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A serviço das mulheres e crianças refugiadas. Casa de acolhida Bienvenu - Joanesburgo, África do Sul

To the service of Refugee Women and Children. Shelter Bienvenu - Johannesburg, South Africa

As reflexões que se seguem se inspiram nas histórias e trajetórias de mulheres e crianças refugiadas hospedadas na Casa de Acolhida Bienvenu, em Joanesburgo, África do Sul e na resolução do XIII Capitulo Geral da Congregação Scalabriniana que orienta as Irmãs Missionárias Scalabrinianas a "manter o foco no carisma scalabriniano com fidelidade criativa tendo especial atenção: (...) às nossas presenças missionárias, aos migrantes mais vulneráveis sobretudo mulheres” (Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo - Scalabrinianas, 2014, p. 5CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS MISSIONÁRIAS DE SÃO CARLOS BORROMEO - SCALABRINIANAS. Documento final. XIII Capítulo Geral. Roma, 2014. ).

As trajetórias de fuga de mulheres e crianças refugiadas na África são verdadeiros calvários de dor e morte. A violência começa na terra de origem, continua nas longas travessias e não desaparece nos países de acolhida, onde os recém-chegados enfrentam sérias dificuldades de inserção e aceitação social. No contexto da mobilidade humana contemporânea, as mulheres e crianças africanas deslocadas à força constituem um segmento social extremamente vulnerável e, muitas vezes, desprovido dos mínimos recursos materiais e sociais. Estar junto e atuar a serviço destas pessoas é para as Irmãs Missionárias Scalabrinianas uma oportunidade para renovar o compromisso com os migrantes e refugiados e uma condição do seguimento e realização do Carisma cristão e congregacional (Chiesa, 2017CHIESA, Ir. Marivane. A presença sócio-pastoral de irmãs scalabrinianas (mscs) em África. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília , v. 25, n. 49, p. 273-277, 2017. ).

Nesta breve comunicação queremos apresentar alguns elementos do trabalho do Centro de Acolhida Bienvenu a fim de elucidar o perfil das pessoas acolhidas, as ações desenvolvidas e os resultados obtidos.

Vidas em fuga

Conforme o mais recente relatório do UNCHR (2018)UNCHR. Global Trends. Forced displacement in 2017. Disponível em: <http://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html>.
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, a África do Sul abriga 88.694 refugiados, além de cerca de 191 mil requerentes de asilo. No ano de 2017 houve 24 mil novos pedidos de asilo. Os recém-chegados são oriundos, principalmente, de Bangladesh, República Democrática do Congo, Etiópia, Paquistão, Somália e Zimbábue. Uma boa parte desses refugiados e solicitantes de asilo vive nas periferias mais pobres da cidade de Joanesburgo com limitado acesso a oportunidades de sobrevivência socioeconômica, expostos a elevados riscos de violência, xenofobia e criminalidade (Warren, 2017)WARREN, Scott. A New Apartheid: South Africa’s Struggle With Immigration. Disponível em: https://www.huffingtonpost.com/scott-warren/south-africa-immigration-apartheid_b_8068132.html. Acesso em 10.10.2017.
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. Além disso, conforme a OIM, há também numerosos migrantes e solicitantes de refúgio que acabam submetidos em redes de tráfico de pessoas:

South Africa is a source, transit, and destination country for men, women, and children subjected to forced labour and sex trafficking. Children are trafficked mainly within the country, from poor rural areas to big cities such as Johannesburg, Cape Town, Durban, and Bloemfontein by local criminal rings. Girls are often subjected to sex trafficking and domestic servitude and boys are forced to work in street vending, food service, begging, criminal activities, and agriculture. There have also been cases where South African women are trafficked to Europe and the Middle East, for forced labour and prostitution. (IOM, 2015)INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. South Africa: Migration for the benefit of all. 2015. Disponível em: <https://southafrica.iom.int/system/files/drupal-private/IOMSA_brochure2013.pdf>.
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Para responder a estes desafios a Casa de Acolhida Bienvenu atende mulheres refugiadas e requerentes de asilo com seus filhos - crianças entre 0 e 7 anos de idade. A maioria destas pessoas provém de países onde ocorrem frequentes violações de direitos humanos e/ou conflitos armados, como é o caso da República Democrática do Congo - país de origem da maioria das mulheres e crianças atualmente acolhidas -, Zimbábue, Malawi, Burundi, Sudão, Etiópia.

Marcadas por experiências de profundo sofrimento durante as longas trajetórias de fuga, as mulheres e crianças acolhidas pela Casa Bienvenu vivem na própria pele situações de exclusão social, memórias traumáticas e perdas familiares. Muitas vezes apresentam um alto índice de desnutrição e necessitam de atendimento integral e diferenciado.

As mulheres, geralmente, são chefes de família e carregam sozinhas o peso da educação e do sustento dos filhos. Muitas testemunharam a morte violenta de seus maridos ou filhos; outras tantas foram vítimas de violência sexual e torturas; várias são ainda adolescentes com um baixo nível de escolaridade e já foram vítimas de algum tipo de abuso; muitas são HIV positivas, resultado da violência sexual de que foram vítimas.

Provenientes principalmente de áreas rurais, as mulheres acolhidas têm poucas habilidades profissionais, o que aumenta suas dificuldades na busca de emprego ou para iniciar seu pequeno negócio de geração de renda para o sustento da família.

A maioria das crianças e mulheres não fala inglês, um dos idiomas oficiais da África do Sul. Desempregadas, traumatizadas e com problemas de saúde, enfrentam dificuldades cotidianas vivendo nas ruas, expostas, por vezes, a funcionários públicos e policiais corruptos, criminosos e uma população local frequentemente hostil.

Acolher e acompanhar

A Casa de Acolhida Bienvenu está estruturada para oferecer serviço condigno de alojamento e acolhida para até 45 mulheres e crianças refugiadas. As hóspedes são atendidas em todas as suas necessidades básicas, inicialmente por um período de 3 meses. Depois disto é realizada uma avaliação para verificar a capacidade adquirida pelas mulheres de continuar sua jornada autonomamente fora Casa de Acolhida. Caso seja necessário, o período de permanência é estendido por mais alguns meses até que estejam suficientemente seguras, autônomas e integradas à realidade da cidade de Joanesburgo.

Atualmente a casa acolhe 21 mulheres e 29 crianças, número que varia, por vezes, diariamente. As hóspedes são acompanhadas em todo o processo de integração no país de acolhida, iniciando pela obtenção de documentos para a sua permanência regular no país. Trata-se de um processo extremamente complexo: por vezes, as mulheres refugiadas precisam retornar aos serviços de migração mensalmente porque o visto que lhes é concedido tem duração de apenas 30 dias. Todas recebem assistência legal, principalmente a documentação correta para legalizar sua permanência na África do Sul.


Casa de acolhida Bienvenu

Contemporaneamente ao processo de regularização dos documentos as hóspedes recebem aconselhamento psicossocial, cuidados de saúde, psicoterapia individual e de grupo. Estes serviços se estendem também para casos específicos de mulheres e crianças vulneráveis da comunidade local com o objetivo de facilitar sua inclusão social.

A Casa Bienvenu oferece também serviços específicos de atenção às crianças, como berçário (para crianças de 0 a 3 anos) e creche (de 3 a 6 anos). Atualmente são acolhidas 66 crianças, que recebem uma formação que as prepara para o ingresso nas escolas públicas.

Os serviços de assistência às crianças têm também o objetivo de criar condições para que as mães possam participar de oficinas de corte e costura, beleza, cabeleireira, culinária, estudo da língua inglesa e artes. Estes cursos são oferecidos no Centro de Treinamento Madre Assunta adjunto à Casa de Acolhida.

Uma vez que as hóspedes tiverem concluído com sucesso seus cursos são encaminhadas para a formação em Gestão de pequenos negócios, recebem kits e assistência para a criação de seus próprios empreendimentos geradores de renda e apoio na autossubsistência (cf. Inglês, 2015INGLÊS, Paulo. Credo, crédito e género: economia do afecto entre mulheres retornadas (notas de trabalho de campo com mulheres retornadas no Uíge, Angola, Julho de 2015). REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana , v. 23, n. 45, p. 311-316, 2015.). Todo este processo de formação profissional tem o objetivo de integração e autossustentabilidade após o período de residência na Casa Bienvenu.

Hospitalidade que transforma vidas

Em termos gerais, as mulheres e crianças, após terem concluído o tempo de residência na Casa de Acolhida, recuperaram sua autoestima e estão prontas para assumir a vida autonomamente. É impressionante perceber as mudanças que elas conseguem em suas vidas no período em que permanecem hospedadas. Podemos testemunhar transformações surpreendentes, mulheres desesperadas e fragmentadas, crianças traumatizadas que conseguem recuperar seus recursos interiores transformando-se em pessoas fortes, positivas, empoderadas e conscientes de suas capacidades. Saindo da Casa as mulheres são capazes de sustentar a si mesmas e a seus filhos e de se integrar na sociedade local.

Na maioria dos casos as mulheres com seus filhos mantém contato com a Casa Bienvenu por meio do programa de apoio à Comunidade. Muitas delas passam a ajudar outras mulheres e crianças refugiadas recém-chegadas que estão em situação análoga a que elas estavam quando chegaram. É bastante comum receberem a doação de utensílios domésticos e comida, assim como apoio em questões legais e assistência à saúde. Outras mulheres ainda voltam para a Casa para trazer notícias sobre si mesmas e seus filhos, ou compartilhar conhecimentos, tornando-se professoras em nossos cursos profissionalizantes.

Aprendendo a cultura das mulheres e crianças refugiadas

“A cultura é como uma segunda natureza. Agimos de acordo com a nossa cultura que é uma forma de se expressar. Se eu não entender a cultura da outra pessoa, o mistério dela, vou começar a agir de modo suspeito, vou ter medo dela. Rezo e espero que nas comunidades de fé as pessoas desenvolvam o interesse de estudar a aprender das diversas culturas que os migrantes trazem, assim construiremos pontes que unem e não muros que promovem separação”(Tagle, 2018TAGLE, Luis Antonio. Cultura do Encontro diante dos desafios da mobilidade humana internacional. Seminário Internacional de Migrações e Refúgio. 12 de Junho 2018, Brasília, DF, Brasil.).

Muitas das hóspedes na Casa Bienvenu provêm, em seus países de origem, de trajetórias prolongadas de conflitos armados entre tribos, movimentos políticos e nações. No entanto, aprenderam com a vida que é possível superar preconceitos e ódios profundos, históricos, para viver a fraternidade própria da família humana em espaços onde se encontram as mais variadas culturas.

Ensinam-nos o valor da tolerância. Temos visto mulheres e crianças de muitos países diferentes, e com diversidade de origens culturais e religiosas, viver juntas em harmonia, compartilhando suas próprias experiências e tendo uma melhor compreensão de cada pessoa que sofre, uma verdadeira experiência intercultural.

É a atitude de quem é capaz de levantar das cinzas e reclamar sua vida. O espírito de compaixão, a solidariedade e a força de resistência das hóspedes provam que qualquer ser humano pode ter êxito em sua vida, se não for impedido de fazê-lo por violências e injustiças estruturais.

Reflexões finais

O carisma e a missão scalabrinianos colocam as Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo em lugares onde podem influenciar e advogar para que a justiça aconteça e a dignidade humana seja restaurada. Mas não é apenas um processo unidirecional, pois na convivência com mulheres e crianças refugiadas é possível também adquirir preciosos ensinamentos de suas experiências de superação e resiliência.

Testemunhamos a força da fé em Deus expressa nas mais variadas religiões, bem como a capacidade de encontrar estratégias de sobrevivência, de superação e de solidariedade vividas no meio das mais absurdas tragédias humanas de violência, perseguição e negação dos direitos básicos. As mulheres e as crianças refugiadas nos ensinam a enfrentar os obstáculos do dia a dia: superando as violências que as vicissitudes da vida lhes coloca, estão sempre prontas a recomeçar, a deixar de lado as decepções, os traumas vividos, para trilhar um novo caminho, de fraternidade, vida e esperança.

Nossa missão junto às crianças e mulheres refugiadas nos interpela a olhar para estas pessoas com o olhar do coração para reconhecer nelas a força, a coragem e a fé que as move em caminhos sempre novos, atravessando fronteiras para proteger vidas a todo custo. Se assim fizermos teremos sempre força nova e coragem para trabalhar em nossa missão com dedicação gerindo e otimizando da melhor forma, com honestidade, os bens ao nosso dispor para este serviço.

Enfim a Casa de Acolhida Bienvenu busca ser uma casa de cura e reconciliação, calor humano, paz e um novo recomeço para todas as mulheres e crianças que a ela chegam para que reencontrem a dignidade, refaçam suas forças e revigorem a fé. Nelas e com elas fazemos experiência e consolidamos a opção e a centralidade de Jesus Cristo Peregrino - que nós missionárias MSCS nos propomos viver.

Referências bibliográficas

  • CHIESA, Ir. Marivane. A presença sócio-pastoral de irmãs scalabrinianas (mscs) em África. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília , v. 25, n. 49, p. 273-277, 2017.
  • CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS MISSIONÁRIAS DE SÃO CARLOS BORROMEO - SCALABRINIANAS. Documento final. XIII Capítulo Geral Roma, 2014.
  • INGLÊS, Paulo. Credo, crédito e género: economia do afecto entre mulheres retornadas (notas de trabalho de campo com mulheres retornadas no Uíge, Angola, Julho de 2015). REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana , v. 23, n. 45, p. 311-316, 2015.
  • INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. South Africa: Migration for the benefit of all 2015. Disponível em: <https://southafrica.iom.int/system/files/drupal-private/IOMSA_brochure2013.pdf>.
    » https://southafrica.iom.int/system/files/drupal-private/IOMSA_brochure2013.pdf
  • TAGLE, Luis Antonio. Cultura do Encontro diante dos desafios da mobilidade humana internacional. Seminário Internacional de Migrações e Refúgio 12 de Junho 2018, Brasília, DF, Brasil.
  • UNCHR. Global Trends Forced displacement in 2017. Disponível em: <http://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html>.
    » http://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html
  • WARREN, Scott. A New Apartheid: South Africa’s Struggle With Immigration Disponível em: https://www.huffingtonpost.com/scott-warren/south-africa-immigration-apartheid_b_8068132.html Acesso em 10.10.2017.
    » https://www.huffingtonpost.com/scott-warren/south-africa-immigration-apartheid_b_8068132.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2018
  • Aceito
    10 Ago 2018
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