e discutir em relação aos espaços da mulher nas organizações e na sociedade. E, a partir daí, lógico que as mulheres não podem ficar, específico no MMA, têm que ir ocupando outros espaços, outras instâncias pra ela poder não só ocupar por ocupar, mas também somar força diante das lutas (Dirigente sindical - mulher).

Somente a partir da segunda eleição após a vitória da oposição é que duas mulheres fizeram parte da composição da direção, ainda assim em cargos considerados inferiores na hierarquia de poder, como elas mesmo colocam.

Das quatro dirigentes entrevistadas que passaram pelo MMA, duas delas continuam participando neste momento. Mas, mesmo em relação a estas, a atuação prioritária é no sindicato. Quando entram para as direções executivas dos sindicatos, acabam, muitas vezes, deixando de lado o movimento de mulheres.

Já, para outras, a demanda de trabalho no STR pode exigir tanto que não sobra tempo para militar também no MMA. Um bom exemplo disso é que as mulheres agricultoras têm diferentes militâncias, que vão desde a comunidade, passando pela Igreja, até os movimentos sociais. Ou seja, elas fazem parte - juntamente com seus maridos - de grupos na comunidade, são catequistas, coordenadoras de grupos de reflexão, além de participantes dos movimentos sociais. Essas são as tarefas na esfera pública. Mas existe também a esfera privada, em que as mulheres são mais cobradas, pois tradicionalmente foram considerados seus papéis a educação dos filhos, os afazeres domésticos, a lida com as pequenas criações e também o trabalho na lavoura. Conciliar tantas atribuições com militância não é uma tarefa fácil.

Também pesa sobre a mulher a discriminação por estar saindo de casa, indo do espaço privado ou comunitário para o público.

Eu me sinto muito discriminada. Uma por sair de casa, a dificuldade de sair de casa, deixar a família. As pessoas falam por você ser mulher, por você estar saindo de casa. Eles acham que você não vai trabalhar, que você não tem capacidade de construir alguma coisa e sim de só ser uma mulher de programa. É isso que os homens pensam, né? (Dirigente sindical - mulher).

Tem muitos problemas. Mas um dos principais é que parece assim que, por a gente ser mulher, os outros acham que a gente não tem capacidade de administrar e de estar envolvido. Então muita coisa que a gente poderia estar fazendo eles dizem assim: "Não, nessa parte não. Pode ser feito, mas não pela [...], pode ser feito por uma outra pessoa. Porque a [...] fica ruim, porque ela é mulher e tal". E de outra parte a gente, a gente mesmo, acha que a gente é frágil, e a gente perde muito com isso (Dirigente sindical - mulher).

As próprias dirigentes se cobram muito por não terem o mesmo ritmo dos homens, por terem de assumir seus outros papéis (mãe, esposa), enquanto justificam que para os homens essas questões são mais 'tranqüilas'.

Motivos financeiros podem explicar um pouco a priorização da militância no STR, onde são remunerados os dias dispensados ao trabalho no sindicato ou a reuniões e cursos que duram alguns dias. Já o Movimento de Mulheres, como não possui muitos recursos, não dispõe desse ressarcimento. Ainda existem dirigentes que tentam conciliar a atuação no sindicato e no MMA, mas a pressão é muito grande: de um lado, a demanda de trabalho aumenta no STR, e elas têm de garantir o espaço conquistado; de outro, a cobrança e a discriminação dos companheiros dirigentes em relação ao movimento contribuem para desestimular a dupla militância. Comentários como o seguinte, a respeito das reuniões do MMA, aparecem nas falas dos dirigentes sindicais: "Elas ficam fazendo reuniõezinhas que não levam adiante a luta, que não é nada prático, não sai da discussão".

Hoje, há na direção executiva do STR de Chapecó e região seis mulheres e cinco homens. As mulheres ocupam as seguintes secretarias: Secretaria Geral, de Formação, de Finanças, de Políticas Públicas, de Política Agro-Industrial e a Comissão de Gênero. Os homens estão com a presidência e as secretarias de desenvolvimento rural, de organização sindical, de comunicação e a comissão de jovens. Esse quadro é otimista, já que garante às mulheres a mesma participação que os homens nos cargos da executiva. Porém, o mesmo não acontece nas coordenações municipais, onde a grande maioria é composta por homens.

Quando iniciei essa pesquisa, em 2000, havia três mulheres na direção: uma ocupava a Secretaria de Finanças, outra a Secretaria de Organização Sindical e a terceira, a Secretaria de Desenvolvimento Rural. Já que as Secretarias de Finanças e Organização Sindical estão entre as mais importantes, considero isso um grande avanço das mulheres. Por outro lado, o nível de exigência dessas funções é extremamente grande, o que impede que tais dirigentes pensem e discutam políticas de gênero.

Em abril de 2001, ocorreram eleições sindicais. No mês de janeiro, quando estava em campo realizando a pesquisa, acompanhei algumas reuniões no interior dos municípios que participam do Sindicato Regional. Essas reuniões tinham como um dos objetivos eleger delegados e delegadas para o congresso onde se daria a composição das chapas para a eleição. Pude assim perceber que havia poucas mulheres nas reuniões e, dependendo de quem coordenava e de como a reunião era conduzida, elas se retraíam e não participavam. E esse número pouco significativo de mulheres nas reuniões da base repercutiu na pouca participação de delegadas no congresso, em que cerca de 80% dos delegados foram homens.

Havia uma preocupação muito grande por parte das mulheres dirigentes em relação ao alcance da cota de 30% de mulheres para a direção. Essa preocupação nem sempre era compartilhada pelos homens, pois, caso a cota mínima de 30% de mulheres não fosse alcançada, a eleição seria realizada do mesmo modo. O que preocupava as dirigentes mulheres era um número muito pequeno de delegadas, pois isso não daria opções para a escolha de dirigentes mais atuantes.

Entre as mudanças de valores e da compreensão das relações sociais advindas das discussões de gênero na CUT e nos sindicatos, as que mais se destacam são a discussão da cota mínima de participação feminina nas direções e a do aborto. Mas entre as sindicalistas rurais, especialmente as da região oeste de Santa Catarina, a discussão a respeito do aborto praticamente não existe, ou ainda se pode dizer que é tabu, principalmente por causa da orientação cristã/católica das/os militantes.

Em relação às cotas muito pode ser dito, principalmente que o sindicato segue as orientações estatutárias da CUT a esse respeito e que, na medida do possível, tenta encontrar mulheres suficientes para preencher os 30% estipulados.

A gente tem uma determinação que deveria ter 30% de mulheres, mas nem sempre isso é possível. A gente encontra barreiras pra conseguir encontrar o 30% de mulheres. A própria mulher não desafia pra enfrentar uma liderança (Dirigente sindical - mulher).

Homens e mulheres têm opiniões diversas a respeito das cotas. Tanto entre os dirigentes homens quanto entre as dirigentes mulheres há quem concorde e quem discorde da cota, mas todos assumem que ela é um forte instrumento de garantia para a democratização dos sindicatos, partidos políticos e demais movimentos.

Eu acho que não deveria existir essa cota. Acho que devia ser uma coisa mais livre, mas que tivesse a participação da mulher. Às vezes se coloca uma ou duas mulher a mais só pra fechar essa cota ou, às vezes, se deixa de colocar. Porque ao mesmo tempo poderia ter a quota de 30% para os homens. Acho que não tem que ser porque a lei exige. Tem que ser uma coisa que precisa acontecer (Dirigente sindical - homem).

Eu acho que não haveria necessidade se as mulheres participassem mais e brigassem pelo seu espaço. Mas também acho que é importante porque quando o homem gosta de ser prepotente nessas escolhas, é a garantia pelo menos de 30%, mesmo que, muitas vezes, as mulheres não tenham muita... não tenha o número de mulheres pra completar. Mas é importante para que as mulheres busquem conquistar pelo menos esse espaço (Dirigente sindical - homem).

Mudar o habitus, como coloca Bourdieu, não depende apenas das mulheres, uma vez que elas vão incorporar outros papéis além de mãe, esposa e trabalhadora. Muitas vezes será necessário uma reordenação das tarefas rotineiras, com maior participação do marido e dos filhos, para que a mulher assuma um lugar no sindicato. Quando é o homem que assume esse papel, a mulher, na maioria das vezes, desempenha as suas funções na propriedade geralmente com a ajuda dos filhos. No caso de a mulher assumir, há diferenças, principalmente se os filhos são pequenos, e não há nenhuma filha mulher que possa assumir o papel da mãe.

O peso do habitus não é do tipo que se possa suprimir por um simples esforço da vontade, baseado em uma tomada de consciência libertadora.23 23 BOURDIEU, 1995, p. 147. Assim, não é tão simples conseguir a igualdade proclamada pelos dirigentes sindicais. A socialização da mulher rural foi muito dura; ela foi educada para aceitar o que os homens decidem ou, se não para aceitar, para não decidir. Isso sempre foi uma tarefa de seu pai ou de seu marido. Não é 'tranqüilo', como os dirigentes afirmam, buscar a igualdade na família, pois ali existem muitas diferenças: para a mulher, não é fácil abandonar o habitus de ser dominada; e para o homem é também muito difícil deixar de ser o dominador.

Agora com o trabalho de gênero a gente vai trabalhar também nas reuniões que vai ter porque vai estar os homens também lá participando. Então daí é mais fácil pra ver essa igualdade, porque eles vão ceder. E eles vão ceder sabendo porque estão cedendo e porque que a mulher tem que ser igual a eles. Então com esse trabalho de gênero agora nós estamos esperando que vamos conseguir chegar mais perto (Dirigente sindical - mulher).

A mudança na família é que permite à mulher maior participação no sindicato.

A gente, quando discute gênero, não quer discutir as coisas separadas, discutir só jovens, só a mulher, ou a partir da mulher. O que nós discutimos é o envolvimento dessa geração no debate. E também o movimento está pensando propostas para essas pessoas, pra essas relações (Dirigente sindical - homem).

Esse dirigente acha que a discussão de gênero separada pode causar 'problemas', divergências na família. Nota-se aqui que ele tenta evitar 'tocar na ferida'. É preferível, às vezes, mascarar as diferenças e inventar uma igualdade para não criar conflito, como na declaração a seguir, de outro dirigente.

A mulher também ajuda também na renda da família, ajuda na organização das pessoas, da categoria. E ajuda na construção desse projeto que nós queremos construir. É importantíssima a participação da mulher. Sem a mulher a luta fica pela metade. Então com certeza é importante dar continuidade a isso (Dirigente sindical - homem).

Nota-se na fala desse dirigente que ele quer nos convencer de sua postura em relação à participação das mulheres, mas usa expressões como "a mulher também ajuda". Isso mostra uma posição secundária da mulher na 'igualdade' proposta pelos homens. Por ser o sindicato ainda muito masculino, a militância da mulher é vista como um complemento, uma ajuda, uma contribuição na luta encabeçada pelos homens.

Tanto os homens quanto as mulheres pertencentes ao sindicato têm opiniões iguais em relação à necessidade de discussões de gênero. Para eles, essas discussões devem ser feitas também com os homens, o que inclui críticas ao MMA, do qual só participam mulheres. E na opinião das dirigentes, se os homens participarem vão entender mais facilmente as reivindicações das mulheres. Por isso o sindicato está realizando reuniões de gênero nas comunidades, para que a participação seja mais heterogênea.

As questões de gênero que nós temos trabalhado aqui não é só gênero homem e gênero mulher. Mas o que mais nós temos trabalhado é as pessoas, o valor da pessoa, né. Pra pessoa parar de ser discriminada. Eu acho que agora é a campanha de documentação. [...] O nosso trabalho aqui de gênero é pra ela ser valorizada enquanto pessoa, não pelo que ela é, homem ou mulher, mas sim como pessoa (Dirigente sindical - mulher).

Os homens não levam em conta a socialização, tanto das mulheres quanto deles próprios. E as mulheres não estão livres da dependência, pois a educação as preparou para a subordinação, para participar do poder através dos homens (seus pais, maridos).

Ao serem questionadas quanto à discriminação que sofrem dentro do movimento sindical, as dirigentes colocaram dois tipos de discriminação: a dos companheiros dirigentes e a da comunidade em geral.

Muito discriminada. Uma por sair de casa, a dificuldade de sair de casa, deixar a família. As pessoas falam por você ser mulher, por você estar saindo de casa (Dirigente sindical - mulher).

Eles [os dirigentes homens] acham que a gente não sabe falar. Ou então não consegue. Quando é uma coisa mais complicada dizem: "deixa que vou eu, você não vai dar conta". Então, assim, parece que a gente não tem capacidade; não vêem a gente como quem tem capacidade (Dirigente sindical - mulher).

No que se refere a poder, as dirigentes sindicais são categóricas ao afirmar que os homens não querem abrir mão de seus espaços e que, mesmo cedendo em alguns pontos, em outros mostram que na prática não estão dispostos a dividir o poder.

A autonomia que nós temos aqui dentro como mulheres, às vezes temos e às vezes não temos. Porque no nosso trabalho aqui tem várias mulheres, mas a autonomia ainda é dos homens. Não adianta nós dizer que é nós, mulheres, que não é. Embora que a gente consiga construir junto, né, mas a palavra final, na maioria das vezes, é deles (Dirigente sindical - mulher).

Declarações como essas mostram que, para os homens, é muito difícil abrir mão de um espaço que era só seu e também permitir que suas companheiras saiam de casa. Aqui também está bem presente o discurso da capacidade feminina no sentido de ser igual ao homem. A superação da suposta incapacidade da mulher e a garantia da legitimação de seus direitos devem se dar através da ocupação dos cargos de direção e do pleno desenvolvimento de suas funções, lutando assim para que suas propostas sejam respeitadas.24 24 SIQUEIRA, 1992.

Percebe-se na fala a seguir uma autocobrança muito grande por parte da dirigente, já que o padrão de comportamento esperado no sindicato é masculino. Elas chegam a sentir-se até mais cobradas que os homens.

Bourdieu afirma que a dominação masculina está suficientemente assegurada para precisar de justificação, ou seja, não há necessidade de argumentar ou justificar uma posição superior. As práticas, os discursos, reproduzem a dominação.

Em relação ao uso da palavra em reuniões, as mulheres ainda têm certo receio. O falar está associado à idéia de poder, e os sindicatos ainda são identificados como espaços masculinos, por mais que se tente mudar esse quadro. E em se tratando de sindicatos rurais isso pode ser até mesmo mais forte, uma vez que há menos de duas décadas as mulheres nem sequer podiam se associar e também não faziam parte da categoria profissional agricultores.

Nas reuniões da direção percebi que a maioria das mulheres mantinha-se calada, ouvindo os dirigentes homens. Apenas as lideranças mais atuantes manifestavam-se com maior freqüência. Falar diante de muitos, principalmente lideranças, parece-me que ainda é uma dificuldade para as mulheres que estão iniciando sua participação no sindicato.

É por isso que muitas vezes a própria mulher, se ela não tem claro e a força de se desafiar pra isso, ela acaba desistindo, acaba achando que não vale a pena ou que não tem o espaço e desanima e desiste (Dirigente sindical - mulher).

Essa dirigente coloca ainda que a mulher tem de perder a vergonha de se comunicar em público. As dirigentes têm de falar as coisas certas, convencer os homens e as outras mulheres de que suas propostas são viáveis, mas é preciso que elas próprias estejam convencidas disso. A igualdade não é um meio termo; é "ser como os homens" em público. As que não conseguem é porque "não possuem força suficiente para se desafiar", como mostra a fala da dirigente. Esse discurso reforça ainda mais o seu fardo, pois o que se vê nele é culpa das mulheres por não avançarem em suas conquistas.

Considerações finais

Apesar dos últimos avanços das mulheres e das novas estruturas das direções dos sindicatos, nota-se ainda muita discriminação em relação a elas.

Nos sindicatos com os quais tive algum contato, em geral não há uma participação muito expressiva das mulheres nas direções. Já no STR de Chapecó as mulheres são um número representativo na executiva, porém isso não é suficiente para garantir direitos iguais.

O 'novo sindicalismo' surgido na década de 1980 vem atravessando uma crise de identidade, um pouco em decorrência da enorme crise pela qual vem passando não só a agricultura familiar, mas também diversos setores da sociedade.

A mulher agricultora foi socializada no espaço privado e qualificada para os afazeres domésticos, o trabalho na lavoura, o cuidado e a educação dos filhos, a lida com os animais e a sair sempre acompanhada pelo marido, pelo pai ou pelos irmãos. Por outro lado, ao homem foram dadas tarefas como o relacionamento com o banco, a cooperativa, o comércio e também o com sindicato. Contudo, novas formas de atuação e de lutas sindicais que estão levando em conta as questões de gênero vêm sendo elaboradas.

Porém, tais mudanças não são tão profundas a ponto de eliminar preconceitos e práticas. A mulher carrega consigo particularidades femininas, adquiridas na sua socialização, que não se restringem ao biológico, mas ao comportamento, ao modo de agir. As militantes falavam constantemente de "um jeito de trabalhar" e de organizar as tarefas no sindicato que vem da sua experiência de casa, da experiência com o mundo privado, mas acabam incorporando as práticas dos homens, pois estas, sim, é que são aceitas por eles. Os dirigentes, embora tenham desejo de mudanças, não conseguem livrar-se do habitus.

Essa maneira de ver a igualdade entre homens e mulheres no sindicato é muito injusta para com a mulher, por não levar em conta a educação a qual foi submetida. E também muito restritiva, por nem sequer cogitar em incorporar o que o 'jeito feminino de ser' pode trazer de positivo. Defender a idéia de que homens e mulheres devem discutir juntos seus problemas pode parecer um grande avanço para o sindicalismo rural, mas pode também inibir a participação feminina. Como elas têm pouco espaço próprio, fica difícil elaborar um contradiscurso. Isso pode ser percebido no MMA, por exemplo, onde as mulheres ficam mais à vontade para se expor e debater questões ligadas a gênero e não somente a classe.

Mas se assumirmos gênero como uma categoria de construção histórica, como acredita Joan Scott,25 25 SCOTT, 1995. poderemos ver novas possibilidades quanto à participação das mulheres nos movimentos sociais. Se pensarmos na possibilidade de desconstrução das categorias de análise tradicionais, não somente a da dominação, mas também a da construção da igualdade proposta pelo sindicato, tentando revelar o quanto de discriminação existe nessa 'igualdade', haverá avanços. Scott discute a importância da desconstrução até que se veja o viés machista da construção, no qual a mulher é interpretada apenas como um fenômeno geral da classe trabalhadora, para, a partir daí, buscar outras formas de construções.

O mundo dos homens foi sempre de desigualdade, de miséria, de guerras. O que vivemos hoje é decorrência da construção de mundo dos homens. Será que o fato de as mulheres terem outro tipo de socialização, mais altruísta, mais preocupada com o outro, não pode trazer contribuições positivas para a humanidade?

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  • ARAÚJO, Angela M. Carneiro; FERREIRA, Verônica Clemente. "Sindicalismo e relações de gênero no contexto da reestruturação produtiva". In. ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.) Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios São Paulo: Editora 34/CEDEPLAR/UFMG, 2000. p. 309-346.
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  • SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHE, Paulo. Uma revolução no cotidiano: os novos movimentos sociais na América Latina São Paulo: Brasiliense, 1987.
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  • SCOTT, Joan. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS, v. 20, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1995.
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  • SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • 1
    Este trabalho é parte da pesquisa de conclusão de curso em Ciências Sociais. Agradeço ao CNPq a bolsa de pesquisa que permitiu a sua realização.
  • 2
    O termo 'liberada' é utilizado quando a dirigente sindical participa de atividades de interesse da entidade e é remunerada.
  • 3
    Dados de 1996 do IBGE.
  • 4
    Processo que se iniciou com o Concílio Vaticano II (19621965) e foi reforçado pelos encontros episcopais de Medellín e Puebla em 1969 e 1979 respectivamente. Nesses encontros foram elaboradas as novas diretrizes da Igreja na América Latina. É no encontro de Puebla que os bispos latino-americanos fazem a opção preferencial pelos pobres.
  • 5
    Cláudia SCHMITT, 1996.
  • 6
    SCHERER-WARREN e KRISCHE, 1987, p. 42.
  • 7
    Odilon POLI, 1999,p. 165.
  • 8
    Elizabeth SOUSA-LOBO, 1991.
  • 9
    Angela ARAÚJO e Verônica FERREIRA, 2000.
  • 10
    POLI, 1999, p. 123.
  • 11
    CASAGRANDE, 1991.
  • 12
    POLI, 1999.
  • 13
    SCOTT, 1995.
  • 14
    SCOTT, 1995.
  • 15
    LOURO, 1997, p. 32.
  • 16
    SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.
  • 17
    SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.
  • 18
    SIQUEIRA, 1992, p. 80-81.
  • 19
    ABRAMOVAY e SILVA, 2000.
  • 20
    BOURDIEU, 1995.
  • 21
    BOURDIEU, 1995, p. 145.
  • 22
    A aprovação da cota mínima de 30% e máxima de 70% para cada sexo aconteceu na IV Plenária Nacional da CUT, em 1993. Essa medida tinha a preocupação inicial de construir relações políticas igualitárias. Também para os sindicatos e entidades filiadas foi recomendada a adoção dessa porcentagem para compor as direções.
  • 23
    BOURDIEU, 1995, p. 147.
  • 24
    SIQUEIRA, 1992.
  • 25
    SCOTT, 1995.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Abr 2004
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