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Incompetência e Confidence Building por trás de 20 Anos de quase estagnação da América Latina

Incompetence and Confidence Building behind 20 years of quasi-stagnation in Latin America

RESUMO

A América Latina permaneceu quase estagnada em termos per capita nos últimos vinte anos. As causas originais são bem conhecidas: a crise da dívida inter-relacionada e a crise fiscal do estado. Mas por que os países latino-americanos demoraram tanto para recuperar a estabilidade macroeconômica? Não apenas porque o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado foram controladas pelos grupos de interesse, mas também porque, mesmo quando os formuladores de políticas estavam livres de restrições políticas, eles cometeram graves erros políticos: erros que derivavam de incompetência técnica ou emocional e de uma subordinada “estratégia de construção de confiança”, que implicava fazer tudo o que as agências internacionais e mercados financeiros esperassem para obter crédito e credibilidade, em vez de usar seu próprio julgamento para tomar decisões e projetar as reformas necessárias.

PALAVRAS-CHAVE:
América Latina; estagnação; crise da dívida externa; crise fiscal

ABSTRACT

Latin America remained almost stagnant in per capita terms in the last twenty years. The original causes are well known: the interrelated debt crisis and the fiscal crisis of the state. But why Latin American countries took so long to recover macroeconomic stability? Not only because fiscal adjustment and market oriented reforms were checked by interest groups, but also because, even when policymakers were free from political constraints, they nevertheless often made serious policy mistakes: mistakes that derived from technical or emotional incompetence, and from a subordinate “confidence building” strategy, that implied doing everything they supposed international agencies and financial markets would expect in order to achieve credit and credibility, instead of using their own judgment to make decisions and design required reforms.

KEYWORDS:
Latin American; stagnation; external debt crisis; fiscal crisis

INTRODUÇÃO

Por trás dos 20 anos de quase estagnação da América Latina não estão apenas todo tipo de grupos de interesses, mas também sérios erros na tomada de decisões macroeconômicas e no projeto de reforma institucional. A tese central que desenvolverei aqui é simples. Os países latino-americanos se envolveram, nos anos 1980, na crise da dívida e, em linhas mais gerais, numa crise fiscal do Estado. Por que eles não superaram essa crise? Por que não alcançaram a estabilidade econômica perdida com a crise? Por que as reformas não foram tão efetivas quanto se poderia esperar? Economistas e cientistas sociais têm uma explicação geral para isso: os grupos de interesses, que criam obstáculos para uma adequada tomada de decisões. Não tenho divergências a esse respeito, mas acredito, e procurarei mostrar no presente trabalho, que existe uma segunda razão, cada vez mais importante: autoridades que determinam políticas são com freqüência incompetentes, devido a sua ignorância, temor e arrogância. Freqüentemente as autoridades tomam decisões erradas por causa de suas convicções, e não por pressões políticas. Portanto, elas não estavam qualificadas; suas decisões resultavam de raciocínios equivocados. Isso não era relevante no passado, quando a política macroeconômica e estratégias de reforma institucional não existiam efetivamente. Hoje elas existem, e com freqüência envolvem decisões estratégicas de enorme importância, dadas as conseqüências que podem acarretar. Por que pressupor que essas decisões estão sempre certas? Ou, ainda, que acertos e erros se compensam mutuamente, de tal modo que possam ser ignorados?

Os últimos 20 anos têm sido de quase estagnação para a América Latina, e em especial para o Brasil. Se os anos 80 foram chamados de “década perdida”, os anos 90 podem ser considerados “a década desperdiçada”. Em termos absolutos, a renda per capita praticamente não cresceu nesse período. Os resultados são chocantes, quando comparados com os 30 anos anteriores. No período anterior era possível dizer que a América Latina estava alcançando os países desenvolvidos, esperandose uma convergência. Entretanto, a partir de 1980, os países desenvolvidos continuaram a crescer em termos per capita, embora num ritmo mais lento, enquanto os países latino-americanos praticamente estagnaram. Entre 1950 e 1979 o crescimento do PIB per capita nos países da OCDE foi de 3,3%, enquanto na América Latina chegou a 2,5% ao ano e 3,9% no Brasil. Em contrapartida, entre 1980 e 1988, o crescimento na América Latina despencou para 0,5% ao ano, e no Brasil, para 0,7%, enquanto nos países da OCDE caiu para 2,5% (Tabela 1).

Tabela 1:
Taxas do PIB por Crescimento Per Capita Comparado

A pergunta, então, é: por que isso aconteceu? Por que os países latino-americanos e em particular o Brasil - que eu conheço melhor - mostraram-se incapazes de desenvolver suas economias nos últimos 20 anos? O que saiu errado? As causas devem estar associadas às instituições, particularmente ao estado ou aos mercados, ou antes, aos governos (administrações) e suas elites administrativas? São essencialmente causas internas ou existe um significativo componente internacional envolvido?

No presente trabalho não pretendo descrever ou analisar a instabilidade macroeconômica que prevaleceu nos países latino-americanos. Seu terrível círculo vicioso é bem conhecido: déficits orçamentários e elevados débitos públicos resultam em crise fiscal do Estado e alta inflação; a estabilização dos preços acarreta a sobrevalorização da moeda, o que, por sua vez, favorece dívidas ainda mais elevadas; déficits, dívidas e sobrevalorização pressionam no sentido de menores poupanças públicas e privadas e de taxas de juros mais elevadas. Tudo isso conduzindo a taxas reduzidas de acumulação de capital, à estagnação e a uma recessão quase permanente. Como eu postulo que a estabilidade econômica é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para o crescimento, minha questão mais geral será examinar por que os países latino-americanos mostraram-se incapazes de alcançá-la.

Tentarei oferecer, neste trabalho, uma resposta a essas questões. Afirmarei que um novo e importante fato histórico levou os países latino-americanos à beira da insolvência, tornando mais estratégicos e mais difíceis a determinação da política macroeconômica e o projeto de reforma institucional. Uma dificuldade com a qual os políticos e os economistas que eram seus conselheiros não tiveram condições de lidar. Em diversas ocasiões eles se mostraram incompetentes e cometeram sérios erros, agravando o problema que pretendiam resolver. Na Seção 1, farei a mim mesmo uma velha pergunta: de que depende o crescimento econômico? Não é suficiente pensar apenas em termos da função de produção. A acumulação de capital e o progresso técnico bastavam para explicar o crescimento econômico quando a estabilidade macroeconômica podia ser assumida no longo prazo. Isso não é mais possível. A instabilidade macroeconômica pode se tornar crónica e durar longos anos, particularmente quando está envolvida a questão da dívida. Na Seção 2 partirei do pressuposto de que existe hoje um consenso razoável quanto à natureza essencial da crise: uma crise do Estado desenvolvimentista1 1 Em muitos trabalhos anteriores, eu defini a crise da América Latina e do Brasil como uma crise do Estado — como uma crise fiscal, uma crise do modo de intervenção do Estado e uma crise da forma burocrática pela qual ele é administrado. Aqui só faço referência à definição no livro escrito juntamente com Maravall e Przeworski (Bresser-Pereira, 1993). . Na Seção 3 examinarei as respostas convencionais, provenientes da direita e da esquerda, à minha questão básica. Segundo a doutrina neoliberal, a explicação reside na capacidade das elites políticas locais de reformar e garantir os direitos de propriedade. Por outro lado, de acordo com o velho pensamento da esquerda, as críticas devem se dirigir à globalização e às reformas neoliberais. Sabemos, porém, que a crise veio antes das reformas. É necessário um novo fato histórico. Assim, na Seção 4 partirei em busca de um novo fato histórico que impediu a estabilidade macroeconômica e provocou a estagnação. Será destacada a dívida externa na década de 1970. Ela tornou a determinação de uma política macroeconômica mais estratégica e mais complexa na América Latina. Na Seção 5 empreenderei a revisão de projetos incompetentes de reforma, que tornam mais problemática a sua aprovação pelos parlamentos, e de políticas macroeconômicas ineptas, em especial as decisões referentes ao uso de poupanças externas para o crescimento e as políticas que tentam controlar a inflação inercia!. Na seção seguinte, saliento as decisões erróneas que conduziram à sobrevalorização da taxa cambial. Na Seção 7, discuto as razões por trás dos erros. Na conclusão, sugiro que a hipótese da incompetência não pode ser explicada seja em termos racionais, seja em termos históricos. Ou melhor, sugiro que, embora esses dois métodos possam oferecer subsídios para o problema, deve-se admitir que a determinação incompetente de políticas constitui um fator explicativo independente, que deve ser considerado por si mesmo.

Existem sérios problemas institucionais a encarar, que requerem reformas institucionais bem concebidas, e decisões de política macroeconômica estratégicas e do dia-a-dia a serem tomadas. Minha hipótese é que, embora a análise dos grupos de interesses possa explicar por que as decisões correspondentes não foram feitas adequadamente e no momento apropriado, as falhas tiveram mais um caráter pessoal do que institucional. Dados os grupos de pressão e as ideologias existentes, o crescimento da América Latina teria sido possível com as instituições existentes, caso as decisões sobre políticas fossem corretas, competentes. E as reformas institucionais destinadas a favorecer o crescimento teriam sido mais facilmente aprovadas caso tivessem um desenho adequado. Ou, em outras palavras, de acordo com o que poderíamos chamar de “hipótese da incompetência”, a incapacidade de superar a crise e retomar o crescimento prendeu-se basicamente à incompetência das elites locais e de seus conselheiros internacionais para fazer frente aos novos desafios originados das mudanças fundamentais nos mercados internacionais, particularmente da crise da dívida e do aumento dos fluxos de capital.

CRESCIMENTO E ESTABILIDADE MACROECONÔMICA

O crescimento tem como pressuposto a estabilidade macroeconômica. Quando se pergunta a um economista de que depende o crescimento econômico, a resposta padrão é: depende da acumulação de capital e do progresso técnico. É o que eu chamo de resposta da escola clássica, e trata-se da melhor resposta simples disponível. Se dissermos que o desenvolvimento econômico depende basicamente da inovação empresarial, acrescentaremos uma dimensão schumpeteriana. Se for salientado o papel dos fatores externos, pode ser uma referência à teoria do crescimento equilibrado dos economistas estruturalistas dos anos 1940, ou à teoria do crescimento desequilibrado apresentada nos anos 1950, que, nos últimos quinze anos, a nova teoria endógena do crescimento conseguiu formular. Uma menção ao papel crucial do capital humano remete à contribuição mais importante da Escola de Chicago para a teoria do crescimento. Afirmar que as instituições são essenciais significa repetir o que os economistas políticos clássicos e estruturalistas disseram há muito tempo, mas com o apelo da nova escola de escolha racional (rational choice).

Não me estenderei na enorme e fascinante literatura econômica sobre esse tema. A teoria do crescimento pressupôs a estabilidade macroeconômica. Por quê? Talvez porque uma parte dessa produção acadêmica seja anterior à criação da macroeconomia por Keynes. Talvez porque, quando foi elaborada a maioria dos escritos contemporâneos sobre crescimento econômico (nos anos dourados após a Segunda Guerra Mundial), a estabilidade macroeconômica parecia ter sido alcançada. Ora, essa ilusão há muito terminou e, para nos atermos ao essencial, podemos resumir dizendo que o crescimento econômico ou o aumento na produtividade geral depende basicamente da acumulação de capital, do progresso técnico e da estabilidade macroeconômica. A acumulação de capital, por sua vez, depende, por um lado, da poupança interna, e, por outro lado, das perspectivas favoráveis de lucros para os empresários. O progresso técnico depende do nível de educação, do suprimento de capacidade empreendedora, do compromisso das empresas com pesquisa e desenvolvimento (R&D) e da taxa de acumulação de capital, uma vez que os novos investimentos tendem a corporificar a nova tecnologia. E a estabilidade macroeconômica depende ou, antes, pode ser definida considerando-se os fundamentos macroeconômicos: um orçamento equilibrado, um nível de endividamento administrável e um nível correto de preços, em especial uma taxa de câmbio “realista” e uma taxa de juros consistente com os índices internacionais.

Não existe regra prática para definir o que é um nível de endividamento administrável. Sabemos porém que, quando um país tem uma alta dívida externa, em princípio deve realizar poupanças extraordinárias, simplesmente para pagar os juros da dívida. Poupanças extraordinárias significam ou taxas de lucros extraordinárias, se o endividamento ocorrer no setor privado; ou tributos extraordinários, se o Estado for o principal responsável pela dívida externa. Nos dois casos, isso acarreta salários menores e um consumo reduzido, o que só pode ser alcançado se o país tiver uma moeda relativamente subvalorizada. Desse modo, como demonstrarei adiante, uma taxa cambial “realista” para os países endividados em desenvolvimento é uma moeda relativamente desvalorizada. Se incluirmos a dívida interna em nosso modelo simples e se o Estado for o setor especialmente endividado em termos internos, os tributos extraordinários podem ser necessários, ainda que a dívida externa seja basicamente privada. Em ambos os casos, o custo tem de ser pago em termos dos salários mais baixos recebidos pelos trabalhadores e/ou rendimentos mais baixos recebidos pela nova classe média. Pode-se sempre reivindicar que o ônus adicional recaia sobre os lucros, mas os limites para uma tal política são definidos por um fato simples: se a taxa de lucros esperada não for alta o suficiente e segura o suficiente, os capitalistas não vão investir.

Em linhas mais gerais, o crescimento econômico depende de instituições apropriadas, que criam incentivos para a poupança e o investimento em capital físico e humano, e num projeto de reforma e determinação de políticas competentes, o que não é automaticamente assegurado quando as instituições foram ajustadas.

O DIAGNÓSTICO BÁSICO

Postulando essas proposições gerais, retornarei à minha questão básica: por que os países latino-americanos exibiram taxas de crescimento tão débeis nos últimos 20 anos ou, mais especificamente, por que a instabilidade macroeconômica foi uma realidade constante em todo esse período? As respostas envolvem, por um lado, um diagnóstico das circunstâncias históricas que conduziram tantos países à crise, em primeiro lugar, e em segundo lugar, à incapacidade de superá-la. Existe um consenso razoável em relação às circunstâncias históricas que originaram a crise. Esta consistiu basicamente numa crise do estado. Os países desenvolvidos defrontaram-se com a crise do seu estado de bem-estar social desde 1973, quando o primeiro choque dos preços do petróleo sinalizou que o estado havia crescido além de qualquer controle, havia se tornado cada vez mais vítima de atividades que perseguem rendas (rent-seeking) e estava mergulhado em crescentes problemas internos, enquanto a intervenção governamental distorcia a alocação de mercado. Foram, então, iniciados os ajustes fiscais necessários e as reformas orientadas para o mercado. A crise latino-americana veio atrasada, na década de 1980, pois o crescimento econômico foi artificialmente prolongado pela aventura da dívida externa. Porém veio com mais força, uma vez que as distorções provocadas pelo Estado desenvolvimentista foram mais severas que aquelas provocadas pelo Estado do bem-estar social.2 2 Em outros escritos, defini o Estado do século XX como o “Estado social-burocrático”, que assumiu três formas básicas: o “Estado do bem-estar social” entre os países desenvolvidos, particularmente os países europeus; o “Estado desenvolvimentista” nos países em desenvolvimento, particularmente os latino-americanos; e o “Estado comunista” ou “Estado do tipo soviético”.

Quando afinal, no início dos anos 1980, a crise da dívida se alastrou e os países latino-americanos não tiveram alternativas senão realizar ajustes e reformas, a tarefa que enfrentavam era formidável. Se, em 1973, as distorções de mercado causadas pela generalizada persecução de rendas e pelo desequilíbrio das finanças públicas na América Latina já eram mais graves que as distorções correspondentes nos países desenvolvidos, o que dizer da situação sete anos depois? Além de permitir o aprofundamento das distorções existentes, a política de obtenção de empréstimos resultou numa dívida externa notavelmente elevada.3 3 Dez anos mais tarde, em 1990, o Plano Brady não solucionou a crise da dívida; ele simplesmente permitiu que o débito fosse reestruturado. Ao fazê-lo, abriu espaço para uma nova onda de empréstimos internacionais e para o conceito de “mercados emergentes”.

Desse modo, a instabilidade macroeconômica latino-americana está associada ao crescimento excessivo e distorcido do Estado desenvolvimentista e à aquisição de uma alta dívida externa. A estratégia de substituição de importações, que se mostrara eficaz em promover a industrialização entre as décadas de 1930 e 1950, estava exaurida no início dos anos 1960. A crise econômica da década de 1960 representou uma clara indicação de que havia chegado o tempo da mudança, de que o discurso da proteção à indústria nascente não se sustentava mais. Todavia, assim como o ajuste fiscal foi adiado depois do choque de 1973, o mesmo aconteceu, antes disso, com a mudança para uma estratégia voltada para as exportações, nos anos 1960. Empréstimos externos viabilizaram ambos os atrasos, porém com dolorosas conseqüências.

Acredito que exista hoje em dia um razoável consenso quanto a esse diagnóstico básico da crise. A direita neoliberal terá dificuldade em aceitar que, por um período, o Estado desenvolvimentista foi bem-sucedido, uma vez que essa corrente tem problemas com a linha de raciocínio histórico. A velha esquerda, por sua vez, vai insistir que a razão por trás da instabilidade macroeconômica não repousa nas inevitáveis distorções resultantes da excessiva proteção à indústria local e ao crescimento desmedido dos gastos do Estado, e sim em algum tipo de conspiração unindo as empresas locais e as multinacionais. Mas a maioria vai admitir que o Estado, que entre as décadas de 1930 e 1960 foi um participante ativo na promoção do desenvolvimento e do bem-estar social, desde os anos 1980 tornou-se um problema, exigindo um ajuste fiscal e reformas. A poupança pública, que era positiva e contribuía para a poupança global, tornou-se negativa. O déficit orçamentário, que antes financiava o investimento, passou a financiar basicamente o consumo. As empresas estatais, que desempenharam um papel fundamental no estabelecimento de uma infra-estrutura industrial para as economias nacionais, agora estavam altamente endividadas. Os burocratas do Estado, que, por algum tempo, estiveram comprometidos com um projeto nacional no qual o seu papel era bem claro, agora viam-se perdidos em meio à sua própria crise - uma crise que levou muitos deles a perseguir rendas, se não à pura e simples corrupção.

OS CONHECIMENTOS CONVENCIONAIS

Depois de 1982, quando a crise da dívida se manifestou, a instabilidade macroeconômica despontou como o problema econômico central. Os países latinoamericanos não tiveram alternativas exceto realizar ajustes e reformas. Foi o que fizeram, pressionados pelos países credores e pelas circunstâncias. Mas não alcançaram a estabilidade macroeconômica. O que saiu errado? O ajuste fiscal e as reformas não foram efetivamente realizadas, ou foram realizadas, mas ainda assim, não corresponderam às expectativas? Existe uma profunda controvérsia no tocante a esse ponto. Direita e a esquerda têm, cada uma, sua própria maneira convencional de pensar.

A doutrina convencional da direita ou dos conservadores quanto a esse assunto é bem clara. A América Latina fracassou em realizar as reformas necessárias num mundo globalizado. “Reforma” tornou-se uma espécie de passe partout, uma palavra mágica capaz de resolver todos os problemas. Portanto, se o crescimento não foi retomado, a única explicação é que as reformas não se realizaram em sua plenitude. Pouco importa que o ajuste fiscal tenha sido rigorosamente implementado em muitos países, que a liberalização do comércio e a privatização sejam fatos definitivos na América Latina, que as reformas administrativas se encontrem em andamento em alguns países, que os mercados de trabalho tenham se tornado um pouco mais flexíveis. Ou as reformas não saíram do papel, ou não foram suficientes, ou novas reformas são necessárias.

De acordo com a nova visão conservadora, o que é necessário é a “liberdade econômica”, afirma a direita. O think tank Economic Freedom of the World publica um índice no qual ordena os países segundo esse critério.4 4 Ver Gwartney e Lawnson (1999) e www.freetheworld.com. A organização usa 53 instituições de todo o mundo para elaborar seu The Economic Freedom Network Index. No Brasil, onde uma instituição praticamente desconhecida está em ação, o índice de liberdade em 1997 foi 5.5 (numa escala de O a 10), em um total de 119 países pesquisados... Esse curioso índice, no qual a China é mais livre do que o Brasil, e o Peru ocupa uma posição superior à da Dinamarca, é, apesar de tudo, levado a sério pelo The Economist, uma vez que expressa corretamente a verdade da direita. Por exemplo, o editor da revista, Bill Emmott (1999COHEN, Joshua (1989) “Deliberation and Democratic Legitimacy”. In James Bohman e William Rehg, ed. (1997). Texto originalmente publicado em 1989.: 28), numa pesquisa especial, pergunta-se por que os países mais pobres não recuperaram posições ao longo do século XX. Ele descarta respostas como falta de mão-de-obra qualificada, falta de capital, falta de espírito empresarial, e conclui com uma obviedade: o que está faltando é liberdade econômica, é a devida proteção dos direitos de propriedade, uma vez que, “quanto mais livre a economia, tanto maior o crescimento e mais rico o país”. As reformas vão conduzir a essa liberdade, vão reduzir o tamanho do Estado e desregulamentar a economia, permitindo que o mercado faça o seu trabalho. Se o crescimento não se desenvolveu, é porque as reformas não foram feitas ou foram incompletas.

As reformas orientadas para o mercado são necessárias na América Latina e vêm sendo executadas: ajuste fiscal, reforma comercial, privatização, reforma da previdência social e reforma administrativa. Portanto, dizer que as reformas não foram realizadas é simplesmente falso; afirmar que elas são incompletas é sempre verdadeiro, mas não explica a instabilidade macroeconômica. Trata-se de um problema de curto prazo que deve ser resolvido, no fundamental, com políticas de curto prazo, enquanto a maioria das reformas institucionais apresenta resultados de médio prazo. Até mesmo as reformas econômicas que envolvem resultados de curto prazo, a exemplo da liberalização do comércio, não acarretam de maneira automática a estabilidade e o crescimento. Recentemente, Rodrik (1999PRZEWORSKI, Adam (1998) “Deliberation and Ideological Domination”. In Jon Elster, ed. (1998).), depois de uma ampla análise de regressão baseada em muitos países, concluiu que a reforma comercial não estava relacionada de maneira significativa com o crescimento nos anos 1980 e 1990: as variáveis significativas eram a acumulação de capital e a estabilidade macroeconômica.5 5 Segundo Rodrik (1999: 1): “As reivindicações feitas pelos partidários entusiastas da integração econômica internacional com freqüência são exageradas ou absolutamente falsas... As evidências baseadas na experiência das últimas duas décadas são bem claras: os países que cresceram mais rapidamente desde meados dos anos 1970 são aqueles que investiram uma alta parcela do PIB e conservaram a estabilidade macroeconômica”. A única política diretamente relacionada à estabilidade macroeconômica é o ajuste fiscal, que em si mesmo não é uma reforma, embora possa depender parcialmente da reforma fiscal.

Mas, continua a linha dominante do pensamento convencional, as reformas não foram feitas, ou foram insuficientes, por terem sido ou serem combatidas por grupos de interesses e políticos populistas na América Latina.

De fato, os políticos latino-americanos se envolvem em práticas populistas mais facilmente do que os políticos nos países desenvolvidos. Isso também faz parte da definição de um país em desenvolvimento. Mas como podemos explicar que, tendo os mesmos políticos, a América Latina conseguiu apresentar uma razoável estabilidade macroeconômica e altos índices de crescimento do PIB per capita nos 30 anos anteriores? Não é possível explicar novos eventos com velhos fatos. Além disso, é razoável dizer que o comportamento político na América Latina melhorou nos últimos 20 anos. A democracia tornou-se o regime político dominante em toda a região. As democracias latino-americanas não podem ser comparadas com aquelas existentes nos países desenvolvidos, mas de qualquer modo são democracias. Isso significa, além de tudo, melhores instituições e melhores políticos.

Desse modo, o pensamento conservador ou a doutrina convencional dominante sobre o que saiu errado na América Latina não é convincente. Incapaz de argumentar em termos históricos, ela tenta explicar um novo problema - a estagnação econômica - com velhos fatos: “falta de liberdade econômica”, “políticos populistas”, “reformas incompletas”. Velhos fatos que mostram melhorias, uma vez os direitos de propriedade são agora mais bem protegidos do que antes, os políticos são mais modernos e democráticos e foram realizadas amplas reformas, ainda que necessariamente incompletas.

O pensamento convencional da velha esquerda vai na direção oposta, mas apresenta falhas semelhantes. Se a globalização é uma bênção para a direita, na medida em que significa que os mercados estão se tornando dominantes no mundo inteiro, para a velha esquerda trata-se de uma maldição pelo mesmo motivo, mas com valor oposto. Uma vez que, no último quarto do século XX, a coordenação de mercados avançou, enquanto que a intervenção do Estado primeiro se deteve e em seguida se reduziu (moderadamente), a esquerda responsabiliza esse fato pela estagnação. O curioso é que ela partilha com a direita a crença de que a globalização conduz inevitavelmente à redução da autonomia do estado. Ao fazê-lo, a esquerda não compreende que é precisamente esse o aspecto ideológico ardiloso da globalização: dizer que o Estado definitivamente perdeu autonomia - e que não há nada a fazer, senão aceitar essa nova realidade e adaptar-se a ela.

Juntamente com a globalização, prossegue a velha esquerda, vieram as reformas neoliberais. Elas reduziram ainda mais a autonomia do Estado, deixando os países em desenvolvimento à mercê da irracionalidade do mercado. Assim, enquanto para a direita é a falta de reformas que deve ser censurada, para a velha esquerda são o excesso e o caráter distorcido das reformas que explicam os problemas econômicos latino-americanos. Não há dúvida de que em alguns países as reformas foram mal conduzidas. Basta considerar, por exemplo, o encaminhamento precário da privatização na Argentina. Todavia, não se pode generalizar o argumento. Na verdade, o pensamento da velha esquerda não faz sentido pela simples razão de que a crise que conduziu à estagnação tem suas raízes nos anos 1970, quando nem a globalização nem a reforma se colocavam efetivamente. A globalização em termos reais (e não em termos ideológicos), vista como uma reorganização da produção em escala mundial, conduzida pelas corporações multinacionais, e como a emergência dos mercados financeiros mundiais, era um fato histórico que logo se manifestaria, mas que ainda não era dominante. E as reformas vieram na década de 1980 como uma resposta para a crise, e, portanto, não podem ser a sua causa.

Posso facilmente compreender a dificuldade que a direita encontra para pensar em termos históricos. Sua atual religião intelectual é a economia neoclássica e a argumentação da escolha racional - duas notáveis realizações científicas, porém ahistóricas por definição, dotadas de um caráter essencialmente lógico-dedutivo. Mas tenho dificuldade em compreender que a esquerda seja incapaz de pensar em termos históricos, quando isso é estritamente necessário. Estamos procurando, afinal, as causas de um novo evento histórico, a estagnação econômica da América Latina. A linha de pensamento histórica não constitui um monopólio da esquerda, mas é bom lembrar que seu maior pensador, Marx, pensou sempre em termos históricos. Foi o método histórico que lhe permitiu traçar uma análise tão profunda do capitalismo.

Assim, tanto a direita quanto a esquerda procuram descartar a história. Não porque o método histórico seja uma maneira arriscada de pensar, sujeita a distorções ideológicas. Mas porque ele implica identificar a mudança, lidar com a mudança. Ora, isso é sempre doloroso, para a direita ou para a esquerda. Requer pensamento real, não a simples aplicação de estereótipos. Está na moda falar do ritmo crescente da mudança tecnológica e social, mas quando interesses e ideologias estão envolvidos, é muito mais fácil continuar com uma doutrina convencional imutável, qualquer que seja ela.

O NOVO FATO HISTÓRICO

Por mais difícil e arriscado que seja, não existe alternativa a não ser pensar em termos históricos quando temos um problema histórico a resolver. Assim, qual foi o novo fato histórico que manteve não resolvida a instabilidade econômica, que a transformou num fenómeno quase crónico? Na seção sobre o diagnóstico básico, considerei aceita, sem questionamentos, a razão pela qual o problema se manifestou no início dos anos 1980 - a crise do Estado desenvolvimentista, a partir de um crescimento excessivo e distorcido. Mas quando uma crise aflora e suas causas são identificadas, é razoável esperar que ela seja subseqüentemente superada. Por que isso não aconteceu?

Minha explicação básica consiste no fracasso em adotar decisões estratégicas corretas de políticas e reformas bem delineadas. As reformas são mudanças institucionais, as decisões de políticas são o gerenciamento cotidiano da economia. As reformas envolvem resultados de médio prazo; as decisões de políticas também podem ter conseqüências de médio e longo prazos, mas em geral produzem resultados imediatamente. Os economistas incumbidos de adotar decisões de política nos países latino-americanos, economistas nacionais e estrangeiros - na maioria dos casos conselheiros do FMI e do Banco Mundial - fracassaram de maneira flagrante em estabilizar as economias latino-americanas. Para alcançar resultados, as estratégias de estabilização, em especial as estratégias de estabilização de preços, demoraram demais ou tiveram um custo alto demais, em termos de perda de renda. Algumas custaram demasiado porque, antes de terem êxito, a hiperinflação se desenvolveu, como aconteceu na Argentina. Em outros casos, o custo foi alto demais porque implicou cortes extremamente graves na demanda e em especial nos salários, como aconteceu no Chile. E em outros casos, como o caso brasileiro, os custos altos se relacionaram com o tempo que levaram para alcançar êxito: se começarmos a contar desde 1979, quando a crise começou, doze tentativas de estabilização fracassaram - algumas heterodoxas, a maioria delas ortodoxa - até que o heterodoxo Plano Real conseguisse estabilizar a inflação.

Mas a mesma argumentação que utilizei para rechaçar o pensamento convencional, segundo o qual os políticos populistas devem ser responsabilizados pelo fracasso na estabilização, aplica-se à minha argumentação, que responsabiliza as autoridades incompetentes. Os mesmos economistas - e sem dúvida menos bem preparados teoricamente - estavam na América Latina nos 30 anos anteriores, quando prevaleciam a estabilidade macroeconômica e o crescimento econômico. Desse modo, antes de examinar as decisões estratégicas erróneas, ainda necessito de um fato histórico novo que tenha modificado o quadro e instigado uma precária tomada de decisões.

Oferecerei à discussão dois novos fatos históricos. Um deles é peculiar à América Latina: a crise da dívida e a conseqüente crise fiscal do Estado. O outro - o fato de que a determinação de uma política macroeconômica é um fato histórico relativamente novo - terminará por atribuir um caráter mais universal à análise que estou empreendendo.

Tabela 2:
Dívida Externa Não Paga do Brasil e da América Latina

Primeiro, a crise da dívida. Um novo fato histórico, neste caso, em princípio deve ter duas qualidades. Ele deve ter dado um golpe severo nas economias latinoamericanas. Em segundo lugar, esse fato novo, que produziu uma crise tão grave e prolongada, deve ter tornado mais estratégicas e mais complexas as decisões de política econômica. Ele deve ter produzido aquilo que, em outra ocasião, chamei de “tempos anormais”, quer dizer, uma situação atípica, na qual distorções de toda espécie assumem um caráter avassalador, exigindo decisões excepcionalmente competentes. Se, em tais circunstâncias, as decisões políticas não forem tomadas no momento e no sentido corretos, o país poderá permanecer estagnado por muitos anos. O fato novo que preenche essas duas exigências é a dívida acumulada pelos países latino-americanos nos anos 1970 e no início dos anos 1980, antes do colapso de 1982. Tivemos endividamento externo antes, no século 19 e na década de 1920, mas nunca em tamanho volume. E, ainda mais importante, desde a crise de 1930, quando diversos países em desenvolvimento tiveram de reestruturar seus débitos, os empréstimos privados para a América Latina estiveram ausentes, exceto aqueles para financiar o intercâmbio comercial. Portanto, as taxas de crescimento relativamente altas, conseguidas entre 1930 e 1970, foram asseguradas sem recorrer a dívidas de longo prazo. O estado de quase estagnação somente veio a ocorrer depois que os países latino-americanos se endividaram.

Nas décadas de 1950 e 1960 os economistas e políticos latino-americanos ansiavam por essa possibilidade de obter empréstimos de longo prazo, acreditando que dessa maneira eles acelerariam o crescimento. Quando, nos anos 1970, essa possibilidade veio a se tornar realidade, dado o excesso de liquidez prevalecente nos mercados financeiros internacionais, os países latino-americanos se endividaram e seguiuse um desastre previsível, mas que não fora previsto. Bem poucas coisas são tão perigosas para uma organização, seja ela uma organização empresarial ou uma economia nacional, quanto subitamente ter acesso a uma grande quantidade de dinheiro. É enorme a probabilidade de esse dinheiro ser gasto de maneira inadequada. Não existe um número suficiente de bons projetos de investimentos a financiar, e nem uma administração competente o bastante para conduzi-los. Nos anos 70, a dívida externa latino-americana cresceu com tamanha rapidez e atingiu tais proporções, enquanto os bancos internacionais levavam tanto tempo para deter o processo, que, quando isso acabou acontecendo, em 1982, a maioria dos países latino-americanos estava insolvente, em plena bancarrota. Estavam às voltas com a ameaça de uma enorme dívida, que tinha de ser honrada com base na presente renda nacional.

Essa é uma história antiga e bem conhecida. Uma história que o Plano Brady, a partir de 1990, não solucionou, mas apenas colocou sob controle, permitindo a reestruturação e um serviço limitados. O essencial aqui é compreender as conseqüências de longo prazo que isso acarretou. Por outro lado, como estou partindo do pressuposto de que os países latino-americanos só podem confiar em si mesmos, o essencial é saber como a dívida afetou o crescimento e a determinação de políticas na América Latina. É incontestável que ela afetou negativamente o crescimento de longo prazo. O problema, porém, é que, além disso, ela tornou ainda mais complexa a determinação de políticas, que por si já é uma tarefa difícil e arriscada. Se isso é verdade para os países desenvolvidos, nos quais os problemas macroeconômicos raramente assumem um caráter dramático, o que dizer dos países em desenvolvimento, que na prática, se defrontam com a falência por causa da dívida? Um país goza de estabilidade macroeconômica quando suas taxas de inflação mostram-se semelhantes às encontradas nos países desenvolvidos, e as taxas de juros encontram-se em um patamar só um pouco acima. As grandes dívidas externas (e internas) tornaram a estabilização macroeconômica na América Latina muito mais difícil de alcançar, exigindo políticos e economistas mais competentes do que aqueles de que a região dispunha. 6 6 No Brasil, por exemplo, a dívida pública interna, que esteve em torno de 2’¼, do PIB da década de 1940 à de 1960, elevou-se a cerca de 6% do PIB na década de 1970, 15% na década de 1980 e 30% na de 1990. Com freqüência, nos últimos períodos, a dívida interna aumentou com a dívida externa: dada a entrada de moeda estrangeira, o governo local a adquiria, em princípio para esterilizá-la e, com isso, controlar a oferta monetária; na verdade, corno urna forma fácil de financiar déficits orçamentários.

Segundo, o novo fato histórico mais geral. A política macroeconômica é um fenómeno de 50 anos. Antes de Keynes e da ascensão da macroeconomia - ou antes de os bancos centrais se tornarem reconhecidos e relativamente independentes - mal se podia falar em política macroeconômica. Os governos adotavam formas de política econômica, esforçavam-se por conseguir o equilíbrio fiscal e na balança comercial, mas a teoria era tão precária, e os dados macroeconômicos, tão imperfeitos, que os governos estavam bem distantes de uma política macroeconômica real. Assim, estava perfeito que economistas, historiadores, cientistas sociais em geral, quando tentassem entender o desempenho econômico das nações, investigassem apenas interesses e não erros. As decisões boas ou más se originavam sistematicamente dos grupos de interesses, e não sistematicamente de decisões. Com freqüência os historiadores falavam de um “bom” ou “mau” governo, mas, de qualquer modo, imaginava-se que as decisões governamentais corretas e equivocadas estivessem distribuídas de maneira tão equilibrada que poderiam ser basicamente ignoradas.

Não é mais assim, depois que a política macroeconômica e, mais recentemente, a estratégia de reforma institucional tornaram-se um processo de governo costumeiro e essencial. Esse é um novo fato histórico. A política econômica tornou-se estratégica e agora pode ser responsabilizada por uma parcela substancial do êxito ou do fracasso de um governo. Como conseqüência, além dos interesses envolvidos, as decisões sobre políticas (certas e erradas) devem ser levadas em consideração pelos cientistas sociais, caso eles queiram compreender o que está acontecendo. Observe-se que não estou afirmando que não existam bons economistas na América Latina, e nem que haja uma explicação sistemática para a macroinstabilidade. A América Latina provavelmente conta hoje em dia com políticos e economistas mais preparados do que no passado. Os países latino-americanos são mais democráticos e os políticos aprenderam a conviver com a democracia. Desde o final dos anos 1960 os economistas começaram a fazer doutorados no exterior, particularmente nas universidades americanas de mais prestígio, o que lhes assegurou técnicas econômicas mais sofisticadas. Mas isso não significa que tenham aperfeiçoado sua capacidade de tomar decisões mais corretas e corajosas. Nem que essa capacidade tenha deteriorado. Em cada país, existe um trade off entre a capacidade técnica e um conhecimento mais profundo da realidade econômica e política. Não pretendo discutir aqui esse ponto.7 7 Todavia, deve-se dizer que hoje, no caso do Brasil, onde os doutoramentos locais em economia e ciência política estão solidamente estabelecidos, vejo com mais simpatia os estágios de curto prazo (um ano) em universidades estrangeiras do que os programas completos de PhD. Em vez disso, quero apenas enfatizar que a crise da dívida e, em linhas mais gerais, a crise dos Estados latino-americanos tornaram a determinação de políticas econômicas mais desafiadora do que era antes. E, numa visão mais ampla, que a emergência da política macroeconômica e da estratégia de reforma institucional tornou as decisões nessa área mais significativas e mais sujeitas a erros do que eram antes. Boas instituições, tais como as existentes nos países desenvolvidos, limitarão os custos envolvidos em eventuais decisões equivocadas, mas, de qualquer modo, as decisões sobre políticas agora são mais relevantes e estratégicas do que eram anteriormente.

DECISÕES ESTRATÉGICAS INCOMPETENTES

Mas quais foram os erros? A determinação de políticas foi tão errônea, tão inadequada, tão enganosa quanto estou sugerindo? Para responder a essas perguntas, vou rever decisões básicas de política macroeconômica e decisões sobre o projeto de reformas institucionais dos últimos vinte anos, indagando se foram competentes e se tiveram êxito ou não. O critério de sucesso é diferente num caso e no outro. O êxito na definição de um projeto institucional é alcançado quando a reforma é aprovada pelo Congresso e, mais adiante, quando é implementada e produz os resultados esperados. Vou me referir, aqui, apenas à aprovação da reforma. O sucesso na determinação de políticas macroeconômicas é alcançado quando a economia se estabiliza e em seguida cresce. No caso das reformas, temos um critério político de sucesso; no caso das decisões de macropolítica, um critério técnico.

Muitas reformas institucionais foram aprovadas e implementadas na América Latina. Seja como for, quando uma reforma não passa no Congresso, a explicação habitual é simples: não foi aprovada porque os votantes não a apoiaram, ou porque os grupos de interesses contrários a ela eram demasiado fortes. Ambas as respostas são verdadeiras, mas existe um tipo de resposta totalmente distinto que também deve ser considerado - uma resposta que considero particularmente importante. Muitas reformas não são aprovadas no parlamento porque faltou competência ao projeto de reforma. Em geral, a competência do projeto é aceita sem discussão. Não deveria ser assim. Não se deve subestimar os políticos que atuam nos parlamentos. É muito mais difícil a aprovação de uma reforma de projeto precário do que de uma reforma bem concebida. O projeto de reforma deve ser simples, seus objetivos expostos com clareza, seus benefícios, bem definidos, seus custos, calculados. Tudo isso deve fazer parte do projeto de reforma, de maneira que ela possa ser compreendida com facilidade e ganhe o apoio da opinião pública.

Existe um número crescente de escritos sobre o que está sendo chamado de democracia deliberativa. Acerca de uma comunidade política que “é governada pela deliberação pública de seus membros”. Existem partidários da democracia deliberativa, como Cohen (1989CANITROT, Adolfo (1975) “La Experiencia Populista de Redistribución de Ingresso”. Buenos Aires: Desarrollo Econômico, n” 15, outubro de 1975.: 67), cuja definição acabei de usar, ou Bohman (1998BOHMAN, James (1998) “The Coming of Age of Deliberative Democracy”. The Journal of Political Philosophy, 6(4), dezembro de 1998.), que se refere à “era vindoura da democracia deliberativa”. Existem críticos, como Przeworski (1998MELO, Marcus André (1998) “When Institutions Matter: The Politics of Administrative, Social Security, and Tax Reform in Brazil”. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1998. Paper a ser publicado em Ben Ross Schneider eBianca Heredia , orgs. (2000) The Political Economy of Administrative Reform: State Building in Developing Countries.), para quem a deliberação se transforma facilmente em manipulação, uma vez que, durante o processo, os agentes do poder fazem uso do dinheiro e de informações reservadas para persuadir os outros. Não vou discutir aqui esse ponto. Przeworski está certo quando enfatiza que as distorções no processo de deliberação costumam ser grandes. Boas leis não resultam necessariamente da deliberação pública dos cidadãos. Direi apenas que o debate público, ou o que Habermas chama de ação comunicativa, é essencial para a democracia.

O regime democrático é sempre deliberativo, no sentido de que os votos dos cidadãos nas eleições e os votos dos políticos nos parlamentos são o resultado de deliberação individual precedida pelo debate público. Se uma reforma é realmente importante, um debate nacional é necessário para garantir-lhe apoio. Ora, é quase impossível debater, no âmbito nacional, uma reforma precariamente projetada.

No Brasil, a reforma da previdência social encaminhada ao Congresso em 1995 foi um exemplo de uma reforma precariamente projetada. Essa reforma era extremamente necessária, em especial a reforma do sistema de aposentadoria do funcionalismo público, uma vez que os privilégios e os custos decorrentes são enormes. De acordo com a constituição brasileira, os funcionários públicos têm direito a uma pensão completa, correspondente ao último rendimento antes da aposentadoria, e em geral conseguem bem cedo esse benefício. Ao contrário, o sistema de aposentadoria dos trabalhadores do setor privado garante poucos privilégios, se o fizer. A reforma também é necessária, mas em menor proporção. Portanto, a coisa certa a fazer em termos políticos teria sido apresentar duas emendas constitucionais separadas. Em vez disso, apenas uma emenda foi encaminhada. Isso permitiu que uma parcela reduzida, mas poderosa de funcionários públicos conseguisse se esconder por trás da massa de trabalhadores do setor privado, que se sentiram ameaçados, embora não estivessem sendo destituídos de direitos e benefícios significativos. A ameaça foi sentida com força ainda maior, porque a reforma tinha falhas adicionais de projeto. Era complexa e obscura e muitos pontos foram deixados para regulamentação por lei ordinária. Ora, ainda que os brasileiros admitam que têm uma constituição excessivamente minuciosa, eles contraditoriamente exigem que seus direitos sejam definidos com clareza na constituição. A conseqüência foi que, apesar dos esforços do governo federal dirigidos para essa questão, apenas uma parcela reduzida do que se pretendia foi aprovada.

No caso da segunda reforma importante que o governo brasileiro se dispôs a aprovar desde as eleições de 1994 - a reforma tributária -, o problema de projeto é ainda mais sério. Até agora, o Ministério da Fazenda não conseguiu chegar a uma proposta própria. Existe um consenso de que a reforma é necessária, porém, temeroso de uma redução na carga tributária, o governo não conseguiu, internamente, chegar a uma conclusão. 8 8 A esse respeito, ver Melo (1998) e Bresser-Pereira (1999).

Um projeto de pesquisa interessante seria o exame de outras reformas institucionais na América Latina para verificar em que medida fracassaram - quando fracassaram - devido a falhas de projeto. Agora examinarei as políticas macroeconômicas, chamando a atenção para três áreas: a política da dívida externa, a política da estabilização de preços e a política da taxa de câmbio. Não abordarei as decisões referentes à taxa de juros porque são decisões de política monetária do diaa-dia, dependentes das áreas de decisão mencionadas acima.

Os países latino-americanos cometeram uma grande erro ao ficarem altamente endividados nos anos 1970 - um erro que sugeri ser o novo fato histórico que tornou a determinação de políticas macroeconômicas consideravelmente mais difícil do que era antes. No entanto, seria possível argumentar que se trata de uma velha questão. E, com efeito, é. Mas o que dizer de tantos países latino-americanos se envolvendo, nos anos 1990, em novas dívidas? A estratégia “crescimento com dívida”, a fantasia de que é possível estimular o crescimento com poupanças externas está de volta à América Latina.

Ora, é um erro grave confiar na dívida para crescer. Isso poderia ser razoável se os países já não estivessem altamente endividados e se os limites fossem rigidamente definidos. Não me esqueci da teoria econômica básica, que afirma ser válido conseguir empréstimos quando a taxa de juros é menor do que a taxa de lucros esperada. No entanto, esse tipo de raciocínio microeconômico mostra-se enganador em termos macroeconômicos. É impossível garantir que os empréstimos obtidos serão dirigidos para novos investimentos. No momento em que um país abre seus mercados financeiros para os empréstimos externos, sejam eles de médio ou de curto prazo, esse país perde o controle de como os recursos serão usados.

Existe uma condenação generalizada dos empréstimos de curto prazo - os ciclos de capital volátil, tão danosos. O endividamento de médio prazo é certamente menos nocivo do que o de curto prazo. Mas ambos são ruins. Na crise dos mercados financeiros emergentes de 1997-1998, os países que não estavam altamente endividados - e não estavam tendendo a ampliar suas dívidas devido a seus déficits de conta corrente - não foram molestados. Uma dívida é sempre uma carga sobre as gerações futuras. Se os recursos emprestados forem bem utilizados, essa carga pode ser justificada. Mas as chances de que isso possa ocorrer são pequenas, quando grandes quantidades de dinheiro são repentinamente oferecidas a um país. Isso representa uma ameaça permanente de insolvência externa. E, enquanto os recursos externos estiverem ingressando no país, a taxa cambial tenderá a diminuir, isto é, a moeda local será valorizada. Na seção seguinte, discutiremos quão pernicioso isso pode ser para um país endividado.

Em relação à inflação, seria possível argumentar que esse também é um “velho problema”, uma vez que, em sua maioria, os países latino-americanos já conseguiram controlar sua inflação. Mas incorrendo em quais custos? Veja-se o caso do Chile. Nos anos 1970, Pinochet e seus conselheiros externos de fato conseguiram controlar a inflação e estabilizar suas contas externas. O Chile foi o primeiro país latino-americano a conseguir estabilidade macroeconômica. É por isso que não podemos falar em estagnação econômica nos últimos 20 anos quando nos referimos ao Chile. Mas nos anos 1970 e no início dos anos 1980 foram cometidos sérios erros, com enormes custos. O país permaneceu estagnado em termos de renda per capita de 1973 até o final dos anos 1980. Só depois que Buchi tornou-se ministro das finanças e adotou políticas competentes é que o Chile retomou o crescimento. O Brasil defrontou-se com um problema diferente. Além de revelar a crise fiscal do Estado e o desequilíbrio externo da economia, a inflação assumiu um caráter inerciai, formalmente e informalmente indexado. Para estabilizar a economia, o ajuste fiscal era essencial e a liberalização do comércio poderia ajudar - como de fato ajudou -, mas essas duas ações não eram suficientes. Também era necessário neutralizar a inércia. Em sua maioria, os economistas brasileiros no governo e seus conselheiros locais e estrangeiros, em especial os do FMI e do Banco Mundial, conheciam pouco ou coisa alguma sobre a inflação inerciai. É razoável que, por algum tempo, eles a ignorassem. A maioria das idéias relacionadas a ela foi desenvolvida na América Latina, mas também em Israel, entre 1980 e 1984. Pode-se compreender, sem recorrer à hipótese da incompetência, que os primeiros planos de estabilização depois de 1979, quando teve início uma inflação alta (de mais de 100% por ano), não levassem em conta a nova teoria. Mas quando lembramos que só em 1994 é que o Brasil conseguiu neutralizar a inércia e controlar a inflação, e que, entre 1979 e 1994, fracassaram doze planos de estabilização, não existe alternativa exceto admitir que a incompetência estava envolvida. Apenas um ou dois desses planos fracassaram por falta de apoio político; a maioria - quase todos planos ortodoxos - fracassou por ignorância pura e simples da teoria econômica, ou por ignorância combinada ao medo e à arrogância. 9 9 Descrevi esses doze casos em Bresser-Pereira (1996).

Na Argentina, os custos envolvidos no controle da inflação foram ainda maiores. A inflação também teve um caráter inerciai, embora não tão nítido quanto no Brasil. O Plano Austral (1985) tinha um bom projeto, mas fracassou por falta de apoio político para o ajuste fiscal - as mesmas razões que acarretaram o fracasso, no Brasil, do Plano Cruzado (1986) e do Plano Bresser (1987). Nesses casos, foi confirmado o pensamento dominante sobre o tema. Mas, diferentemente do Brasil, a Argentina não teve tempo para tentar muitos outros planos de estabilização. Dada a fragilidade da economia argentina naquele momento - 1989 -, a inflação alta logo se transformou em hiperinflação. E, por dois anos, a Argentina viveu episódios de hiperinflação que desorganizaram ainda mais sua economia. Só em 1991, quando foi introduzido um currency board, é que a estabilidade de preços foi alcançada.

O Plano Cavallo foi bem-sucedido. De fato, tratava-se da única alternativa que restava à Argentina, cuja economia estava enredada por dois tormentos: a dolarização e a hiperinflação. Mas o plano tinha uma falha fundamental: começava com um peso sobrevalorizado, o que Roberto Frenkel criticou um dia depois do lançamento do plano. Ao aceitar a sobrevalorização de sua moeda para assegurar inequivocamente a estabilidade de preços, a Argentina estava reproduzindo o mesmo erro em que o México estava incorrendo naquele mesmo momento - um erro no qual o Brasil também incorreria após o Plano Real. Por alguns anos, o Plano Cavallo funcionou. Até resultou em dois anos de alto crescimento do PIB, enquanto a economia respirava após tantos anos de desordem, mas em 1994 estava claro que a conversibilidade não podia ir em frente. A Argentina estava se encaminhando para a crise na taxa de câmbio e a inadimplência. O Plano Real, ao sobrevalorizar a moeda brasileira, deu novo alento ao currency board argentino, pois a Argentina pôde compensar com um considerável superávit com o Brasil seus grandes déficits comerciais com o resto do mundo. Mas, no médio prazo, um currency board não faz sentido para uma grande economia como a da Argentina. Com a desvalorização do Real em janeiro de 1999, que está agora num regime de taxa de câmbio flutuante, a Argentina não terá outra alternativa senão desvalorizar igualmente sua moeda, permitindo que esta também flutue.

A TAXA CAMBIAL

Mário Henrique Simonsen costumava dizer que se a inflação aleija, a taxa de câmbio mata. Não existe erro mais grave para um país em desenvolvimento e altamente endividado do que uma moeda sobrevalorizada. Não obstante, os países latino-americanos incorrem repetidas vezes nesse erro. Por que a sobrevalorização é uma trapalhada tão grande? E por que é um fenômeno tão persistente?

A taxa de câmbio é o preço mais importante em uma economia. É ainda mais importante para uma economia altamente endividada, visto que fará aumentar uma dívida que já é demasiado alta. Com freqüência se supõe que uma taxa de câmbio em equilíbrio é aquela que equilibra as contas comerciais. Não é assim. Se o país puder contar com algum investimento direto, isso será consistente com um déficit razoável na conta corrente - um déficit menor do que o afluxo de investimentos diretos, de modo que, além de pagar os juros, o país possa gradualmente pagar o principal. Desse modo, seria possível dizer que um país altamente endividado, situação da maioria dos países latino-americanos, deve ter uma moeda “subvalorizada” - uma taxa de câmbio que gera um superávit nas contas externas. Na dúvida, os países devedores devem sempre optar por ter sua moeda subvalorizada. Como contrapartida, os países credores devem ter moedas “sobrevalorizadas”, ou seja, um déficit nas contas externas e na conta corrente, de tal modo que os países devedores possam pagar, pouco a pouco, o principal.

O pessoal financeiro dos países credores não gosta de ouvir que os países devedores deveriam começar a pagar o principal. O que eles fariam com o excedente de capital que precisam aplicar? O mesmo é verdade para os políticos e as autoridades nos países em desenvolvimento. Por que eles teriam de pagar uma dívida contraída anteriormente? Por que deveriam reduzir a taxa de crescimento - ou, mais simplesmente, o nível de consumo - para resolver um problema que outros criaram? É provavelmente por isso que não costumamos ouvir com freqüência esse tipo de argumento. Em vez da frase: “na dúvida, tenha uma moeda sobrevalorizada”, há uma máxima muito mais popular tanto entre credores quanto devedores: “não se deve pagar a dívida, deve-se fazer a rolagem da dívida”.

Os economistas nos bancos comerciais internacionais e também no FMI e no Banco Mundial preferem falar dos perigos da dívida interna a discutir a dívida externa. Mas o fato é que, quando um país vai à bancarrota, é sempre porque, depois de uma empreitada irresponsável de empréstimos solicitados e empréstimos concedidos, os credores internacionais repentinamente suspendem o crédito. E como um país, diferentemente de uma empresa, não pode levar a falência até o fim e fechar, uma vez que a população e o território estão sempre all, o país está sempre “aberto para negócio”. Ora, o “negócio” subseqüente de um país que incorreu em insolvência externa não será apenas um aumento nos prêmios de risco, e sim anos e anos seguidos de estagnação econômica.

Antes disso, a entrada de dinheiro estrangeiro vai conservar sobrevalorizada a moeda local, a inflação diminuirá e os salários subirão. Usando o crédito fácil, os governos aumentarão os gastos estatais - ou vão cortá-los menos do que deveriam. O clássico ciclo populista será reproduzido. O dano vai depender do grau de sobrevalorização da moeda e do tamanho relativo do déficit orçamentário interno. 10 10 Em relação ao ciclo populista, ver os trabalhos clássicos de Canitrot (1975) e Sachs (1989). Eu editei no Brasil um livro sobre o tema. Logo, os projetos, que se imaginava fossem financiar projetos de investimento com uma taxa de retorno superior à taxa de juros sendo paga (apesar do pagamento de grandes prêmios de risco), passam a financiar o consumo. E a dívida vai se acumulando. A crise é apenas uma questão de tempo.

Nos anos 1970, a razão por trás das moedas sobrevalorizadas era a antecipação de taxas de crescimento mais altas, resultantes dos investimentos financiados pela dívida. Os resultados são bem conhecidos. Nos anos 1990, apareceu uma nova razão: garantir a estabilização de preços conseguida a duras penas. Desse modo, no México, na Argentina e finalmente no Brasil, a sobrevalorização da moeda foi o resultado imediato da estabilização dos preços - um resultado que muitos preferiram considerar uma ferramenta. O controle da inflação viria de uma “âncora da taxa de câmbio”. De fato, na Argentina, em 1991, a taxa de câmbio era a âncora. Mas no México, em 1987, o congelamento de preços e salários, neutralizando parcialmente a inércia, e o pacto social alcançado com os trabalhadores mostraramse cruciais. E no Brasil a URV, neutralizando plenamente a inércia, foi a variável significativa para se alcançar a estabilização dos preços.

No entanto, uma vez alcançada a estabilização, e depois de um certo período de tempo - alguns meses, um ano, talvez - seria razoável esperar que a taxa de câmbio chegasse a um equilíbrio. Mas isso não aconteceu. Por quê? Porque, quase sem perceber, os países latino-americanos logo retornaram aos anos 1970. A dívida é, mais uma vez, uma ferramenta para o crescimento. O discurso da comunidade financeira internacional para o país que acabou de estabilizar os preços é claro: “comporte-se bem, controle o orçamento e faça as reformas, que nós financiaremos seu crescimento”. Para as elites dos países em desenvolvimento, trata-se de um discurso maravilhoso. O fato, para repetir a frase de Barbosa Lima, de que “ocapital é feito em casa”, de que os países não podem se basear nas poupanças externas para desenvolver suas economias nacionais, de que os países geralmente financiam mais de 95% de sua acumulação de capital a partir de suas próprias poupanças logo foi esquecido.11 11 Por exemplo, segundo Martin Feldstein (1995), que atualizou um estudo sobre como os investimentos eram financiados nos países da OCDE, a correlação entre poupanças brutas e investimentos brutos no período 1970-72 é quase perfeita: se um país poupa pouco, ele vai investir pouco. Nesse estudo, o Japão aparece no topo da lista: poupa 34 e investe internamente 32% do PIB; os Estados Unidos aparecem na base: poupam 18 e investem 19% do PIB. Os outros países estão devidamente distribuídos entre os dois extremos, mantendo a estreita correlação de poupanças e investimentos. E estamos de volta a nossos males gêmeos: dívida crescente e sobrevalorização da taxa de câmbio.

Quando um país tem uma economia sobrevalorizada e a comunidade financeira tem consciência do fato, além dos custos relacionados ao consumo e ao endividamento acrescidos, existe outro custo terrível: a perda de crescimento potencial. Os mercados financeiros imediatamente acrescentam um “risco de taxa cambial” à taxa de juros a ser paga pelo país - um risco de taxa de câmbio que é somado ao “risco do país” existente. A taxa de juros sobe vertiginosamente. Isso, do lado da oferta de recursos para empréstimos: a rolagem dos empréstimos só prosseguirá se as taxas de juros pagarem esses prémios. No lado da demanda, as autoridades locais vêem-se obrigadas a manter elevada a taxa de juros por outra razão: elas devem manter sob controle a demanda agregada - e, portanto, também as importações -, para evitar déficits crescentes de conta corrente e uma nova perda de credibilidade internacional. Altas taxas de juros significam taxas de investimentos mais baixas e, perda de crescimento potencial.

O que os economistas no governo e os seus conselheiros dizem sobre tudo isso? Para responder a essa pergunta, vamos examinar, por exemplo, o que aconteceu com o Brasil entre o segundo semestre de 1994 e a crise russa, em setembro de 1998. Quase todos os economistas disseram que o aumento de produtividade resolveria o problema; ou que bastaria para isso o ajuste fiscal. A teoria econômica é um campo aberto para o debate, mas afirmações como essa não são uma questão para debate: elas demonstram ignorância econômica. Os proponentes do argumento do aumento de produtividade esqueceram que outros países também aumentam sua produtividade, sem que se tenha controle quanto a isso. Os proponentes do ajuste fiscal esqueceram que o ajuste fiscal só pode resultar em desvalorização se for tão drástico que provoque deflação. Com a deflação, os preços dos bens non-tradable, em especial os salários, são reduzidos em relação aos bens tradable, realizando, portanto, uma desvalorização real. Ora, essa não é uma forma racional de desvalorizar. Além da inevitável redução de salários, ela produz desemprego generalizado.12 12 Neste período, minhas responsabilidades oficiais tornavam impossível que cu expusesse publicamente minhas opiniões. Mas, ainda assim, consegui apresentar esses argumentos num breve paper que não fazia referência explícita ao Brasil (Bresser-Pereira, 1997). Foi só depois da crise russa, cerca de três anos depois do momento em que o Real deveria ter sido desvalorizado, que a maioria dos economistas compreendeu que era necessária uma desvalorização.13 13 O momento ideal para desvalorizar o Real foi outubro de 1995. Naquele momento a economia já estava totalmente desindexada e, em resposta à crise mexicana, urna rígida política monetária e uma severa política fiscal haviam reduzido a demanda. A decisão foi tomada alguns meses mais tarde, em janeiro de 1999, mas os enormes custos em termos de perda de crescimento potencial e endividamento acrescido já tinham ocorrido e não poderiam ser recuperados.

RAZÕES POR TRÁS DOS ERROS

Houve erros de política, isto é, políticas ou projetos de reforma inadequados, adotados devido à incompetência ou avaliação incorreta. Políticas similares podem ter sido adotadas por motivos racionais, em resposta ao interesse próprio, às demandas dos grupos de pressão. Não estou descartando a importância dos interesses. Estou dizendo, apenas, que não existe só uma razão - interesses - porém duas razões - interesses e incompetência - por trás de uma decisão errada de política, uma decisão que produz resultados nocivos. Em ambos os casos, temos políticas equivocadas, mas se a razão por trás delas é a pressão dos grupos de interesses ou o populismo, não se pode dizer que foram fruto de erros. No segundo caso, porém, o erro, a avaliação errónea, é a variável relevante. Em muitos casos as duas causas podem vir juntas. Mas o ponto que pretendo realçar é que, em relação às políticas nocivas que acabamos de examinar, a principal razão pela qual foram adotadas foi a incompetência. Em alguns casos as políticas foram rigorosas, impondo sacrifícios à população e às elites. Desse modo, não resultaram do populismo ou da ação dos grupos de pressão. Foram conseqüência da ignorância, ou do medo, ou da arrogância, ou de uma mistura de tudo isso.

Os técnicos apolíticos ou tecnoburocratas mesclaram a ignorância das complexidades da teoria econômica, ou a aplicação mecânica, sem mediações, da teoria econômica abstrata aos problemas econômicos latino-americanos. Ao dizer isso, não estou retornando ao velho argumento de que a teoria econômica não é pertinente para os países em desenvolvimento. Ela é pertinente, assim como é relevante para os países desenvolvidos. Mas, num caso e no outro, a teoria é pertinente desde que não seja aplicada automaticamente, não seja transformada numa série de clichês, mas seja definida e implementada de maneira competente. Alec Cairncross, respeitado economista que passou boa parte de sua vida em postos governamentais, enfatiza a disparidade existente entre teoria e prática - uma lacuna que, acrescento, torna os erros inevitáveis. Em suas palavras: “Os especialistas em teoria econômica não chegam às mesmas conclusões sobre questões controvertidas... uma ampla disparidade existe necessariamente entre as idéias corporificadas na teoria econômica e as questões às quais a política precisa dar atenção” (1996: 256).

Além da ignorância, do medo e da arrogância, existe um segundo argumento para explicar esses erros ou essa incompetência de políticas: “a construção da confiança” (confidence building}. Neste caso, estamos em uma área entre o interesse próprio e a incompetência. As elites latino-americanas são elites subordinadas. Elas não se limitam a ver os Estados Unidos e, de modo geral, os países desenvolvidos como nações mais ricas e mais poderosas, cujas instituições políticas e cujo desenvolvimento científico e tecnológico deveriam ser imitados. Não, elas vêem as elites nos países desenvolvidos como a fonte da verdade e como líderes naturais a serem seguidos. Essa ideologia internacionalista subordinada, que já foi chamada de “complexo de inferioridade colonial” e “entreguismo”, é tão prejudicial para o país quanto o velho nacionalismo. Com a industrialização da América Latina e a emergência de uma nova elite local, depois da década de 1930, alguns previram que essa subserviência ideológica iria diminuir. Com efeito, por algum tempo, foi possível perceber sinais de uma nova atitude nos governos e nas elites da América Latina. Mas desde que os países ficaram altamente endividados e suas economias vieram a depender mais estreitamente do crédito dos mercados financeiros, o internacionalismo subordinado voltou às antigas posições. E agora tinha por trás dele um “sólido” argumento de teoria econômica. Como afirmam os mercados financeiros internacionais e a tendência dominante da teoria econômica, a política econômica deve ser dotada de “credibilidade”. Existe uma ampla literatura a esse respeito.

De acordo com os mercados financeiros internacionais e com a teoria econômica dominante, as políticas econômicas devem estar imbuídas de credibilidade. Muitos autores escreveram sobre isso. Em termos macroeconômicos estritos, uma administração tem credibilidade quando decide que seguirá determinada política, e a segue. Mas, na esfera política, a credibilidade é identificada com crédito e confiança. Assim, uma política terá “credibilidade” se as autoridades econômicas em Washington e os mercados financeiros internacionais acreditarem que ela é consistente e adequada. Se um determinado país é visto como comprometido com estabilidade econômica, ele é capaz de construir confiança e não será desacreditado.

Desse modo, Washington e Nova York são vistas como a fonte da verdade suprema na política macroeconômica, porque os países em desenvolvimento precisam de credibilidade e crédito. Posso estar me envolvendo com alguma simplificação caricatural, mas ela não está distante da realidade. A partir desse pressuposto e da “estratégia” correspondente, abriu-se um novo espaço para uma nova forma de subordinação, a qual agora assume o nome de “construção da confiança” ou “jogo da construção da confiança”. A idéia é seguir todas as recomendações ou diretivas provenientes de Washington (o ponto de vista oficial) e Nova York (o ponto de vista dos mercados financeiros) para construir a confiança. Mas essas recomendações ou diretivas são fontes de erros em políticas econômicas.

O México de Salinas foi o primeiro país latino-americano a seguir coerentemente essa estratégia. Em agosto de 1989, assinou de maneira irresponsável os termos de um acordo de dívida com bancos comerciais, apenas seis meses depois de o Plano Brady ser anunciado. A redução da dívida era insignificante mas, como foi sustentado na ocasião, o acordo “construía confiança” e reduzia as taxas de juros pagos pelo México. Daquele momento até o crash de dezembro de 1994, o governo Salinas dedicou-se totalmente à construção da confiança, não raro às expensas do interesse nacional e/ou dos princípios básicos macroeconômicos. O apressado acordo da dívida era claramente contrário ao interesse nacional do México. A política de taxa cambial fixa contrariava os fundamentos da macroeconomia. Embora os mercados financeiros não compreendessem a sobrevalorização crescente, sua confiança na economia mexicana simplesmente cresceu com o peso “forte”. Depois disso, em outros países latino-americanos, essa prática construtora da confiança foi repetida numerosas vezes. Não estou dizendo com isso que seja ruim construir confiança nos mercados internacionais. Nem estou dizendo que a visão deles esteja sempre errada, e muito menos que os interesses nacionais dos países em desenvolvimento e dos países desenvolvidos estejam sempre em conflito. Acredito exatamente no contrário disso.

A avaliação dos analistas estrangeiros sobre os problemas macroeconômicos na América Latina é normalmente adequada. Por outros lado, os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento têm cada vez mais interesses mútuos. Mas afirmo que às vezes os interesses nacionais entram em conflito, e que com freqüência economistas e financistas em Washington e Nova York simplesmente estão errados em questões estratégicas, como acabamos de verificar. Supõe-se que as elites latino-americanas - particularmente seus políticos e economistas - devam pensar com suas próprias cabeças, uma vez que é delas a responsabilidade pelo que acontece em seus países. Em cada país da América Latina já existe capacidade de pensamento local a ser usada. Não existe motivo para confiar em analistas estrangeiros que conhecem pouco sobre cada economia e não estão realmente comprometidos com os países que eles pesquisam ou aconselham.14 14 Por exemplo, escrevendo sobre a Rússia, Fareed Zakaria (1999) sustenta que, embora caiba à Rússia a maior parte da responsabilidade por sua crise, “a orientação fornecida por milhares de conselheiros com bilhões de dólares e ajuda de acompanhamento se revelou incompleta, ineficaz ou contraproducente, dependendo de qual analista era aceito”. Embora o caso russo seja extremo, na América Latina o papel de conselheiro não foi essencialmente diverso. Construir confiança é conveniente, se não necessário. Mas os governos da América Latina devem em princípio fazer isso em seus próprios termos, em vez de simplesmente perguntar o que os países ricos pensam que eles deveriam fazer. Essa não é apenas uma forma absurda de subordinação nacional. É também uma generalização equivocada sobre o que pensam, nos países desenvolvidos, os economistas, cujos pontos de vista são muito mais variados e complexos do que imaginam os mercados financeiros e os construtores da confiança.15 15 Paul Krugman, por exemplo, pertence à elite norte-americana, mas não pode ser confundido com as idéias que os construtores da confiança na América Latina aceitam sem discussão. Escrevendo sobre a crise financeira de 1997-98 nos países emergentes, Krugman (1998) deu a seu artigo o título de “jogo da confiança”. Trata-se precisamente da mesma coisa que há alguns anos eu venho chamando de “construção da confiança”. Ele critica de início as políticas econômicas aconselhadas por organizações multilaterais e instituições financeiras — políticas que contradizem a boa e simples teoria econômica. E conclui em seguida: “Durante os últimos quatro anos, sete países — México, Argentina, Tailândia, Coréia do Sul, Indonésia, Malásia e Hong Kong — sofreram severas recessões econômicas, piores do que qualquer coisa que os Estados Unidos tenham visto desde os anos 1930, essencialmente porque jogar o jogo da confiança os lançou em políticas macroeconômicas que agravaram as crises em vez de reduzi-las. Agora parece extremamente provável que o Brasil seja forçado a seguir o mesmo caminho e que boa parte do resto da América Latina o acompanhará. Esse é um registro verdadeiramente desencorajador, até mesmo trágico”.

UMA CONCLUSÃO METODOLÓGICA

Todavia, seria possível argumentar que essa não é uma explicação “bem comportada”: enfatizar a incompetência e relacioná-la à ignorância, medo e arrogância. Em vez disso, aceitando-se, sem discussão, que foram tomadas decisões erróneas, não seria mais adequado recorrer à análise convencional da escolha racional? Em vez de dizer que as pessoas são incompetentes, não seria mais razoável perguntar quais foram os incentivos e as punições que conduziram às decisões erradas? Ou, em linhas mais gerais, segundo o modo tradicional de pensar de todas as ciências sociais, não seria mais aceitável dizer que os grupos de interesses, as classes sociais ou a demanda popular pressionaram no sentido de decisões mal fundamentadas? Sem dúvida, eu poderia ter adotado essa alternativa. Ela é segura. Mas eu não estaria acrescentando coisa alguma à compreensão do que aconteceu na América Latina. Primeiro, é preciso lembrar que existem bons e maus governos. Desse modo, existem decisões certas e erradas. Os bons governos são aqueles que contam com políticos e burocratas que tomam decisões certas na maioria dos casos, assim como os bons estados são aqueles que se baseiam em instituições que ajudam os líderes governamentais a tomar decisões de investimento mais seguras nos setores público e privado. A história de um país é geralmente a história de como bons governos impulsionaram o país para adiante, e de como os maus governos o arrastaram para trás. Quando estudamos História, podemos dizer que aquele país, naquele determinado período, alcançou a paz e a prosperidade porque era bem governado, enquanto outros fracassaram devido à falta de um bom governo.

Sabemos muito bem que, com freqüência, a inflação não foi controlada porque esses ou aqueles grupos de interesses perderiam com a estabilidade macroeconômica, ou se ressentiriam com as políticas austeras necessárias para alcançá-la. Mas quando chegamos à inflação alta e quase todos estão tendo graves perdas devido a ela, esse tipo de argumentação perde uma boa parte de seu poder explicativo.

Afirmei no presente trabalho que a estratégia de usar poupanças externas para crescer interessa tanto a credores quanto a devedores. Que, no curto prazo, uma moeda sobrevalorizada é maravilhosa para todos. Portanto, seria possível dizer que existem razões racionais por trás das decisões equivocadas de política. Mas, então, será que eu deveria concluir que as autoridades que tomam as decisões erradas não eram incompetentes e sim desonestas, protegendo seus próprios interesses ou os dos seus representados, em vez do interesse público? Em alguns casos eu poderia aceitar que isso é verdade. Mas se fizermos uma análise mais cuidadosa, essa concepção, apesar de seu prestígio acadêmico, é mais chocante do que minha hipótese da incompetência. E, provavelmente, dotada de menor poder explicativo.

Minha hipótese será particularmente útil para se entender a quase estagnação que a América Latina sofreu nos últimos 20 anos, caso as decisões políticas erradas e os projetos equivocados de reforma não tenham dependido de votos no Congresso - e a maioria deles não dependeu. Ou, no caso em que exigiram uma decisão parlamentar, se a maioria necessária não era demasiado grande.16 16 Requer-se uma maioria demasiado grande, no Brasil, por exemplo, para reformar a Constituição: três quintos. A maioria das decisões erradas de política macroeconômica e todos os projetos imperfeitos de reformas aos quais fiz referência no presente trabalho não dependeram de voto no parlamento. Em muitos casos, o apoio popular prévio não foi necessário, e os grupos de interesses estavam divididos ou simplesmente não se envolveram. Se as decisões foram erradas, ineptas, a única explicação é a incompetência.

Mas o questionamento poderia prosseguir: por que, na afirmação de várias políticas cruciais, as autoridades foram incompetentes ou mal orientadas? Porque era demasiado difícil lidar com os novos problemas, particularmente com a ameaça da dívida elevada. Porque, sendo ideologicamente subordinadas, as autoridades abriram mão de seu próprio raciocínio e recorreram à construção da confiança. Porque a ausência de boas instituições não facilitou sua tarefa - instituições essas que, na América Latina, jamais foram implantadas. Porque decisões corretas exigem coragem não apenas para assumir as conseqüências - esse é um problema de escolha racional - mas, também, coragem para pensar por si mesmo, e exigem a humildade que permite escutar e aprender com os erros. Ora, no governo, entre os funcionários, o medo e a arrogância são emoções amplamente difundidas. Essas são respostas não definitivas, pois explicar por que as pessoas são incompetentes ou competentes é quase tão difícil quanto perguntar por que elas em geral são egoístas mas, por vezes, mostram-se generosas.

Críticas provenientes de uma perspectiva metodológica diferente poderiam questionar se não seria mais razoável explicar a crise com argumentos estruturais ou históricos. Por exemplo, a crise do estado, a crise da dívida, a globalização. Bem, eu fiz isso. O método é eficaz para explicar por que a crise se manifestou, mas limitado em informar por que os governos, durante tantos anos, não conseguiram superá-la. Ainda podemos perguntar se não estamos ignorando o processo de aprendizado. Respondo: não, não estamos. Economistas latino-americanos ou que aconselharam países da América Latina finalmente aprenderam a controlar a inflação inerciai. Eles sabem hoje, mais do que sabiam antes, que os custos de uma moeda sobrevalorizada só são sustentados através de elevadas taxas de juros. Quiçá um dia eles saberão dos perigos envolvidos em crescer através de uma estratégia de endividamento. A questão, entretanto, com a política macroeconômica, é que novos problemas estão surgindo, demandando novas soluções. Esses problemas são menos dramáticos que aqueles enfrentados pelos países latino-americanos nos últimos 20 anos. É o caso dos países desenvolvidos, onde a estabilidade macroeconômica prevalece há muitos anos. Isso não que dizer que os policy makers desses países estão isentos de cometer erros. Apenas seus erros são menos graves, menos evidentes, mas eles existem.

Em resumo, o fracasso em estabilizar e retomar o crescimento econômico após a crise da dívida na América Latina foi atribuído à determinação incompetente de políticas macroeconômicas e a uma estratégia de “construção da confiança” que subordina a política às instituições oficiais internacionais e à comunidade financeira. A crise se manifestou como uma crise do Estado - o Estado desenvolvimentista latino-americano. Reformas e políticas macroeconômicas de curto prazo não conseguiram restaurar a estabilidade e o crescimento, menos por não terem sido implementadas ou por serem excessivas, e mais por serem imperfeitas. E elas eram assim não tanto devido às pressões dos grupos de interesses - embora essas também fossem importantes - mas, fundamentalmente, por terem sido marcadas por sérios erros de política, por serem incompetentes, o resultado de uma avaliação falsa. A incompetência e os erros na América Latina foram ampliados ou tornados ainda mais freqüentes devido a dois novos fatos históricos. Um deles é específico da América Latina: a dívida externa acumulada nos anos 1970 e a conseqüente insolvência internacional relativa, que tornou a tomada de decisões políticas mais difícil de projetar e de implementar. O outro já tem um alcance mais amplo: o fato de que a política macroeconômica é historicamente recente, um fenómeno de 50 anos. Antes disso, as decisões de políticas podiam ser vistas como relativamente irrelevantes, cujos erros compensavam as opções corretas, e nenhum deles tendo muito impacto na economia. Não é mais assim. Com o crescimento do Estado neste século e a emergência da política macroeconômica e, mais recentemente, da estratégia da reforma institucional, as decisões não podem mais ser ignoradas, e bons e maus governos interessam, sim.

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • ZAKARIA, Fareed (1999) “The Effort to Fix Russia Was Botched”. Herald Tribune, 21 de setembro de 1999.
  • 1
    Em muitos trabalhos anteriores, eu defini a crise da América Latina e do Brasil como uma crise do Estado — como uma crise fiscal, uma crise do modo de intervenção do Estado e uma crise da forma burocrática pela qual ele é administrado. Aqui só faço referência à definição no livro escrito juntamente com Maravall e Przeworski (Bresser-Pereira, 1993BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1993) “Economic Reforms and Economic Growth: Efficiency and Politics in Latin America”. Capítulo 1 de Luiz Carlos Bresser Pereira, José Maria Maravall e Adam Przeworski (1993) Economic Reforms in New Democracies. Cambridge: Cambridge University Press.).
  • 2
    Em outros escritos, defini o Estado do século XX como o “Estado social-burocrático”, que assumiu três formas básicas: o “Estado do bem-estar social” entre os países desenvolvidos, particularmente os países europeus; o “Estado desenvolvimentista” nos países em desenvolvimento, particularmente os latino-americanos; e o “Estado comunista” ou “Estado do tipo soviético”.
  • 3
    Dez anos mais tarde, em 1990, o Plano Brady não solucionou a crise da dívida; ele simplesmente permitiu que o débito fosse reestruturado. Ao fazê-lo, abriu espaço para uma nova onda de empréstimos internacionais e para o conceito de “mercados emergentes”.
  • 4
    Ver Gwartney e Lawnson (1999GWARTNEY, James e Robert LAWNSON (1999) Economic Freedom of the World 1998/1999- Interim Report. Washington: Free the World e The Fraser Institute.) e www.freetheworld.com. A organização usa 53 instituições de todo o mundo para elaborar seu The Economic Freedom Network Index. No Brasil, onde uma instituição praticamente desconhecida está em ação, o índice de liberdade em 1997 foi 5.5 (numa escala de O a 10), em um total de 119 países pesquisados...
  • 5
    Segundo Rodrik (1999RODRIK, Dani (1999) The New Global Economy and Developing Countries: Making Openness Work. Washington: Overseas Development Council, e Baltimore: John Hopkins University Press.: 1): “As reivindicações feitas pelos partidários entusiastas da integração econômica internacional com freqüência são exageradas ou absolutamente falsas... As evidências baseadas na experiência das últimas duas décadas são bem claras: os países que cresceram mais rapidamente desde meados dos anos 1970 são aqueles que investiram uma alta parcela do PIB e conservaram a estabilidade macroeconômica”.
  • 6
    No Brasil, por exemplo, a dívida pública interna, que esteve em torno de 2’¼, do PIB da década de 1940 à de 1960, elevou-se a cerca de 6% do PIB na década de 1970, 15% na década de 1980 e 30% na de 1990. Com freqüência, nos últimos períodos, a dívida interna aumentou com a dívida externa: dada a entrada de moeda estrangeira, o governo local a adquiria, em princípio para esterilizá-la e, com isso, controlar a oferta monetária; na verdade, corno urna forma fácil de financiar déficits orçamentários.
  • 7
    Todavia, deve-se dizer que hoje, no caso do Brasil, onde os doutoramentos locais em economia e ciência política estão solidamente estabelecidos, vejo com mais simpatia os estágios de curto prazo (um ano) em universidades estrangeiras do que os programas completos de PhD.
  • 8
    A esse respeito, ver Melo (1998MELO, Marcus André (1998) “When Institutions Matter: The Politics of Administrative, Social Security, and Tax Reform in Brazil”. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1998. Paper a ser publicado em Ben Ross Schneider eBianca Heredia , orgs. (2000) The Political Economy of Administrative Reform: State Building in Developing Countries.) e Bresser-Pereira (1999BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1999) “Reflections on Changing Institutions in a Democratic State”. Paper a ser publicado em Ben Ross Schneider e Bianca Heredia, ed. (2000) The Political Economy of Administrative Reform: State Building in Developing Countries.).
  • 9
    Descrevi esses doze casos em Bresser-Pereira (1996BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1996) Economic Crisis and State Reform in Brazil. Boulder, Co: Lynne Rienner Publishers.).
  • 10
    Em relação ao ciclo populista, ver os trabalhos clássicos de Canitrot (1975CANITROT, Adolfo (1975) “La Experiencia Populista de Redistribución de Ingresso”. Buenos Aires: Desarrollo Econômico, n” 15, outubro de 1975.) e Sachs (1989SACHS, Jeffrey D. (1989) “Social Conflict and Populist Policies in Latin America”. In R. Brunetta e C. Dell-Arringa, ed. (1989) Labor Relations and Economic Performance. Londres: Macmillan Press.). Eu editei no Brasil um livro sobre o tema.
  • 11
    Por exemplo, segundo Martin Feldstein (1995FELDSTEIN, Martin (1995) “Global Capital Flows: Too Little, Not Too Much”. The Economist, 30 de junho de 1995.), que atualizou um estudo sobre como os investimentos eram financiados nos países da OCDE, a correlação entre poupanças brutas e investimentos brutos no período 1970-72 é quase perfeita: se um país poupa pouco, ele vai investir pouco. Nesse estudo, o Japão aparece no topo da lista: poupa 34 e investe internamente 32% do PIB; os Estados Unidos aparecem na base: poupam 18 e investem 19% do PIB. Os outros países estão devidamente distribuídos entre os dois extremos, mantendo a estreita correlação de poupanças e investimentos.
  • 12
    Neste período, minhas responsabilidades oficiais tornavam impossível que cu expusesse publicamente minhas opiniões. Mas, ainda assim, consegui apresentar esses argumentos num breve paper que não fazia referência explícita ao Brasil (Bresser-Pereira, 1997BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1997) “As Três Formas de Desvalorização Cambial”. Revista de Economia Política 17(1), janeiro de 1997.).
  • 13
    O momento ideal para desvalorizar o Real foi outubro de 1995. Naquele momento a economia já estava totalmente desindexada e, em resposta à crise mexicana, urna rígida política monetária e uma severa política fiscal haviam reduzido a demanda.
  • 14
    Por exemplo, escrevendo sobre a Rússia, Fareed Zakaria (1999ZAKARIA, Fareed (1999) “The Effort to Fix Russia Was Botched”. Herald Tribune, 21 de setembro de 1999.) sustenta que, embora caiba à Rússia a maior parte da responsabilidade por sua crise, “a orientação fornecida por milhares de conselheiros com bilhões de dólares e ajuda de acompanhamento se revelou incompleta, ineficaz ou contraproducente, dependendo de qual analista era aceito”. Embora o caso russo seja extremo, na América Latina o papel de conselheiro não foi essencialmente diverso.
  • 15
    Paul Krugman, por exemplo, pertence à elite norte-americana, mas não pode ser confundido com as idéias que os construtores da confiança na América Latina aceitam sem discussão. Escrevendo sobre a crise financeira de 1997-98 nos países emergentes, Krugman (1998KRUGMAN, Paul (1998) “The Confidence Game”. The New Republic, setembro de 1998.) deu a seu artigo o título de “jogo da confiança”. Trata-se precisamente da mesma coisa que há alguns anos eu venho chamando de “construção da confiança”. Ele critica de início as políticas econômicas aconselhadas por organizações multilaterais e instituições financeiras — políticas que contradizem a boa e simples teoria econômica. E conclui em seguida: “Durante os últimos quatro anos, sete países — México, Argentina, Tailândia, Coréia do Sul, Indonésia, Malásia e Hong Kong — sofreram severas recessões econômicas, piores do que qualquer coisa que os Estados Unidos tenham visto desde os anos 1930, essencialmente porque jogar o jogo da confiança os lançou em políticas macroeconômicas que agravaram as crises em vez de reduzi-las. Agora parece extremamente provável que o Brasil seja forçado a seguir o mesmo caminho e que boa parte do resto da América Latina o acompanhará. Esse é um registro verdadeiramente desencorajador, até mesmo trágico”.
  • 16
    Requer-se uma maioria demasiado grande, no Brasil, por exemplo, para reformar a Constituição: três quintos.
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    Meus agradecimentos a Laurence Whitehead, John E. Roemer, Rodrigo Bresser Pereira e, particularmente, a Adam Przeworski por seus comentários e sugestões.
  • JEL Classification: O1; O5; R1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2001
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