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Políticas sexuais da carne

RESENHAS

Políticas sexuais da carne

Íris Nery do Carmo; Alinne Bonetti

Universidade Federal da Bahia

ADAMS, Carol. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012. 350 p.

Carol J. Adams é escritora e ativista feminista formada em Teologia pela Yale University, e tem pesquisado sobre temas como vegetarianismo, direitos animais, violência doméstica e abuso sexual. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina, livro de sua autoria, é o primeiro a ser publicado no Brasil, 22 anos após seu lançamento nos Estados Unidos sob o título The Sexual Politics of Meat: A Feminist Vegetarian Critical Theory.

Neste livro, Adams convida-nos a uma leitura sobre os significados de gênero presentes em nossa cultura alimentar. A partir de análise discursiva, ela defende que o modo como vemos e nos alimentamos de animais mantém uma relação profunda com a cosmologia androcêntrica predominante nas sociedades ocidentais modernas. A alimentação é tomada pela autora como um fenômeno social constituído por prescrições que estão relacionadas com as normas de gênero. Assim, ela se propõe a analisar um hábito extremamente arraigado em nossa cultura - o consumo de carne animal - a partir de uma perspectiva feminista.

O livro está dividido em três grandes partes que, por sua vez, são internamente subdivididas em nove capítulos. Aqui enfocaremos as ideias principais desenvolvidas em cada uma delas.

A primeira parte, intitulada "Os textos patriarcais da carne", tem por objetivo situar a produção do significado da carne dentro do contexto de dominação masculina. A autora toma anúncios, cardápios, caixas de fósforos e outdoors como objetos de análise das representações culturais que caracterizam, segundo seu argumento, a política sexual da carne. Adams também apresenta trechos de contos populares e de fadas, compêndios sobre alimentação e livros de receitas. Nestes, ela notou que, com frequência, as seções de churrasco dos livros dirigem-se aos homens e que as comidas recomendadas para o Dia das Mães não incluem carne - ao contrário do recomendado para o Dia dos Pais - , de modo a endossar a prescrição de gênero de que os homens precisam de carne.

A partir dos seus dados de pesquisa, Adams aponta a construção da carne como um alimento capaz de conferir força e virilidade - atributos socialmente considerados masculinos. Ela defende que a masculinidade, entre outros aspectos, é constituída, portanto, pelo acesso ao consumo de carne e pelo controle de corpos construídos, por sua vez, como "comestíveis". A prerrogativa masculina de comer carne caminha pari passu com o padrão valorativo em vigência na escolha do que(m) comer: a carne é considerada o alimento a priori, de sorte que legumes, verduras, frutas e grãos são tidos como alimentos de segunda classe e - acrescenta Adams - femininos. A palavra "vegetal" adquire, assim, o sentido de apático, monótono, passivo.

Subsequentemente, a autora constrói o argumento da superposição discursiva de representações culturais de animais feminilizados e mulheres animalizadas, em que ambos são sexualizados. A superposição estaria assente no que a autora chama de "referente ausente" - recurso analítico que ocupa posição-chave na ideia central do livro. Para elucidar o conceito, são apresentados alguns exemplos: uma churrascaria em Nova Jersey que recebeu o nome de "Costela de Adão"; a revista pornográfica The Hustler, que, antes de se tornar uma publicação, era um restaurante em Cleveland cujo cardápio apresentava o traseiro de uma mulher acompanhado da frase "Servimos a melhor carne da cidade", entre inúmeros outros exemplos.

Para que exista a carne, os animais se tornam referentes ausentes; isto é, antes vivos, eles são transformados em comida por meio de uma operação simbólica pela qual os animais se tornam ausentes e que renomeia os corpos mortos antes de chegarem aos/às consumidores/as. Vacas, depois da morte e então fragmentadas, se tornam bifes, rosbifes, hambúrgueres - referenciais, segundo a autora, menos inquietantes.

Da mesma forma que animais com vida, as mulheres, uma vez indivíduos em sua integralidade, seriam transformadas em referentes ausentes. Para a autora, os exemplos evidenciam o mecanismo comum que objetifica, isto é, esvazia os corpos femininos de uma identidade ao retalhá-los em partes sexualizadas (bundas, seios, pernas, etc.), e os constrói como corpos metaforicamente comestíveis.

O conceito de referente ausente é, portanto, o recurso heurístico lançado pela autora para estabelecer as conexões anunciadas. Uma vez restaurados os referentes ausentes, podemos notar que os significados de gênero extrapolam as relações homens-mulheres e estão presentes nas relações que mantemos com os animais, para além da fronteira entre as espécies. Essa é, possivelmente, a contribuição da obra para o campo dos Estudos Feministas, e que reafirma a premissa sobre a qual estes estudos estão assentes: todo fenômeno social é gendrado, isto é, atravessado por significados de gênero - embora, é preciso ressaltar, esta categoria esteja longe de exercer uma função central na análise desenvolvida no livro.

A segunda parte do livro dedica-se a uma análise histórico-literária que busca resgatar as vozes de mulheres feministas vegetarianas escritoras e ativistas ao longo do tempo, amiúde invisibilizadas. São mulheres que, para a autora, subverteram o mecanismo acima e reestabe-leceram o referente ausente. Inicialmente Adams menciona as produções literárias nas quais feminismo e vegetarianismo aparecem juntos desde o século XVIII, no contexto do Romantismo, no qual foram desenvolvidas as ideias modernas sobre vegetarianismo. Dentre outros romances, ela dá destaque à obra Frankenstein, de Mary Shelley, filha da destacada sufragista Mary Wollstonecraft, ressaltando o vegetarianismo da criatura de Shelley, que, na interpretação de Adams, transmite significados pacifistas e feministas.

Em seguida ela se reporta à Primeira Guerra Mundial, momento no qual a visão utópica pacifista presente em Frankenstein é encontrada em diversos romances escritos por mulheres. Investigam-se as estratégias narrativas postas em funcionamento quando, no contexto da guerra, muitas escritoras relacionaram as causas do belicismo ao consumo de carne e ao domínio masculino, postulando um mundo ideal composto de feminismo, vegetarianismo e pacifismo. Adams mostra que diversos romances escritos por mulheres nesse período usam a carne como uma alegoria para a opressão feminina, isto é, como um indicativo da sobreposição de opressões. A morte de pessoas e de animais é tida como expressão do poder masculino, uma vez que, nesses romances, figura a ideia mais ou menos difusa de que culturas consumidoras de carne são mais inclinadas à violência.

Uma vez que as mulheres são as principais preparadoras de comida na cultura ocidental e, como visto acima, a carne é definida como uma comida masculina, a autora propõe que vejamos o vegetarianismo como uma linguagem que carrega os significados femininos numa cultura patriarcal; elas inscrevem no corpo sua dissensão por meio do vegetarianismo, elegendo as comidas com as quais se identificam.

A autora conclui que há uma tradição feminista-vegetariana literária e histórica irrefutável e põe a questão: o que precisamos para examinar e interpretar esta tradição? Segundo Adams, o conhecimento produzido sobre a longa relação entre pensadoras feministas ativistas e o vegetarianismo com frequência é distorcido, pois não reconhece os aspectos culturais do consumo de carne, tratando o vegetarianismo como uma opção pessoal ou mesmo invisível. O livro propõe então a construção de uma abordagem feminista alternativa para a histórica abstinência de carne pelas mulheres de determinados meios feministas.

Destarte, na terceira e última parte, o livro finda com um convite para uma nova postura política-analítica diante dos animais. Aponta-se que as opções de dieta levadas a cabo pelas mulheres (tomadas como um bloco homogêneo) devem ser consideradas, pois são objeto de significação. Conforme o livro mostra, o que o vegetarianismo representou para as mulheres e a reação destas a ele é uma questão ainda em aberto, que exige pesquisas por vir, e que o livro em questão pretende ter iniciado.

A despeito das relevantes contribuições acima pontuadas, notamos, no entanto, que a análise empreendida por Carol Adams fundamenta-se em amplos esquemas explicativos causais a partir de um sujeito universal e estável. Mais precisamente, é uma obra datada cujo lugar de fala está situado no feminismo radical estadunidense dos anos 1970, assentada nas teorias derivativas do conceito de patriarcado, as quais, ao universalizar a categoria "mulher", incorrem numa análise sinedóquica.

Além disto, o livro constrói "vegetarianismo" e "feminismo" como dois blocos monolíticos, ignorando a sua diversidade interna no que diz respeito aos sujeitos, demandas e métodos de ação política. É patente a limitação em articular os diversos marcadores sociais da diferença: embora Adams dedique algumas poucas páginas para ressaltar as conexões históricas entre feminismo e vegetarianismo na vida de mulheres lésbicas, e estabeleça paralelos entre o racismo e a superposição de referentes ausentes, a branquitude e a sexualidade das mulheres sufragistas citadas permanecem intocadas.

Uma última palavra deve ser dita acerca dos limites da obra. Na tradução brasileira o título original, que seria, num sentido mais literal, algo como Política sexual da carne: uma teoria crítica feminista-vegetariana, foi transformado em A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina, um subtítulo assaz duvidoso que põe em questão as políticas editoriais do país. Ao omitir o termo "feminista" e introduzir um termo eufemístico para fazer menção à "dominação masculina", as/os editores estariam investindo em estratégias discursivas para tornar o livro mais "palatável"?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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