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Reforma financeira - aspectos gerais e análise do projeto de lei complementar

Financial reform - general aspects and analysis of the complementary law

RESUMO

A Constituição brasileira promulgada em 1988 exige uma lei complementar para regular o sistema financeiro no Brasil. Este artigo analisa o projeto oficial existente com foco na estabilização macroeconômica e na independência do Banco Central.

PALAVRAS-CHAVE:
Sistema financeiro; independência do Banco Central; emissão de moeda

ABSTRACT

The Brazilian Constitution enacted in 1988 demands a complementary law to regulate the financial system in Brazil. This paper analyses the existing official project focusing on macroeconomic stabilization and independence of the Central Bank.

KEYWORDS:
Financial system; Central Bank independence; money supply

1. INTRODUÇÃO

Como se sabe, o artigo 192 da Constituição Federal de 1988 estabelece a necessidade de criação de uma lei complementar reguladora do sistema financeiro nacional. Com este objetivo já foram apresentados vários projetos de lei no Congresso, realizados seminários e recolhidas inúmeras sugestões de vários setores da sociedade. Em abril de 1992 foi realizada em conjunto pela Fipe/USP e EPGE/FGV a última grande conferência sobre o tema, reunindo vários especialistas. Analisou-se na ocasião a última versão disponível do substitutivo do relator, de 31/03/92, referente ao assunto. Dessa data em diante a questão tem permanecido um pouco adormecida, em face das necessidades mais prementes de discussão do projeto de reforma fiscal e da chamada CPI do PC.

Este trabalho sumariza algumas reflexões do autor sobre pontos específicos do projeto de lei, após a coordenação do último seminário sobre a reforma realizado no Rio de Janeiro.

2. SOBRE A NECESSIDADE DA LEI COMPLEMENTAR

Existem pelo menos três bons motivos para a promulgação de uma lei complementar de reforma do sistema financeiro. Em que pese à excelência técnica das leis 4595/64 e 4728/65, que, com as suas posteriores modificações, permanecem até hoje como base institucional de nosso sistema financeiro, há alguns problemas a corrigir. Afinal, nestes quase trinta anos se modificaram não apenas as condições inerentes ao sistema financeiro nacional e internacional, como fundamentalmente a ambiência política em nosso país. A passagem de um sistema autoritário a um sistema democrático certamente influi diretamente no desenho institucional ótimo das instituições como um todo e, em particular, das instituições financeiras. Um bom exemplo nesse sentido é a convivência brasileira com um sistema onde as decisões acerca da oferta monetária sempre estiveram nas mãos do ministro da Fazenda. Até o início dos anos 80 o sistema funcionou com um grau de desempenho, digamos, regular. Mas, de meados da década de 80 para cá, o desempenho tem sido sofrível. Um dos motivos para o fato decorre desta análise: é mais fácil dizer não em um sistema autoritário que em um sistema onde o apoio político precisa ser conquistado e mantido dia a dia. (Outros motivos foram o aumento de demanda e a queda de oferta de poupança externa.)

Esse arrazoado nos remete ao primeiro e principal motivo da necessidade de lei complementar para o sistema financeiro: a importância de dotar um país de uma agência controladora da oferta monetária com autonomia suficiente para livrar-se das injunções políticas e ater-se predominantemente à estabilidade do poder aquisitivo de moeda. Outros três importantes motivos para a lei de reforma são a criação de um sistema de seguro privado para depósitos em instituições financeiras, um reordenamento orgânico da CVM e da Susep e uma nova regulamentação do sigilo bancário.

Duas tarefas básicas devem se esperar do sistema financeiro em qualquer economia. Primeiro, uma intermediação eficiente de recursos entre os agentes econômicos que, num certo ponto do tempo, se encontram respectivamente deficitários e superavitários. Segundo, na parte do sistema financeiro denominada sistema financeiro monetário, uma administração da oferta de moeda que se concentre essencialmente na estabilidade de seu poder aquisitivo. Nenhuma das duas funções tem sido desempenhada a contento pelo sistema financeiro brasileiro. Em ambos os casos, a responsabilidade reside no Executivo federal. A intermediação de recursos é gravemente prejudicada pela inusitada assimetria de um grande tomador de recursos (governo federal) em relação aos demais. Tal assimetria costuma existir em qualquer país, mas é particularmente acentuada no Brasil devido a três motivos: (i) o elevado poder discricionário do governo sobre o mercado financeiro, largamente exercitado ao longo dos últimos planos econômicos; (ii) a total influência do Executivo federal sobre o Banco Central, fazendo com que a instituição via de regra forneça liquidez primária aos títulos emitidos pelo Tesouro; e (iii) o apetite demasiado voraz do governo pelas poupanças doméstica e externa (leia-se um déficit público não compatível com a capacidade existente de financiamento a preços estáveis).

No tocante à administração da oferta monetária visando à estabilidade de preços no longo prazo, o desempenho do sistema financeiro - no caso, do Banco Central - sempre foi abaixo da crítica. Não pelos homens que o dirigiram, em geral técnicos do mais alto gabarito. Mas pelo arranjo institucional em que a instituição foi inserida. A submissão das decisões finais de política monetária ao Conselho Monetário Nacional desde 19641 1 Em suas disposições transitórias, a Constituição de 1988 reduziu as atribuições do Conselho Monetário Nacional ao determinar de competência do Legislativo decisões tomadas por esse órgão. Na prática, contudo, ele continua existindo. se mostrou sempre pouco adequada. Mais recentemente, como salientamos anteriormente, a continuada ascensão do ministro da Economia sobre a condução das ações do Banco Central, num ambiente menos autoritário e mais democrático, revelou problemas ainda mais graves. Um exemplo nesse sentido são os aportes de liquidez que o Banco Central com certa frequência tem prestado a alguns bancos estaduais que, em virtude de gastos excessivos por parte dos Executivos estaduais, se acham em situação quase falimentar. O pior é que o jogo é não cooperativo entre estados. Ao receber uma sinalização totalmente incoerente por parte do Banco Central, de acomodação, acaba-se por premiar os governadores mais audaciosos nos gastos.

A conclusão de todo este arrazoado é a seguinte: o arranjo institucional em que hoje se insere o Banco Central não tem dado certo e precisa se modificar. Ele acaba por comprometer todo o sistema financeiro. Em sua parte não monetária, na função de intermediador de poupanças, por privilegiar o governo federal como agente deficitário e impedir uma alocação competitiva e eficiente de recursos. E em sua parte monetária, na função de gestor da oferta monetária, por apresentar-se demasiadamente vulnerável a pressões políticas, e por acabar relegando a um segundo plano o que deveria ser o seu principal objetivo, o de guardião do valor da moeda.

3. TRÊS PONTOS A SEREM DEVIDAMENTE PRÉ-DEFINIDOS

Uma vez concluído pela necessidade de uma, e apenas uma (Cid Heráclito, 1992HERÁCLITO, C. (1992). “O sistema financeiro nacional na nova Constituição”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.), lei complementar, principalmente em função do objetivo de reduzir o poder discricionário do Executivo sobre o controle da oferta monetária, cabe listar três observações, pelos menos duas das quais bastante óbvias, de forma a ordenar o assunto:

  1. no atual status quo político econômico, uma maior independência conferida a uma agência de controle da moeda por meio de lei complementar não deve ser atacada por sua não-suficiência, mas sim defendida por sua absoluta necessidade;

  2. deseja-se e deve-se conferir independência a um banco central clássico, predominantemente voltado para a manutenção do poder aquisitivo da moeda no longo prazo, e não para o Banco Central agigantado que se delineia no projeto de lei; e

  3. a reformulação institucional do sistema financeiro, embora umbilicalmente ligada, na consecução de seu êxito, ao sucesso da reforma fiscal, deve ser implementada quer esta última tenha sido bem-sucedida, quer não.

Analisemos separadamente cada um dos três pontos. O primeiro deles, absolutamente dispensável numa discussão lúcida sobre o assunto, limita-se a explicitar a aquiescência de que a independência do Banco Central é condição necessária, mas claramente não suficiente, para um melhor desempenho do setor financeiro de nossa economia. Raciocínios do tipo “Banco Central independente não resolve o problema da inflação se o problema do déficit público não tiver sido equacionado” são muitas vezes utilizados de forma a defender o atual status quo do sistema financeiro. Trata-se de sentença verdadeira, mas que de forma alguma nega a necessidade de uma reforma financeira. De fato, nega apenas sua suficiência. O sofisma que caracteriza a implicação da não-suficiência à não-necessidade, algumas vezes usado de forma propositalmente enganosa (pelos adeptos da situação) e outras vezes por puro erro de lógica, deve ser devidamente extirpado de qualquer discussão sobre o assunto.

No que diz respeito ao “tamanho” do Banco Central, o relator do projeto errou na dosagem. O verdadeiro pilar de sustentação da lei de reforma do sistema financeiro é uma maior autonomia a conceder ao Banco Central. Mas a um banco central clássico, cuja tarefa principal é o controle monetário, e não àquele previsto no projeto atual. Galveas (1992GALVEAS, E. (1992). “Banco Central independente”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro realizado no Rio de Janeiro, abril, 1992.) argumenta, analisando o projeto de lei: “Quem daria independência total a esta instituição gigantesca, que enfeixaria mais poderes que um presidente da República ou um primeiro ministro?” De mesma forma, Brandão (1992BRANDÃO, C. (1992). “Reforma do sistema financeiro nacional”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/ FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.) coloca que a independência pretendida centrou-se, no projeto de lei, na fiscalização, e não no controle monetário: “O projeto confere total independência ao Banco Central do Brasil na fiscalização das instituições financeiras, matéria que deveria estar ligada ao Ministério da Economia”. De forma semelhante se posiciona o Ministério da Economia, em mimeo de 31/03/92: “Seria desejável a retirada da função da fiscalização do Bacen”. Simoens da Silva (1992SIMOENS DA SILVA, L. A. “Comentário acerca de algumas questões gerais que envolvem a discussão do artigo 192 da Constituição”, mimeo. Banco Central do Brasil, Deasf/Gabin.) chama ainda atenção para a incoerência do projeto de lei, ao estabelecer como competência privativa do Banco Central a fiscalização do sistema financeiro (artigo 7 - XXVI) e, ao mesmo tempo, prever a criação de mecanismos privados de seguro bancário (artigo 55). Deixando de fora o Ministério da Economia, coloca como mais realista “uma fiscalização partilhada, no futuro, entre o Banco Central e o próprio mecanismo garantidor de depósitos, a exemplo da experiência de outros países”. Ainda segundo Simoens da Silva: “A experiência internacional na área de fiscalização mostra que vários bancos centrais não a exercem, como são os casos da Alemanha, Canadá, Noruega e Suécia, dentre outros. O banco central intervém em casos como os da Inglaterra, Itália e Japão. Nos Estados Unidos, a fiscalização é partilhada entre diversos níveis de governo e do mercado”.

Todos esses argumentos colocados por diferentes analistas deixam claro que a fiscalização do mercado financeiro de forma alguma pode ser competência privativa do Banco Central, devendo ser partilhada com o Ministério da Economia e o setor privado. Isso implica uma necessidade de revisão da lei complementar em seu artigo 7, parágrafo XXVI, que estabelece como competência privativa do Bacen a fiscalização das instituições financeiras.

Mais que apenas restringindo o problema à questão da fiscalização, é importante que se discuta a efetiva necessidade de cada uma das competências do Banco Central não diretamente ligadas às suas funções clássicas de banqueiro dos bancos, banqueiro (não exclusivo) do Tesouro, depositário das reservas internacionais do país e, fundamentalmente, controlador da oferta monetária. O motivo é simples: quanto mais reduzido a suas atribuições clássicas, maiores serão as possibilidades do Banco Central de concentrar-se em seus mais importantes objetivos. Esse fato fica claro mesmo na aprovação pelo Congresso do projeto de lei: boa parte das críticas à independência do Bacen certamente teriam seu ímpeto bastante reduzido (se não eliminado), se a independência proposta fosse a de um Banco Central clássico, e não a de uma entidade híbrida. É difícil defender a independência do Executivo de um órgão que, além das funções clássicas de um banco comercial, age como banco de fomento, provedor de crédito rural, normatizador do mercado de capitais, repassador de recursos externos, gestor político de financiamento e investimento, fiscal, interventor nas instituições financeiras etc. Este foi um grave erro de estratégia do relator que ainda se pode corrigir.

Por último, analisemos a reforma financeira à luz da reforma fiscal. A defesa da implementação institucional da primeira independentemente do êxito ou fracasso da segunda se deve a dois motivos, o primeiro de ordem metodológica e o segundo, empírica. Metodologicamente, condições necessárias como a reforma financeira devem ser encaradas de forma marginal, passo a passo, e não perguntando se resolvem ou não o problema. Empiricamente, é preciso observar que apenas o processo de independência do Banco Central, por si mesmo, e ainda que usada marginalmente, já impõe um maior controle das finanças do setor público. A evidência internacional nesse sentido é bastante vasta, sendo citada nos estudos de Masciandaro e Tabellini (1988MASCIANDARO, D. & G. Tabellini (1988). In: Hang-Sheng Cheng, org. (1988). Monetary Policy in Pacific Countries, Norwell, Massachusetts: Kluwer Academic Publishers.), Parkin (1986PARKIN, M. (1986). “Domestic monetary institutions and deficits”. In Buchanan, Rowley & Tollison, orgs. (1986). Deficits. Nova York: Basil Blackwell Inc.), Banaian, Laney e Willet (1983BANAIAN, K., L. Lancy & T. Willet (1983). “Central Bank independence: an international comparison’’. Economic Review, Federal Reserve Bank of Dallas, março, 1983: 1-13.).

O motivo para isso é bem simples. Agentes econômicos com dificuldades de aumentar seu endividamento junto ao público são necessariamente obrigados a gastar menos quando sujeitos a restrições adicionais de caixa.

4. AJUSTE FISCAL2 2 Esta seção utiliza conceitos e tautologias de contabilidade com juros reais apresentados em Simonsen e Cysne (1989).

Argumentamos na seção anterior que a reforma financeira deve ser implementada independentemente do êxito ou não da reforma fiscal. Os motivos para tal assertiva já foram explicitados. No médio prazo, a utilização marginal da maior independência do Banco Central poderia ser utilizada para aumentar o embasamento político necessário a uma reforma fiscal. Por exemplo, a nova diretoria do Banco Central poderia se valer de sua maior autonomia para negar um pedido de aporte de liquidez de um banco estadual falido, gerando problemas suficientes para concluir pela necessidade, no próximo lance desse jogo, de ter um orçamento fiscal mais discutido, seguido e adequado.

O objetivo desta seção, entretanto, é qualificar o ajuste fiscal do setor público necessário para que o Banco Central pudesse exercer sua independência, não apenas de forma marginal, como sugerida no parágrafo anterior, mas da forma como manda a Constituição Federal em seu artigo 164, ou seja, sem qualquer tipo de financiamento ao Tesouro.

Sob essa hipótese e admitindo uma consequente estabilidade de preços, o governo: (i) deixaria de arrecadar o imposto inflacionário representado pelos juros reais negativos incidentes sobre a base monetária; (ii) deixaria de auferir os ganhos decorrentes da queda da taxa de juros real efetiva incidente sobre seu passivo indexado à inflação passada, que ocorre sempre que a taxa de inflação muda de patamar; (iii) deixaria (já que por hipótese não haveria mais planos econômicos de combate à inflação) de auferir os ganhos de capital decorrentes de confiscos (como no Plano Collor I) e modificações no vetor e índices de preços para fins de cálculo de benefícios previdenciários e correção monetária; e, compensatoriamente, (iv) passaria a arrecadar mais em termos reais, pela redução da perda de poder aquisitivo dos impostos devido ao atraso no recebimento num ambiente inflacionário (efeito Tanzi às avessas).

Não existem estimativas precisas do grau necessário de ajuste do setor público num ambiente de financiamento nulo ao governo por parte do Banco Central. Nem poderia haver, haja vista a endogeneidade das expectativas e do comportamento reativo dos agentes econômicos financiadores do governo nesse processo. Mas não é necessária nenhuma precisão econométrica para concluir que, se se fizesse valer hoje a Constituição Federal, impedindo o Banco Central de financiar o Tesouro, isso implicaria uma imediata inadimplência do governo. Para chegar a essa conclusão basta se ater ao imposto inflacionário hoje em dia arrecadado pelo sistema consolidado Tesouro+Banco Central (item (i) desta seção). Este, representado por um ganho de capital proporcional à taxa inflacionária, que incide sobre um passivo do governo (base monetária), pode ser aproximadamente calculado em moeda corrente pela fórmula3 3 Tal fórmula aproximada de cálculo do imposto inflacionário pressupõe que a base real permaneça constante ao longo do tempo.

I I j = B j ln 1 + r

onde II.=imposto inflacionário medido em moeda de poder aquisitivo do instante j, Bj=base monetária no instante j e r=taxa de inflação.

Tomando j como maio de 1992, temos, em milhões de dólares, B=4324. Para uma inflação média de 24% ao mês, isso equivale a um imposto inflacionário II=US$ 930 milhões/mês. Extrapolando esse valor para doze meses, temos II=US$ 11.162 milhões/ano.

O cálculo acima significa o seguinte: numa contabilidade que consolida o Banco Central ao Tesouro e utiliza juros reais, aproximadamente 11 bilhões de dólares têm sido creditados na conta corrente do governo à custa do processo inflacionário.4 4 Deve-se lembrar que, na contabilidade com juros reais, o imposto inflacionário é lançado a crédito da conta corrente do governo. A explicitação desse processo se dá através do déficit operacional (DGO), que trabalha com juros reais, mas não lança o imposto inflacionário (II) a crédito do governo. Utilizando identidades, temos

D G O = S P R + I I + S E R - I P

onde SPR e SER representam, respectivamente, a poupança privada e a poupança externa calculadas com juros reais, e IP o investimento privado. Essa tautologia mostra que, para financiar o déficit operacional, o governo lança mão, criando inflação, não apenas das poupanças privadas e externas calculadas com juros reais, mas também dos juros reais negativos pagos pela base monetária sempre que a inflação é diferente de zero. Uma outra forma de ver o mesmo problema se dá utilizando a tautologia

D G O = B 1 P 1 - B 0 P 0 + Z 1 P 1 - Z 0 P 0 + I I

onde B=base monetária, P=nível de preços, Z=dívida líquida do governo para com o público menos ativos líquidos do Banco Central contra o setor externo e o setor privado. A tautologia mostra que o governo financia seu déficit operacional aumentando o estoque real de sua dívida ampliada (B+Z) e coletando imposto inflacionário.

Suponhamos que, subitamente, o Banco Central se negasse a financiar o déficit público no estado atual das finanças do governo, zerando o imposto inflacionário. Tomemos para exemplificar um espaço de tempo entre 0 e 1 no qual B1=B0, P,=P0 e o déficit operacional não seja alterado. A solução tautológica se obtém tornando a dívida pública igual a Z’1=Z1+II, e não mais igual a Z1. Isso equivale a uma inadimplência no pagamento do fluxo de bens e serviços (calculados com juros reais) prestados ao governo entre 0 e 1 no valor de II, ou seja, algo ao redor de 11 bilhões de dólares.

O que significaria isso na prática? Aumento das dívidas do setor público (medidas pelo regime de competência) com todos os agentes que lhes prestaram serviços, lhes venderam bens ou foram contemplados por lei com suas transferências. Aí se incluem empreiteiros, aposentados, funcionários públicos etc. O aumento de Z1 pode ser visto como uma agregação, aos títulos da dívida já existentes, de inúmeros certificados da dívida emitidos (não na prática, mas pelo regime contábil de competência) contra o governo.

Apenas a título de curiosidade, vale a pena uma digressão sobre a sequência de fatos associados a um arroubo atual de autonomia por parte do Banco Central, mantido o atual desajuste fiscal. O primeiro passo seria uma necessidade de o governo trocar financiamento por moeda pelo financiamento por títulos, elevando às nuvens as taxas de juros. Apenas isso já geraria uma sequência de quebradeiras de instituições financeiras “compradas” em títulos da dívida pública. O passo subsequente seria a incapacidade do governo de se financiar, mesmo por títulos de sua emissão, em virtude da ascensão contínua da possibilidade de uma moratória. Dada sua incapacidade de caixa, o governo certamente iniciaria sua inadimplência junto a pessoas jurídicas, mas logo esbarraria na incapacidade de pagar os próprios empregados. Muito antes disso o Congresso provavelmente já teria votado a favor da destituição da diretoria do Banco Central. Afinal não se pode imaginar no poder uma equipe que deixa de honrar suas obrigações com o próprio funcionalismo. Se, numa hipótese absolutamente implausível, isto não ocorresse, muito provavelmente o Tesouro passaria a operar como um banco central de facto, emitindo uma moeda alternativa de cunho legal. Trata-se de procedimento inclusive anticonstitucional, uma vez que a Magna Carta de 1988 estipula como competência privativa do Banco Central a emissão de moeda. Mas é certamente mais fácil imaginar procedimentos afrontosos à Constituição que funcionários públicos sem receber seus salários.

Em suma, a independência do Banco Central é necessária e, como tal, deve ser implantada com ou sem a reforma fiscal. Como em lugar nenhum do mundo, entretanto, o Banco Central foi politicamente capaz de levar o Executivo à falência, condenando à fome funcionários públicos, a capacidade do Banco Central de beneficiar-se de uma maior autonomia em prol do zelo pela estabilidade de preços dar-se-á apenas de forma marginal, embora certamente aumentando ao longo do tempo. A reforma fiscal aparece, assim, não como condição necessária à implementação da independência do Banco Central, mas sim como condição necessária para que o processo possa gerar todos os benefícios de que é capaz.

5. PROIBIÇÃO DE FINANCIAMENTO DO BANCO CENTRAL AO TESOURO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 164, estabelece que o Banco Central não pode financiar o Tesouro Nacional, seja direta, seja indiretamente. O artigo 9 da lei complementar tenta regular esse princípio, ressaltando, entretanto, que não caracterizam financiamento ao Tesouro Nacional as operações realizadas no mercado aberto, observado o que dispõe o próprio artigo. Em seu parágrafo primeiro, este delimita que a compra e venda de títulos do Tesouro Nacional, com fins de política monetária, só é permitida nos casos: a) diretamente das instituições financeiras que operam no mercado aberto desses títulos, com o objetivo de regular a liquidez diária da economia e o nível de reservas bancárias das instituições financeiras bancárias e/ou afetar o nível das taxas de juros praticados no mercado em troca daquelas reservas; e b) compra direta nos leilões do Tesouro Nacional, para giro da carteira própria daqueles títulos, limitada ao valor dos respectivos vencimentos. Em seu parágrafo segundo, o artigo 9 veda ao Banco Central a compra temporária ou definitiva dos títulos do Tesouro Nacional na data de sua liquidação por parte das instituições financeiras. A pergunta que se coloca é: o artigo 9 regula efetivamente o disposto na Constituição?

Para responder à pergunta, precisamos antes estabelecer alguns conceitos. Em primeiro lugar, a definição do que seja financiamento direto e financiamento indireto. Feito isso, passamos à dicotomia existente entre financiamento nominal (que trabalha com juros nominais) e financiamento real (que trabalha com juros reais). Por último, lembramos que a existência de intermediários financeiros elimina a possibilidade de identificação do agente financiado a partir do exame do portfólio do suposto agente financiador. Vejamos como proceder.

Para caracterizar de forma inequívoca um financiamento do Banco Central ao Tesouro, devemos dividir o resto do mundo exceto Tesouro5 5 Entenda-se aqui por resto do mundo exceto o Tesouro Nacional qualquer agente econômico passível de financiar o Tesouro, aí incluídos residentes e não residentes. em duas partes, a saber, Banco Central (BC) e resto do mundo exceto Banco Central e Tesouro, ao qual passaremos a nos referir apenas como resto do mundo (RM). Se DG é o déficit do Tesouro, representado pelo excesso de seu investimento sobre sua poupança, temos:

D G = Δ E = Δ E B C + Δ E R M (1)

A primeira equação acima (DG=t.E) lembra que a um déficit corresponde uma, e apenas uma, variação do passivo líquido (títulos emitidos menos títulos em carteira) de um agente econômico qualquer. A segunda equação (t.E=t.EBC+t.ERM) decompõe essa emissão líquida de passivos entre dois agentes financiadores, o Banco Central (t.EBC) e o resto do mundo exceto Banco Central e Tesouro (t.ERM). Ao estipular que o Banco Central não pode financiar o Tesouro de forma direta, a Constituição Federal determina que EBC seja igual a zero num período de tempo de aferição a ser definido na lei complementar. (Se isso deve ocorrer em termos nominais ou reais é um ponto que discutiremos depois.) Por outro lado, ao proibir também financiamentos indiretos do Banco Central ao Tesouro, a Constituição determina que o Banco Central seja impedido de financiar qualquer agente econômico pertencente ao resto do mundo (RM) que financie o Tesouro. Em termos contábeis, este significa que ERM não deve dar origem a nenhum centavo de aumento de ativo ou queda do passivo não monetário do Banco Central.

Equivalentemente, denotemos por CSP e CSE os créditos líquidos do Banco Central, respectivamente, ao setor privado e ao setor externo. Seu balanço patrimonial expressa-se então sob a forma6 6 Para simplificar a análise, o setor governamental é aqui representado apenas pelo Tesouro Nacional. Consequentemente, as instituições financeiras públicas incluem-se, por hipótese, no setor privado.

BALANCETE SIMPLIFICADO DO BANCO CENTRAL ATIVO PASSIVO CSE Base Monetária CSP EBC

onde EBC representa o crédito líquido do Banco Central ao Tesouro. Ao proibir financiamentos indiretos do Banco Central ao Tesouro, a Constituição deseja proibir exatamente operações do tipo em que o Banco Central empreste ao resto do mundo (no caso, representado pelo setor externo e pelo setor privado), elevando CSE+CSP, e o resto do mundo transfira esse crédito ao Tesouro, como se mostra nos balancetes abaixo

TESOURO RESTO DO MUNDO ATIVO PASSIVO ATIVO PASSIVO ΔCruzeiros=X ΔERM=X ΔERM=X Δ(CSP+CSE)=X ΔCruzeiros=+X=X=0 BANCO CENTRAL ATIVO PASSIVO Δ(CSP+CSE)=X Δcruzeiros (Base)=X

A descrição acima caracteriza uma operação indireta de financiamento do Banco Central ao Tesouro impossível de ser precisamente controlada na prática. Como salientamos anteriormente, a transformação de ativos efetuada pelo sistema financeiro impede a precisa identificação do agente financiado a partir de exame do portfólio do agente financiador. No exemplo em questão, o exame dos ativos do Banco Central revelaria a existência de crédito do setor privado ou do setor externo (pela elevação das operações de redesconto aos bancos comerciais privados, por exemplo) que, em última análise, teria sido utilizado de forma a financiar indiretamente o Tesouro. É interessante notar que esse tipo de expediente pode descaracterizar totalmente, pela troca de títulos, o financiamento do Banco Central ao Tesouro. De fato, o financiamento indireto pode ser não caracterizável pela troca de títulos e o financiamento direto pode sempre ser transformado em financiamento indireto.

Embora a rigor impossível de identificar precisamente, o financiamento direto e indireto do Banco Central ao Tesouro pode ser operacionalmente monitorado através do controle das operações ativas líquidas do primeiro. Nos termos aqui definidos, isso significa que devemos nos ater não apenas aos financiamentos diretos ao Tesouro EBC, mas também, pelo menos em princípio, aos agregados CSE e CSP.

Analisemos separadamente cada um desses agregados. Quanto a CSE, não há muito com que se preocupar do ponto de vista prático, no que diz respeito a financiamentos indiretos ao Tesouro. Trata-se de um agregado de fácil identificação, compreendido pelas reservas internacionais menos as obrigações do Banco Central junto ao setor externo. CSE é composto de poucos itens do balanço patrimonial do Banco Central, usualmente denominados, em sua origem, em moeda estrangeira. Financiamentos indiretos do Banco Central ao Tesouro através do aumento de CSE não são operacionalmente relevantes, tendo em vista que demandariam uma transferência de crédito ao Tesouro Nacional efetuada pelo Sistema Federal de Reserva americano (no caso em que CSE aumentasse devido ao aumento de reservas em dólares) ou dos bancos credores da nossa dívida externa (no caso em que CSE aumentasse devido à queda do passivo externo do Banco Central relativo aos credores não residentes no país). Estes não são casos para monitoramento operacional.

Quanto ao crédito ao setor privado, o controle de possíveis financiamentos indiretos deve se ater aos financiamentos com acordos de recompra e, possivelmente, às operações de redesconto de liquidez. Mas nesse sentido é fundamental distinguir o que deve ser efetivamente feito do que está estipulado no projeto de lei.

Pelo que vimos até aqui, o procedimento operacional adequado para o controle do financiamento direto e indireto do Banco Central ao Tesouro deve se centrar, na prática, no controle da carteira de títulos do Tesouro no Banco Central, nas operações de crédito do Banco Central ao setor privado com acordos de recompra e, possivelmente, nas operações de redesconto de liquidez. Antes de explicitar as diferenças entre o tipo de controle a exercer e o que está explicitado no projeto de lei, cabe uma pequena digressão entre contabilidade com juros nominais e contabilidade com juros reais.

Suponhamos em princípio que, numa economia com taxa de inflação anual r, a lei complementar impusesse, por exemplo, que o passivo do Tesouro na carteira do Banco Central (EBC) não poderia aumentar em termos nominais. Isso significaria que o valor real da dívida do governo junto ao Banco Central cairia de EBC no início do ano para EBC/(1+r) no final do ano. Para r=l00% ao ano, isso equivale a uma amortização real de metade do valor da dívida, enquanto, para r=200% ao ano, a amortização seria de dois terços do valor da dívida. De uma forma geral, a amortização real seria dada por r/(1+r) do valor inicial da dívida, o que a tornaria uma função crescente da taxa de inflação r. Não há nada que prove que uma amortização real da dívida do Tesouro junto ao Banco Central proporcional à inflação não seja uma boa estratégia. Mas também não há nada que prove que seja a melhor política de remissão dessa dívida. De uma coisa, entretanto, pode-se estar certo. Trata-se de política de reduzidíssima factibilidade. Só para ter uma ideia de sua incongruência prática, basta lembrar que, com uma dívida do Tesouro para com o Banco Central hoje da ordem de 50 bilhões de dólares a uma inflação anual de 885%, isso implicaria uma amortização da ordem de 45 bilhões de dólares (noventa por cento do valor real da dívida) num espaço de doze meses.

Conclui-se daí que o controle a que se refere a Constituição, quer seja do financiamento direto, quer do financiamento indireto do Banco Central ao Tesouro, deve ser efetuado eliminando essa dependência entre a amortização real e a inflação. A solução é simples: em vez de impedir elevações do estoque nominal da dívida do Tesouro junto ao Banco Central, deve-se impedir as elevações reais desse estoque. Como se mostra em apêndice APÊNDICE 1. Nosso primeiro objetivo neste apêndice é mostrar que, se o governo tem um déficit e um agente econômico o financia de forma a manter inalterado, em termos reais, o passivo do governo em seu portfólio, então terá financiado apenas um montante equivalente à parte dos juros nominais referente à inflação. Para isso, seja DG o déficit do governo calculado com juros nominais. Fazendo dDG representar esse déficit entre os instantes t e t+dt (0 ≤ t ≤1), temos d D = d E sendo E o passivo líquido do governo (supõe-se E ≤0). Em moeda do instante t, o déficit calculado com juros reais (DGR) entre os instantes t e t+dt será dado por d D G R t = d E - E d P / P (1) já que, em termos instantâneos, a taxa de juro nominal difere da real pela inflação, dP/ P. Nesse sentido, E(dP/P) representa a diferença entre juros nominais e juros reais pagos pelo passivo líquido do governo. Em moeda de um instante de referência j, d D G R j = P j / P · d E - E / P d P = P j d E / P Integrando esta expressão entre 0 (início do período) e 1 (fim do período), D G R j = P j E 1 / P 1 - E 0 / P 0 (2) Assim, se o agente financiador impede aumentos reais do passivo do governo em seu portfólio, forçando E/P1=EjP0, isso implica DGR=0. Decorre de (1) que o agente financiador terá igualado, no total desse período, seu financiamento (dE) à correção inflacionária do valor da dívida (E(dP/P)). Ou seja, o agente financiador terá financiado um montante equivalente apenas à parte do juro nominal cujo objetivo é recompor o valor real do passivo do governo em seu poder. 2. Tomemos agora o nível de preços P=1 no período inicial zero e suponhamos que o agente financiador permita ao governo E1=E0 (1+i), onde i é a taxa nominal de juros e 0 e 1 indicam os valores das variáveis, respectivamente, no início e no fim do período (no texto utilizamos I e 2 em vez de 0 e 1 ). Teremos então E/( I+r)=E0 (1+i)/ (1+r)=E0 (1+j), ou seja, o valor real da dívida no período 1, E/( 1+r)=E/P1 diferirá do seu valor real no período zero EJP0=E0 sempre que j (taxa real de juros) for diferente de zero, ou seja, i > r (onde r é a taxa de inflação). Para r > i, j > O e E/P1 - EJP0=j E0 > O. Pelo que vimos em (2), isso implica um valor positivo para o déficit do governo calculado com juros reais. Decorre de (1), de acordo com o que se afirma no texto, que nesse caso o financiamento do agente financiador ao governo terá ultrapassado o valor da correção inflacionária (ou correção monetária) do passivo do governo em seu portfólio, caracterizando de maneira inequívoca uma operação em desacordo com a Constituição. , isso equivale a permitir que o Banco Central financie o Tesouro apenas no pagamento da parte dos juros nominais referente à inflação. Ou seja, na parte dos juros nominais cujo objetivo não é remunerar o credor, mas sim prover meios para que este atualize monetariamente o valor real de seu portfólio. Controlar o estoque real da dívida do Tesouro no Banco Central equivale a admitir que a Constituição de 1988 estipulou que o Banco Central não pode financiar qualquer déficit primário (sem inclusão de juros) do governo, nem os juros reais inerentes a tal dívida. Pode, no máximo, financiar o Tesouro de forma a impedir que a amortização real se torne função crescente da inflação, e consoante com o fato de que o que realmente interessa é o valor de aquisição de bens e serviços a que se refere tal dívida, e não a reposição da depreciação inflacionária dos ativos financeiros emitidos pelo Tesouro que estão em seu ativo.

Chegamos então à seguinte conclusão: o financiamento direto do Banco Central ao Tesouro deve ser controlado limitando as aquisições de títulos do Tesouro por parte do Banco Central a seu valor no início do período, porém monetariamente corrigido. Assim, se o valor inicial era Cr$ X e a inflação no período estipulado para aferição (sugere-se um acompanhamento trimestral para que haja possibilidade de financiamento das sazonalidades tributárias) foi der, o Banco Central poderá apresentar, ao final do período, uma carteira de Cr$ X (1+r) em títulos da dívida pública. No tocante ao controle do financiamento indireto, o mesmo procedimento deveria ser utilizado para os financiamentos com acordos de recompra e para as operações de redesconto que caracterizassem empréstimos indiretos do Banco Central ao Tesouro.

Observe-se que o procedimento diverge substancialmente do proposto no projeto de lei com relação ao financiamento direto. O artigo 9 limita a compra de títulos públicos, não ao montante inicial corrigido pela inflação, X(1+r), mas sim a seu valor de resgate, X(1+i), onde i é a taxa de juros. Se i> r, tem-se

EBC(2)/(1+r)=EBC(1)> (1+), onde j=(I+i) (1+r) - I é a taxa real de juros, por hipótese suposta positiva. Ou seja, o valor real da carteira do Banco Central em títulos do Tesouro no período final 2 (EBC(2)/(1+r)) será superior a seu valor real no período 1 (EBC(1) pelo valor do juro real. Como se mostra em apêndice APÊNDICE 1. Nosso primeiro objetivo neste apêndice é mostrar que, se o governo tem um déficit e um agente econômico o financia de forma a manter inalterado, em termos reais, o passivo do governo em seu portfólio, então terá financiado apenas um montante equivalente à parte dos juros nominais referente à inflação. Para isso, seja DG o déficit do governo calculado com juros nominais. Fazendo dDG representar esse déficit entre os instantes t e t+dt (0 ≤ t ≤1), temos d D = d E sendo E o passivo líquido do governo (supõe-se E ≤0). Em moeda do instante t, o déficit calculado com juros reais (DGR) entre os instantes t e t+dt será dado por d D G R t = d E - E d P / P (1) já que, em termos instantâneos, a taxa de juro nominal difere da real pela inflação, dP/ P. Nesse sentido, E(dP/P) representa a diferença entre juros nominais e juros reais pagos pelo passivo líquido do governo. Em moeda de um instante de referência j, d D G R j = P j / P · d E - E / P d P = P j d E / P Integrando esta expressão entre 0 (início do período) e 1 (fim do período), D G R j = P j E 1 / P 1 - E 0 / P 0 (2) Assim, se o agente financiador impede aumentos reais do passivo do governo em seu portfólio, forçando E/P1=EjP0, isso implica DGR=0. Decorre de (1) que o agente financiador terá igualado, no total desse período, seu financiamento (dE) à correção inflacionária do valor da dívida (E(dP/P)). Ou seja, o agente financiador terá financiado um montante equivalente apenas à parte do juro nominal cujo objetivo é recompor o valor real do passivo do governo em seu poder. 2. Tomemos agora o nível de preços P=1 no período inicial zero e suponhamos que o agente financiador permita ao governo E1=E0 (1+i), onde i é a taxa nominal de juros e 0 e 1 indicam os valores das variáveis, respectivamente, no início e no fim do período (no texto utilizamos I e 2 em vez de 0 e 1 ). Teremos então E/( I+r)=E0 (1+i)/ (1+r)=E0 (1+j), ou seja, o valor real da dívida no período 1, E/( 1+r)=E/P1 diferirá do seu valor real no período zero EJP0=E0 sempre que j (taxa real de juros) for diferente de zero, ou seja, i > r (onde r é a taxa de inflação). Para r > i, j > O e E/P1 - EJP0=j E0 > O. Pelo que vimos em (2), isso implica um valor positivo para o déficit do governo calculado com juros reais. Decorre de (1), de acordo com o que se afirma no texto, que nesse caso o financiamento do agente financiador ao governo terá ultrapassado o valor da correção inflacionária (ou correção monetária) do passivo do governo em seu portfólio, caracterizando de maneira inequívoca uma operação em desacordo com a Constituição. (parte b), isso equivale ao financiamento de parte do déficit real (ou seja, calculado com juros reais) do governo, o que é claramente inconstitucional.7 7 O ponto foi levantado pelo autor nos seminários sobre reforma do sistema financeiro realizados em São Paulo (02/92) e no Rio (04/92).

No tocante ao financiamento indireto, o problema com a redação do artigo 9 é ainda maior. Em vez de simplesmente estipular que o valor real dos empréstimos do Banco Central ao setor privado que caracterizem financiamento indireto ao Tesouro devem ser limitados no período de tempo escolhido para a aferição, o artigo 9 estipula um controle que certamente não atende aos objetivos constitucionais. O parágrafo primeiro, alínea a, permite a compra e venda de Títulos do Tesouro no mercado secundário, por parte do Banco Central, sem qualquer controle prático do montante real da carteira do Banco. Por outro lado, seu parágrafo segundo veda ao Banco Central a realização de financiamentos com acordos de recompra na data de liquidação, pelas instituições financeiras, da compra de títulos objeto de leilões do Tesouro Nacional. Esse parágrafo é perigoso em teoria e anódino na prática. Perigoso em teoria porque é estipulado em termos nominais e não reais. Sua implementação reduziria, de forma crescente com a inflação, o valor real dos financiamentos indiretos que o Banco Central tem feito ao Tesouro. Anódino na prática porque, como observa Simoens ela Silva (1992SIMOENS DA SILVA, L. A. “Comentário acerca de algumas questões gerais que envolvem a discussão do artigo 192 da Constituição”, mimeo. Banco Central do Brasil, Deasf/Gabin.), nada impede que o financiamento se dê dias antes da data estipulada para controle (data de liquidação dos títulos).

Por tudo o que vimos aqui, conclui-se que o artigo do projeto de lei que tenta incorporar o não-financiamento direto e indireto cio Banco Central ao Tesouro deve ser reescrito, incorporando os seguintes pontos importantes, todos passíveis de fácil acompanhamento estatístico: (i) o valor real da carteira líquida de títulos públicos no Banco Central não pode aumentar; (ii) o mesmo se aplica no que diz respeito à variação dos demais ativos do Banco Central que caracterizem financiamento indireto ao Tesouro, como por exemplo os acordos de recompra e, possivelmente, as operações de redesconto de liquidez.

É interessante notar que, strictu sensu, ao impedir financiamentos reais diretos ou indiretos do Tesouro ao Banco Central, a Constituição delimita um teto para o valor real da base monetária (que seria nominal se esses financiamentos fossem nominais). Na prática, contudo, isso não ocorre, porque, no tocante ao financiamento indireto, o controle não se dá sobre CSP+CSE, mas apenas sobre algumas poucas rubricas que caracterizem mais obviamente tais financiamentos indiretos (como é o caso dos acordos de recompra). Ainda assim, mais realista do ponto de vista operacional teria sido limitar o crescimento tanto do financiamento direto quanto do indireto, não a zero, mas sim a alguma coisa entre zero e a taxa de crescimento do produto real. Mas não é o que manda a Constituição.

Eduardo Lundberg (1992LUNDBERG, E. (1992). “Títulos públicos e Banco Central do Brasil na reforma do SFN”. Trabalho apresentado no Congresso USP de reforma do SFN, São Paulo, fevereiro, 1992.) sugere que a lei complementar estipule para a carteira de títulos federais em poder do Banco Central um limite dado pela soma dos depósitos do Tesouro no Banco Central mais o patrimônio líquido dessa instituição. Para que esse limite fosse atingido, o Banco Central, à semelhança do que sugerimos aqui, seria impedido de aumentar o valor real de suas aplicações em títulos federais. A alternativa apresenta a vantagem de permitir aumentos de longo prazo de EBC/P, na medida em que se elevem os valores reais dos passivos do Banco Central citados pelo autor da proposta, considerados de propriedade do Tesouro. As alegações de inconstitucionalidade poderiam ser combatidas definindo dívida líquida do Tesouro junto ao Banco Central como títulos do Tesouro na carteira do Banco menos depósitos do Tesouro no Banco menos patrimônio líquido do Banco Central. No esquema proposto por Lundberg, essa dívida líquida nunca se elevaria, caracterizando de forma clara e operacionalmente interessante o não-financiamento do Banco Central ao Tesouro a que se refere a Constituição.

6. BANCO CENTRAL COMO DEPOSITÁRIO ÚNICO DOS RECURSOS DO TESOURO

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 164, parágrafo terceiro, que, ressalvados os casos previstos em lei, o Banco Central é o depositário único das disponibilidades de caixa da União. Tal delimitação impõe problemas no controle de curto prazo dos juros e da base monetária, tendo em vista que a liquidez conferida pelo Banco Central ao Tesouro sobre esses depósitos é imediata e que, comparativamente à base monetária, os saques e retiradas do Tesouro são de grande vulto. O caso é particularmente preocupante no Brasil, por vários motivos. Primeiro, como já vimos, devido à reduzida relação entre a base e o total de recursos do Tesouro no Banco Central. Segundo, devido à baixa sensibilidade juro das reservas totais dos bancos comerciais, o que aumenta as oscilações dos juros decorrentes de variações no valor real da base monetária. Terceiro, devido também à também reduzida sensibilidade juro da demanda por moeda, pelo mesmo motivo anterior. Quarto, devido à falta de independência administrativa do Banco Central em relação ao Tesouro, fazendo com que o Banco Central usualmente não tenha outra opção senão financiar-se junto ao público, de forma a compensar seu financiamento semiautomático no Tesouro.8 8 Para uma discussão técnica detalhada do problema, ver Cysne (1990). A falta de independência do Banco Central aumenta o espectro das variações possíveis na conta de depósitos do Tesouro.

Como se observa pela redação do artigo 164 da Constituição, entretanto, a lei complementar pode dispor sobre o assunto, no que diz respeito às ressalvas previstas em lei. A consequência de ter o Banco Central como depositário único dos recursos Tesouro, no Brasil, consiste em que aquele deve redobrar seus esforços operacionais no sentido de impedir oscilações bruscas da taxa de juros em seu dia a dia de administração monetária. A lei complementar, nesse sentido, representa uma ótima chance de eliminar tal exclusividade. De fato, a maior parte dos países industrializados não adota esse procedimento, destacando-se como exemplos específicos Estados Unidos, Alemanha e Áustria.

O caso americano é ditado pela seção 15, parágrafo I do Federal Reserve Act, que estabelece: “The moneys held in the general fund of the Treasury ... may, upon the direction of the Secretary of Treasury, be deposited in Federal Reserve Banks, which banks, when required by the Secretary of the Treasury, shall act as fiscal agents of the United States”. Observa-se que não existe obrigação, como estipula a Constituição brasileira, de o Banco Central atuar como monopolista na função de depositário dos recursos do Tesouro. De fato, o parágrafo transcrito apenas aponta os bancos pertencentes ao Sistema Federal de Reserva com possíveis depositários dos recursos do Tesouro.

Na Alemanha o procedimento é regulado pelo capítulo 4, XVII, do “Deutsche Bundesbank Act”, que estabelece: “The Federal Government ... shall deposit their liquid resources, including cash balances ... , on giro accounts with the Deutsche Bundesbank. Depositing or investing elsewhere is subject to the approval of the Bundesbank”.

Observa-se que, contrariamente ao que ocorre nos Estados Unidos, mas em consonância com o caso brasileiro, os recursos federais devem ser depositados no Banco Central. Mas é fundamental destacar-se que o Bundesbank Act concede ao banco central alemão, em operação conjunta com o Tesouro Nacional, o poder de realocar esses recursos entre as demais instituições financeiras, se assim for de interesse da política monetária. Ou seja, os depósitos do Tesouro podem ser utilizados, por acordo comum entre o Bundesbank e este último, objetivando influenciar o mercado monetário de curto prazo. Tais transferências de liquidez entre o Banco Central e os bancos comerciais têm se revelado, desde 1975, um importante instrumento de fine tuning do mercado monetário.

Não há por que não abrir essa possibilidade também ao Banco Central do Brasil. Principalmente levando em conta, nesse caso, os quatro fatores agravantes salientados ao início desta seção. Tais fatores impõem uma inusitada dificuldade no controle dos juros no curto prazo quando se obriga o Tesouro a utilizar apenas o Banco Central como depositário de seus recursos.

O projeto de lei complementar já prevê margem de flexibilidade nesse sentido, ao estipular que cabe privativamente ao Banco Central “receber em depósitos as disponibilidades de caixa da União, podendo o Tesouro Nacional autorizar os respectivos recolhimentos em consonância com as diretrizes de política monetária”.

O artigo dá a entender que os recursos à disposição do Tesouro podem, sob sua autorização, permanecer por maior ou menor tempo na rede bancária comercial, antes de ser repassados ao Banco Central (se assim for do desejo dessa instituição). A flexibilidade deveria, entretanto, ser aumentada, explicitando também a possibilidade de o Banco Central repassar temporariamente, com autorização do Tesouro, recursos já à sua ordem, para o sistema bancário comercial. Nesse sentido, o artigo 7, XXIV, deveria ser reescrito de forma a caber privativamente ao Banco Central “receber em depósito as disponibilidades de caixa da União, podendo o Banco Central autorizar a transferência destes depósitos para outras instituições financeiras”. É possível que o inciso XXIV já pretenda incorporar esse procedimento, mas, se assim for, sua redação não está clara.

Um ponto importante a lembrar é que, se o projeto de lei confere ao Banco Central o poder de decidir sobre as disponibilidades de caixa da União, então deve também estipular de que forma tais depósitos devem ser remunerados.9 9 No caso da Alemanha, por exemplo, essa remuneração é fixada cm zero pelo Bundesbank Act. Evidentemente, o mais lógico no caso brasileiro seria estipular uma remuneração idêntica àquela que o Banco Central recebe em sua carteira de títulos públicos. Ou seja, o Banco Central remuneraria (ou seria remunerado) apenas pelo saldo líquido dessas contas.

7. LEI DE PROGRAMAÇÃO MONETÁRIA

A lei complementar estabelece, em seu artigo 6, que o presidente da República deverá encaminhar ao Congresso, a partir da proposta preliminar elaborada pelo Banco Central, projeto de lei ordinária dispondo sobre a programação monetária anual. Embora sujeita à crítica do ponto de vista teórico, a proposta pode ser defendida em bases pragmáticas. Até hoje, a sociedade tem conferido ao Banco Central total poder para que fixe a oferta monetária. Ocorre que o Banco Central tem sistematicamente utilizado o poder de forma abusiva10 10 A esse respeito, v. Barbosa (1992). , cobrando da sociedade juros reais incidentes sobre a base monetária, hoje em dia da ordem de 11 bilhões de dólares.11 11 Na verdade, para ter ideia do custo total pago pelo setor não bancário pela utilização de M1, deve-se também acrescer a esse total o juro real negativo incidente sobre os depósitos à vista menos as reservas totais do sistema bancário. Com um multiplicador monetário da ordem de 1,6, isso equivale a um montante adicional ao redor de 6,6 bilhões de dólares. Nada mais razoável, então, nessa linha de pensamento, que submeter esse poder aos representantes da sociedade reunidos no Congresso Nacional.

Não resta a menor dúvida de que a lei de programação monetária não representa um “primeiro melhor” (first best). A severa recessão enfrentada pelos Estados Unidos no início dos anos 80 e todos os problemas daí decorrentes deixam bem claro o que pode ocorrer numa economia em que a expansão monetária é controlada de modo ferrenho. (Embora, no caso, não houvesse uma lei de programação monetária, tudo se passava, sob o comando de Paul Volcker no Fed, como se assim o fosse). A dúvida que persiste, entre adeptos e não adeptos dessa lei ordinária constante da lei complementar, é se ela representa ou não um “segundo melhor”. Como se sabe em economia, e em nível de senso comum, uma situação com duas distorções pode ser superior a uma situação com uma distorção. Pois bem, se a lei de programação é uma distorção, a forma abusiva como o conjunto Executivo mais Banco Central vem conduzindo a política monetária desde 1964 também o é. Resta saber se o conjunto das duas levará a uma situação de maior bem-estar que a segunda, isoladamente.

De qualquer forma, cabe lembrar que a lei de programação monetária não é uma invenção do relator do processo, mas da Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 48, XIV, esta determina que uma lei disponha sobre a moeda e seus limites de emissão.

Adicionalmente, como revela Ronci (1991RONCI, M. V. (1991). “BC independente e limites legais à emissão de moeda”. Conjuntura Econômica de 31/12/91.), esta também não é uma ideia nova da Constituição, já tendo sido defendida em nível teórico, dentre outros, por McCallum (1987MCCALLUM, B. (1987). “The case for rules in the conduct of monetary policy: a concrete example”, Economic Review , vol. 73, Federal Reserve Bank of Richmond, 1987.) e Leijonhufvud (1989LEIJONHUFUND, A. (1989). “La búsqueda de la estabilidad monetária”. Estudios Económicos, Buenos Aires, janeiro, 1989.). McCallum propôs a aprovação em lei de metas de emissão monetária pelo período de cinco anos, o que certamente não seria recomendável no caso brasileiro. Leijonhufvud, por sua vez, sugeriu o estabelecimento de um teto máximo para a expansão anual da base, deixando a cargo do Banco Central o estabelecimento de metas trimestrais.

No caso brasileiro, o mais adequado seria optar por uma solução mista, que atendesse também aos desígnios da Constituição. Estabelecer-se-iam limites máximos ano a ano da expansão monetária, decrescentes, que poderiam ser revistos em caso de quedas abruptas do nível de inflação. A rigor, esta deveria ser uma política de um Banco Central independente, e não projeto de lei ordinária. Mas não é o que manda a Constituição. Diga-se de passagem, o artigo 48 da Constituição não maneia estipular estimativas da expressão monetária, como sugere o projeto ele lei complementar, mas apenas dispõe que cabe ao Congresso Nacional decidir sobre os limites de emissão da moeda. Ou seja, o projeto é por demais arrojado no que diz respeito à lei ordinária de programação monetária. Seu artigo 6 deve ser reescrito de forma tal que a lei ordinária apenas estipule limites de emissão da moeda, e não seu valor.

Há ainda uma observação adicional importante que cabe fazer à redação do artigo 6. Stricto sensu, se o Banco Central apenas elabora uma proposta preliminar de política monetária, cabendo ao presidente da República o encaminhamento da proposta ao Congresso, nada garante que o Banco Central tenha o efetivo controle da oferta de moeda. De fato, nada impede, no contexto do projeto de lei complementar, que o presidente ela República altere a previsão preliminar, submetendo e aprovando junto ao Congresso uma política monetária à revelia do Banco Central. O artigo deveria ser revisto mantendo o encaminhamento da proposta ao Congresso como prerrogativa do presidente, mas retirando explicitamente do Executivo quaisquer possibilidades de alteração da proposta preliminar elaborada pelo Banco Central. Caso contrário, como se poderia responsabilizar esta instituição pelos efeitos da implementação de uma política monetária (aprovada em lei ordinária), se essa política monetária difere significativamente daquela inicialmente sugerida por ela?

8. BANCO CENTRAL INDEPENDENTE E QUARTO PODER

Não resta dúvida ele que o Banco Central cujas atribuições são expressas no projeto de lei complementar não configura exatamente o tipo clássico a que se objetiva: dar independência. Sobre o excesso de atribuições previstas para a instituição pelo projeto, já nos referimos na seção 3. Da mesma forma, há de se admitir exageros explícitos no projeto com relação à autonomia prevista para o órgão responsável pelo controle monetário. Um exemplo claro nesse sentido, conforme muito bem observa Heráclito (1992HERÁCLITO, C. (1992). “O sistema financeiro nacional na nova Constituição”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.), é a ideia de prover o Banco Central de representações próprias junto a organismos internacionais, caracterizando poderes para a instituição inerentes a estados soberanos.

Cid Heráclito coloca ainda que a não-submissão do Banco Central ao Executivo caracterizaria um quarto poder, o que seria, evidentemente, inconstitucional. Segundo esse autor, que utiliza a Constituição de 1988 para embasar seus argumentos, “as atribuições do Banco Central previstas no projeto em discussão são típicas do Poder Executivo.” E ainda: “O presidente da República e o ministro da Economia podem interferir no Banco Central. Eles mandam, determinam, recomendam. Isso é da essência do princípio hierárquico”.

Não temos neste trabalho o objetivo de tecer comentários de natureza jurídica. Todavia, uma indagação imediata que se coloca diante das afirmativas acima transcritas diz respeito à experiência internacional. Há vários exemplos de países que consagram em sua lei básica a clássica divisão de poderes de Montesquieu e, ainda assim, apresentam um Banco Central que não se curva aos mandes, desmandos e recomendações do ministro da Fazenda. Nesse caso, por que o Brasil seria uma exceção? Há algo em particular no tocante a nossa Constituição que não se encontre na Constituição dos demais países? Ou a diferença estaria simplesmente numa interpretação sistematicamente alternativa desse ponto por parte dos juristas?

Sem dúvida, é preciso estudar caso a caso a experiência internacional comparada para chegar a uma conclusão nesse sentido. Infelizmente, o trabalho de Cid Heráclito não se estende nessa direção. Uma coisa, entretanto, é certa. Se o problema não reside numa assimetria na redação de nossa Constituição em relação às demais, que também consagram o princípio da divisão de poderes, mas sim de interpretações alternativas, então estas devem se sobrepor a interpretações como a de Cid Heráclito. O motivo é simples: não se pode condenar o país a viver da forma como tem vivido há mais de três décadas, com transferências inflacionárias do público para o setor bancário totalmente arbitrárias e concentradoras de renda, hoje em dia da ordem de 15 a 20 bilhões de dólares, por uma simples questão de interpretação da Constituição.

Se o problema é de interpretação e as interpretações alternativas possibilitam a tomada de um novo rumo, então não há por que se ater àquelas que sujeitam o Banco Central aos mandos, desmandos e recomendações do Executivo. Primeiro, porque esta sujeição mantém o status quo vigente, que certamente não deu certo. Segundo, porque procedimentos distintos do nosso, neste particular, incorporados por vários países industrializados e com baixo nível de inflação, mostraram-se claramente mais profícuos.

9. OBSERVAÇÕES ADICIONAIS SOBRE O PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR

  1. Artigo 2- O projeto regulamenta as atividades da Susep, mas não da CVM, muito provavelmente devido ao fato de o artigo 192 da Constituição fazer menção explícita ao mercado de seguros, e não ao mercado de capitais. Seria adequado, entretanto, dar a este último o mesmo destaque que ao mercado de seguros, se possível, estipulando mandatos fixos também (além do Banco Central) para os diretores da CVM. (O mesmo deveria ocorrer também para os diretores da Susep.) O objetivo é impedir que a ininterrupta troca do primeiro e segundo escalão do órgão, a exemplo do que vem ocorrendo nos últimos anos, reduza sua eficiência operacional. Sugestão nesse sentido é dada também por Werlang (1992WERLANG, S. R. C. (1992). “Notas sobre o projeto de reformado sistema financeiro”, mimeo, Rio de Janeiro: EPGE.).

  2. Artigo 2, § 1º. - Não há necessidade desse órgão colegiado sem nome, cujas ações poderiam colidir com os atos do Conselho Deliberativo do Banco Central.

  3. Artigo 7 (Competências privativas do Bacen), inciso XI - A ideia de assegurar que recursos captados em regiões com renda inferior à renda nacional sejam a estas mesmas destinados, tal como a limitação do juro real em 12% ao ano, faz parte do conjunto de normas tecnicamente indefensáveis estipuladas pela Constituição de 1988. No caso da transferência de poupança entre regiões, estabelece a Carta de 1988 em seu artigo 192, inciso VII, que a lei complementar do sistema financeiro deve dispor sobre “os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento”. A melhor solução nesse caso seria aproveitar a reforma constitucional de 1993 para excluir da Constituição esse mandamento (o mesmo se aplicando à limitação do juro real). Na ausência de tal solução, cabe ao menos retirar a obrigação do Banco Central, passando-a ao Ministério da Economia. Para tanto, é necessário excluir a tarefa do âmbito das competências privativas do Banco Central, corrigindo assim o artigo 7 do projeto de lei complementar. Simoens da Silva (1992SIMOENS DA SILVA, L. A. “Comentário acerca de algumas questões gerais que envolvem a discussão do artigo 192 da Constituição”, mimeo. Banco Central do Brasil, Deasf/Gabin.) apresenta ainda a solução alternativa de colocar a atribuição no artigo 4, que trata dos objetivos gerais do Banco Central.

  4. Artigo 5, § 2º. - Concordamos com Brandão (1992BRANDÃO, C. (1992). “Reforma do sistema financeiro nacional”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/ FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.) quando afirma que a definição apresentada de redesconto de liquidez não corresponde à usual.

  5. Artigo 7, § 3º. - Concordamos com Brandão ( 1992BRANDÃO, C. (1992). “Reforma do sistema financeiro nacional”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/ FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.) sobre a impropriedade do parágrafo, que pode ser eliminado do projeto de lei.

  6. Artigo 32 - Não há realmente por que estabelecer um monopólio das instituições financeiras públicas na função de depositário dos recursos das entidades e empresas controlados pelo poder público federal, estadual, municipal e do Distrito Federal. Tal reserva de mercado somente corrobora a ineficiência do setor público financeiro. Nesse ponto concordamos com MEFP/Sepe/CPMF (1992MEFP/Sepe/CEME (1992). “Seminário sobre os principais pontos para a regulamentação do SFN”. Brasília, 31.03.92.) no que diz respeito à incompatibilidade entre o que se prevê neste artigo e a filosofia de tratar igualmente instituições financeiras públicas e privadas. Infelizmente, entretanto, trata-se de mandamento constitucional (artigo 164, § 3º.).

  7. Artigo 33- Este artigo pode perfeitamente ser excluído da lei complementar. Não há por que estabelecer que alguns serviços sejam de competência precípua do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES. Como se salienta no estudo MEFP/Sepe/CPMF (1992MEFP/Sepe/CEME (1992). “Seminário sobre os principais pontos para a regulamentação do SFN”. Brasília, 31.03.92.), não faz sentido explicitar nomes de instituições financeiras oficiais em lei complementar. O mesmo se aplica no caso do artigo 36, alínea a, com respeito ao Instituto de Resseguros do Brasil.

  8. Artigo 34, § 2º. Da forma como está redigido este parágrafo, as informações prestadas ao Legislativo serão mantidas em sigilo por solicitação da instituição financeira pública que as fornecer e por decisão do Legislativo. A possibilidade de malversação dessas informações nesse contexto é demasiado elevada. A decisão sobre o sigilo de forma alguma deve caber ao Legislativo. Este parágrafo precisa ser reescrito.

  9. Artigo 36 - Como menciona MEFP/Sepe/CPMF (1992MEFP/Sepe/CEME (1992). “Seminário sobre os principais pontos para a regulamentação do SFN”. Brasília, 31.03.92.) ou Werlang (1992WERLANG, S. R. C. (1992). “Notas sobre o projeto de reformado sistema financeiro”, mimeo, Rio de Janeiro: EPGE.), não faz sentido instituir monopólio do resseguro através de um órgão estatal como o Instituto de Resseguros do Brasil. A reserva de mercado é incompatível com a concorrência que deve prevalecer em todos os setores.

  10. Artigo 51 - Este artigo, que trata da liquidez, estabilidade e solvência do sistema financeiro, poderia estipular - ou remeter tal tarefa à Lei Ordinária - parâmetros limítrofes para o financiamento de bancos estaduais aos Tesouros dos respectivos estados.

  11. Artigo 52 - Heráclito (1992HERÁCLITO, C. (1992). “O sistema financeiro nacional na nova Constituição”. Trabalho apresentado no Seminário de Reforma do Sistema Financeiro, promovido pela EPGE/FGV e Fipe/USP, Rio de Janeiro, 24.04.92.) salienta a inconstitucionalidade deste artigo, por não tipificar cada ilícito nem especificar as respectivas penas, atribuindo assim poderes discricionários ao Banco Central. De qualquer forma, concordamos com MEFP/Sepe/CPMF (1992MEFP/Sepe/CEME (1992). “Seminário sobre os principais pontos para a regulamentação do SFN”. Brasília, 31.03.92.), quando o estudo menciona não fazer sentido estabelecer para as multas pecuniárias limites baseados numa percentagem do patrimônio líquido de cada instituição. Isso não está de acordo com o princípio básico do direito pelo qual a pena deve ser proporcional à gravidade da infração. Estabelecer multa pecuniária baseada apenas no patrimônio líquido equivale a impor, no direito criminal, penas invariavelmente mais leves para os mais idosos (que, em princípio, têm menos tempo de vida) e penas mais pesadas aos mais jovens.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WERLANG, S. R. C. (1992). “Notas sobre o projeto de reformado sistema financeiro”, mimeo, Rio de Janeiro: EPGE.
  • 1
    Em suas disposições transitórias, a Constituição de 1988 reduziu as atribuições do Conselho Monetário Nacional ao determinar de competência do Legislativo decisões tomadas por esse órgão. Na prática, contudo, ele continua existindo.
  • 2
    Esta seção utiliza conceitos e tautologias de contabilidade com juros reais apresentados em Simonsen e Cysne (1989SIMONSEN, M. H. & R. P. Cysne (1989). “Macroeconomia”. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico.).
  • 3
    Tal fórmula aproximada de cálculo do imposto inflacionário pressupõe que a base real permaneça constante ao longo do tempo.
  • 4
    Deve-se lembrar que, na contabilidade com juros reais, o imposto inflacionário é lançado a crédito da conta corrente do governo.
  • 5
    Entenda-se aqui por resto do mundo exceto o Tesouro Nacional qualquer agente econômico passível de financiar o Tesouro, aí incluídos residentes e não residentes.
  • 6
    Para simplificar a análise, o setor governamental é aqui representado apenas pelo Tesouro Nacional. Consequentemente, as instituições financeiras públicas incluem-se, por hipótese, no setor privado.
  • 7
    O ponto foi levantado pelo autor nos seminários sobre reforma do sistema financeiro realizados em São Paulo (02/92) e no Rio (04/92).
  • 8
    Para uma discussão técnica detalhada do problema, ver Cysne (1990CYSNE, R. P. (1991). “Depósitos do Tesouro: no Banco Central ou nos bancos comerciais? Ensaio Econômico da EPGE/FGV n. 155, Rio de Janeiro.).
  • 9
    No caso da Alemanha, por exemplo, essa remuneração é fixada cm zero pelo Bundesbank Act.
  • 10
    A esse respeito, v. Barbosa (1992BARBOSA, F. H. (1992). “Inflação e cidadania”. Ensaios Econômicos da EPGE, n, 193, Rio de Janeiro.).
  • 11
    Na verdade, para ter ideia do custo total pago pelo setor não bancário pela utilização de M1, deve-se também acrescer a esse total o juro real negativo incidente sobre os depósitos à vista menos as reservas totais do sistema bancário. Com um multiplicador monetário da ordem de 1,6, isso equivale a um montante adicional ao redor de 6,6 bilhões de dólares.
  • **
    Este trabalho decorre de pesquisa financiada pelo IPEA-PNUD, Projeto BRA-89/008.
  • 13
    JEL Classification: E58; G00; E51.

APÊNDICE

1. Nosso primeiro objetivo neste apêndice é mostrar que, se o governo tem um déficit e um agente econômico o financia de forma a manter inalterado, em termos reais, o passivo do governo em seu portfólio, então terá financiado apenas um montante equivalente à parte dos juros nominais referente à inflação. Para isso, seja DG o déficit do governo calculado com juros nominais. Fazendo dDG representar esse déficit entre os instantes t e t+dt (0 ≤ t ≤1), temos

d D = d E

sendo E o passivo líquido do governo (supõe-se E ≤0). Em moeda do instante t, o déficit calculado com juros reais (DGR) entre os instantes t e t+dt será dado por

d D G R t = d E - E d P / P (1)

já que, em termos instantâneos, a taxa de juro nominal difere da real pela inflação, dP/ P. Nesse sentido, E(dP/P) representa a diferença entre juros nominais e juros reais pagos pelo passivo líquido do governo. Em moeda de um instante de referência j,

d D G R j = P j / P · d E - E / P d P = P j d E / P

Integrando esta expressão entre 0 (início do período) e 1 (fim do período),

D G R j = P j E 1 / P 1 - E 0 / P 0 (2)

Assim, se o agente financiador impede aumentos reais do passivo do governo em seu portfólio, forçando E/P1=EjP0, isso implica DGR=0. Decorre de (1) que o agente financiador terá igualado, no total desse período, seu financiamento (dE) à correção inflacionária do valor da dívida (E(dP/P)). Ou seja, o agente financiador terá financiado um montante equivalente apenas à parte do juro nominal cujo objetivo é recompor o valor real do passivo do governo em seu poder.

2. Tomemos agora o nível de preços P=1 no período inicial zero e suponhamos que o agente financiador permita ao governo E1=E0 (1+i), onde i é a taxa nominal de juros e 0 e 1 indicam os valores das variáveis, respectivamente, no início e no fim do período (no texto utilizamos I e 2 em vez de 0 e 1 ). Teremos então E/( I+r)=E0 (1+i)/ (1+r)=E0 (1+j), ou seja, o valor real da dívida no período 1, E/( 1+r)=E/P1 diferirá do seu valor real no período zero EJP0=E0 sempre que j (taxa real de juros) for diferente de zero, ou seja, i > r (onde r é a taxa de inflação). Para r > i, j > O e E/P1 - EJP0=j E0 > O. Pelo que vimos em (2), isso implica um valor positivo para o déficit do governo calculado com juros reais. Decorre de (1), de acordo com o que se afirma no texto, que nesse caso o financiamento do agente financiador ao governo terá ultrapassado o valor da correção inflacionária (ou correção monetária) do passivo do governo em seu portfólio, caracterizando de maneira inequívoca uma operação em desacordo com a Constituição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1993
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