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Por uma política da diferença e da identidade de gênero no esporte

RESENHAS

Por uma política da diferença e da identidade de gênero no esporte

Patrícia LessaI; Sebastião VotreII

IUniversidade Estadual de Maringá

IIUniversidade Gama Filho

Heroines of Sport: The Politics of Difference and Identity.

HARGREAVES, Jennifer.

London and New York: Routledge, 2000. 284 p.

Jennifer Hargreaves é autora de Sporting Females: Critical Issues in the History and Sociology of Women's Sports e Outsiders in the Nation: Sport and Women on the Margins, dentre outras obras. Seus trabalhos estão inseridos nas análises feministas, à medida que pesquisa a participação feminina nos esportes. O livro Heroines of Sport: The Politics of Difference and Identity é dividido em sete capítulos que abordam, de forma singular, a heterogeneidade das experiências femininas nos esportes. Mulheres originárias de diferentes grupos sociais, de distintas regiões do mundo, historicamente marginalizadas do esporte dominante, protagonizam no livro de Hardgreaves conquistas notáveis e intervenções heróicas. Ao longo dos seis primeiros capítulos observamos as diferentes ações, articulações e relações de poder que envolvem grupos de mulheres negras da África do Sul, muçulmanas dos países árabes, aborígines da Austrália e do Canadá, atletas lesbianas e atletas portadoras de deficiência física. No capítulo sete as lutas se integram em manifestações organizadas de "mulheres nos esportes", ilustradas na evolução do Movimento Desportivo Feminino Internacional.

A autora fundamenta-se em três grandes pilares: nos estudos culturais, direcionados para a análise crítica das práticas, experiências e instituições culturais e das experiências no cotidiano; nas teorias feministas, que problematizam a desnaturalização dos corpos, a performatividade dos gêneros, a sexualização das identidades e a biologização das mulheres e servem como marco conceitual para discutir corpo, identidade, sexualidade, diferença e performatividade; e na sociologia do esporte, que funda a relação entre poder e cultura. Também, irmana-se aos debates sobre identidade política e política da diferença nas sociedades capitalistas, pós-colonialistas e pós-modernas. Na área dos Esportes e da Educação Física esse movimento começa a ganhar forma, sendo possível falar de uma produção teórica sobre as questões das mulheres ou de gênero, embora nem sempre as teorias feministas sejam apontadas como fundamento epistemológico para tais discussões, talvez pelo tom pejorativo que o termo "feminismo" assumiu atualmente, conforme reclama a historiadora feminista Tânia Navarro-Swain.

O capítulo dois, "Raça, política e gênero", é sobre as lutas e as conquistas das mulheres no esporte na África do Sul, durante e após o apartheid, que deixou legado difícil de superar, no imaginário coletivo, da superioridade branca, européia, masculina, que tinha todas as facilidades para o esporte. As mulheres negras eram e são duplamente oprimidas: pelo sistema e por seus maridos, sem nenhuma oportunidade de adesão à prática esportiva. A educação separada instilava o racismo, enquanto o esporte separado na escola instilava o sexismo. Na prática, o esporte era coisa para os homens, mas sobretudo para os brancos. O conselho sul-africano de esportes, de 1973, foi a primeira entidade esportiva não racista a defender que não há esporte normal numa sociedade anormal. Mas mesmo aí o esporte era coisa de homem. As mulheres eram tratadas como objetos sexuais no esporte sul-africano, o esporte feminino era trivializado, havia pequena parcela de mulheres em postos decisórios, a não ser em esporte exclusivamente feminino. Na luta pela sobrevivência do esporte, elas desempenhavam, ao mesmo tempo, o papel de atletas, treinadoras, árbitras, administradoras e preparadoras físicas. Como ícone da resistência e do empreendimento destaca-se a carateca Petronella Kleinsmidt, grande mãe do caratê na África, um exemplo de como negociar com idéias e estruturas dominadoras para participar no esporte. A opressão contra as mulheres negras e pobres naturalizava-se nas experiências do cotidiano, sendo raça e etnia consideradas categorias biológicas. A mulheres africanas somam 72% de todas as mulheres acima dos 18 anos. O fim do apartheid aumentou a feminização da pobreza, ao permitir a mobilidade das áreas rurais para as urbanas. As prioridades são tantas que o esporte fica num nível muito baixo de interesse.

O terceiro capítulo responde à pergunta "Mulheres heróicas islâmicas, shorts ou véus?". Concentra-se sobre mulheres ícones dos países islâmicos do Oriente Médio e norte da África, desde a aplaudida marroquina Nawal El Moutawael, primeira medalha de ouro do continente africano, nos Jogos de Los Angeles, 1984, até a argelina Hassiba Boulmerka, vaiada em 1992, ao retornar de Barcelona, onde brilhara nos 1.500 metros. Elas foram estrelas, mas não têm seguidoras. Para as mulheres muçulmanas as duas representam a liberdade, mas para a maioria dessa população é impróprio, para mulheres, participar de esportes vestidas de modo a mostrar partes do corpo. Se para o Ocidente as duas são heroínas, para os conservadores islâmicos são decadentes e pecadoras. Logo, a luta sobre seus corpos tem dimensões religiosas, políticas locais e globais, numa cultura relativamente homogênea, com 1,3 bilhão de pessoas apoiadas no islamismo, a religião que mais cresce no mundo depois do movimento de ressurgimento nos anos 1970. O movimento, dirigido por teólogos, contra a ocidentalização dos costumes regula a vida social e atinge o esporte, considerado produto ocidental e, sobretudo, as mulheres que o quereriam praticar. Predomina a tendência fundamentalista contra a mudança, a favor da estabilidade. As crenças islâmicas se transformaram em bandeiras políticas contra o americanismo, símbolo do Ocidente. As mulheres são consideradas as guardiãs da identidade, dos valores culturais e religiosos, da pureza do sangue. Logo, toda a atenção se volta para mantê-las dentro de casa, na perpetuação e aperfeiçoamento do islamismo. A situação varia de país para país, desde a proibição à prática de esportes e a negação do direito de estudar, até a obrigação de ter mulheres em todas as organizações esportivas. O corpo da mulher muçulmana deve ser modesto, estar coberto, sem exibição. Há avanços e recuos na liberdade de a mulher vestir-se e divertir-se; as normas variam, da abertura à censura. A idéia de que o islamismo é uma religião de balanço e equilíbrio ajuda as feministas a lutarem pelo direito de as mulheres praticarem esportes, fortalecerem o corpo, para serem melhores esposas e mães. A luta pelos direitos de eqüidade, mais do que igualdade, soa positiva para feministas como Faezeh Hashemi. Em 1991, o Irã realizou o I Congresso de Solidariedade entre as Nações Islâmicas para Mulheres, com orientações para não misturar mulheres e homens, e manter a pureza feminina. As mulheres de alguns países competiram com as roupas da cultura, incluindo véus. As competições femininas não podem ter torcida masculina. Uma das poucas saídas para as mulheres islâmicas lidarem com a pressão das ideologias políticas e religiosas é criar organizações específicas, mas sempre dentro das leis do Corão, pois as pressões fundamentalistas podem voltar, em cada país, a qualquer momento, e reverter o quadro de liberdade relativa conseguido pelas mulheres. E a difícil e polêmica alternativa de Boulmerka, de conciliar as tradições ocidentais do esporte e a doutrina religiosa, não chega a formar uma corrente (p. 65). Entretanto, representa uma alternativa para as mulheres de serem sujeitos de sua própria história, e não apenas objeto das representações sociais das autoridades políticas e religiosas de seus países. Ao final do longo capítulo, sobressai uma questão: as mulheres esportistas islâmicas são sujeitos de suas trajetórias, ou objeto da opressão de ideologias políticas e religiosas? A resposta, prudente, da autora é que a pergunta é complexa demais, são muitos os ângulos sob os quais pode ser respondida, e que, ao fim e ao cabo, as mulheres islâmicas avançam, criam colégios para a formação de mulheres no universo do esporte, fundam seus clubes, dirigem suas entidades, começam a participar de competições internacionais e a ter assento no Comitê Olímpico Internacional.

O capítulo quatro responde a outra pergunta intrigante – "mulheres indígenas esportistas: heroínas de diferença, ou objetos de assimilação?". Tem como foco as mulheres nativas da Austrália e do Canadá, de várias procedências, membros do "Quarto Mundo". O processo de invasão pelos colonizadores europeus e de perda de suas terras e culturas começou, como no Brasil, por volta de 1500. Como aqui, os nativos foram considerados selvagens, inferiores. Os esportes indígenas eram masculinos, femininos ou comuns aos dois gêneros. O capítulo é muito específico, ao detalhar as lutas e as conquistas das mulheres nativas dos dois países. O mapa rico de contrastes e de preconceitos das mulheres brancas contra as nativas, o esforço de construção política, a manifestação das lutas pela igualdade de direitos que se verifica nas associações de mulheres, as conquistas com que vêm marcando sua trajetória, tudo isso pode e deve ser transferido para a organização de movimentos de emancipação das mulheres indígenas em outros países e contextos. Comparativamente ao que Hargreaves nos apresenta na Austrália e no Canadá, cabe constatar que o Brasil está nos primórdios, pois temos os jogos indígenas, mas não vemos participação expressiva das mais de 100.000 mulheres índias na cena esportiva brasileira.

No capítulo cinco, "Lesbianas nos esportes: símbolos heróicos da libertação sexual", a autora mostra como o discurso da homossexualidade, vinculada à doença e à perversão sexual, no século XIX, bem como a criação de definições essencialistas e médicas sobre gays e lesbianas nos anos 60, refletem-se na discriminação social em face da definição sexual. Prova que o movimento de libertação gay dos anos 60 repercutiu na identidade política de gays e lesbianas, construiu categorias para constituição de uma identidade compartilhada e formada a partir de uma posição política, de luta em prol do segmento minoritário. Discute as bases do movimento, visita a teoria queer dos anos 90, responsável pela crítica da noção de centro, pelo questionamento das identidades fixas e das sexualidades múltiplas. Refere Judith Butler, que reafirma o caráter discursivo da sexualidade, com novas concepções de sexo, sexualidade e gênero. Analisa o caráter performativo dos corpos gays e lesbianos que, em suas aparições, exibem a encenação de si mesmos.

A autora aponta a visibilidade como arma contra a homofobia, com o argumento de que, quanto maior for o contato entre os grupos de lesbianas, menor será o preconceito. Diz que atletas de elite, visíveis, criam imagens positivas das lesbianas, a exemplo de Martina Navratilova, que advogou em favor das lesbianas e se opôs à discriminação, tornou o pessoal político e transformou sua identidade lesbiana em identidade política. Cita também Mauresmo, tenista francesa, descrita pela imprensa como "mulher macho" por seu porte físico musculoso, que hoje assume nova visibilidade no cenário das discussões queer. A visibilidade do corpo queer assume um valor político nos eventos internacionais. As identidades lesbianas são construídas e reconstruídas, enfrentam-se nos jogos, que têm efeito de performatividade, em que o corpo é adornado e se torna espetáculo.

Jennifer apresenta o esporte gay como expressão de uma identidade compartilhada em movimentos internacionais. A criação de entidades como a Federação Européia de Esportes Gays e Lesbianos abre um novo campo de lutas pelos direitos sociais de lesbianas, gays, transexuais e travestis. As federações organizam campeonatos internacionais, como os Jogos Gays e os Eurogames, que promovem o auto-respeito e a cultura da inclusão, como é o exemplo da participação de heterossexuais e de lesbianas e gays advindos de países com leis homofóbicas. Ela critica a importância dada ao sexo durante a 5ª edição dos Jogos Gays, realizados em Amsterdã, em que o esporte e a performance dos/das atletas ficou em segundo plano. A autora conclui que cada lesbiana é um fragmento heróico de uma grande luta: como o ato de visibilidade é um desafio à heterossexualidade compulsória, as atletas lesbianas vivem em tensão entre sua integração social e sua lesbiandade.

O capítulo seis é sobre mulheres mutiladas ou deficientes: construindo habilidade. Enuncia-se o preconceito associado às portadoras de necessidades especiais como as cegas, surdas, amputadas, portadoras de lesões de diferentes tipos. As mulheres desse segmento são focalizadas com atenção para seu esforço de superação, de coragem e determinação, em lutar contra o preconceito e se afirmar nos jogos, vindo a triunfar nos esportes para-olímpicos. A autora mostra como se criaram associações, clubes, ligas e federações de portadoras de necessidades especiais. Mais uma vez, deixa claro que seu projeto é pró-ativo, pois destaca as lutas pela igualdade dos direitos. Mostra que nos países em desenvolvimento vivem 80% das mulheres mutiladas ou deficientes, que não têm oportunidades de lutar para superar a desnutrição, muito menos para ingressar no esporte. Focaliza também os projetos de construção da identidade.

No capítulo sete, intitulado "Lutando por uma nova ordem no mundo: o Movimento Desportivo Feminino Internacional", descrevem-se o surgimento e o crescimento da organização internacional de mulheres nos esportes e na educação física, as redes de relações entre lideranças e grupos e o empoderamento das mulheres atletas no cenário internacional. Suas lutas e conquistas foram aparecendo lentamente. Cita a primeira organização internacional para mulheres nos esportes e na educação física, que surgiu em 1940, com líderes em sua maioria brancas, ocidentais, da classe média, que não representam as mulheres marginalizadas e desprivilegiadas. Critica o potencial transformador do feminismo desportivo global, que tende a consolidar as relações de poder existentes, colocando em dúvida a discussão da representatividade e empoderamento de grupos minoritários.

A Associação Internacional de Educação Física e Esportes para Mulheres e Jovens e Adultos, fundada em 1949, por Dorothy Ainsworth, dos Estados Unidos, tornou-se a primeira organização internacional composta por mulheres preocupadas com os valores da educação física e esportes na vida das mulheres, sem conseguir representatividade nos países em desenvolvimento. Como reação, surge a Organização de Esportes Femininos Internacional com o lema: "pense global, aja de modo global". Em 1994 aconteceu 1ª Conferência Internacional sobre Mulheres e Esportes, na Inglaterra, de onde saiu a Declaração de Brighton, cujo objetivo era promover uma cultura desportiva que possibilitasse e valorizasse o total envolvimento das mulheres em todos os aspectos dos esportes. A 2ª Conferência sobre Mulheres e Esportes realizada em 1998 em Windhoek, Namíbia, e o surgimento do Grupo de Trabalho Internacional sobre Mulheres e Esportes (GIT) marcaram a expansão do movimento. Na 3ª Conferência Mundial sobre Mulheres e Esportes, em 2002, discutiram-se dois níveis de neocolonialismo. O primeiro abrange as relações de poder entre dominantes e subordinados, e o segundo agrega relações de poder entre mulheres ocidentais dominantes e as do mundo em desenvolvimento. A iniciativa desses eventos é promover o debate internacional sobre a participação feminina nos esportes e a inclusão social, com o grande desafio de integrar as nações em uma só luta: a efetiva política de desenvolvimento do esporte para as mulheres.

Hardgreaves aponta como desafios para a mudança: a formação de alianças com grupos representativos de minorias e grupos oprimidos em diferentes países e regiões; questões de democracia e representação, cruciais para o movimento se tornar global e inclusivo; a construção de pontes com o movimento político feminista e com o feminismo acadêmico. Fruto do desenvolvimento do movimento internacional para o esporte feminino, o discurso sobre o esporte foi substituído por um discurso da "Atividade física saudável e estilo de vida recreativo e ativo" para mudar o foco do esporte formalizado, elitizado e competitivo, bem como para abranger as atividades recreativas, mais próximas da grande maioria da população. Outra questão foi não apenas reconhecer as experiências femininas de países desenvolvidos, mas também envolver as mulheres de todo o mundo. O feminismo desportivo global é definido pela diferença e requer linguagem estratégica que compreenda essas diferenças. Para Hardgreaves, o futuro está na união e o segredo na solidariedade feminista.

Os capítulos da obra apresentam uma nova perspectiva do esporte feminino, como arma de construção da identidade das mulheres, como individualidades e como membros de seus grupos de referência. A autora insiste em que na diferença reside uma força indomável, quando aproveitada e focalizada. Mostra que é complexa e difícil a tarefa de conscientizar e emancipar, e que os movimentos auto-sustentáveis avançam, progridem, novas conquistas se verificam a cada dia, em um contexto em que homens e mulheres devem articular-se, construir a ponte para a igualdade de oportunidades. A acessibilidade é uma utopia em várias partes do mundo e em várias manifestações da cultura humana. Entretanto, não encontramos, no vocabulário de Jennifer Hargreaves, a palavra impossível.

À semelhança de Elisabeth Badinter, ela aponta, com lucidez, as conquistas já efetivadas, as que estão em curso e as que se podem sonhar e postular. Sua descrição é densa, sua exemplificação é farta, com ícones da emancipação apresentados e radiografados em cada uma das vertentes representadas pelos diferentes capítulos. Trata-se, pois, de uma obra fundamental para os movimentos políticos e acadêmicos centrados nas injustiças e nos desafios de gênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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