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A retórica da austeridade

The rhetoric of austerity

Resumo

Sob a influência da contribuição de Deidre N. McCloskey no campo da Metodologia da Economia, o presente artigo tem como objetivo explorar a retórica empregada no campo da economia fiscal, especificamente no contexto de consolidação fiscal. O texto desvenda alguns “mitos” da austeridade e indaga o componente moral latente na atual agenda de política econômica brasileira.

Palavras-chave:
Metodologia da economia; retórica; austeridade fiscal; política eco­nômica.

Abstract

Under the influence of Deidre N. McCloskey’s contribution in the field of Economic Methodology, this article aims to explore the rhetoric employed in the field of fiscal economics, specifically in the context of fiscal consolidation. The text unveils some “myths” of austerity and inquiries about the latent moral component in the current Brazilian economic policy agenda.

Keywords:
Economic methodology; rhetoric; fiscal austerity; economic policy.

INTRODUÇÃO

Em meados da década de 1980, Deidre N. McCloskey escreve A Retórica da Economia no intuito de mostrar que a comunidade científica, ao contrário do que definia Karl Popper, faz uso da argumentação e persuasão das palavras para divulgar seus descobrimentos. Para entender os economistas, portanto, seria preciso dar à contextualização da retórica, enquanto discurso persuasivo, o lugar até então destinado exclusivamente à metodologia científica.

“Se economistas (ou físicos) se limitassem a proposições econômicas (ou físicas) que literalmente se conformavam às etapas da metodologia modernista, não teriam nada a dizer. O ceticismo cartesiano ou humiano é um padrão de crença muito corrosivo para um cientista humano real, como Descartes e Hume sabiam.” (McCloskey, 1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition), p. 151)

McCloskey (1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition)) conclui que o modernismo promete conhecimento livre de dúvidas, livre de metafísica, moral e convicção pessoal, mas que, assim, não pode cumprir o que promete. Ao contrário, o que é capaz de oferecer, ressalta a autora, é o que chama de “metodologia científica”, repleta de metafísica, moral e convicções pessoais dos cientistas. Assim, o conhecimento científico não seria muito diferente de outros conhecimentos e a aplicação literal da metodologia modernista não poderia dar uma economia útil, conclui.

Para além da ciência econômica, Bronowski (2011BRONOWSKI, Jacob. 2011. Science and Human Values. Rev. ed. New York: Faber & Faber.) observa que o cientista precisa “da exploração de semelhanças, e [...] o símbolo e a metáfora são necessá­rios para a ciência assim como para a poesia”. De acordo com McCloskey (1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition)), até positivistas e operacionalistas estariam apegados à metáfora - a metáfora da “objetividade”, por exemplo. Rorty (1979) propõe: “São imagens antes que proposições, metáforas em vez de declarações, que determinam a maioria de nossas crenças filosóficas”.

Metáfora é uma figura de linguagem que, para fins elucidativos, permuta palavras em que se é possível verificar comparações implícitas e tem, assim, a conotação de transportar o sentido literal de uma palavra ou frase, dando-lhe um sentido figurado. As metáforas nos permitem usar nossas estruturas esquemáticas de conhecimento para pensar de maneira mais eficiente e produtiva (Thibodeu e Flusberg, 2016).

“The more austere the subject the more fanciful the language”, escreve McCloskey (1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition)); isso captura uma das principais funções conceituais da metáfora: ao descrever algo novo, complexo ou abstrato (a exemplo, o orçamento federal), empregam-se termos mais familiares e concretos (orçamento doméstico). Essa prática é ainda mais recorrente no discurso político, em que se desenvolvem metáforas específicas na tentativa de influenciar as atitudes dos eleitores em relação a questões econômicas, como o caso da comparação feita anteriormente sobre o orçamento do governo e o doméstic. (Charteris-Black, 2005CHARTERIS-BLACK, Jonathan. Persuasion, legitimacy and leadership. In: Politicians and rhetoric. Palgrave Macmillan, London, 2005. p. 1-31.; Lakoff, 2004LAKOFF, G. (2004). Don’t Think of an Elephant! know your values and frame the debate: The essential guide for progressives. White River Junction, VT: Chelsea Green Publishing., 2008LAKOFF, G. (2008). The political mind: Why you can’t understand 21st-century politics with an 18th-century brain. New York: Penguin.).

Diferentemente de pesquisadores de outros campos, pontua McCloskey (1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition)), os economistas carecem de perspicácia e muitas vezes enxergam as metáforas como literais, ultrapassando os limites do que teria o objetivo meramente ornamental do emprego das palavras.

O presente artigo propõe analisar o uso da retórica, especialmente o emprego de metáforas, no campo da economia fiscal e apresentar os argumentos contrários que invalidam tais comparações, bem como o uso do apelo moral no âmbito do discurso da austeridade fiscal. Esse tema se mostra ainda mais atual no momento em que se atravessa a pandemia provocada pela COVID-19, em que países adotam diferentes estratégias (e retóricas) para dimensioná-la e, com menor ou maior grau de comprometimento, enfrentá-la.

Além da presente introdução, a segunda seção expõe o contexto do emprego das duas metáforas mais comumente empregadas no discurso econômico: a comparação entre o orçamento federal e o orçamento doméstico e a confiança dos agentes, com as respectivas críticas quanto à adequabilidade de cada metáfora. A terceira seção investiga o elemento da moral no âmbito da retórica utilizada em situações de austeridade fiscal, especificamente para o caso recente da crise provocada pela pandemia e, ainda, aquela que ficou conhecida como “Crise da Dívida” nos países periféricos da Zona do Euro na última década, além do resgate histórico do contexto e práticas de austeridade no início do século XX. Por último, tecem--se as considerações finais.

METÁFORA EM TEMPOS DE CONSOLIDAÇÃO FISCAL

A metáfora do orçamento doméstico

A metáfora do orçamento doméstico é constantemente utilizada por formuladores de políticas quando deparados com o aumento da dívida pública e déficits primários. Nessa comparação, o governo, assim como uma família, não deve gastar mais do que ganha, de modo que, diante de crises e de aumento da dívida, deve passar por sacrifícios e por um esforço de poupança.

Thibodeu e Flusberg (2016) analisam o papel de mensagens metafóricas na relação do discurso político com o eleitorado.

“Sua família precisa operar com um orçamento, então por que o governo federal não precisa fazer o mesmo?” (Team Romney, 2012 apud Thibodeu e Flusberg, 2016)

O apelo persuasivo dessa mensagem baseia-se na inferência dos eleitores para extrair do mapeamento metafórico: a saber, que o status econômico do país diminuirá se o déficit orçamentário não for atendido, assim como a segurança econômica de uma família endividada. (Thibodeu e Flusberg, 2016).

Em um contexto de alto desemprego nos anos que sucederam a enorme crise financeira dada a partir do colapso do setor de empréstimos hipotecários (sub-prime) norte-americano, o Nobel de Economia Paul Krugman também faz comentários a respeito da comparação.

“Os preocupados com o déficit retratam um futuro em que estamos empobrecidos pela necessidade de devolver o dinheiro que temos emprestado. Eles veem os Estados Unidos como uma família que assumiu uma hipoteca muito grande e terá dificuldade em fazer os pagamentos mensais.” (Krugman, 2012Krugman, P. (2012). Nobody understands debt. The New York Times. Available at Available at http://www.nytimes.com/2012/01/02/opinion/krugman-nobody-understands-debt.html?_r=0 . Acesso 05/12/2019.
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)

O autor refuta a comparação apontando que as famílias precisam pagar sua dívida, já os governos, não: “tudo o que precisam fazer é garantir que a dívida cresça mais lentamente do que sua base tributária. [...] A dívida da Segunda Guerra Mundial nunca foi paga [...] tornou-se cada vez mais irrelevante à medida que a economia dos EUA crescia e, com ela, a renda sujeita a impostos”. Em segundo lugar, e de mais difícil compreensão, a seu ver, uma família endividada em excesso deve dinheiro a outra pessoa; já a dívida dos EUA, por exemplo, é, em grande parte, dinheiro que o país deve “a si mesmo” (Krugman, 2012Krugman, P. (2012). Nobody understands debt. The New York Times. Available at Available at http://www.nytimes.com/2012/01/02/opinion/krugman-nobody-understands-debt.html?_r=0 . Acesso 05/12/2019.
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).

Dívida importa, resume o autor, mas se tratando do cenário recessivo vivido pelo país nos anos que seguiram a crise de 2008, defende que os gastos do governo são necessários para solucionar a “armadilha do desemprego”.

Dweck, Oliveira e Rossi (2018DWECK, E., OLIVEIRA, A. L. M. D., & ROSSI, P. Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo: Brasil Debate. 2018.) argumentam que essa comparação entre o orçamento público e o familiar é parcial e simplificadora por desconsiderar três fatores essenciais:

  1. O governo, diferentemente das famílias, tem a capacidade de definir o seu orçamento, por exemplo, ao tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo, para não fechar hospitais. Ou seja, enquanto uma família não pode definir o quanto ganha, o orçamento público decorre de uma decisão coletiva sobre quem paga e quem recebe, quanto deve pagar e quanto deve receber.

  2. Quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob a forma de impostos. Ou seja, ao acelerar o crescimento econômico com políticas de estímulo, o governo estaria aumentando também a sua receita. Enfatiza-se, portanto, o papel do gasto público em momentos de crise econômica.

  3. Diferentemente do governo, as famílias não emitem títulos de dívida em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam.

Dessa forma, Dweck, Oliveira e Rossi (2018DWECK, E., OLIVEIRA, A. L. M. D., & ROSSI, P. Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo: Brasil Debate. 2018.) concluem que a metáfora que iguala o orçamento público ao familiar desvirtua as responsabilidades que a política fiscal tem na economia: induzir o crescimento, distribuir renda e amortecer os impactos dos ciclos econômicos na vida das pessoas.

Nessa direção, a chegada da pandemia provocada pelo novo coronavirus (Sars-CoV-2) colocou em xeque a responsabilidade das lideranças políticas perante a crise multissistência anunciada. Entre estratégias mais comprometidas e aquelas mais displicentes, o Brasil, pior país no ranking de eficácia no combate ao vírus (Lowy Institute, 2021LOWY INSTITUTE. COVID-19 Performance Index. 2021. Disponível em: https://interactives.lowyinstitute.org/features/covid-performance/
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), optou pelo segundo grupo. Logo de início, adotou-se entre representantes do Executivo uma metáfora um tanto quanto perversa: salvar vidas ou a economia.

É preciso ressaltar que não é do escopo do presente trabalho avaliar o grau de veracidade do trade-off, tampouco as possibilidades estratégicas a serem empregadas para tentar amenizar os efeitos em ambos os lados da balança, mas apenas evidenciar o apelo utilizado pelos políticos perante a alarmante situação. Seriam esses dois elementos de fato dissociáveis?

Para concluir, é interessante notar que os autores citados nesta seção, enquanto críticos ao emprego metafórico do orçamento doméstico no lugar do orçamento do governo, em suas respectivas argumentações, desmitificam a comparação e valorizam o papel da política fiscal para “induzir o crescimento, distribuir renda e amortecer os impactos dos ciclos econômicos e solucionar a armadilha do desemprego”, expressões também metafóricas pouco indagadas no campo da economia, conforme McCloskey (1998McCLOSKEY, D. N. The Rhetoric of Economics (Rhetoric of the Human Sciences). University of Wisconsin Press, 1998. (2nd Edition), p. 40).

A metáfora da confiança

Outra metáfora recorrente no debate dos formuladores de política econômica é a da “confiança dos agentes econômicos”, oportunamente relacionada à expectativa de retomada do investimento em tempos de austeridade e recessão. A partir da coleta de opiniões pessoais sobre percepções de melhorias e expectativas quanto à vida financeira futura, índices procuram métricas adequadas para quantificar o grau de confiança do consumidor e verificam ser um fator importante para explicar flutuações econômicas (Matsusaka e Sbordone 1995MATSUSAKA, John G.; SBORDONE, Argia M. Consumer confidence and economic fluctuations. Economic Inquiry, v. 33, n. 2, p. 296-318, 1995.; Jansen e Nahuis, 2003JANSEN, W. Jos; NAHUIS, Niek J. The stock market and consumer confidence: European evidence. Economics Letters, v. 79, n. 1, p. 89-98, 2003.)

Nos últimos anos, o debate no campo da economia fiscal também foi marcado pela premissa de que a confiança dos agentes econômicos - ou das “políticas inspiradoras” - auxiliariam na recuperação econômica após o anúncio de contração do gasto público. De acordo com Ljungman (2008LJUNGMAN, Gösta. Expenditure ceilings-A survey. No. 2008-2282. International Monetary Fund, 2008., p. 3), em nível de exemplificação, regras fiscais podem promover a disciplina fiscal ao simplificar a tomada de decisões, promover o interesse por questões de sustentabilidade econômica e reduzir o escopo de decisões intertemporais inconsistentes.

Apoiado principalmente no papel das expectativas, esse resultado contradiz o argumento keynesiano de que corte dos gastos do Governo exerce efeito contracionista na demanda agregada no curto prazo. Austeridade expansionista ou contração fiscal expansionista pode ser definida, portanto, como a correlação positiva entre o ajustamento fiscal, via corte de gastos públicos, e o consumo e investimento privado (Cardoso, 2019CARDOSO, Guilherme Silva. POLÍTICA FISCAL E GASTO PÚBLICO NO BRASIL: impactos na renda das famílias e na atividade econômica. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional. Dissertação de Mestrado, 2019.).

Após a crise do sub-prime norte-americano, na tentativa de evitar falências bancárias e pânico no mercado financeiro, os governos dos países envolvidos agiram com expansionismo fiscal e monetário por meio do aumento do gasto público e transferências de ativos líquidos para o setor financeiro, contribuindo para o aumento do déficit e dívida pública (Schneider et al., 2016SCHNEIDER, Markus PA et al. Changes in the profile of inequality across Europe since 2005: austerity and redistribution. European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, v. 13, n. 3, p. 354-374, 2016.).

As economias periféricas da Zona do Euro também experienciaram deterioração das contas públicas e crescimento das dívidas soberanas (Schneider et al., 2016SCHNEIDER, Markus PA et al. Changes in the profile of inequality across Europe since 2005: austerity and redistribution. European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, v. 13, n. 3, p. 354-374, 2016.). No entanto, após os resultados contracionistas dos multiplicadores econômicos associados à adoção de medidas austeras, que contribuíram para prolongada recessão econômica, Schneider et al. (2016SCHNEIDER, Markus PA et al. Changes in the profile of inequality across Europe since 2005: austerity and redistribution. European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, v. 13, n. 3, p. 354-374, 2016.) mencionam o precipitado embasamento na Fada da Confiança (Krugman, 2010KRUGMAN, P. Myths of austerity. The New York Times, v. 1, n. 7, p. 10, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.economics.utoronto.ca/gindart/2010-07-02%20-%20Myths%20of%20austerity.pdf Acesso em: jan/2019.
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, 2015KRUGMAN, P. (2015). The austerity delusion. The Guardian, 29, 31-3. Disponível em: Disponível em: https://www.theguardian.com/business/ng-interactive/2015/apr/29/the-austerity-delusion Acesso em: jan/2019.
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), que simplesmente não apareceu.

A metáfora da confiança dos agentes para retomada do nível de atividade econômica e pleno emprego é, portanto, tratada em Krugman (2010KRUGMAN, P. Myths of austerity. The New York Times, v. 1, n. 7, p. 10, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.economics.utoronto.ca/gindart/2010-07-02%20-%20Myths%20of%20austerity.pdf Acesso em: jan/2019.
https://www.economics.utoronto.ca/gindar...
, 2015KRUGMAN, P. (2015). The austerity delusion. The Guardian, 29, 31-3. Disponível em: Disponível em: https://www.theguardian.com/business/ng-interactive/2015/apr/29/the-austerity-delusion Acesso em: jan/2019.
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) como uma ilusão, dada a ineficácia das políticas de austeridade praticadas nos EUA e na Europa pós-crise; assim como para Dweck, Oliveira e Rossi (2018DWECK, E., OLIVEIRA, A. L. M. D., & ROSSI, P. Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo: Brasil Debate. 2018.), que a colocam, ao lado da metáfora do orçamento doméstico, como um mito da austeridade.

O Brasil encontra-se sob agenda econômica austera desde 2015. Embora a implementação da Emenda Constitucional (CE) 95/2016 (também conhecida como Novo Regime Fiscal) tenha tido sucesso em ancorar as expectativas dos agentes econômicos, limitando o crescimento da despesa pública em um contexto de insolvência fiscal (Salto e Barros, 2018Salto, Felipe e Barros, Gabriel (2018) Contas públicas: Diagnóstico, cenários e desafios. Disponivel em https://www12.senado.leg.br/ifi/pdf/contas-publicas-diagnostico-cenarios-e-desafios-santander/view.
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), a elevada capacidade ociosa e taxa de desemprego - além da falta de investimentos em setores como saúde pública1 1 Flagrante durante a pandemia provocada pela COVID-19, o setor público de saúde recebeu R$ 9 bilhões a menos em 2019, em relação à regra anterior. O Relatório Resumo de Execução Orçamentária do Governo Federal (Secretaria do Tesouro Nacional, 2020) traz as informações sobre as dotações executadas. , educação e infraestrutura - ainda persistem; dessa forma, autores como Giambiagi (2019) discutem alternativas flexíveis para a regra fiscal, principalmente no que se refere ao investimento público.

Atualmente, no país, já se sabe que o enfrentamento da pandemia foi marcado por metáforas pouco convincentes e manutenção do rigor fiscal. No entanto, à medida que os países do globo caminham para a imunização, é possível encontrar ainda obstáculos políticos para a organização do delicado caminho de superação da pandemia provocada pela COVID-19. Ancorado na premissa de que os gastos emergenciais comprometeriam a confiança do mercado - negligenciando o papel do Estado no auxílio de renda básica para a população mais vulnerável -, o Brasil foi um dos países mais afetados também pela “segunda onda” do vírus, justamente o período marcado pelo fim do auxílio financeiro e precipitação geral quanto ao fim da pandemia.

O ARGUMENTO MORAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE

Os debates atuais sobre austeridade fiscal frequentemente se esquecem de que essas políticas já foram pautadas há quase cem anos (Mattei, 2017MATTEI, C. E. Austerity and repressive politics: Italian economists in the early years of the fascist government. The European Journal of the History of Economic Thought, Taylor & Francis, v. 24, n. 5, p. 998-1026, 2017b. a). Foi em resposta a políticas fiscais expansionistas, que buscavam atender às novas demandas por seguridade social e benefícios públicos promovidas pelos sindicatos, e em meio a dificuldades econômicas do pós-Primeira Guerra Mundial - em particular, a inflação -, que ocorreram as conferências de Bruxelas (24 de setembro-4 de outubro de 1920) e Gênova (10 de abril-19 de maio de 1922). Essas conferências foram convocadas pelo Conselho da Liga das Nações e dos Aliados2 2 A necessidade urgente de aumentar a produção de guerra induziu os governos a reconhecer os sindicatos e permitir concessões a seu favor. O aumento dos preços ameaçava os salários reais, levando mais trabalhadores aos movimentos sindicais. “A inflação provou que a crise capitalista não era apenas um choque político exógeno, mas tinha profundas motivações econômicas. A demanda ultrapassou estruturalmente a oferta, e uma das causas persistentes da inflação foi certamente a situação difícil das finanças públicas, agravada pelo fim do crédito de guerra entre os Aliados e da cooperação financeira. Enormes quantias de poupança e capital foram perdidas; houve também uma mudança na distribuição de renda” (Mattei, 2017a). , cujo objetivo era formular um programa de estabilização econômica e normalidade internacional. Segundo a análise de Mattei (2017MATTEI, C. E. The guardians of capitalism: International consensus and the technocratic implementation of austerity. Journal of Law and Society, Wiley Online Library, v. 44, n. 1, p. 10-31, 2017a.a), a economia capitalista teve que ser recons­truída em bases sólidas: a conformidade de cada país era crucial, e a austeridade, portanto, seria intrinsecamente tecnocrática, uma vez que englobaria teoria e prática: em paralelo à ortodoxia econômica, requereu-se a conformidade técnica, política e moral de cada governo nacional.

Mattei (2017MATTEI, C. E. Austerity and repressive politics: Italian economists in the early years of the fascist government. The European Journal of the History of Economic Thought, Taylor & Francis, v. 24, n. 5, p. 998-1026, 2017b. b) analisa o papel da Racionalidade austera na teoria e prática econômica durante a consolidação do fascismo na Itália. Segundo a autora, o termo Racionalidade austera se dá a partir da ênfase na relação de políticas de austeridade com a racionalidade econômica mainstream, a partir dos principais alicerces conceituais: idealização do livre mercado, ceticismo do papel do estado na economia (contenção do Estado), em particular a recusa de sua função social e de bem-estar, política de rigor financeiro e monetário, lógica moralizante de autossacrifício e a virtude da poupança e, por fim, a necessidade de um governo forte e tecnocrático.

Voltando ao período mais recente, com relação à necessidade de reestruturação da dívida grega, Nikiforos, Papadimitriou e Zezza (2015NIKIFOROS, Michalis; PAPADIMITRIOU, Dimitri B.; ZEZZA, Gennaro. The Greek public debt problem. Nova Economia, v. 25, n. spe, p. 777-802, 2015.) argumentam que se tornou aceitável o fato de o longo período de austeridade e recessão enfrentado pelo país ser justificado como consequência exclusiva dos excessos do Governo e do povo grego, da corrupção de seu sistema político, da disfuncionalidade do setor público e da elevada taxa de evasão fiscal. Nikiforos, Papadimitriou e Zezza (2015NIKIFOROS, Michalis; PAPADIMITRIOU, Dimitri B.; ZEZZA, Gennaro. The Greek public debt problem. Nova Economia, v. 25, n. spe, p. 777-802, 2015.) reconhecem tais desequilíbrios, mas levantam outros pontos de vista acerca da problemática enfrentada pelo país.

Primeiro, argumentam que o diagnóstico da crise fiscal está associado, em grande extensão, a problemas estruturais da formação da Zona do Euro. Ainda, sob uma perspectiva moral, como aquela defendida pelos pró-austeridade, contrapõem com o fato de que os credores envolvidos foram isentados de qualquer responsabilidade por suas iniciativas de empréstimo antes do início da crise, ficando o ônus unilateralmente para os devedores. “Os alicerces morais muitas vezes não são levados em conta para a solução do caso do endividamento público grego”, argumentam os autores. Sobre essa questão, se espelham na posição de John Maynard Keynes, em The Economic Consequences of the Peace (1919), acerca das reparações incumbidas à Alemanha no período pós-Primeira Guerra Mundial, consideradas exageradas, sem justificativa moral e com possibilidades de graves repercussões políticas para o país e o restante da Europa. A história desenhou-se conforme o previsto por Keynes e a posição irredutível dos Aliados em relação à Alemanha imediatamente após a Primeira Guerra até a década seguinte foi um dos principais fatores da ascensão do partido nazista ao poder no final da década de 1920, preparando o terreno para a Segunda Guerra Mundial, conforme destacam Nikiforos, Papadimitriou e Zezza (2015NIKIFOROS, Michalis; PAPADIMITRIOU, Dimitri B.; ZEZZA, Gennaro. The Greek public debt problem. Nova Economia, v. 25, n. spe, p. 777-802, 2015.), que traçam um paralelo do ocorrido no período entre as guerras com a ascensão vertiginosa do partido neonazista grego nas eleições presidenciais do país no ano de 2015.

Percebe-se, portanto, que tanto para o caso recente vivido pelos países periféricos na Zona do Euro, aqui representados pela Grécia, quanto o ocorrido no século passado, nos anos que sucederam a Primeira Guerra Mundial, a argumentação metodológica científica seria incapaz de sustentar os desdobramentos sociais das políticas e sanções econômicas impostas em cada um dos casos analisados. O emprego retórico da moral é, assim, determinante para a conclusão dos autores, dada a irredutibilidade dos que até então eram favoráveis à austeridade fiscal, no caso grego, e ao maior encargo nos reparos do pós-guerra para a Alemanha.

Hoje, o Brasil atravessa a crise da pandemia da COVID-19 com as sequelas da austeridade fiscal dos últimos anos e ainda sob o mote negacionista e do “Estado mínimo” por parte de seus governantes. O problema moral sintetizado nos últimos parágrafos foi também crucial no enfrentamento da pandemia no país. O dilema entre salvar vidas e a economia, bem como a relutância contra o início e o prolongamento do auxílio financeiro emergencial para os mais vulneráveis, sob o argumento de “abalar a confiança do mercado”, em vista do aumento dos gastos do Governo, são exemplos claros de caráter restrito de classe ao (não) enfrentar a pandemia por meio de sacrifícios que atingem de maneira direta justamente a parte da população mais vulnerável à propagação do vírus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contribuição de Deidre N. McCloskey para a metodologia da economia é impactante. A Retórica da Economia nos auxilia na compreensão da forma com que constatações científicas e práticas de política econômica nos são dadas: segundo a autora, repleta de metáforas, metafísica, moral e convicções pessoais daqueles que as fazem.

Longe da pretensão técnica, o presente artigo teve como objetivo mostrar justamente o fato de, mesmo no meio científico, existir a possibilidade de persuasão da retórica e assim investigá-las e contestá-las, especialmente o emprego de certas comparações metafóricas e dilemas, aqui trazidos do discurso da economia fiscal.

Períodos de consolidação fiscal os quais atravessaram, em maior ou menor grau, diversas economias ao longo da última década até o presente momento, são marcados pela argumentação política. No Brasil, sob o ideário do atual Governo, a manutenção da austeridade e as reformas institucionais são as medidas classificadas para a retomada do crescimento. Mesmo sob a persistência da estagnação do crescimento, estas são justificadas pelo fato de atuarem para liberalizar e facilitar a ação do setor privado de modo que, por meio do otimismo e das expectativas do mercado, colocariam a dinâmica do país de volta aos trilhos.

Assim sustenta-se a retórica da austeridade fiscal que, mesmo com a assustadora chegada da pandemia provocada pela COVID-19, esteve sob a forma de “manter a serenidade e as reformas”3 3 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/guedes-diz-que-resposta-crise-sao-reformas. , junto com a polêmica premissa do dilema entre vidas humanas e a economia. Esses recursos de linguagem empregados pelo Ministério da Economia falam por si sós e, conforme aqui demonstrado, escondem um perigoso problema moral e ideológico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Flagrante durante a pandemia provocada pela COVID-19, o setor público de saúde recebeu R$ 9 bilhões a menos em 2019, em relação à regra anterior. O Relatório Resumo de Execução Orçamentária do Governo Federal (Secretaria do Tesouro Nacional, 2020SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. RELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA. Fevereiro de 2020.) traz as informações sobre as dotações executadas.
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    A necessidade urgente de aumentar a produção de guerra induziu os governos a reconhecer os sindicatos e permitir concessões a seu favor. O aumento dos preços ameaçava os salários reais, levando mais trabalhadores aos movimentos sindicais. “A inflação provou que a crise capitalista não era apenas um choque político exógeno, mas tinha profundas motivações econômicas. A demanda ultrapassou estruturalmente a oferta, e uma das causas persistentes da inflação foi certamente a situação difícil das finanças públicas, agravada pelo fim do crédito de guerra entre os Aliados e da cooperação financeira. Enormes quantias de poupança e capital foram perdidas; houve também uma mudança na distribuição de renda” (Mattei, 2017aMATTEI, C. E. The guardians of capitalism: International consensus and the technocratic implementation of austerity. Journal of Law and Society, Wiley Online Library, v. 44, n. 1, p. 10-31, 2017a.).
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    JEL Classification: B4; E65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2021
  • Aceito
    10 Mar 2021
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