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Economia e política no pensamento de Albert O. Hirschman: um análise de três textos* * Originalmente este texto foi apresentado no grupo de trabalho Política e Economia durante o IX Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), realizada em Águas de São Pedro em outubro de 1985. A versão final beneficiou-se dos comentários dos integrantes do grupo. Os textos aqui examinados que não dispõem de edição em português foram traduzidos por mim, sem nenhuma pretensão de trabalho profissional nessa esfera.

Economy and politics in the thought of Albert O. Hirschman: an analysis of three texts

RESUMO

este artigo tem como objetivo estudar a relação entre as áreas econômica e política em três obras de Albert Hirschman, a saber Exit, Voice and Lealty, The Passions and the Interests e Shifting envolvimentos, e a riqueza do pensamento de Hirschman indo além do pensamento econômico puro.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Hirschman

ABSTRACT

this paper aims to study the relationship between economic and political areas in three of Albert Hirschman’s works, namely Exit, Voice and Loyalty, The Passions and the Interests, and Shifting involvements, and the richness of Hirschman’s thinking going beyond the pure economic thinking.

KEYWORDS:
History of economic thought; Hirschman

Não deixando de se apresentar como economista, Albert Hirschman, nos seus últimos e mais importantes trabalhos, com incidência crescente, atenta para questões que usualmente estão confinadas no âmbito escolar da ciência política. Conciliando o interesse intelectual com a identidade profissional, Hirschman acabou por fixar-se nas relações entre as duas áreas discursivas, tomando como seu objeto principal as várias formas de trânsito entre economia e política.

O primeiro dos títulos dessa sua nova fase foi Exit, Voice and Loyalty, de 1970, no qual sustentou que o indivíduo, fosse na qualidade de consumidor, fosse na de cidadão, dispunha de duas reações preponderantes face à decepção: a primeira, privilegiada pelos economistas, a da recusa, retirada ou afastamento do mercado ou da arena política; a segunda, por ele examinada com vagar, a da opção pela manifestação e engajamento em protestos contra a situação, mercadoria e expectativas decepcionantes.

Paixões e Interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes de seu triunfo (1979) consistiu no exame das ideias ocidentais defensoras do mercado como uma instituição produtora não apenas de riqueza e prosperidade, mas, sobretudo, de paz e justiça. “Rival Interpretations of Market Society: civilizing, destructive or feeble? ‘’ (1982Hirschman, Albert O (1982). “Rival Interpretations of Market Society: civilizing, destructive or feeble?”, Journal of Economic Literature, vol. XX, dez. ) desdobrou a temática do texto anterior: Paixões e Interesses enfocava a defesa do mercado empreendida pari passu à sua constituição, enquanto o novo trabalho procurou compreender, uma vez já tendo sido ele consolidado como espaço legítimo de troca, os diagnósticos produzidos sobre seu funcionamento.

De Consumidor a Cidadão (1982Hirschman, Albert O (1983). De Consumidor a Cidadão: atividade privada e participação na vida pública, São Paulo, Brasiliense. ) fecha o círculo iniciado em Exit, Voice and Loyalty, retomando os dois principais agentes do mercado e da política e dedicando-se à demonstração de como o consumidor decepcionado transforma seu desengano numa força positiva, metamorfoseando-se, ele próprio, em cidadão e, portanto, deixando a arena dos interesses privados pela participação nos destinos públicos.

O objetivo do texto que se segue é tratar das relações entre economia e política, como explícita ou implicitamente contidas nos referidos trabalhos. Essas relações estão presumidas não apenas nos seus títulos, mas são constitutivas das teses neles desenvolvidas. O fato é que com Exit, Voice and Loyalty consolidou-se a atenção de Hirschman nas duas vertentes da ação individual moderna, o consumo e a cidadania, e naturalmente nos seus respectivos territórios, o mercado e a política; desde então,· ela tem se aprofundado principalmente no trânsito entre ambos, em outras palavras, das paixões aos interesses, da atividade privada à pública, da decepção com a busca da felicidade pela aquisição ao engajamento nos assuntos da polis ou, vice-versa, das desilusões com a política ao território desapaixonado da maioria silenciosa. Como o indivíduo rompe as fronteiras entre a economia e a política e desloca-se do mercado para a arena dos bens civis, bem como seu eventual retorno são, assim, o cerne do pensamento dos textos aqui privilegiados; compreendê-los significa necessariamente estabelecer essas relações.

É finalmente um trabalho mais recente do autor que justifica tanto o meu próprio interesse quanto a sua bem-humorada obsessão em romper os limites de seu campo intelectual de origem: a economia é uma disciplina excessivamente frugal e enquanto proposta de compreensão do comportamento humano enraíza-se em apenas um terreno, o do indivíduo livre, isolado e racionalmente concernido com custos e benefícios. O título desse trabalho é demonstrativo da necessidade expansionista de seu autor: “Contra a Parcimônia: três maneiras fáceis de complicar algumas categorias do discurso econômico” (1987Hirschman, Albert O (1987). “Contra a Parcimônia: três maneiras fáceis de complicar algumas categorias do discurso econômico”. Publicado às pp. 90 dessa revista. ). A essa ciência, em última instância monotemática, Hirschman opõe a capacidade do ser humano em transformar-se, apaixonar-se, mudar de valores e mudar a história. Opõe, pois, a política. Esse texto examina os caminhos pelos quais essa oposição se constrói.

A seção 1, a seguir, trata de remontar, resumidamente, as principais ideias de Paixões e Interesses e “Rival Interpretations”; à seção 2 cabe destacar o fio condutor de De Consumidor a Cidadão. Procura-se salientar que o conceito, por ele elaborado, de decepção é crucial para a organização de seu raciocínio sobre a passagem entre instância econômica e política. Finalmente, na seção 3 analisam-se os diferentes níveis nos quais essa passagem elabora-se.

AS PAIXÕES ACALMADAS

O programa de As Paixões e os Interesses resume-se numa frase de seu próprio autor: “Minha pretensão é que a difusão de formas capitalistas deveram muito a uma desesperada busca de um modo de evitar a ruína da sociedade, ameaça permanente na época devido aos precários arranjos no que se referia à ordem interna e externa” (p. 132, grifo do autor).

O livro, assim, trata do modo de pensar num momento histórico em que o capitalismo não se encontrava ainda consolidado, isto é, trata-se de trabalhar com ideias formadas durante a passagem de uma sociedade estamental, que condenava a usura e valorizava o ócio, para uma outra, mercantilizada em suas relações sociais.1 1 Toma-se como referência não apenas o texto de Hirschman, como também sua resenha, de minha autoria, em colaboração com Ricardo Tolipan (1981).

A análise procura reconstituir os passos da construção de uma imagem positiva do capitalismo, no qual este se apresenta autorregulável e gerador de bem-estar, e, para tanto, Hirschman inicia com os pensadores que se encarregaram da demolição do ideal medieval e seus respectivos valores: Cervantes e seu ridículo cavaleiro andante, Pascal e seu vaidoso, o egoísta de La Rochefoucauld. Mas é em Maquiavel que Hirschman, como muitos outros, encontra o pensador inicial dessa nova era. Isto porque ele propunha-se a falar “da verdade efetiva das coisas” e não de “coisas que nunca foram vistas nem se soube que tenham existido”. Maquiavel, pois, substituíra o caráter normativo das ideias medievais pela perspectiva realista, imprescindível para a eficácia da atuação do príncipe na conquista, manutenção e ampliação de seu poder. Ficava implícito na distinção por ele elaborada que, até então, falava-se apenas das coisas como se imaginava que fossem e que o indivíduo como “realmente é” é o objeto próprio daquela que é chamada ciência política.

Olhando o ser humano “como ele é realmente”, nos séculos XVI e XVII, descobriu-se que essencialmente seria constituído por um conjunto de paixões destrutivas e imunes à filosofia moral e a preceitos religiosos. Diante da irredutibilidade dessas paixões colocou-se, consequentemente, à questão de como domá-las, ou seja, partindo do fato de que não poderiam ser aniquiladas sem que a natureza humana fosse igualmente aniquilada, restava submetê-las. A alternativa para que essa tarefa se cumprisse foi inicialmente a da busca de uma espécie de equilíbrio geral entre as mesmas, que produziria o efeito de mudar seu sinal de negativo em positivo. No século XVIII, Vico escreveu que a sociedade ‘’da ferocidade, da avareza e da ambição fez a defesa nacional, o comércio e a política e, assim, ela produz a força, a riqueza e a sabedoria das repúblicas; desses três vícios que seguramente acabariam por destruir o homem na terra, a sociedade fez, desse modo, surgir a felicidade civil” (cf. p. 25). Entretanto, não se explicitando o que importa, isto é, como operar a metamorfose de vício em virtude, essa lógica acabou por ser abandonada e, no final, o que prevaleceu como mecanismo dominador foi, segundo Hirschman, uma countervailing passion. Essa paixão equivalente contrária funcionaria como antídoto à violência das outras. No fundo, pois, aceitou-se o diagnóstico medieval sobre a natureza viciosa da humanidade, rejeitando-se combatê-la com a virtude, mesmo porque esta havia sido submetida à crítica realista do ideal romântico. Foi no reino das próprias paixões que se buscou um vício capaz de dominar os demais: “Uma afeição não pode ser controlada ou removida a não ser por um afeto mais forte e oposto” (Spinoza); “com muita frequência, ela (a humanidade) só pode curar o vício com outro” (Hume); “as paixões são o verdadeiro contrapeso das paixões” (D’Holbach).

Se as paixões dispõem de um mecanismo compensador, é necessário, logicamente, apontá-lo e definir qual é a paixão dormitiva que acalmará as demais. Segundo Hirschman, a ideia de uma oposição entre interesse e paixões apareceu pela primeira vez na obra de Rohan: ‘’num fenômeno tipicamente descrito pela ideia de ‘paradigma’ (à la Kuhn), a maior parte das ações humanas passou de repente a ser explicada pelos interesses próprios” (p. 45). Na França, esse processo redutor teria tido em La Rochefoucauld um de seus principais intérpretes; na Inglaterra, Hobbes. Foi, então, “considerado que o interesse integrava a melhor parte de cada um, sob a forma de paixão própria, agora elevada e contida pela razão, e da razão à qual essa paixão dava força e direção” (p. 46).

Com a descoberta de que o interesse privado adormece as demais paixões, ter-se-ia encontrado uma base claramente realista para a construção de uma ordem social dotada de estabilidade. A adoção de um comportamento interessado pelo indivíduo faz com que ganhem todos: o indivíduo, porque seu interesse não lhe engana; a sociedade, porque ela se torna transparente e dotada de previsibilidade.

Eventualmente, o interesse terminou por ser identificado a uma paixão particular, a de ganhar dinheiro. E da necessidade política de garantir a ordem social pelo domínio das paixões, vale dizer, daquilo que é concebido como essencialmente humano, chega-se ao critério econômico dessa garantia, com o interesse estendido como vantagem pecuniária. Locke, Montesquieu e Samuel Johnson prontamente traduziram tais vantagens em defesa do comércio, e a filosofia moral transvestiu-se na defesa da obstinação pelo ganho: “Existem poucas maneiras nas quais um homem pode estar mais inocentemente empregado do que na obtenção do dinheiro” (Samuel Johnson, cf. p. 57).

Demonstrado como o pensamento clássico fez a defesa do interesse como a paixão “calma” por excelência, a tese prossegue pela exposição de que essa tarefa foi, ao mesmo tempo, política. Homens como Montesquieu, John Stuart Mill e John Millar sustentaram que existe uma situação especial na qual as paixões tornam-se ainda mais perigosas e, portanto, onde uma força “contrabalanceadora contrária” é exigida com maior urgência: este é o caso das paixões no poder. Segundo Hirschman, os poderosos eram considerados especialmente providos de paixões comparativamente aos grupos desfavorecidos. Daí que o interesse, apaziguando-os, cumpre, ademais, uma função crucial para o ordenamento político. A ideia subjacente é de que a lógica do interesse é niveladora de comportamento, ou seja, encontrando-se todos interessados na expansão econômica, agirão, por conveniência, segundo o mesmo padrão, o bom burguês gentilhomme indiferenciar-se-á de sua majestade soberana e “a expansão do comércio e da indústria eliminará o processo arbitrário e automático de tomada de decisões pelo soberano” (p. 86).

Finalmente, chega-se a Adam Smith e ao que Hirschman designa como “fim de uma era”. Seu principal impacto consistiu no estabelecimento de “uma poderosa justificativa econômica para a busca desimpedida de interesse próprio individual” (p. 96), afirmando a independência de progresso material vis-à-vis o aperfeiçoamento das instituições políticas, tendo Smith escrito em Digression on the Corn Law que “o esforço de cada indivíduo para melhorar sua condição é princípio tão poderoso que, sozinho e sem qualquer assistência, é não somente capaz de levar a sociedade à riqueza e prosperidade, quanto superar uma centena de obstáculos impertinentes com os quais a loucura das leis humanas frequentemente sobrecarrega suas operações” (cf. p. 102). Com a equivalência entre a política e a loucura humana temos, pois, fundado o domínio separatista da ciência econômica: “Parece não haver lugar aqui para a concepção mais rica da natureza humana segundo a qual os homens são motivados, e frequentemente divididos, entre diversas paixões das quais a avareza era somente uma entre outras” (p. 102). Juntamente ao colapso das demais paixões, com a ambição pecuniária erigida em paixão única, a ciência econômica despreocupou-se com o âmbito da vontade pela honra, dignidade, respeito e reconhecimento que desde Hobbes estiveram intimamente conectados à ânsia de ganhar dinheiro, isto é, “ao afirmar que a ambição, a ânsia de poder e o desejo de merecer respeito podem ser satisfeitos pela melhoria econômica, Smith golpeou na base a ideia de que se pode opor paixão à paixão, ou o interesse à paixão” (p. 104).

O artigo “Rival Interpretations” é assumido por seu autor como uma continuação das ideias anteriores, escrito “com a esperança de aplacar aqueles que reclamaram que Paixões, traçando o desenvolvimento ideológico com algum detalhe apenas até Adam Smith, deixou-os apenas adivinhando o que aconteceu em seguida, na época - a nossa própria - que de fato importa a eles (p. 1464).

Se de um lado isso é verdade - o novo texto, de fato, trata de ideias produzidas após Adam Smith -, de outro, ele é mais que apenas a repetição de argumentos já anteriormente utilizados. Paixões e Interesses terminou no seu desfecho lógico, isto é, com a constituição de um espaço puramente de mercado, limpo das paixões e da loucura, portanto do irracional e imprevisível. “Rival Interpretations” coloca, por sua vez, um problema distinto, embora, sem dúvida, sucessivo ao do livro anterior: construída a possibilidade teórica e prática de mudança social, como se avalia a sociedade de mercado?

As respostas estão agrupadas em quatro títulos: a tese do doux-commerce, a tese da autodestruição, a tese dos obstáculos feudais (feudal shackles) e a tese das bênçãos feudais (feudal blessings). Com esse conjunto, Hirschman pretende desenhar o que ele próprio denomina de tableau idéologique, isto é, não apenas examinar cada uma das teses separadamente mas também, ao mesmo tempo, estabelecer relações entre as mesmas.

A primeira tese já havia sido desenvolvida em Paixões e Interesses; aqui, como antes, ela começa a ser exposta aos leitores pela lembrança de Montesquieu: “É quase uma regra geral de que, onde existem boas maneiras (moeus douces), existe comércio, e onde existe comércio, existem boas maneiras’’, ou ainda, “o comércio pole e suaviza os modos bárbaros de agir, como podemos ver diariamente” (cf. p. 1464). É num livro publicado em 1974, de autoria de Samuel Ricard, que Hirschman encontra exposto o mecanismo mediador, através do qual se produz, do comércio, os efeitos de polimento, doçura, gentileza e cordialidade. Segundo o mesmo, o comércio possui a virtude de fazer as pessoas mutuamente dependentes e a moral fortalece-se pelo suporte forte que os interesses lhe dão; movidos pelo interesse, tornam-se os homens honestos, disciplinados, portanto, confiáveis, virtudes que por sua vez reagirão positivamente sobre o mercado.

Depois do século XVIII, especialmente devido aos efeitos devastadores da Revolução Industrial, assistiu-se a um paulatino declínio dessa tese. Durkheim teria sido um dos pensadores que se manteria ambíguo a seu respeito. Assumiu, de um lado, a tese de que o novo sistema econômico é destruidor de virtudes tradicionais e incapaz de produzir, mecanicamente, solidariedade; de outro, que as transações provocadas pela divisão do trabalho, embora por si só não fossem capazes de substituir o que havia sido erodido, criavam fundamentos para uma nova forma de coesão social, desde que acrescidas de uma forma de educação moral.

A mesma ambivalência de Durkheim quanto à capacidade de o capitalismo gerar solidariedade estaria presente em Simmel que, apesar de ter escrito algumas das mais violentas páginas contra as propriedades alienadoras do dinheiro, enfatizou em outros escritos a funcionalidade dos vários tipos de conflitos para as sociedades modernas. Comparando os dois autores, Hirschman escreve: “O pensamento de Simmel é próximo do de Durkheim, no sentido que descobre na estrutura e nas instituições do capitalismo um equivalente funcional para os laços-simples dos costumes e da religião que alegadamente mantinham a sociedade tradicional integrada. Ele mostra que a divisão do trabalho da sociedade moderna e a importância do crédito para o funcionamento da sociedade promove um alto grau de confiança nas relações sociais. Com a sua efusividade e viva imaginação, Simmel foi talvez mais bem-sucedido que o austero Durkheim em convencer o leitor de que alguns elementos da sociedade de mercado promovem integração social, mais que o contrário” (Idem, p. 1472).

Apenas sociólogos como George Herbert Mead, Charles Cooley ou John Dewey e, mais tarde, Talcott Parsons, segundo a análise de Hirschman, retomam o argumento, atribuindo a relações face-to-face pequenos grupos e meios de comunicação a criação de mecanismos de coesão que a economia não era capaz de promover automaticamente.

Dessa forma, embora compartilhando com a tese do doux-commerce, a crença na capacidade do capitalismo gerar ordem e paz foi em outras esferas da vida social que não na economia que Durkheim e os outros procuraram o mecanismo dessa criação.

A tese da autodestruição para Hirschman, embora lembrando vagamente propostas marxistas, estaria corporificada mais claramente no Social Limits of Growth, de Fred Hirsch, e no conjunto das obras de Schumpeter, Marcuse, Daniel Bell e na Escola de Frankfurt, especialmente no pensamento de Max Horkheimer. Em resumo, a tese postula que o capitalismo não produz douceur nem qualquer virtude cordial; pelo contrário; ele é moralmente corrosivo e nisso ele encontra seus limites.

O trabalho de Hirsch é particularmente vital para ilustração: em primeiro lugar, o auto interesse típico do capitalismo dificulta a consecução de bens coletivos; em segundo, o sistema não tem condições, sendo o que é, de gerar motivações necessárias ao seu macromanagement; em terceiro, virtudes como verdade e confiança, necessárias à operação de qualquer economia fundada no contrato, desenvolveram-se por motivação religiosa, mas a base individualista e racionalista do mercado desestimula tais motivações. Em outras palavras, Hirsch retoma a velha ideia marxista sobre a autoprodução, pelo capitalismo, do germe de sua destruição.

Assim, depois da fase na qual se pensava que o capitalismo era formidável na sua capacidade de destruir o velho, repondo-o com o novo, constitui-se a crença de que “como todo grande conquistador, ele pode quebrar o pescoço” (p. 1468). E, pior, como Schumpeter mostra, o pescoço poderia se quebrar inadvertidamente: em seu argumento, não são razões econômicas que lhe decidirão a morte, mas o ambiente hostil que ele cria a si próprio, especialmente entre intelectuais.

Horkheimer é claramente um intelectual hostil: “Todas essas ideias acalentadas, desde a liberdade e humanidade até o desfrute de uma flor ou da atmosfera de um cômodo ... , isso, além da força física e interesse material, mantém a sociedade integrada, mas foram minadas pela formalização da razão” (cf. p. 1469, grifo de Hirschman).

E aqui Hirschman finaliza a exposição dessa tese, observando que, embora o capitalismo saia aparentemente rejuvenescido de suas várias crises, a expectativa de sua autodestruição tem sido pervagante ao longo de sua trajetória e, mais recentemente, desde 1968, reaparece revigorada.

A tese sobre os “obstáculos feudais” tem em Marx e seus escritos sobre a Alemanha seu mais notável inspirador. Isso porque, como lembra Hirschman em argumento intrigante, foi relativamente a esse fato que Marx desenvolveu a ideia de que o “problema com o capitalismo (...) não ê que seja tão forte que não se autodestrua e, sim, que é muito fraco para desempenhar o papel progressista que a história supostamente lhe assegurou” (p. 1475). Em suma, a tese assume que o capitalismo poderia até mesmo auxiliar na chegada a um mundo melhor (revolução proletária) “se, entretanto, não tivesse sido invadido por instituições e atitudes pré-capitalistas” (idem).

Dispõe-se, assim, de duas teses virulentas contra o capitalismo; no entanto elas são, entre si, contraditórias. A tese sobre sua autodestruição postula-o cego, forte e selvagem; a dos obstáculos feudais, incapaz e sem vigor.

Por último, mirando os Estados Unidos, alguns pensadores elaboraram a última proposta contemplada por Hirschman, ou seja, a “dos perigos de não se ter um passado feudal”.

O fato é que, relativamente a esse país, ninguém ainda afirmou que seu problema é estar demasiadamente preso a velhos e aristocráticos valores ou a práticas pré-capitalistas. Tocqueville, é claro, viu esse fato positivamente, afirmando que a grande vantagem dos americanos era terem nascido livres, ao invés de terem se tornado livres.

E, no entanto, essa tese é contestada por pensadores como Louis Hart, em The Liberal Tradition in America (1952), que prefere enfatizar os males da ausência de um passado feudal e de suas relíquias. De acordo com a exposição que nos faz Hirschman das ideias de Hart, tendo os americanos nascido iguais, foram privados das abundantes lutas pela igualdade assistidas na Europa e que geraram a diversidade que “é uma das raízes da genuína liberdade” (p. 1479). Assim, ressente-se a América tanto de movimento e ideias genuinamente conservadores quanto socialistas. Mais que tudo, essa ausência estimulou a tendência à tirania da maioria.

Dessa forma, Hirschman termina o texto observando que a defesa de. uma tese tem levado sempre ao surgimento de uma outra que lhe é contrária: a do doux-commerce à da autodestruição; desta última à dos obstáculos feudais; finalmente, daí para uma visão abençoada do feudalismo.

O PAPEL DA FRUSTRAÇÃO NA PASSAGEM DE CONSUMIDOR A CIDADÃO

A questão problematizada em De Consumidor a Cidadão é a alternância entre períodos históricos e pessoais de intensa participação pública e períodos de busca desenfreada de bem-estar pessoal. Coube-lhe, assim, retomar a velha distinção entre “público” e “privado”. É então que se elabora, para o trânsito da busca de “bem-estar material” ao “envolvimento do cidadão em questões cívicas ou comunitárias”, o conceito de decepção. O encaminhamento aparentemente é trivial: como na metáfora marxista, os atos de consumo ou de participação política trazem consigo os germes de sua própria destruição ou, como na afirmação kantiana, “dê a um homem tudo o que ele deseja e ainda assim, nesse preciso momento, ele sentirá que esse tudo não é tudo” (cf. p. 15, grifo de Hirschman). Mas não é, segundo o autor, devido a uma metafísica da natureza humana que as pessoas quase inevitavelmente se decepcionam e, sim, em virtude de uma dissonância entre o princípio da realidade e a imagem mental que se forja quanto à satisfação proporcionada por um bem simbólico ou material; em última análise, a decepção é causada porque se espera demais da realidade, como afinal a língua portuguesa terminou por aceitar com sua equivalência entre o verbo lograr e o substantivo logro. Mas é um certo tipo de decepção, que ele chama de “não biodegradável”, que lhe interessa, aquela para a qual o poeta-pintor William Blake escreveu que “nunca se sabe o que é suficiente a menos que se saiba o que é mais que suficiente” (p. 23), em outras palavras, a decepção para a qual o ajustamento é mais complicado.

Por isso são as decepções com o consumo que lhe interessam, endossando a tese de Tibor Scitovsky (1970Scitovsky, Tibor (1976), The Joyless Economy, Nova Iorque, Oxford University Press. ) de que a economia contemporânea constitutivamente é infeliz porque, ao proporcionar conforto, inversamente não produz prazer, pois que “prazer é a experiência de viajar do desconforto para o conforto, enquanto este último é atingido no ponto de destino. Infere-se daí uma oposição entre prazer e conforto, pois, para se experimentar o prazer, é necessário sacrificar temporariamente o conforto” (p. 32).

Ressalta Hirschman que a contradição entre conforto e prazer foi provavelmente a razão que se responsabilizou pela ambivalência com que a nova riqueza material, gerada pelo capitalismo, foi recebida pela tradição mais clássica do pensamento liberal, por ele anteriormente já contemplada em As Paixões e os Interesses. Novamente, o que se propõe ressaltar é que a propensão à decepção, muito mais que traço de uma natureza humana hipoteticamente construída, é também produzida pelo modo de pensar culto sobre nossa civilização. Paradoxalmente, Adam Smith, fosse em A Riqueza das Nações, fosse em Theory of Moral Sentiment, atacou a opulência e a aquisição de mercadorias, que por vezes alcunhou de loucura, e as próprias mercadorias, às quais chamou de “adornos e bugigangas”, “algo frívolo e inútil”.2 2 Hirschman lembra que, muito antes de escrever seu inquérito sobre a riqueza das nações, em The Theory of Moral Sentiments, Smith já usara a metáfora da mão invisível, mas em sentido inverso ao que, com sua obra posterior, chamou atenção de seu público. Na primeira ocasião, Smith escreveu sobre o desejo de possuir” adornos de utilidade frívola por parte de muitas pessoas”, que funcionam sob “a ilusão que desperta e mantém em movimento contínuo a indústria humana” (p. 53, grifo de Hirschman). Assim, originalmente, a mão invisível significa que, atomizadamente, as pessoas não lutam por seus interesses e sim por uma ilusão, corporificada, pejorativamente, em “adornos”, “bugigangas”, de caráter “fútil”, “desprezível”, “frívolo”. Já então desconfiava-se do consumo e criava-se uma predisposição à decepção quanto à satisfação que poderia trazer.

As condenações às novas mercadorias e ao desejo de possuí-las não eram apenas de Adam Smith: à medida que aumentava a riqueza das nações, a condenação ao ser humano aquisitivo se aguçou. Na Inglaterra vinham, dentre outros, de Swift, Pope e Bolingbrooke; na França, seus maiores críticos foram, como esperado, Rousseau e Robespierre. Rousseau usou um termo depreciativo, colifichet, para designar o mundo dos objetos: frívolo, de pouca utilidade e de mau gosto. Robespierre, leitor de Rousseau, inventou seu próprio termo, chétives marchandises, mercadorias andrajosas.

Assim, procurando basear-se em fatos e na literatura, Albert Hirschman constata a existência de uma discrepância recorrente entre expectativas de consumo e o prazer de fato produzido pelo mesmo, tão mais volátil quanto mais durável o bem;3 3 Porque, nesse caso, ele termina por ser taken for granted. constata, ademais, que uma atitude hostil à satisfação exagerada está contida nas ideias de nossos pensadores mais autorizados. Seu passo seguinte é o de postular que a hostilidade surgida contra o consumo é tanto maior quanto maior o caráter de novidade do produto, frequentemente adjetivado como “modernoso”, ou “novidadeiro”. A essa crítica se somam duas outras, a primeira, de ordem existencial, que afirma que os produtos novos são inúteis porque, de qualquer forma, não atingem o que de fato importa, o medo, a dor, a ansiedade ou a morte e, a segunda, seu contrário: os novos objetos são ameaçadores e potencialmente perigosos (o mito do pecado original, a punição de Prometeu, a caixa de Pandora etc.) e, nesse último caso, nem mesmo o avanço da ciência tem sido capaz de contrabalançar o mito do Conhecimento Proibido. Assim, por todas as razões somadas, Hirschman endossa a tese de Bernard Shaw contida numa frase por ele reproduzida: “Há duas tragédias na vida: uma delas é não conquistar aquilo que o coração deseja. A outra é conquistar”.

Uma vez que é quase inevitavelmente decepcionado em sua expectativa de prazer, por mais conforto que tenha atingido (e até por isso mesmo), cabe ao consumidor do autor voltar-se para outra direção em busca de satisfação. Embora seja plausível afirmar que a decepção na esfera pública provoque atração pelas atividades privadas, o oposto não é necessariamente evidente, embora seja, como se previa de início, a hipótese de Hirschman, mesmo porque ela já havia sido antecipada: em Exit, Voice and Loyalty, Se a decepção pode significar puro afastamento, ela pode também indicar manifestação. E manifestação é essencialmente compreendida como pública: ‘’O afastamento a que estamos nos referindo significa afastamento da decepcionante busca da felicidade através do consumo privado, afastamento que frequentemente toma a forma de virada no sentido da ação na esfera pública. Em muitas de suas ocorrências (embora não todas), a manifestação é, evidentemente, a ação pública por definição. Portanto, reações do tipo manifestação, que derivam da experiência de consumo decepcionante, reforçarão a reação do tipo afastamento - e a tendência de uma mudança no sentido da ação na esfera pública consequentemente crescerá” (p. 71).

Uma experiência decepcionante de consumo provoca mais que um puro afastamento ou rejeição da mercadoria ou serviço: pode implicar a perda da crença na ideologia da felicidade privada. Nesse ponto, Hirschman introduz um importante acréscimo à teoria do consumidor. Para essa, a escolha do consumidor é o reflexo de uma escala de preferência, inferida da própria escolha; em outras palavras, se se altera a escolha é porque a escala se alterou. Mas o que interessa ao autor é precisamente o que não importa para a teoria: por que mudaram as preferências? Para tanto, seguindo uma sugestão de Harry G. Frankfurt (1971), adota a distinção entre vontades e desejos de primeira ordem, identificados nas rotinas diárias dos indivíduos, e de segunda ordem, ou desejo de desejos, não necessariamente coincidentes entre si.4 4 A consequência dessa distinção é cáustica e merece ser copiada: “Frankfurt considera desprovidos de essência humana aqueles capazes de ter apenas volições de primeira ordem. Ele propõe designar essas pobres ‘não-pessoas’ através do termo inepto. Os ineptos são totalmente controlados por seus desejos de primeira ordem e nunca param para criticá-los ou conscientemente tentar modificá-los. Infere-se daí que a teoria do consumidor, um dos mais sofisticados ramos da economia, tem até aqui tratado exclusivamente de ineptos subumanos” (p. 76).

Como já foi afirmado, nem todas as decepções levam a manifestações ou redirecionam o individuo para a esfera da ação pública. Elas assim o farão apenas se um conjunto de vontades de segunda ordem já tiver sido previamente estabelecido, de modo a favorecer tal redirecionamento. Em suas palavras, “em determinado momento, o agente adquire vontade de segunda ordem, que o incitam a adotar uma nova ordenação de preferência em que o envolvimento em questões públicas recebe destaque maior em relação à ordenação até então predominante; após um período de inércia inicial, algum evento catalisador faz com que o agente aja de acordo com essas vontades de segunda ordem” (p. 79). A decepção, por suposto, tem a função catalisadora.

E aqui Hirschman volta à sua questão inicial: o que é exatamente essa ação pública? Em que consiste essa felicidade que ela produz? Pois bem, ela é prazerosa porque, desde Stuart Mill, existe a crença de que a participação é um valor em si e não, como sugeria o utilitarismo paterno, um meio para o alcance de alguma meta.

Entretanto, a história não acaba aí e esse exercício não é concebido como o desfecho feliz de uma caminhada do quintal para a praça ou de um romance sobre a metamorfose de uma decepção em prazer. Porque também o lugar de chegada, cheio de riscos e de desilusões, pode patrocinar um eventual retorno ao mundo da maioria silenciosa ou do fim da ideologia. E novamente Bernard Shaw lhe é útil: na política, tanto o que não se consegue fazer quanto o que se consegue são decepcionantes. Isso porque, em primeiro lugar, o que se espera da ação política é puro imaginário (ao contrário do da ação de consumo, quando o que se espera frequentemente é uma “coisa”); em segundo, esse imaginário está quase inevitavelmente além da possibilidade da realidade, visto que “a pobreza da nossa imaginação ( ... ) paradoxalmente produz imagens de mudanças ‘totais’ em vez de expectativas mais modestas” (p. 103).

Numa segunda e mais importante instância, a relação entre a natureza da atividade pública, como ela é vivenciada, e as expectativas por ela geradas constitui os fatores a serem considerados para a compreensão das desilusões nesse campo. Nesse sentido, por trivial que possa parecer, o tempo exigido para o desempenho da atividade política é erigido à altura de principal elemento decepcionante: o caráter excessivamente demandante dessa atividade pode provocar uma também forte reação contra a prática da cidadania. Aqui, o argumento apoia-se na crítica de Benjamim Constant aos apelos participativos ao estilo de Rousseau e à sua defesa dos princípios representativos, sob a alegação de que “a liberdade nos será tanto mais valiosa quanto maior for o tempo que o exercício de nossos direitos políticos nos permitir dedicar a nossos interesses particulares”. Daí provavelmente a lembrança da observação ferina de Oscar Wilde ao socialismo: ele não daria certo porque ocuparia todas as noites dos indivíduos.

Em terceiro lugar, Hirschman chama atenção para o fato de que o contato com a realidade da política, as estranhas alianças que encobre e as pequenas e grandes traições a pessoas e princípios que exige, podem surpreender mal àqueles que dela se aproximam em busca de uma felicidade que o âmbito estritamente particular de sua vida lhes negara.

Por último, é no exercício do sufrágio universal que ela busca uma nova fonte de recusa à prática da cidadania, porque “o sufrágio universal impede que os cidadãos manifestem a intensidade de seus sentimentos em relação a questões públicas” (p. 113). Em última análise, o voto pode promover sentimentos de impotência, especialmente em situações de excitação política. Por isso mesmo, é significativa a distinção entre sociedades nas quais o voto é visto como o único veículo virtual de influência e outras, nas quais ele coexiste com uma gama mais variada de formas de participação. No primeiro caso, por exemplo nos Estados Unidos, os partidos tendem a ativar-se apenas em épocas eleitorais e, nas outras, como na França, a apresentarem existência mais permanente. Comparativamente, os dois tipos de sociedade provocam reações distintas nos ímpetos de participação de seus cidadãos, frustrando-os ou estimulando-os, excitando ou acalmando a imaginação política.

O conjunto desses fatores pode, portanto, provocar o retorno à privatização.

Cabe à análise de Hirschman avaliar, agora, depois da experiência política frustrada, os atrativos da vida privada relativamente à pública: em primeiro lugar, aquela tolera a incorporação de motivos públicos no seu interior, isto é, nela é sempre possível acreditar-se que cada um, isoladamente, cuidando do seu interesse, produzirá um efeito positivo sobre os demais e sobre o conjunto (daí explicar-se-ia o “extraordinário sucesso da teoria da mão invisível”); em segundo lugar, a luta pela riqueza é vista como um jogo em que todos podem ganhar, enquanto a luta pelo poder é vista como um jogo de soma zero e, portanto, onde o fracasso é quase inevitável.

Com o retorno à vida privada, Hirschman termina o livro com uma moralização pertinente: nem há garantias de uma vida livre de decepções e nem existem remédios duradouros para apaziguá-las.

DA ECONOMIA À POLÍTICA

Em Paixões e Interesses, Hirschman afirmou que a origem do texto foi sua decepção com “a incapacidade da ciência social contemporânea de lançar alguma luz sobre as consequências políticas do crescimento econômico” (p. 13). Em De Consumidor a Cidadão, a direção do trânsito entre os dois papéis do indivíduo está dada no próprio título. “Rival Interpretations of Market Society” toma o mercado como a força motriz de múltiplas interpretações sobre o funcionamento da sociedade capitalista moderna, que, em última análise, identifica-se com o próprio mercado. Assim, pois, em seu conjunto, os três textos revelam um programa economicista de pesquisa sobre as relações entre o econômico e o político que, como tal, subordina o campo do segundo ao primeiro.

Tal programa se esclarece mais ainda quando, na apresentação de Paixões e Interesses, o autor afirma que está tratando de maneiras de pensar geradas por um momento histórico no qual tanto a economia quanto a política não tinham tido ainda sua reflexão submetida a limites disciplinares. Entretanto, com a ‘’expansão econômica”, especialmente dos séculos XVII e XVIII, fronteiras discursivas se estabelecem, bem como a preocupação com as conexões entre aqueles domínios; “consequentemente os filósofos e os economistas políticos puderam tomar partido livremente e especular sem inibições sobre as prováveis consequências, por exemplo, da expansão comercial para a paz, ou do crescimento industrial para a liberdade’’ (Paixões e InteressesHirschman, Albert O (1979). Paixões e Interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo, Rio de Janeiro, Paz e Terra. , p. 13, grifos meus). Quando Hirschman pensa exemplarmente, pois, ele o faz em termos de uma causalidade que se estabelece do econômico para o político. Assim, para que suas ideias sobre a sociedade se apreendam, impõe-se a investigação daquilo que por ele é compreendido como econômico e em que consiste propriamente o político.

O econômico, de fato, não apresenta maiores dificuldades quanto ao que convencionalmente se abarca com o termo, isto é, o mercado, cujas fronteiras analíticas teriam começado a se demarcar com Adam Smith. A interpretação hirschmaniana é de que Smith subjugou literalmente as paixões aos interesses, tornando-as sinônimo redundante. Só existiria uma paixão, a do interesse, interesse é sempre interesse privado e interesse privado significa o bem-estar material do indivíduo, obtido no mercado, “sem qualquer intervenção da lei” (Riqueza das Nações, cf. idem, p. 104).

Nihil novi sub sole: como Jacob Viner demonstrou, o conceito de “homem econômico’’ ao invés de consistir, como alegadamente, uma invenção da escola econômica clássica, já era um importante elemento da doutrina mercantilista. No entanto, segundo ele, num ponto que é crucial para a demarcação do território econômico, “entre as atitudes das duas escolas relativamente ao ‘homem econômico’, se suas posições extremadas são contrastantes, existe essa importante diferença, isto é, os economistas clássicos argumentavam que buscando seus interesses egoístas, por uma providencial harmonia de interesses, os homens estavam prestando os melhores serviços que eram capazes ao bem comum ou, ao menos, prestando melhor serviço do que se suas atividades estivessem fortemente reguladas pelo governo, enquanto os mercantilistas deploravam o egoísmo dos negociantes e insistiam que para evitar a ruína da nação era necessário submetê-la a rigorosos controles’’ (Viner, cf. Colletti, 1976Colletti, Lucio (1976). “Mandeville, Rousseau and Smith”, in: From Rousseau to Lenin, Londres, New Left Book. , p. 201). Também é fato conhecido, já anotado por muitos, inclusive por Marx, que Smith deveu muito a Mandeville, ao suporte que este deu ao laissez-faire e ao seu famoso argumento de que vícios privados, tais como avareza e amor ao luxo, eram public benefits. Contudo, Smith abandonou o tom ofensivo de Mandeville e, embora aceitando suas conclusões em substância, tornou-as mais palatáveis ao gosto da época. Em outras palavras, o que Smith acrescentou a Mandeville foi que os interesses individuais não eram necessariamente danosos aos outros, e, portanto, não deveriam ser interpretados como vícios.

Assim, para Hirschman, Smith é visto como o símbolo do encerramento de uma era na qual a economia era considerada uma atividade encapsulada pela moral. A separação de uma faceta aquisitiva do indivíduo como sendo aquela propriamente submetida ao conhecimento econômico é claramente aceita por Hirschman. É essa a faceta que move o território consumidor em De Consumidor a Cidadão; aí, o indivíduo é maximizador e os atos de consumo são realizados porque se espera que gerem satisfação individual (p. 15). Econômico, portanto, é o espaço da troca, o mercado, no qual consumidores se encontram com produtores. Esse é o acordo de Hirschman com a ciência econômica. Mas aqui se inicia também seu desacordo: em primeiro lugar, ele não acredita na “soberania do consumidor”; em segundo, não acredita em ajuste passivo de preferências. Em outras palavras, não aceita a postulação smithiana de que o mercado gere felicidade, seja individual, seja social. Pelo contrário, o mercado consistiria numa fonte permanente de insatisfação dos consumidores; decepcionados, eles voltar-se-iam para outra direção em busca de alguma felicidade e, assim, ao fim e ao cabo, o mercado produziria a política. Mas essa produção não é mecânica como na tradição marxista; requintado, Hirschman a percebe apreensível apenas por instrumentos da análise sociológica e filosófica.

Uma das postulações centrais de que Hirschman se utiliza para essa passagem do mercado à política é que o ser humano é naturalmente insaciável; daí, a satisfação obtida pelo consumo é essencialmente volátil. Se adotarmos o precedente do próprio autor em apoiar-se na literatura para ilustrar seus argumentos, aqui se pode lembrar, como esforço adicional, o conto “El Inmortal”, de Jorge Luiz Borges, no qual um soldado dos exércitos de Diocleciano, cansado das lutas, procura e encontra, na direção do ocidente e onde termina o mundo, a Cidade dos Imortais. Aí o tempo parara, os habitantes confundiam-se com trogloditas, eram invulneráveis à piedade, não existiam méritos morais ou intelectuais; nesse lugar, um homem havia despencado numa fenda profunda de onde não conseguia sair e onde lhe abrasava a sede, no entanto demoraram setenta anos para jogar-lhe uma corda. O personagem conclui que “tudo entre os mortais tem o valor do irrecuperável e do sujeito ao destino. Entre os Imortais, pelo contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o presságio fiel de outros que no futuro o repetirão até a vertigem” (Borges, 1971Borges, Jorge Luiz (1971). El Aleph, Buenos Aires, Emecé. , p. 20). Mas foi Max Weber, tão caro a Hirschman, que melhor formulou a relação entre a mortalidade e a insaciedade e, como bom sociólogo, desnaturalizou-a. Para ele, é o progresso e, especialmente, o progresso técnico, que torna a vida insaciável e despojada de sentido. Abraão, por ‘exemplo, morrera “velho e saciado” porque vivera o que a vida tinha a lhe oferecer; mas “o homem moderno, colocado no meio do enriquecimento continuado de cultura, pelas ideias, conhecimentos e problemas, pode ‘cansar-se’ da vida, mas não saciar-se dela” (Weber, 1971Weber, Max (1968). “Ciência como Vocação”, in: Mills, C. Wright (ed.), Ensaios de Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar. , p. 166). Hirschman reconhece que a insaciedade é “característica de uma certa fase da civilização ocidental” (De Consumidor a CidadãoHirschman, Albert O (1983). De Consumidor a Cidadão: atividade privada e participação na vida pública, São Paulo, Brasiliense. , p. 16, grifos de Hirschman), mas, ao contrário de Weber, não prioriza o progresso técnico como o elemento que a sustenta. Em outras palavras, a vida ou seus objetos não perdem significado apenas porque os horizontes estão permanentemente se movendo em direção ao infinito, mas porque, em si próprios, eles carecem de significado. A apropriação não geraria maior vontade de apropriação, mas apenas tédio. Não por outra razão, é evocada uma carta de Mme. Deffaud e Horace Walpole, na qual “ela fala de seu ‘imenso desejo de deixar este mundo’ e dá como motivo principal ‘o vazio encontrado nos objetos que nos cercam’” (idem, p. 58). Hirschman realiza, por baixo de seu bom humor e brilho, uma crítica violenta à busca da felicidade pelo consumo ou de um sentido existencial do mercado, endossando a velha tese marxista de que mercadorias são o que são, puro valor de troca; o resto é desencanto e nesse mundo movido pelo mito de Sísifo, restaria apenas a política.

Uma vez insaciável, segue-se quase automaticamente o desconcerto com a obtenção de uma mercadoria ou um serviço e o mercado, e a frustração, transformada em protesto, consiste na mola da atividade política. Cabe, pois, uma discussão do que Hirschman considera como política.

Já se viu que em De Consumidor a Cidadão, para a elaboração do significado de atividade política, ele se remete a Hannah Arendt, especialmente a seu The Human Condition e à distinção, aí explorada, entre vita activa e vita contemplativa.

Contrariamente a Hirschman, Arendt considerava que conceitos tais como ‘’natureza humana” não podem ser apreendidos porque os teóricos teriam de enfrentar a tarefa impossível de “saltar sobre suas próprias sombras” (Arendt, 1970Arendt, Hannah (1970). The Human Condition, Chicago, Chicago University Press. , p. 10). Assim, não é a natureza e, sim, a condição humana que lhe interessa. Para a realização desse interesse, se é verdade que retorna aos gregos, também a é que ela inverte a hierarquia entre vita activa e vita contemplativa que lhes era adscrita.

Para os gregos, vita activa era essencialmente atividade política, a vida da ação (action). Labor e work, por sua vez, eram atividades ligadas à satisfação de necessidades materiais, enquanto a ação ou praxis dava sustento à vida na polis. Assim, se os domínios da necessidade e da ação eram parte da vita activa, o da liberdade o era da vita contemplativa. Segundo Arendt, desde o julgamento e morte de Sócrates, a filosofia ocidental esteve consideravelmente mais preocupada com a própria filosofia do que com a política, isto é, embora os filósofos possam ter demonstrado preocupação com questões políticas, eles não as fizeram um domínio da filosofia. Elizabeth Young-Bruehl, que em For Love of the World (1982Young-Bruehl, Elizabeth (1982). Hannah Arendt: For Love of the World, New Haven, Yale University Press. ) escreveu uma longa e comentada biografia intelectual de Hannah Arendt, refere-se ao impacto que causou a esta a leitura do texto de Tocqueville, Democracia na América, e, especificamente, de sua afirmação que para um novo mundo era necessária uma nova ciência da política. E, no entanto, o século XIX, embora tivesse produzido uma nova teoria da história, não fez o mesmo na política. Então seu comentário: “Cada vez que a idade moderna teve razão em esperar por uma nova filosofia política, ela recebeu, ao contrário, uma filosofia da história” (Arendt, 1970Arendt, Hannah (1970). The Human Condition, Chicago, Chicago University Press. , p. 298). Essa é a tarefa que ela se propõe, deslocar a política da necessidade e localizá-la no espaço da ação, isto é; na capacidade de começar algo novo, imprevisível e não fabricável.

No entanto, a composição hirschmaniana da política, embora possa ter sofrido as admitidas influências do pensamento de Hannah Arendt, difere dele em pelo menos um ponto significativo: Hirschman deduz a política da economia. Essa dedução se fez de duas formas: em primeiro lugar, a política é identificada à economia; em segundo lugar, a política é produzida pela economia. Em qualquer dos dois casos, a política é subordinada e apreensível com instrumentos teóricos externos a ela mesma.

Tanto em Exit, Voice and Loyalty quanto em De Consumidor a Cidadão, a lógica que preside o conhecimento do indivíduo no mercado é a mesma que preside a análise de seus atos como cidadão. O indivíduo é sempre visto utilitariamente, como maximizador, e, portanto, indiferenciadamente às situações, pode-se entendê-lo consumidor, seja de bens e serviços adquiridos no mercado, seja de símbolos políticos. Como o próprio Hirschman afirma: “Cada sociedade aprende a viver com uma certa dose de ( ... ) disfunção ou mau comportamento; mas, a menos que o mau comportamento se realimente, promovendo uma decadência geral, a sociedade deve estar apta a encontrar forças que farão esses atores faltosos reverterem ao comportamento requerido para seu funcionamento apropriado. Este livro reconhece, inicialmente, essas forças tal como operam na economia; entretanto, os conceitos a serem desenvolvidos serão aplicados não apenas a operadores econômicos, como firmas, mas a uma variedade mais ampla de organizações e situações não econômicas” (Exit, Voice and LoyaltyHirschman, Albert O. (1972). Exit, Voice and Loyalty: responses to decline in firms, organizations and states, Cambridge (Mass.), Harvard University Press. , p. 1).

Exit, Voice and Loyalty inicia-se pela declaração de que se aplicará às demais esferas de atividades o mesmo instrumental analítico usado para apreensão das forças que operam na economia, tratando-se, assim, de uma empreitada declaradamente imperialista. Seu argumento desenvolve-se a partir de um ponto inicial, qual seja, um produto “vendável” (saleable) de uma firma, posto no mercado, à disposição de consumidores. No entanto, supõe-se que os princípios posteriormente declinados na análise sobre as relações entre a firma e o consumidor sejam “aplicáveis a organizações (tal como associações voluntárias, sindicatos, partidos políticos) que prestam serviços a seus membros sem contrapartida direta imediata” (p. 3). Dessa maneira, presume-se que, em algum grau substancial, um partido político, ou qualquer organização política, funcione regido por mecanismos semelhantes ao de organizações econômicas; a mesma semelhança é postulada quanto aos agentes dessas organizações.

Com De Consumidor a Cidadão passa-se o mesmo e, por exemplo, a frustração de um cidadão com o exercício de sua cidadania identifica-se à insatisfação de um consumidor com seu consumo: a decepção origina-se de uma avaliação negativa da relação custo/benefício envolvida. Aqui, como em relação ao desaponto intrínseco ao mundo dos objetos, Hirschman realiza uma primorosa análise sobre as frustrações provocadas pelo envolvimento político. Tendo abandonado o território dos interesses, o indivíduo tende a abraçar a política como paixão; sem utilidade pessoal, seu valor estaria na construção de um mundo novo. Mas o que resulta na maior parte das vezes desse envolvimento é o sentimento de impotência, pois, tanto porque a maior parte das lutas não tem êxito quanto porque tem, a causa é menos atrativa que o antecipado. Em outras palavras, exatamente em virtude de seu caráter desinteressado, a atividade política inverte o conteúdo dos elementos da equação custo/benefício. O custo nela é sempre um benefício pois na política a felicidade está na ação (Rvan, 1972); o benefício, por sua vez, é sempre passageiro. Afinal, o que faria um ferrenho e dedicado defensor da República, uma vez proclamada esta?

Mas o que cabe ressaltar é que, intrigante como é a análise da decepção pública, ela identifica-se à da decepção privada: os agentes da ação são sempre indivíduos; os indivíduos são sempre maximizadores; por serem maximizadores, seja porque o mundo dos objetos é desencantado, seja porque a felicidade pública é ilusória, a decepção é inevitável; finalmente, a decepção em qualquer das duas esferas - econômica e política - é resultante de uma relação inadequada entre o imaginário e o princípio da realidade.

Mas o segundo ponto distancia ainda mais Hirschman de Hannah Arendt: o caminho de seu raciocínio sobre a política começa a ser traçado no econômico, isto é, no espaço da necessidade e do interesse. Desapontado com a política, o indivíduo pode, é fato, voltar-se para os ganhos privados. Mas essa é uma possibilidade contemplada superficialmente e, de resto, não é tratada como estando na origem da atividade econômica. A economia, sim, geraria a política.

Hirschman não concorda com a interpretação usual de que vila contemplativa signifique vida privada. A rigor, ele pretende uma distinção no interior da vita activa entre a atividade política, por ele tratada como a atividade de interesse público, e atividade privada, isto é, a busca de uma vida melhor, sendo “melhor” entendido como bem-estar material. Segundo ele, “é estranhamente recente a descoberta de que há um tipo de vida muito ativa, abraçada também por parcelas cada vez maiores das classes mais altas, cuja preocupação não é absolutamente o bem-estar público, mas a produção e acumulação de riqueza particular” (De Consumidor a CidadãoHirschman, Albert O (1983). De Consumidor a Cidadão: atividade privada e participação na vida pública, São Paulo, Brasiliense. , p. 12). Quanto a Arendt, seu tratamento de work e labor incorporara a mesma questão, a do cuidado material da vida. No entanto, Hirschman prossegue, adotando ele próprio o que em Paixões e Interesses assinalara como uma descoberta do século XIX, isto é, “a luta dos indivíduos por seus interesses materiais particulares é uma forma de conduta humana plenamente legítima, que pode, na verdade, ser preferível, do ponto de vista da sociedade, a uma vida de intenso envolvimento em questões públicas ( ... )” (De Consumidor a CidadãoHirschman, Albert O (1983). De Consumidor a Cidadão: atividade privada e participação na vida pública, São Paulo, Brasiliense. , p. 12, grifo de Hirschman). Em conclusão, embora realisticamente aceitando que o mercado possa decepcionar a ser fonte de ações subversivas, ele também acredita que, do ângulo da sociedade, a ordenação dessa última deva muito à busca de bem-estar material privado.

Aqui cabe recordar o que Hirschman entende como ação de interesse público, especialmente porque ela é identificada por ele à ação política. Esse é outro caso no qual a política é lida através de visores econômicos. Segundo ele, “atividade pública, a atividade no interesse público, empenho na busca da felicidade pública se referem à ação na esfera política, ao envolvimento do cidadão em questões cívicas ou comunitárias” (idem, p. 11, grifos de Hirschman); “onde quer que a esfera pública seja sentida como uma das alternativas à privada - está claro que restam outras alternativas, como a busca da verdade, da beleza ou de Deus -, a decepção através da atividade de consumo tende a acabar fomentando a ação na esfera pública ( ... ). Em muitos casos de uma ocorrência (embora não em todos), a manifestação é, evidentemente, a ação pública por definição” (idem, pp. 70-1, grifos de Hirschman). Daí que, em primeiro lugar, a decepção com o privado leva frequentemente à manifestação; em segundo lugar, manifestação é ação pública; em terceiro lugar, ação pública é ação política.

No raciocínio acima delineado é imperativo que se compreenda o sentido que Hirschman está adjudicando à “manifestação”, porque ela é o instrumento próprio da política: a manifestação “vocaliza” a política ou a política fala através dela: “Voz é aqui definida como qualquer tentativa para mudar, mais que para escapar, qualquer estado de coisas ao qual se tem objeção, seja por meio de petição individual ou coletiva ao gerente diretamente encarregado, seja através de apelo à autoridade maior, com a intenção de forçar uma mudança na gerência, ou através de vários tipos de ação ou protesto, inclusive os destinados a mobilizar a opinião pública” (Exit, Voice and LoyaltyHirschman, Albert O. (1972). Exit, Voice and Loyalty: responses to decline in firms, organizations and states, Cambridge (Mass.), Harvard University Press. , p. 30). Em outras palavras, nas suas próprias, seu âmbito é o da política.

Que a política exija manifestação não parece haver maiores dúvidas. A inspiradora de Hirschman, Hannah Arendt, já havia mesmo postulado que o totalitarismo significa a inexistência de política porque intrinsecamente é um sistema proibitivo da manifestação. Em outras palavras, existe uma larga tradição que entende a política como a praça - se se quer compreendê-la a partir de suas próprias razões não parece existir caminho alternativo senão esse. Contudo, a peculiaridade de Hirschman relativamente a essa tradição, corporificada em Arendt (e o apelo a ela, é bom lembrar, é do próprio autor), reside na motivação que faz o indivíduo sair de sua casa: para Arendt é o destino da comunidade; para Hirschman, ele é expulso de sua casa pela decepção com o consumo. Para ele, pois, a ação política origina-se de uma ação que inicialmente foi “interessada”. A paixão começa no interesse e daí, inclusive, a identificação de voice com articulação de interesses e defesa do consumidor.

“Rival Interpretations of Market Society” consiste numa outra forma, mais sutil, de economicismo: aqui o pensamento político se transforma em pensamento econômico e sociedade moderna, ou racional, ou burocrática, ou capitalista, é entendida apenas na sua dimensão de mercado. Essa, todavia, é uma perigosa redução. Por exemplo: é notório o desalento de Daniel Bell com a sociedade contemporânea, em especial com os Estados Unidos. Ele mesmo escreve sobre “o sentido de desumanização radical da vida, que acompanhou os acontecimentos das últimas décadas” (1980, p. 15). No entanto, quando procura reconstruir o que foi a vida nas últimas décadas, embora, óbvio, reconhecendo o caráter industrial da sociedade americana e sua expansão econômica, de fato os fatores que iluminam sua análise são a introdução da psicologia social nas relações de trabalho, o bipartidarismo, a tendência populista da concepção democrática de Jefferson, a formação e atuação dos sindicatos americanos etc.

A mesma observação sobre Daniel. Bell poderia ser estendida a outros intérpretes tomados como referência no citado artigo de Hirschman: se é fato que a inspiração marxista, seja a ortodoxa, seja a da Escola de Frankfurt, contida nas teses sobre ·os “grilhões feudais” e a tendência autodestrutiva do capitalismo, está, na maior parte das vezes, em verdade referida ao funcionamento econômico da sociedade, causa primeira de seus males ou benesses, o mesmo não se passa com outros pensadores como Daniel Bell, Talcott Parsons ou Durkheim, mesmo em De La Division du Travail Social.

Contudo, o economicismo de Hirschman frequentemente não é claro. Seu apelo à inspiração de Hannah Arendt, seu tratamento da política como o espaço público por excelência, fazem de sua obra um evento especial entre os economistas, senão entre os próprios analistas políticos. Em alguns casos, mesmo a relação de subordinação entre o econômico e o político se inverte e ele afirma: “Minha pretensão é de que a difusão de formas capitalistas deveram muito ( ... ) a uma desesperada busca de evitar a ruína da sociedade, ameaça permanente na época devido aos precários arranjos no que se referia à ordem interna e externa” (Paixões e InteressesHirschman, Albert O (1979). Paixões e Interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo, Rio de Janeiro, Paz e Terra. , p. 132). Se a inversão, claro, não resolve o problema, o da liberação da dominância entre campos do conhecimento ou entre seus respectivos territórios, demonstra a consciência dele de que Hirschman é portador. Nesse caso, sua teoria sobre a decepção indica a vontade de superá-lo pela construção de vias de acesso de mão dupla entre a busca da felicidade e a busca do conforto.

A última questão que aqui se pretende levantar se refere à concepção hirschmaniana de sociedade. Isso porque, explicitamente em, pelo menos, Paixões e Interesses e De Consumidor a Cidadão, ele coloca na sociedade o objeto do seu trabalho: no primeiro, retorna à questão weberiana de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, procurando o caminho pelo qual a sociedade, depois de desprezar o lucro e condenar a usura, passou a considerar dignos o comércio, os bancos e outros empreendimentos rentáveis; no segundo, pretende construir ciclos de comportamento coletivo, isto é, descobrir as razões que movem o comportamento social de fases de intensa participação à apatia e vice-versa. No entanto, na realização de seus propósitos, o indivíduo torna-se elemento observado. Daí que se impõe, ao menos tentativamente, compreender a relação entre indivíduo e sociedade no seu pensamento.

Louis Dumont (1970Dumont, Louis (1970). “Religion, Politics and Society in the Individualist Universe”, Proceedings of Royal Anthropology Institute of Great Britain and Ireland. ) indica que o pensamento liberal, embora parta sempre da premissa de que o indivíduo carrega dentro de si a essência do humano, pode pensar essa relação de duas maneiras distintas: a sociedade como uma coleção de indivíduos ou a sociedade como um indivíduo coletivo. É na primeira vertente que se inclui Hirschman; consequentemente, é maior seu interesse pelos indivíduos do que pela nação ou pela sociedade. A sociedade, nele, se deduz do indivíduo, aparecendo como a entidade empírica correspondente à humanidade. Assim, elementos analíticos como a natureza humana lhe são importantes porque a humanidade apresenta-se sempre em estado·natural.

Esses são fragmentos do pensamento recente de Hirschman; ele, seguramente, por sua ousadia em romper fronteiras com segurança teórica, está por merecer análises mais detalhadas. Em geral, ele próprio tem caracterizado sua última produção de forma lúdica, como tendo sido escrita em ambientes de férias, quase de brincadeira. No entanto, Paixões e Interesses e “Rival Interpretations” seguem a linhagem de Tawnay, Sombart e Weber e acrescentam muito à análise da vitória da ética burguesa no mundo ocidental. Exit, Voice and Loyalty e De Consumidor a Cidadão são também textos complementares em vários sentidos: ambos são provocadores à ortodoxia do pensamento econômico e ambos apresentam formas inovadoras e intrigantes de tratamento da mobilização do indivíduo para a política. Como ele mesmo escreve, foram-lhe sugeridas formas mais simples de abordar suas questões. No entanto, preferiu a forma exagerada porque assim é a política. Esse total fascínio de um economista pela política fez com que escrevesse de uma forma desavergonhadamente simples sobre questões clássicas: por isso mesmo vários nós puderam ser desamarrados como, por exemplo, o da repulsa que a política frequentemente provoca e que está no cerne tanto da atitude anarquista, quanto da conservadora, relativamente a ela. Ao mesmo tempo, a passagem entre a economia e a política, se não foi totalmente desobstruída, ficou mais transitável. Suas ideias não estão prontas; elas próprias frequentemente apresentam obstáculos. Paradoxalmente, esse é seu maior mérito: utilizando seus termos, abandonar o conforto da teoria estabelecida e correr o risco da busca do prazer propiciado por novas ideias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Young-Bruehl, Elizabeth (1982). Hannah Arendt: For Love of the World, New Haven, Yale University Press.
  • 1
    Toma-se como referência não apenas o texto de Hirschman, como também sua resenha, de minha autoria, em colaboração com Ricardo Tolipan (1981).
  • 2
    Hirschman lembra que, muito antes de escrever seu inquérito sobre a riqueza das nações, em The Theory of Moral Sentiments, Smith já usara a metáfora da mão invisível, mas em sentido inverso ao que, com sua obra posterior, chamou atenção de seu público. Na primeira ocasião, Smith escreveu sobre o desejo de possuir” adornos de utilidade frívola por parte de muitas pessoas”, que funcionam sob “a ilusão que desperta e mantém em movimento contínuo a indústria humana” (p. 53, grifo de Hirschman). Assim, originalmente, a mão invisível significa que, atomizadamente, as pessoas não lutam por seus interesses e sim por uma ilusão, corporificada, pejorativamente, em “adornos”, “bugigangas”, de caráter “fútil”, “desprezível”, “frívolo”.
  • 3
    Porque, nesse caso, ele termina por ser taken for granted.
  • 4
    A consequência dessa distinção é cáustica e merece ser copiada: “Frankfurt considera desprovidos de essência humana aqueles capazes de ter apenas volições de primeira ordem. Ele propõe designar essas pobres ‘não-pessoas’ através do termo inepto. Os ineptos são totalmente controlados por seus desejos de primeira ordem e nunca param para criticá-los ou conscientemente tentar modificá-los. Infere-se daí que a teoria do consumidor, um dos mais sofisticados ramos da economia, tem até aqui tratado exclusivamente de ineptos subumanos” (p. 76).
  • *
    Originalmente este texto foi apresentado no grupo de trabalho Política e Economia durante o IX Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), realizada em Águas de São Pedro em outubro de 1985. A versão final beneficiou-se dos comentários dos integrantes do grupo. Os textos aqui examinados que não dispõem de edição em português foram traduzidos por mim, sem nenhuma pretensão de trabalho profissional nessa esfera.
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    JEL Classification: B25; B31; Y30.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1987
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