Acessibilidade / Reportar erro

Publicações feministas: velhos e novos desafios

Feminist Journals: old and new challenges

Resumos

Este ensaio recupera parte do debate desenvolvido no evento de comemoração dos 20 anos da Revista Estudos Feministas, sobre os desafios das publicações feministas. Considero que alguns desafios foram em parte bem-sucedidos, como a incorporação das teorias de gênero e feminista à teoria social. Por outro lado, ainda persitem obstáculos, como a dificuldade dos periódicos em serem admitidos em alguns sistemas de indexação complexos, o que os tornaria academicamente mais respeitáveis. No entanto, isto não é específico de publicações feministas. Como conclusão, destaco dois de nossos grandes desafios: a internacionalização da produção acadêmica brasileira e a horizontalização das teorias feministas e de gênero, a fim de expandir as fronteiras nacionais e disciplinares.

estudos de gênero; publicações feministas; internacionalização; horizontalidade


This paper retrieves part of the debate developed in the 20th years of the Revista Estudos Feministas Seminar. Some challenges were successful in part, as the visibility of gender and feminist theories in relation to social theory. By other hand, some obstacles still exist, such as the difficult to be admitted into some complex indexing systems, which would make the journals become more respectful. However, this is not specific of feminist publications. As conclusion, I will highlight two of our major challenges: the internationalization of Brazilian academic production and the horizontality of feminist and gender theories, in order to expand the national and disciplinary boundaries.

Gender Studies; Feminist Journals; Internationalization; Horizontality


SEÇÃO ESPECIAL REF 20 ANOS

Publicações feministas: velhos e novos desafios

Feminist Journals: Old and New Challenges

Iara Beleli

Universidade Estadual de Campinas

RESUMO

Este ensaio recupera parte do debate desenvolvido no evento de comemoração dos 20 anos da Revista Estudos Feministas, sobre os desafios das publicações feministas. Considero que alguns desafios foram em parte bem-sucedidos, como a incorporação das teorias de gênero e feminista à teoria social. Por outro lado, ainda persitem obstáculos, como a dificuldade dos periódicos em serem admitidos em alguns sistemas de indexação complexos, o que os tornaria academicamente mais respeitáveis. No entanto, isto não é específico de publicações feministas. Como conclusão, destaco dois de nossos grandes desafios: a internacionalização da produção acadêmica brasileira e a horizontalização das teorias feministas e de gênero, a fim de expandir as fronteiras nacionais e disciplinares.

Palavras-chave: estudos de gênero; publicações feministas; internacionalização; horizontalidade.

ABSTRACT

This paper retrieves part of the debate developed in the 20th years of the Revista Estudos Feministas Seminar. Some challenges were successful in part, as the visibility of gender and feminist theories in relation to social theory. By other hand, some obstacles still exist, such as the difficult to be admitted into some complex indexing systems, which would make the journals become more respectful. However, this is not specific of feminist publications. As conclusion, I will highlight two of our major challenges: the internationalization of Brazilian academic production and the horizontality of feminist and gender theories, in order to expand the national and disciplinary boundaries.

Key Words: Gender Studies; Feminist Journals; Internationalization; Horizontality.

Introdução

É interessante notar que quando nos propomos a falar das publicações feministas a noção de "desafio" ganha centralidade e seus significados, segundo Houaiss, remetem a "competição", "afronta", às vezes, "provocação", mas utilizo-a aqui como "tarefa difícil de ser executada".1 1 Dicionário Houaiss. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br. Neste ensaio,2 2 Agradeço a leitura e sugestões de Albertina Costa. tento pensar nas dificuldades enfrentadas pelas revistas, que se refletem também na constituição do campo de estudos de gênero, cuja consolidação é marcada pela atuação "quase militante" dos grupos que colocaram no cenário acadêmico, mas não só, uma perspectiva que interpelava os cânones da teoria social. Talvez por isso, nos caminhos percorridos para fazer com que as teorias feministas e de gênero ganhassem certo lugar de interlocução na teoria social, muitas vezes, elas tenham sido percebidas como uma afronta ou mesmo como uma provocação, na medida em que as discussões iniciais estavam centradas na importância da virada epistemológica que a categoria gênero imprimia.

A Revista Estudos Feministas e a cadernos pagu – parafraseando Miriam Grossi, "sua irmã um ano mais nova" – venceram o primeiro desafio e, de forma pioneira, abriram espaço para visibilizar os resultados de pesquisa que colocavam em diálogo teorias sociais consolidadas e teorias feministas produzidas no Brasil e alhures. As teorias feministas e as teorias de gênero estão na base dos projetos editoriais destas revistas, projetos estes pensados por mulheres que constituíram os, e foram constituídas pelos, vários feminismos, uma experiência que ultrapassava fronteiras editoriais, ganhando as salas de aula, as reuniões acadêmicas.

O mais interessante é que aqui há certa sincronia entre o que é publicado nas revistas e as calorosas discussões dos encontros acadêmicos, que também mantém estreita relação com as demandas dos movimentos sociais e com a formulação de políticas públicas – uma interlocução profícua e duradoura. Por isso, concordo com Bila Sorj, em sua fala no Seminário 20 anos da REF, sobre a inexistência de uma competição entre o que é produzido pela academia e o que produz o movimento, tendo mais a pensá-la como uma falsa questão. As revistas feministas têm visibilizado uma produção centrada nesse diálogo, abrindo caminho para pensar também em gênero articulado a outros marcadores de diferença, entre eles, a sexualidade, que também enfrentou forte resistência na academia, mas articulando-a em uma chave distinta da objetificação das mulheres, percebendo como gênero e sexualidade operam individualmente – um ponto de tensão, mas não de ruptura, com algumas vertentes do movimento feminista brasileiro.

Gênero deixa de ser percebido como "tema" e ganha o status de uma perspectiva de análise que perpassa quaisquer temas, possibilitando outros olhares para as "realidades" sociais,3 3 Sobre os feminismos com ênfase na pesquisa e as contribuições do conceito de gênero para a teoria social, ver Maria Luiza HEILBORN e Bila SORJ, 1999. o que permitiu revisitar vários temas. Apesar dessa consolidação, ainda existem ruídos dentro da academia sobre a pernitência/importância/ reconhecimento dessa virada epistemológica, mas são apenas ruídos. Outros desafios não foram superados.

Ampliando muitas fronteiras

Entro agora no que penso ser um grande desafio, mas marco que ele não é restrito às publicações feministas; ele abrange e atravessa diferentes áreas disciplinares que têm tentado consolidar revistas na academia brasileira. Não me estenderei nas dificuldades para manter a periodicidade das revistas, critério fundante para conseguir os parcos financiamentos que, na maioria das vezes, não cobrem um terço dos gastos, sem falar no tempo despendido em busca do dinheiro que falta, embotando a criatividade das editoras.

Apesar do desabafo, certamente, os esforços para manter uma revista sem nenhum financiamento são ainda muito maiores e algumas não sobrevivem. Mas não se trata apenas do dinheiro. O programa de financiamento de periódicos implementado pelo CNPq oferece uma espécie de certificado, indicando que a revista teve uma avaliação dos pares em distintas áreas disciplinares. Essa é uma das condições para a entrada no SciELO – Scientific Electronic Library Online –, "biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros".4 4 Disponível em: http://www.scielo.br/. As revistas aí inseridas são muito disputadas, não só pelo fácil acesso, mas também por serem mais respeitadas. Na cadernos pagu já chegamos a ter 120 artigos na grade de avaliação.

Algumas publicações feministas ganharam maior visibilidade no cenário nacional, entre elas a REF e a cadernos pagu, também impulsionadas pela sua entrada no sistema SciELO. Como parte da política editorial, essas revistas investiram, e investem, esforços nas traduções, no sentido de estimular os alunos, ainda na graduação, ao pensamento crítico da produção internacional. No entanto, o número de revistas que privilegiam a interlocução com as teorias de gênero e feminista é pequeno, tendo em vista a dimensão que o campo de estudos de gênero adquiriu.5 5 Ver Albertina COSTA, 2008. Este é ainda um desafio.

O segundo desafio é a transnacionalização. Não tem sido pequena a produção brasileira sobre deslocamentos, embaralhamentos e ambiguidades mapeadas nas pesquisas, marcada por um pensamento inovador que articula marcadores de diferença, alguns amplamente conhecidos, outros ainda não nomeados, mas que se deixam ver nas especificidades dos trabalhos de campo.6 6 Ver Adriana PISCITELLI, 2008. Em 2004, Margaret Lopes e Adriana Piscitelli já se perguntavam sobre como essa produção poderia ganhar interlocução internacional e propunham pensar em caminhos, mas atentas a como a "lógica que incide na organização dos campos de estudo afeta as publicações acadêmicas, inclusive as feministas".7 7 LOPES e PISCITELLI, 2004. O que mudou em 10 anos?

As universidades brasileiras e os órgãos governamentais que nos avaliam têm estimulado a inserção internacional, o que tem ocorrido, vide a quantidade de brasileiros que encontramos nos congressos internacionais, financiados pelo CNPq, por organismos internos das universidades e por fundações de amparo à pesquisa dos vários estados. No entanto, não temos um incentivo financeiro para que, de fato, coloquemos nossa produção no cenário internacional. No geral, as versões dos textos para o inglês, ou quaisquer outras línguas, são investimentos pessoais, seja para publicar em uma revista internacional, seja para publicar na Scielo Social Sciences. Esse programa – um esforço conjunto da SciELO e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, apoiados pela Open Society Institute (OSI) – certamente é um passo importante para que a produção nacional atravesse fronteiras, pois disponibiliza alguns textos em inglês publicados nas revistas indexadas na SciELO. Parte dos custos é coberto pelo programa, mas as revistas têm que arcar com um montante considerável de recursos ou, novamente, são obrigadas a transferi-los para os/as autores/as. De fato, os/as pesquisadores/as pagam para internacionalizar seus resultados de pesquisa, pois, mesmo que se comuniquem bem em inglês, poucos conseguem articular uma escrita precisa em outra língua.

Considerações finais

Falar de feminismo, se afirmar feminista, ser uma pesquisadora feminista em quaisquer áreas disciplinares ainda causa certo estranhamento, perpassado por representações desqualificadoras do feminismo, que ainda predomina inclusive na academia. Apesar das dificuldades, maiores no início, o campo de estudos de gênero se consolidou e não há dúvidas sobre o crescimento das publicações feministas, muitas ainda tentando o reconhecimento nos qualis, na SciELO, o que, de fato, as insere no mundo das publicações academicamente reconhecidas, uma tarefa difícil de ser executada, mas que não é particular às revistas feministas.

Escrever este texto me fez pensar em outro desafio, que remete à horizontalização das teorias feministas e de gênero, de modo que essa produção alcance áreas disciplinares menos próximas de sua constituição enquanto campo e, certamente, as publicações feministas são fundamentais para propiciar o alargamento das fronteiras disciplinares, ainda tímido.

[Recebido e aprovado em maio de 2013]

  • COSTA, Albertina de Oliveira. "O campo de estudos de gênero e suas duas revistas: uma pauta de pesquisa". Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 1, p. 131-132, 2008.
  • HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. "Estudos de gênero no Brasil". In: MICELI, Sergio (Org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras (1970-1995) São Paulo: ANPOCS/Editora Sumaré, 1999. v. 2 (Sociologia). p. 183-221.
  • LOPES, Maria Margaret; PISCITELLI, Adriana. "Revistas científicas e a constituição do campo de estudos de gênero: um olhar desde as 'margens'". Revista Estudos Feministas, v. 12, número especial, p. 115-121, 2004.
  • PISCITELLI, Adriana. "Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras". Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, p. 263-274, 2008.
  • 1
    Dicionário Houaiss. Disponível em:
  • 2
    Agradeço a leitura e sugestões de Albertina Costa.
  • 3
    Sobre os feminismos com ênfase na pesquisa e as contribuições do conceito de gênero para a teoria social, ver Maria Luiza HEILBORN e Bila SORJ, 1999.
  • 4
    Disponível em:
  • 5
    Ver Albertina COSTA, 2008.
  • 6
    Ver Adriana PISCITELLI, 2008.
  • 7
    LOPES e PISCITELLI, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2013
    • Aceito
      Maio 2013
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br