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As sociedades de damas atiradoras: pelos caminhos da prática do tiro ao alvo em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul

The shooting ladies´ association: by the paths of the shooting practice in Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul

Resumos

A prática do tiro ao alvo chegou ao Rio Grande do Sul no século XIX com os imigrantes alemães. Na década de 1860 foi fundada a primeira associação de tiro no Estado pela iniciativa de um grupo de homens. A questão norteadora desta pesquisa histórico-cultural é como sucedeu a emergência, a ascensão e as conformações das sociedades de damas atiradoras na cidade de Santa Cruz do Sul na primeira metade do século XX. As fontes históricas revelaram que as mulheres passaram a praticar o tiro em associações próprias denominadas de "sociedade de damas", a partir de 1900 em Santa Cruz do Sul, quando fundaram a sociedade pioneira no estado do Rio Grande do Sul.

Tiro ao alvo; História do esporte; Mulheres


The practice of shooting appeared in the state of Rio Grande do Sul in the 19th century with german immigrants. In 1860 was founded the first shooting association in the state by the initiative of a group of men. The main question of this cultural-historical research is how succeeded the emergency, the ascension and the conformations of the ladies society of shooters in the city of Santa Cruz do Sul in the first half of the twentieth century. Historical sources reveal that women started to practice shooting in own associations called "ladies' association," from 1900 in Santa Cruz do Sul, when they founded the pioneering association in the state of Rio Grande do Sul.

Shooting; History of sport; Women


ARTIGO ORIGINAL

doi: 10.4025/reveducfis.v24.4.20528

As sociedades de damas atiradoras: pelos caminhos da prática do tiro ao alvo em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul

The shooting ladies´ association: by the paths of the shooting practice in Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul

Alice Beatriz AssmannI; Janice Zarpellon MazoII

IMestranda. Programa de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

IIDoutora. Programa de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alice Beatriz Assmann Rua Luiz Afonso, 630, apto 202. Cidade Baixa, Porto Alegre Rio Grande do Sul - Brasil - CEP: 90050-310 E-mail: alice.assmann@gmail.com

RESUMO

A prática do tiro ao alvo chegou ao Rio Grande do Sul no século XIX com os imigrantes alemães. Na década de 1860 foi fundada a primeira associação de tiro no Estado pela iniciativa de um grupo de homens. A questão norteadora desta pesquisa histórico-cultural é como sucedeu a emergência, a ascensão e as conformações das sociedades de damas atiradoras na cidade de Santa Cruz do Sul na primeira metade do século XX. As fontes históricas revelaram que as mulheres passaram a praticar o tiro em associações próprias denominadas de "sociedade de damas", a partir de 1900 em Santa Cruz do Sul, quando fundaram a sociedade pioneira no estado do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Tiro ao alvo. História do esporte. Mulheres.

ABSTRACT

The practice of shooting appeared in the state of Rio Grande do Sul in the 19th century with german immigrants. In 1860 was founded the first shooting association in the state by the initiative of a group of men. The main question of this cultural-historical research is how succeeded the emergency, the ascension and the conformations of the ladies society of shooters in the city of Santa Cruz do Sul in the first half of the twentieth century. Historical sources reveal that women started to practice shooting in own associations called "ladies' association," from 1900 in Santa Cruz do Sul, when they founded the pioneering association in the state of Rio Grande do Sul.

Keywords: Shooting. History of sport. Women.

INTRODUÇÃO

A prática do tiro ao alvo foi inserida no cenário brasileiro em meados do século XIX pelos imigrantes alemães estabelecidos no sul do país. Para além da prática propriamente dita, as sociedades de atiradores, conhecidas como Schützenverein, foram espaços de entretenimento, sociabilidade e compartilhamento da cultura germânica (ASSMANN; MAZO, 2012). Tais sociedades (os termos sociedade, associação e clube são usados aqui como sinônimos) tinham por finalidade comum o manejo das armas, a defesa dos lares e a diversão dos associados. Além disso, buscavam a afirmação do grupo e da identidade teuto-brasileira por meio de representações específicas identificadas em símbolos, normas, e comportamentos (MAZO, 2006).

Nas primeiras associações de tiro ao alvo no Rio Grande do Sul, participavam das práticas e competições de tiro de pontaria somente homens. Às mulheres era permitido auxiliar e acompanhar os maridos e filhos em festejos das sociedades. Há evidências da participação delas na prática do tiro que antecedem o século XX. Todavia, a primeira associação de tiro ao alvo que congregava apenas mulheres, conhecida como "sociedade de damas", foi fundada em 1900, onde atualmente situa-se a cidade de Santa Cruz do Sul (RAMBO, 1999).

A tendência ao agrupamento de pessoas que buscam por objetivos em comum, o assim referido fenômeno associativo, facilita e favorece a integração social de cada um e a aprendizagem da vida coletiva (BOUDON et al., 1990). Nesta direção, as associações de tiro ao alvo, tanto as que congregavam homens quanto as que reuniam as mulheres, desempenharam um papel basilar na manutenção da identidade étnica em muitos lugares no Rio Grande do Sul. Em particular, as "sociedades de damas" ressaltaram a afirmação da mulher teuto-brasileira perante a comunidade por meio da prática do tiro alvo, aos moldes das associações masculinas, e caracterizavam-se enquanto espaços de sociabilidade, convívio em grupo e entretenimento.

A cidade de Santa Cruz do Sul é destacada neste estudo, pois foi onde as primeiras sociedades de atiradores e atiradoras foram fundadas no Rio Grande do Sul. Na década de 1860, um grupo de homens organizou a primeira sociedade de atiradores no Estado. As mulheres inseriram-se nesta prática de forma contundente somente no século XX, quando organizaram suas próprias sociedades de tiro. Neste cenário, a questão norteadora desta pesquisa histórico-cultural é: como sucedeu a emergência, a ascensão e as conformações das sociedades de damas atiradoras na cidade de Santa Cruz do Sul na primeira metade do século XX?

Olhar para a inserção de mulheres na prática esportiva do tiro ao alvo, suscita certamente o interesse por um debate sobre gênero. Entretanto, não é objetivo deste artigo operacionalizar tal categoria. Propomos neste estudo dar visibiladade à história dessas mulheres.

A História Cultural, pressuposto teórico-metodológico no qual a presente pesquisa está ancorada, segundo Roger Chartier (2000, p. 16), busca "identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler". No caso, busca-se identificar o processo de construção das sociedades de damas atiradoras, desde a fundação das primeiras sociedades, passando pelo desenvolvimento do tiro ao alvo, bem como as representações culturais produzidas por esta prática até o enfraquecimento destas sociedades no período do abrasileiramento do país.

Na perspectiva deste estudo, a noção de representação mostra-se basilar, pois como afirma Pesavento (2004, p. 39) "o indivíduo e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade". As representações, conforme Burke (2005), são determinadas pelos interesses do grupo que as utiliza e produzidas historicamente pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas). E, a composição de ideias e imagens de representação coletiva que os homens constroem para dar significado ao mundo configura o imaginário (PESAVENTO, 2004).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Em busca de respostas para a questão norteadora da pesquisa realizou-se uma revisão bibliográfica em livros, artigos, trabalhos de conclusão de curso e no Atlas do Esporte do Brasil e do Rio Grande do Sul. Além disso, foram coletadas fontes históricas em atas de associações de tiro ao alvo, jornais em alemão, almanaques esportivos e fotografias. Também se coletou depoimentos orais, por meio de entrevistas gravadas com o diretor do arquivo histórico da Deutscher Schützenbund (Liga Alemã de Atiradores), na Alemanha; e com a filha de um antigo proprietário do salão onde ocorriam festividades de atiradores, em Santa Cruz do Sul. As entrevistas foram gravadas, transcritas e revisadas, conforme as orientações de Alberti (2010). Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme consta no projeto nº 19261 no Sistema Pesquisa UFRGS, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Adotou-se esse procedimento, pois se entende que a História Oral "amplia as possibilidades de interpretação do passado" (p. 155), caracterizando-se como um "caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade" (ALBERTI, 2010, p. 164).

As fontes empíricas foram submetidas à análise documental e cotejadas com a revisão bibliográfica sobre o tema. Na sequência apresentamos os resultados da interpretação das informações coletadas.

O PIONEIRISMO DA CIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL NO TIRO AO ALVO NO RIO GRANDE DO SUL

As primeiras sociedades de tiro do Rio Grande do Sul brotaram da necessidade dos imigrantes de se congregarem para o divertimento, como também, para treinarem com suas armas para a caça e a defesa de seus lares (OLIVEIRA, 1996). A primeira associação de atiradores no Rio Grande do Sul foi fundada em 1863 na Colônia Alemã de Santa Cruz, denominada Schützengilde (Corporação de Atiradores) (MARTIN, 1999). Na capital, Porto Alegre, a prática do tiro aparece no final da década de 1860. Em 1869, é criado o departamento de tiro na Deutscher Turnerbund (Sociedade Alemã de Ginástica), recebendo nova denominação: Deutscher Tunerbund Schützenverein (Sociedade Alemã de Ginástica e Tiro) (MAZO et al., 2012).

A partir da década de 1880 as associações voltadas à prática do tiro ao alvo, proliferam nas regiões de colonização alemã do Rio Grande do Sul. De acordo com o livro de Mazo et al. (2012), as décadas de 1860 e 1870 somam um total de cinco associações de tiro ao alvo no Estado, enquanto em 1880 totalizam-se oito associações. Os anos que seguem mostram-se prósperos ao desenvolvimento de sociedades de atiradores, bem como, de demais associações esportivas.

Segundo Silva (2006), ao lado das associações de canto, as associações voltadas para a prática do tiro, foram as mais difundidas nos municípios de grande área rural. A tendência da população de se unir em associações, especialmente culturais e esportivas, fez multiplicar nas regiões de imigração alemã as sociedades de atiradores. O crescente número de sociedades voltadas à modalidade, certamente influenciou a criação da Schützenbund für Rio Grande do Sul (Liga dos Atiradores do Rio Grande do Sul) em 1886. Tal instituição reunia as sociedades de tiro do Estado e realizava periodicamente eventos festivos para os atiradores (GRÜTZMANN; DREHER; FELDENS, 2008).

As associações, conhecidas como Schützenverein (sociedade de atiradores), possuíam uma estrutura organizacional própria instituída por seus associados e registrada em atas, estatutos, fotografias, dentre outros documentos históricos. Promoviam competições, eventos e festividades que oportunizaram a convivência em grupo e a manutenção da etnicidade e das tradições originárias da pátria mãe, a Alemanha. Etnicidade implica um conjunto de identificadores culturais com base na descendência comum (alemã), sendo compartilhada pelos membros de uma coletividade, o grupo étnico, através da interação social (COHEN, 2003; COHEN, 1978; SEYFERTH 1994). No caso específico deste estudo, etnicidade pode ser traduzida como germanidade - Deutschtum.

Dentre os aspectos de maior distinção dos imigrantes, destaca-se o uso do idioma alemão. Os documentos eram integralmente escritos neste idioma, conforme atestam fontes encontradas. Como exemplos citam-se as Atas da Associação Sociedade Alemã de Atiradores Vila Thereza (1888-1925) e do Clube Teuto-brasileiro de Atiradores em Sinimbu (1901-1912), bem como, quadros comemorativos como o encontrado no Museu Engelmann de 50 anos da Sociedade Alemã de Atiradores Rio Pardinho. O idioma também era utilizado no cotidiano e nos eventos das sociedades.

Kipper (1994) afirma que as associações esportivas e recreativas de Santa Cruz do Sul, primeira colônia alemã pública do Estado, buscavam a manutenção dos bons costumes e a seleção social. Seyferth (1974) faz alusão a Schützenverein de Brusque em Santa Catarina, que segundo a autora, concentrava parte significativa da vida cultural e recreativa dos imigrantes, embora a finalidade existencial fosse a prática do tiro ao alvo e outros esportes. Nas comunidades de imigrantes, segundo Loefflad (1952, p. 229), o esporte do tiro ao alvo "exercia uma atração toda especial sobre aqueles modestos, mas bem dispostos agricultores, que procuravam nas entidades desportivas o passatempo e uma oportunidade para habilitar-se nas práticas esportivas". Os atiradores também exerciam tarefas de defesa civil, colaborando em casos de enchentes, tempestades, incêndios (ZAVASCHI, 2009, p. 70).

Em muitas sociedades de atiradores, os homens, além do tiro, também praticavam o bolão e a cavalaria. Para a manutenção das atividades, os associados estavam sujeitos à cobrança de contribuições, o que denota certa estabilidade financeira por parte dos mesmos. Conforme anúncios do jornal Kolonie, certas associações realizavam reuniões mensais tendo como pauta assuntos diversos ligados a normas da sociedade e eventos.

As associações de tiro ao alvo promoviam, além da prática esportiva, festividades conhecidas por Schützenfest - Festa dos Atiradores. Tais comemorações eram esperadas com grande expectativa pela comunidade, destacando-se a Stiftungfest (Festa de Fundação) e o Königschießen (Tiro do Rei). Os encontros festivos eram expressão máxima da germanidade, sendo que tais ocasiões estavam inseridas no bojo de acontecimentos cuja origem estava na Alemanha unificada (RAMOS, 2000). Com mais frequência, geralmente aos domingos, as sociedades organizavam os Preisschießen (Tiro a Prêmio). Estes torneios eram realizados com o intuito de praticar o tiro e divertir os atiradores, bem como, para celebrar acontecimentos extraordinários como, por exemplo, a inauguração de um novo estande de tiro. Os Preisschießen (Tiro a Prêmio) poderiam ser de cunho privado ou aberto aos atiradores de sociedades coirmãs. Os participantes concorreriam a prêmios de acordo com a pontuação alcançada.

O Königschießen (Tiro do Rei), era um evento marcado por grandes festejos com música, dança e cerveja e, principalmente, com a realização do torneio de tiro e a escolha do Rei (MÜLLER, 1978). No torneio de tiro, o atirador com maior pontuação era condecorado o Rei do Tiro e os dois seguintes colocados, os Cavalheiros. Ao Rei se impunha uma faixa, geralmente de couro com placas de prata e a data da competição alusiva ao ano, tendo em vista que a Königfest (Festa do Rei) era anual. A Festa do Rei era um dia marcado pelo desfile dos associados uniformizados, distribuição dos prêmios e, principalmente, pela aclamação do Rei do Tiro (ASSMANN; MAZO, 2012).

Segundo Wolff e Flores (1994, p. 217), "as mulheres não tinham lugar nas competições" das sociedades de atiradores de Santa Catarina, "mas tinham outro espaços, como a 'barraca do café' e estavam em geral envolvidas com os filhos". Já nas associações de tiro ao alvo do Rio Grande do Sul, a presença das mulheres era evidenciada nas Königmädchen (meninas do rei). Meninas que declamavam poesias e dançavam a primeira valsa com o Rei e Cavalheiros do tiro no baile em que eram homenageados (VOGT, 2004). Juntamente com o uniforme, as medalhas, espadas, faixas de campeão e de presidente, coroas de flores, fotografias e bandeiras, as Mädchen (meninas), faziam parte dos identificadores das sociedades de tiro, de suas atividades e da relação dentro do grupo social (ASSMANN; MAZO, 2012).

Até fins do século XIX as associações de tiro eram voltadas para a prática e lazer exclusivamente dos homens, As mulheres representavam o papel de esposas, mães, acompanhantes, auxiliares. Elas embelezavam e organizavam os festejos para os homens. Na transição do século XIX para o XX, as mulheres conquistam espaço como praticantes de tiro, organizando suas sociedades próprias: as sociedades de damas.

ELAS ESTÃO ARMADAS: AS MULHERES NA PRÁTICA DO TIRO AO ALVO

Diversas pesquisas (CARMONA, 2012; DIAS, 2011; FROSI; MORAES; MAZO, 2010; PEREIRA; SILVA; MAZO, 2011; PEREIRA, 2012; SILVA; PEREIRA; MAZO, 2010), apresentam indícios que as associações esportivas no Rio Grande do Sul, também foram locais de participação ativa de mulheres. Nos bastidores, como espectadoras ou praticantes, elas estavam presentes em muitos clubes. Paulatinamente, as mulheres ganham visibilidade e produzem, por meio do esporte, novos reconhecimentos (MAZO; SILVA; LYRA, 2010).

Nas regiões de colonização alemã percebe-se uma movimentação mais intensa em prol da prática de esportes do que, por exemplo, nas regiões de origem lusitana (SILVA, 2011). Frosi, Moraes e Mazo (2010, p. 1), em um estudo sobre as mulheres no cenário do associativismo esportivo de Porto Alegre, supõem uma expressiva atuação delas, tendo em vista que a cultura esportiva desta cidade foi marcada pela forte presença dos imigrantes alemães e seus descendentes, que não impunham tantos obstáculos a participação das mulheres nas práticas esportivas. Porém, tais participações na maioria dos casos não ficaram registradas, causando a impressão de ausência das mulheres na História do Esporte no Rio Grande do Sul e no Brasil.

As teuto-brasileiras atuaram de forma significativa na formação da nova sociedade e do novo lar. Além de mães, esposas, filhas e trabalhadoras dedicadas a casa e a família, "tiveram que aprender a se defender por conta própria, pois passavam muito tempo sozinhas em casa com as crianças" (LIMA, 2001, p. 16). Enquanto o homem estava preocupado em garantir o sustento da família, "a situação pioneira, a própria precariedade da moradia, amplia as atividades da mulher para além do espaço doméstico e seu entorno" (SEYFERTH, 2008, p. 6). Seyferth (2008) destaca ainda a ativa vida social da mulher. Todavia sua atuação permanece no universo social doméstico, enquanto os homens assumem as lideranças comunitárias.

No período de transição do século XIX para o XX, porém, as mulheres sul-rio-grandenses expandem suas ocupações e encontram oportunidades de lazer na vida associativa. Nas sociedades voltadas ao grupo étnico específico, as mulheres de origem germânica praticavam atividades que mulheres pertencentes a outra etnia não tinham a oportunidade de praticar (FROSI; MORAES; MAZO, 2010). Dentre estas se destaca o tiro ao alvo.

No interior do Estado, as teuto-brasileiras praticavam o tiro ao alvo em associações próprias a partir do início do século XX. Entretanto, já no ano de 1897 encontram-se publicidades no jornal Kolonie referentes à prática do tiro ao alvo por mulheres. Em Santa Cruz do Sul a Sociedade Alemã de Atiradores Santa Cruz - Deutscher Schützenverein Santa Cruz - publicou no dia 17 de novembro do mesmo ano, um anúncio convidativo ao Königsball (baile do rei) da associação a realizar-se no final de semana próximo. No mesmo, encontra-se em destaque com letras grifadas menção ao Damen- Preisschieβen (tiro à prêmio para damas) programado para os dois domingos próximos (Jornal Kolonie, 17/11/1897). Em 1900 tal competição passa a ser realizada no mesmo dia do Königschieβen (tiro do rei), a data mais importante e esperada do ano pelos membros da sociedade (Jornal Kolonie, 19/11/1900). Desta forma, infere-se que a prática do tiro pelas mulheres atinge rapidamente um status superior ao inicialmente conquistado. Motivo que certamente influenciou a fundação das primeiras associações voltadas aos interesses e a prática delas no século XX.

Segundo Rambo (1999), as sociedades de damas de tiro - Damenschiessklubs ou Damen Schützenverein - mais antigas do Estado encontradas na literatura correspondem ao Clube Riograndense de Atiradoras, de 1900, a Sociedade de Atiradoras Progresso (1902) e a Sociedade de Atiradoras Tell (1902), todas fundadas no município de Santa Cruz do Sul. Porém, no ano de 1932, a Sociedade de Atiradoras Tell publicou no jornal Kolonie um convite ao baile em comemoração aos 33 anos de fundação da sua associação. Esta fonte jornalística permite arguir a data de fundação registrada na obra de Rambo (1999), pois sugere que a associação iniciou suas atividades em 1899. A primeira associação citada, diferentemente das demais, representa em sua denominação uma identidade sul- brasileira.

Além de considerar o tempo e o lugar de fundação das "sociedades de damas", ainda cabe considerar as características da prática do tiro ao alvo, pois a natureza desta prática também revela diferenças entre as sociedades. Atirar exige habilidades como precisão, concentração, boa pontaria, postura e, conforme atestam estatutos de associações, disciplina e respeito mútuo. Todavia, variáveis como suor excessivo, violência, contato físico, desenvolvimento demasiado da musculatura, atributos "ligados ao padrão de virilidades masculina" (SILVA; PEREIRA; MAZO, 2010, p. 103) e vistos como inadequados à composição da figura da mulher na transição do século XIX para o XX, não se enquadram nas peculiaridades necessárias para o exercício do tiro.

As características do tiro, a aceitação e aparente incentivo por parte de associações instituídas por homens, aliado a herança étnico-cultural, parecem ter culminado no desenvolvimento da prática e na fundação de associações exclusivas de atiradoras no Rio Grande do Sul. Elas, que anteriormente participavam da organização das festividades dos maridos e filhos, passaram a constituir associações com estatutos e regras próprias, voltadas aos seus interesses.

Hilda Flores (1983) em sua pesquisa sobre as associações existentes em 1924 na cidade de Venâncio Aires no Rio Grande do Sul propôs uma classificação "quanto à sua natureza", apresentando quatro categorias: defesa (onde estavam as sociedades de atiradores), culturais, recreativas e outras. Dentre as associações encontravam-se quatro de damas e, dentre estas, três de tiro ao alvo (Damenschiessklub). Segundo os critérios da autora (1983), tais associações foram classificadas como "outras". Quanto à descrição das mesmas, Flores (1983, p. 178) afirma: "as sociedades femininas visavam congregar o elemento feminino em torno de atividades não necessariamente femininas." Ainda, sobre as associações de Venâncio Aires, Vogt (2004) faz referência a Damen Schützenverein Primavera fundada em 1920, pela iniciativa de 15 mulheres, contudo não descreve as características da prática do tiro.

Ainda que a prática do tiro ao alvo pelas mulheres tenha alavancado no Brasil nos primórdios do século XX, na Alemanha a história é contada de maneira oposta. "As mulheres não tinham permissão para participar de Tiros ou de uma União de Tiro" no mesmo período, revela o diretor do arquivo, da biblioteca e do museu da Deutscher Schützenbund (Liga Alemã de Atiradores), Stefan Grus (2012), ao surpreender-se com as fotografias de sociedades de damas do Rio Grande do Sul exibidas pela pesquisadora. Faz-se a ressalva que a Liga/União Alemã de Atiradores foi fundada em 11 de julho de 1861 (MICHAELIS, 1985).

Em entrevista concedida na cidade de Wiesbaden na Alemanha, Grus (2012) conta que associações de atiradores são originárias de facções responsáveis pela defesa das cidades na Idade Média. Este trabalho era realizado por cidadãos de forma obrigatória ou voluntariamente, os quais tinham a permissão para organizar-se em sociedades, sendo esta posição destacada como privilegio no período. Foram construídas casas de atiradores visando o treinamento com as armas. Os grupos de atiradores oriundos destes lugares correspondiam às forças militares da Comuna e, segundo o entrevistado, esta função excluía as mulheres da prática.

Inicialmente, era concebida a participação das mulheres apenas em festejos, mas em fase posterior, no século XIX, elas conseguem permissão para participar das atividades da União de Atiradores. Porém, o talento das mulheres é observado pelos homens e sua participação nas competições passa a ser contestada. Após discussões na Liga/União Alemã de Atiradores, é decretado, aproximadamente em 1898, um regulamento proibindo as atividades das mulheres, mantendo-se a decisão até meados de 1950.

De acordo com o depoimento de Grus (2012), as teuto-brasileiras iniciaram a prática do tiro ao alvo no Rio Grande do Sul na mesma ocasião em que, na pátria de origem (Alemanha), estava em debate a participação das mulheres no esporte em questão. A habilidade delas com as armas foi fator decisivo de exclusão. Ao encontro dessas informações, na literatura, tanto no Brasil quanto na Alemanha, também não foram encontradas informações que fizessem referência à prática de atiradoras na Alemanha no momento específico.

A edição do jornal Kolonie em Santa Cruz do Sul, a partir do ano de 1891, pode ter influenciado as mulheres teuto-brasileiras. Segundo Grus (2012), foram encontradas notícias sobre as sociedades de atiradores do Brasil em jornais que circulavam entre os atiradores na Alemanha. No jornal Kolonie, igualmente podiam-se encontrar informações sobre a pátria de origem. É possível que informações sobre a situação da prática de mulheres no tiro ao alvo na Alemanha, tenham chegado até as teuto-brasileiras e influenciado uma mobilização em prol da participação delas também no Brasil.

O início do século XX, no Brasil, representa um período de ascensão das sociedades de damas de tiro ao alvo. Porém, salienta-se que tais associações aparecem com mais frequência em localidades interioranas, e de presença predominante de teuto-brasileiros, como é o caso de Santa Cruz do Sul. Cidades onde se observa maior diversidade cultural e étnica, o esporte do tiro ao alvo parece ter se restringido aos muros das associações de atiradores para homens. Em Porto Alegre, por exemplo, não são encontradas sociedades de damas de tiro. Frosi, Moraes e Mazo (2010) atribuem o fato às características da prática e ao contexto social das primeiras décadas do século XX. Pode-se inferir ainda, que o isolamento étnico contribuiu para a formação de associações de damas de tiro em localidades marcadas pela cultura teuto-brasileira, onde os parâmetros culturais de outros grupos étnicos não eram tão frequentemente confrontados.

Dentre as associações de damas que repercutiram no cenário sul-rio-grandense no início do século XX, destacam-se as sociedade de atiradoras de Santa Cruz do Sul. O município foi palco de diversas associações de damas nas primeiras décadas do novo século. Neste período a localidade encontrava-se em plena ascensão econômica. Em 1905 foi elevada a categoria de cidade e inaugurou a Estação Férrea. Surgiram novos empreendimentos e em consequência, foi criada a primeira instituição bancária, em 1904. O tabaco já era o principal produto da cidade e as facilidades para obtenção de mão de obra e infra-estrutura, incentivava os comerciantes ricos a investirem na área (WINK, 2000). Santa Cruz contava com inúmeras linhas e picadas (caminho aberto em meio à mata nativa utilizado para a demarcação dos lotes de uma colônia) na região interiorana e era onde se situavam muitas associações esportivas. Foi neste cenário, próspero economicamente, que diversas associações de damas voltadas à prática do tiro ao alvo foram fundadas.

Aqui, destaca-se a Sociedade de Damas Concórdia. Tal associação "promovia festas idênticas às das sociedades de atiradores [exclusivas de homens] e usava uniforme" (LOEFFLAD, 1952, p. 235). Segundo o primeiro estatuto, era função da sociedade proporcionar ao grupo relações de amizade por meio do contato social e de encontros mensais, assim como entreter/divertir as associadas através da organização de exercícios de tiro na forma de Tiro do Rei, Tiro à Prêmio, Kartenschiessen (cartões de tiro), Kränzchen ("rodas de amigas"), e bailes para o divertimento delas. Vogt (2004) define Kränzchen como um encontro informal de mulheres que se reúnem para conversar, realizar algum trabalho manual e tomar chá com cucas e doces.

No mesmo estatuto da Sociedade Concórdia, também se encontram informações referentes à inclusão de novas sócias, a idade mínima de 16 anos, o valor e período das contribuições em dinheiro, a organização da diretoria, a figura da porta-bandeira e comandante dos desfiles, a qual era responsável pela disciplina e ordem dos mesmos, como também as obrigações e direitos das associadas. Entre as obrigações destacam-se a boa relação do grupo, o reconhecimento e a estima perante a associação, dentro e fora da mesma, o cumprimento de suas obrigações como contribuinte e manter o local animado, para relaxamento e entretenimento das associadas e amigos. Dentre os direitos chama a atenção o item que concede permissão para a sócia convidar um homem para participar dos bailes e Kränzchen. Tal direito expressa igualmente uma proibição: a participação de homens nas demais atividades da associação. Este assegura a sociedade como espaço para mulheres, limitando a entrada e participação dos homens. No mesmo sentido, tem-se o relato da filha de antigo dono de sociedade em Rio Pardinho, Marguit Panke, que enfatiza: "inicialmente era assim bem separado: sociedade de atiradores só dos homens e sociedade de atiradores só das mulheres". Ainda de acordo com a entrevistada, as sociedades de damas seguiam os moldes das sociedades dos homens também no quesito obrigatoriedade do desfile em uniforme para participação nas competições (PANKE, 2010). A comandante guiava o desfile indo à frente das associadas portando a bandeira da sociedade. Tal exibição configurava também uma forma de demonstrar a estima e o reconhecimento perante o clube, assim como era preestabelecido em estatuto.

Em fotografia encontrada no livro de Loefflad (1952), a Sociedade Concórdia apresenta à comunidade local a rainha do grupo, a senhora Karl Scherer; observa-se que não é citado o seu nome, mas sim o do marido. Portadora de faixa e coroa, a campeã do Königinschiessen (Tiro da Rainha) está ao centro da fotografia usando um vestido longo, com mangas longas, coberto até o pescoço. Junto com ela na fotografia, estão outras mulheres, que apresentam feições sérias e boa postura. Não foi encontrada a data específica da fotografia, mas acreditamos referir-se aos primeiros 15 anos do século XX.

À exemplo das atividades contempladas pela Sociedade Concórdia, as demais associações de atiradoras também realizavam com frequência Kränzchen, Preisschießen e outros concursos. Assim atentam as publicidades encontradas no jornal Kolonie das primeiras décadas do século XX. Outro aspecto semelhante entre as sociedades de damas de tiro é a troca de convites para festejos e competições. Segundo o jornal Kolonie, era comum que as associações coirmãs se reunissem para eventos.

Em Serro Azul, atual município de Cerro Largo, povoado no início do século XX por imigrantes e descendentes de alemães, também se encontram referências à prática do tiro ao alvo por mulheres. O Clube União, fundado em 1924, promoveu um Königinschiessen (Rainha do Tiro) em 15 de setembro de 1929 (SCHNEIDER, 2003). Em fotografia do evento, as atiradoras mostram-se uniformizadas e as campeãs do concurso estão posicionadas à frente sentadas em cadeiras, distinguidas pelas faixas de campeãs. As demais atiradoras posicionam-se em pé, atrás das vencedoras, de forma que todas apareçam na fotografia. Estas mulheres estão uniformizadas usando mangas longas, saias escuras a meia perna e meias brancas compridas, não aparecendo nenhuma parte das pernas. Os homens presentes na fotografia representam a banda que, provavelmente, animou os festejos do dia e, possivelmente, muitos deles são maridos das competidoras.

No Centro de Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul (CEDOC UNISC) foram encontradas fotografias da Sociedade de Damas Linha Santa Cruz, cuja citação e, portanto data de fundação, não foi encontrada na literatura e nas fontes consultadas. Entretanto, a vestimenta e as próprias fotografias levam a crer que datem das primeiras décadas do século XX. Nas imagens desta sociedade e das demais já citadas, percebem-se símbolos distintos das sociedades de atiradores para homens. Enquanto ao rei da sociedade impunha-se uma faixa de couro, a rainha do tiro era honrada com uma coroa (imitando as coroas reais) e as princesas com grinaldas de flores. Ainda, algumas atiradoras aparecem com os filhos no colo ou sentados à frente das associadas, o que não é visto nas fotografias deles. O papel da mãe que zela pelos seus descendentes também está presente.

Como afirma Pesavento (2008, p. 100), "imagens do passado são como que pegadas de homens de outro tempo, que expressamente quiseram atestar sua presença; manifestar uma intenção; obter um resultado ou uma reação do interlocutor". As fotografias das sociedades de damas de tiro ao alvo intentam representar uma realidade. São imagens dotadas de sentidos, produzidas para um espectador. No caso específico das imagens anteriormente citadas, percebe-se a intenção de transmitir os ideais afirmados nos estatutos: disciplina, boa postura, organização. As vestimentas mostram-se adequadas ao discurso da época e denotam boa situação financeira.

Assim como os estatutos, os documentos e as fotografias são representações da realidade e não devem ser entendidas como verdades absolutas. Conforme Pesavento (2008, p. 110), "os historiadores, ao construírem seu discurso sobre o passado, perseguem verdades, mas o seu horizonte é a verossimilhança". Sendo assim, embora a presente narrativa histórica seja apresentada com base nas fontes anteriormente citadas, estas são consideradas indícios de um tempo, que permitem apresentar uma versão do supostamente acontecido. Sendo assim, após apresentar uma versão sobre a emergência e ascensão das sociedades de damas, o tópico que segue revela alguns indícios acerca das conformações destas organizações devido à repercussão de dois grandes conflitos mundiais, bem como pela campanha de nacionalização instituída pelo Estado Novo (1937-1945) no Brasil.

DESCANSAR ARMAS: O ENFRAQUECIMENTO DA PRÁTICA DO TIRO

Ao longo dos anos, o tiro nas sociedades de damas foi substituído por outras práticas, como bolãozinho de mesa e jogo de loto (semelhante a um jogo de bingo). Lima (2001) refere-se à dificuldade enfrentada pelas mulheres pela falta de armamento próprio. "O fato de terem de pedir emprestada a arma do marido para treinos e competições, gerava impasse dentro da própria família", induzindo à adaptação das atividades das associações (LIMA, 2001, p. 19). Outro aspecto a destacar, é as muitas atividades que a mulher tinha na casa e com a família, restringindo ou impedindo muitas vezes a sua participação nos treinos e competições.

Outros fatos históricos, porém, encontram-se como prováveis inibidores da prática do tiro ao alvo em sociedades de damas. Vogt (2004) atribui à II Guerra Mundial (1939-1945) a causa do desaparecimento do tiro na Sociedade Primavera de Venâncio Aires. Assim como nas associações para homens, as sociedades de damas designadas como teutas, sofreram represálias e opressões advindas da Campanha de Nacionalização instituída pelo Estado Novo no Brasil (1937-1945).

As primeiras ações nacionalizadoras impostas pelo governo brasileiro aparecem durante a Primeira Guerra Mundial (IGM) (1914-1918). Os clubes, igrejas e as escolas, locais de manifestação explícita de germanidade, foram os mais visados (RAMOS, 2000). Segundo Ramos (2000) as ações nacionalizadoras se compunham de dois tipos: o abrasileiramento do que era originariamente em alemão, como os nomes de localidades, a língua falada e os registros escritos; e a conscientização nacional a partir de festas e datas cívicas brasileiras. Ainda participou das ações nacionalizadoras a Lei de 1917 que visava incorporar as sociedades de tiro aos Tiros de Guerra. Todavia, os abalos sofridos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), fomentaram a união dos membros de mesma etnia e a busca pela preservação da identidade cultural nas associações teuto-brasileiras (MAZO, 2006).

Entretanto, a Campanha de Nacionalização imposta pelo governo de Getúlio Vargas e a entrada do Brasil na II Guerra Mundial em 1942, refletiram em transformações drásticas para as associações esportivas no Rio Grande do Sul. Com a guerra declarada contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) crescem as "perseguições, repreensões, apreensões, detenções, humilhações, difamações a que os teuto-brasileiros desta região foram submetidos" (AZAMBUJA, 2002, p. 72). Neste período, denominado de Estado Novo (1937-1945), o governo de Getúlio Vargas caracterizou-se por um viés totalitarista, que buscou o abrasileiramento, a homogeneidade étnico-religiosa-cultural no Brasil, através de ações opressivas. As sociedades de atiradores, possuidoras de armas e com indivíduos treinados, foram especialmente atingidas (KILPP, 2012). Com a proibição do idioma alemão, a desapropriação de sedes, o recolhimento das armas, as represálias que sofreram os imigrantes alemães e seus descendentes, muitas sociedades de atiradores fecharam as portas e as que resistiram "não podem ser consideradas mais que uma sombra da pompa do passado" (LOEFFLAD, 1952 , p. 230).

Apesar das repressões, publicidades do jornal Kolonie revelam que até o ano de 1941, as mulheres praticavam o tiro ao alvo em suas associações. Uma destas, que diz respeito a uma competição de tiro entre as sociedades Concórdia e Progresso, cita ambas como Damenvereine (sociedades de damas), ou seja, sem a designação da atividade da sociedade (Damenschießklub/ Damen Schützenverein). A não adoção do nome original em idioma alemão pode ser uma estratégia das sociedades e/ou do próprio jornal no sentido de preservar sua identidade e a prática do tiro, que foi visada no período do abrasileiramento das associações teuto-brasileiras.

O jornal Kolonie, em 1941, encerrou suas atividades em decorrência da Campanha de Nacionalização. É provável que a entrada do Brasil na II Guerra Mundial em 1942, tenha sido igualmente decisiva na vida associativa e na prática do tiro ao alvo em sociedades de damas atiradoras. Segundo Loefflad (1952), a sociedade Concórdia teve suas atividades silenciadas durante os tempos de guerra, retomando a prática do tiro anos mais tarde. A entrevista com a filha de um antigo atirador vai ao encontro dessas informações. Ela conta que durante a guerra a associação ficou inativa e quando a Sociedade Concórdia retomou suas atividades, as mulheres dividiam-se em dois grupos. "Muitas pessoas não sabiam mais atirar", conta a entrevistada, então "quem queria atirar atirava" e quem não queria praticava o bolão de mesa (PANKE, 2010).

Percebe-se que houve expressivas transformações no papel das mulheres atiradoras na sociedade sul-rio-grandense. A história da mulher no esporte é marcada por dificuldades, repressões e proibições. Porém é igualmente esculpida por conquistas e ações de mulheres que romperam as barreiras sociais e culturais de uma sociedade patriarcal e buscaram seu espaço nas práticas esportivas (OLIVEIRA; CHEREM; TUBINO, 2008). Elas encontram, e lhes são permitidas, novas formas de movimentação e aparições em público. O estudo sobre as sociedades de damas é um exemplo de recomposição do papel das mulheres no campo esportivo.

CONCLUSÕES

Tendo em vista a questão norteadora desta pesquisa que indaga como sucedeu a emergência, a ascensão e as conformações das sociedades de damas atiradoras na cidade de Santa Cruz do Sul na primeira metade do século XX, tecemos algumas considerações finais.

A transição do século XIX para o XX marca uma nova etapa na vida das mulheres teuto-brasileiras de diversas localidades no sul do Brasil. Elas encontram na vida associativa uma opção de lazer e interação social, para além das atividades de mãe e esposa: a prática do tiro ao alvo. Não apenas houve a admissão de mulheres na prática do tiro ao alvo, mas principalmente elas criaram suas próprias associações.

No final do século XIX, especialmente no interior do Estado, as mulheres começaram a praticar o tiro em sociedades de atiradores regidas por homens. Em um ambiente primordialmente de homens e em uma época de difícil acesso das mulheres aos esportes, elas assumiram o papel de protagonistas ao organizarem as sociedades de damas atiradoras. Para além do espaço de sociabilidade e dos exercícios de tiro, essas associações eram locais de compartilhamento da cultura germânica, evidenciando-se o uso diário da língua alemã, tanto em escritos como nos diálogos cotidianos e eventos.

Assim como nas sociedades de homens, as mulheres organizavam sua vida associativa através de regras estabelecidas em estatuto. Realizavam competições de melhor pontaria, ofereciam bailes e festejos às associadas, como também escolhiam, anualmente, a rainha e as princesas do tiro. Através da cobrança de taxas, sustentavam a sociedade e compravam os prêmios distribuídos em competições de tiro.

A exclusão da figura masculina na associação (exceto em dias específicos, regulamentado em estatuto) manifesta uma intenção de protagonismo, uma necessidade de estabelecer as próprias regras e gerir a própria associação. Entretanto, a dependência das armas dos maridos e, em consequência, as dificuldades enfrentadas por essas mulheres apontam a relação de subordinação perante os homens da casa. Subordinação esta que prejudicou o desenvolvimento do tiro ao alvo por essas mulheres e acabou por alterar a prática esportiva da associação. Sendo assim, se por um lado, as teuto-brasileiras mostraram sua intenção em dirigir sociedades exclusivas, por outro, além de buscarem nas associações dos homens a referência para as suas atividades, elas deixaram-se ofuscar.

Apesar das origens germânicas da prática do tiro ao alvo, na Alemanha as mulheres não se organizaram em associações próprias. No final do século, ficou vetada a participação delas até mesmo em sociedades dirigidas por homens. Em ambos os casos - no Brasil e na Alemanha - a sociedade patriarcal e as delimitações do contexto histórico em questão, demonstraram a dominação da vontade deles em detrimento da delas.

Além dos conflitos internos destacados, apontamos como fatores de declínio da prática do tiro ao alvo nas sociedades de damas atiradoras as ações nacionalizadoras. Nos anos que permeiam a Primeira Guerra Mundial, as associações de tiro ao alvo sofreram os primeiros abalos. Algumas associações abandonaram a respectiva prática esportiva já neste período. Os anos que demarcaram o período do Estado Novo (1937-1945) no Brasil foram, porém, derradeiros tanto para as sociedades de atiradores quanto atiradoras na cidade de Santa Cruz do Sul. Especialmente durante a II Guerra Mundial, as sociedades de atiradores tiveram suas atividades totalmente paralisadas. As mudanças e o abrasileiramento do nome e estatutos das sociedades e a alteração das atividades e práticas desenvolvidas aparecem como estratégias de sobrevivência dos clubes teuto-brasileiros.

Atualmente, as mulheres podem participar de exercícios de tiro em associações regidas por homens. Porém, é reduzido o número de atiradoras. Elas geralmente são as acompanhantes dos maridos e namorados e desfrutam de rodas de chimarrão e boas conversas entre as amigas, enquanto os homens competem.

Documentos consultados:

Acervo pessoal da pesquisadora Alice Beatriz Assmann

Ata da associação Socidade Alemã de Atiradores Vila Thereza (1888-1925).

Ata da associação Clube Teuto-brasileiro de Atiradores em Sinimbu (1901-1912).

Ata da associação Sociedade Alemã de Atiradores Santa Cruz (1912-1937).

Ata da associação Sociedade de Damas Concórdia (primeira).

Àlbum com recortes do Jornal Kolonie (1897/ 1900/ 1912/ 1932/ 1941).

Recebido em: 16/04/2013

Revisado em: 22/09/2013

Aceito em: 30/09/2013

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    Alice Beatriz Assmann
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      16 Abr 2013
    • Aceito
      30 Set 2013
    • Revisado
      22 Set 2013
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