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IN MEMORIAM

Letícia Cardoso Barreto

Universidade Federal de Santa Catarina

É com enorme pesar que comunicamos o falecimento de Gabriela Silva Leite, às 19 horas do dia 10 de outubro de 2013, no Rio de Janeiro. Gabriela era casada com Flávio Lenz, tinha duas filhas, uma neta e um enteado. Vítima de câncer, contra o qual lutou por alguns anos, Gabriela não se deixou abater pela doença e seguiu na sua batalha pelos direitos das prostitutas.

Filha de uma família de classe média de São Paulo, formada por uma dona de casa e um crupiê, Gabriela Leite nasceu em 1951 e foi registrada como Otília Silva Leite. Em 1969 ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, mas não o concluiu e logo o trocou pelos atrativos da vida boêmia. Tornou-se prostituta e começou a adotar o nome Gabriela, pelo qual passou a ser reconhecida ao longo de toda sua vida. Transitou pelos mais diversos territórios de prostituição em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A partir daí, essa foi a profissão pela qual gostaria de ser identificada, mesmo tendo abandonado o seu exercício na década de 1980, denominando-se uma "puta aposentada".

Gabriela se destacou pela sua forte militância no movimento das prostitutas, tornando-se uma importante liderança deste. Esteve presente desde suas primeiras ações, em 1979, na Boca do Lixo, momento em que prostitutas e travestis convocaram a sociedade civil a se manifestar em oposição às arbitrariedades cometidas por um delegado contra essa população, o que gerou a organização de uma manifestação na Praça da Sé. O movimento foi se consolidando através de ações como o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro; o surgimento da primeira associação da ocupação, na Vila Mimosa, em 1988, seguida por várias outras a partir da década de 1990; e a criação do jornal Beijo da Rua, em 1988, cujo editor é seu marido, Flávio Lenz. Gabriela se mostrou figura essencial em todos esses momentos, começando também a ganhar visibilidade na mídia. Em 1988, articulou junto com outras/os atrizes/atores a primeira parceria com a Coordenação Nacional de DSTs/Aids, do Ministério da Saúde, fundamental para a consolidação do movimento e a obtenção de recursos para campanhas como a "Sem vergonha!", que trazia materiais com frases como "Sem vergonha, garota! Você tem profissão!".

Nos últimos anos, vinha debatendo a importância de o movimento não fazer mais uso desses financiamentos apenas do âmbito da saúde, o que acabava por restringir o movimento e delimitar a forma como era percebido.

Sua militância se tornou mais institucionalizada com a fundação da ONG Davida, que visa à promoção da cidadania das prostitutas, aliada ao rompimento de estereótipos e à promoção de políticas públicas. Uma das ações de mais destaque midiático dessa ONG foi a criação, em 2005, da grife Daspu – cujo nome ironiza a grife Daslu –, que seria uma forma de financiar projetos, mas também de chamar a atenção para o movimento e atuar na promoção da autoestima das prostitutas.

A luta foi adquirindo como bandeiras principais o reconhecimento legal da profissão, a identificação das prostitutas como sujeitas capazes de autodeterminação e o fim da criminalização do entorno da atividade. Nesse sentido, algumas das principais conquistas foram a inclusão da categoria "profissionais do sexo" na Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e do Emprego, no ano de 2002, e a parceria com deputados federais que propuseram projetos de lei, elaborados em parceria com o movimento de prostitutas, entre os quais podemos destacar o 98/2003, de Fernando Gabeira, já arquivado, e o 4.211/2012, de Jean Wyllys, batizado de Lei Gabriela Leite.

No ano de 2010, Gabriela se candidatou a deputada federal pelo Partido Verde, adotando o slogan "uma puta deputada", no entanto, não foi eleita.

Gabriela Leite escreveu dois livros ao longo de sua vida: Eu, mulher da vida, de 1992, e Filha, mãe, avó e puta, de 2009, o qual deu origem a uma peça de teatro homônima. Ambas as obras são autobiográficas, trazendo histórias sobre os mais diferentes aspectos da vida da prostituta. O segundo se destaca por ter sido dividido a partir dos "10 mandamentos da prostituição", possuindo também um caráter político mais claro.

Era uma pessoa simples e muito afetuosa, o que fez com que ganhasse carinho de muitas pessoas ao seu redor. Gostava de diálogos que aconteciam em clima informal, dizendo que era no botequim que surgiam suas melhores ideias, mas sempre mantinha uma postura combativa e segura dos seus ideais. Não lhe agradavam termos como profissional do sexo, gostava de ser chamada de puta e lutava para que a palavra não fosse mais associada a algo negativo. Contava com orgulho que sua neta dizia querer ser identificada como neta da puta.

Queria ser reconhecida como feminista, embora sempre destacasse os embates travados com as que ela chamava de feministas ortodoxas, que achavam que as prostitutas eram vítimas do machismo a serem resgatadas. Rejeitava todas as ideias abolicionistas e vitimizantes, oferecendo em troca um discurso de liberdade e protagonismo que foi fundamental à colocação das prostitutas enquanto sujeitos políticos de sua própria história. Dizia, porém, que, nos últimos anos, havia conseguido travar diálogos com um feminismo mais jovem, embora, em outros momentos, afirmava que a juventude de hoje era, sob alguns aspectos, mais conservadora do que a de sua época. Para ela e para mim, a sua luta era uma luta feminista, pela autonomia das mulheres, pelo seu reconhecimento enquanto profissionais capazes de escolher sua ocupação.

Essa enorme perda nos deixa a certeza de que ainda há muito a ser feito pelos direitos das prostitutas e que a luta continua.

Belo Horizonte, 2 de novembro de 2013.

Tributo a Helen Safa

Mary Garcia Castro

Universidade Católica do Salvador

No dia 3 de novembro de 2013, em Gainesville, Flórida, faleceu Helen Safa. Uma mulher que foi muito significativa para mim e para muitos pesquisadores do campo de estudos sobre família, gênero, feminismo, movimentos sociais e estudos sobre subalternidade e colonialismo no Caribe. Helen me acolheu em Gainsville, nos anos de 1970, abrindo-me portas acadêmicas e apresentando-me à literatura sobre o Caribe, gênero, família e movimentos sociais.

Com corajosa postura política, promoveu intercâmbio de acadêmicos cubanos, porto-riquenhos e de esquerda, sendo ameaçada de morte por terroristas gusanos. Com sua produção intelectual e seu ativismo em prol dos direitos dos povos não antenados com o Império, questionou a separação entre rigor científico e tomar partido, ou seja, o comumente desqualificado trabalho "ideológico" na academia.

Foi presidente de Latin American Schollars Association (Lasa), conferencista convidada nos mais diversos eventos pelo mundo e receptora de vários prêmios internacionais por escritos em antropologia. Ativa na seção de Gênero de Lasa, promoveu o empoderamento de mulheres jovens na academia. No Congresso de LASA, em São Francisco, organizou uma mesa em homenagem à socióloga feminista brasileira, Heleieth Saffioti, com a minha participação, a de Lena Lavinas, de Albertina Oliveira e de Celi Regina Pinto.

Pioneira em estudos antropológicos sobre mulheres chefes de família e cenários de colonização e pobreza, publicados desde os anos de 1950, nos Estados Unidos, era uma grande intelectual que se anunciava como feminista marxista.

Helen Safa tinha o Caribe, em especial Porto Rico e Cuba, como campos de pesquisa e causas de luta política, promovendo pesquisadores desses países. Conseguia, por seu prestígio, bolsas para levar aos Estados Unidos pesquisadores da América Latina e para que fizessem pesquisas em seus países.

Tive o grande privilégio de conviver com Helen Safa, de ser sua amiga e de aprender muito com seus trabalhos e com sua postura/coerência de vida. Helen Safa fez parte da célebre geração de antropólogos dos anos de 1950 da Universidade de Columbia, que deixou marca singular tanto por escritos como atos e dignidade. Helen não fez concessões. Com ela se vai mais um membro de uma geração de acadêmicos que nos honra e nos deu, com sua história de vida, o ânimo para acreditar que é possível, ainda que exija sacrifícios, fazer ciência com razão, coração e principalmente com compromisso contra desigualdades e injustiças sociais.

Obrigada, Helen Safa, por ter estado em meu caminho e ter dado a mim e a tantos jovens pesquisadores não só a mão como também "régua e compasso" por um modelo alternativo de compromisso acadêmico com uma sociedade menos bárbara. Estou triste e órfã com seu passamento, mas feliz por tê-la conhecido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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