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Cruzado versus dólar - qual a verdadeira moeda brasileira?

Cruzado versus dollar - what is the true Brazilian currency?

RESUMO

Este artigo critica a chamada dolarização da economia brasileira. O argumento é baseado na discussão de Marx sobre as funções do dinheiro. O instrumento eleito para atuar como dinheiro precisa atuar como meio de pagamento, ou seja, deve ser usado para pagar pelas mercadorias que foram transacionadas. O dólar ainda não pode cumprir esta função porque não existe em volume suficiente para pagar as mercadorias que foram transacionadas.

PALAVRAS-CHAVE:
Dolarização; inflação; economia marxista

ABSTRACT

The paper criticizes the so-called dollarization of Brazilian economy. The argument is based on Marx’s discussion of the functions of money. The instrument elected to act as money needs to act as means of payment, i.e., must be used to pay for the commodities been transactioned. The dollar cannot yet perform this function because it does not exist in a volume sufficient to pay for the commodities been transactioned.

KEYWORDS:
Dollarization; inflation; Marxian economics

O presente trabalho foi motivado pelo aparecimento na imprensa de duas afirmações relacionadas à moeda no presente estágio de desenvolvimento capitalista brasileiro.

a) a economia brasileira opera com duas moedas. A primeira, o cruzado, que pode ser caracterizado como moeda não remunerada, e a BTN (ou título público equivalente), que pode ser caracterizada como moeda remunerada.

b) como consequência do crescente processo de instabilidade, o público procura ancorar-se na BTN e no dólar, caso haja perda de confiança no título público. A consequência disto é que a economia brasileira tenderá à dolarização.

A nosso ver, estas duas afirmações são equivocadas e o presente trabalho desenvolve uma argumentação do porquê julgamos ser este o caso. Para isto vamos retomar a discussão feita por Marx a respeito das funções ideais da moeda, desenvolvidas em grande parte na Contribuição para a Crítica da Economia Política,Marx, Karl. (1976) A Contribution to the Critique of Political Economy. New York: International Publishers/ e da função da moeda como moeda, qual seja, a moeda como meio de pagamento, desenvolvida em O CapitalMarx, Karl. (1977) Capital, Volume I, New York Vintage Books. .

AS FUNÇÕES IDEAIS DA MOEDA

Da leitura da Contribuição, uma coisa chama a nossa atenção: Marx alerta-nos para certas funções da moeda onde não é necessária a existência real de moeda para que estas funções estejam presentes, sejam exercitadas. Estas funções são: medida de valor, padrão de preços, meio de circulação e meio de compras.

Vejamos por que examinar a função de medida do valor. Para Marx uma das funções da moeda é fornecer às mercadorias um material (ouro, prata) para a expressão de seus valores. Quando o proprietário de uma mercadoria deseja expressar o valor da mesma, ele não precisa de uma quantidade real de ouro para fazê-lo, ele simplesmente estabelece uma proporção imaginária entre uma quantidade definida de sua mercadoria e uma quantidade de ouro. Por exemplo, um casaco vale duas onças de ouro. Assim, quando a moeda é utilizada como medida de valor ela é usada apenas como moeda imaginária. Isto parece conversa do século dezenove apropriada somente ao século dezenove, mas não é. A similaridade com o que ocorre hoje no Brasil é evidente.

O dono do casaco pode muito bem expressar o preço de sua mercadoria em dólares. Isto significa que a economia brasileira está se dolarizando? De forma alguma. Para que isto aconteça o dólar necessita funcionar como meio de pagamento, a única função na qual a moeda além de funcionar idealmente precisa estar presente de fato, ter existência real. Não queremos dizer com isto que a economia brasileira não possa se dolarizar, ou, para citar um exemplo mais realista, ter uma moeda continental similar à que está se implantando na Europa, visando à integração econômica de suas nações. Para que isto ocorra é necessário um mecanismo de convertibilidade automática entre o cruzado e o dólar, o que seguramente não é o caso atual.

Existe outra função da moeda onde ela pode ser usada idealmente. E a função de meio de circulação. Esta idealização da moeda foi materializada como a resultante de um processo histórico, onde as moedas usadas para circulação de mercadorias sofriam um processo de desgaste oriundo do próprio ato de circular mercadorias.

Em outras palavras, agir como meio de circulação tem como conseqüência uma vicissitude - o desgaste. Quanto mais uma moeda valiosa era usada, tanto maior se tornava a discrepância entre o conteúdo real de ouro que ela possuía e o valor estampado na mesma, que ela supostamente representava. Assim, a moeda passou a representar o metal valioso, sem possuir o mesmo na quantidade representada. Isto levou a possibilidade de se substituir o metal por símbolos que o representassem e o papel-moeda é uma das materializações desta possibilidade. Entretanto, este papel-moeda não era considerado dinheiro real. Assim, uma nova idealização da moeda surgiu como consequência de um processo histórico e esta “moeda idealizada” era considerada apenas um substituto para o dinheiro no processo de circulação, mas nunca dinheiro real porque a sociedade não o aceitava juridicamente (legalmente) como o equivalente geral. Para ser considerado como o equivalente geral em última instância, era preciso que o candidato à moeda fosse usado como meio de pagamento, o que passamos agora a examinar.

A FUNÇÃO PRIMORDIAL DA MOEDA - MEIO DE PAGAMENTO

Quando lemos O Capital pela primeira vez, uma questão intrigante fica em nossa mente. Por que Marx, quando discute as funções da moeda, resolve atribuir à função de meio de pagamento a função primordial da moeda? Esta questão salta aos olhos pela própria ambiguidade de Marx, no desenvolvimento das funções da moeda, pois é somente no final de uma seção devotada totalmente à moeda que o mesmo introduz a função primordial (seção 3 - Moeda). A razão, a nosso ver, é que Marx queria fazer uma separação entre as funções ideais da moeda, em que não há a necessidade de a moeda estar presente, e a função real da moeda, onde esta necessariamente tem que ter existência real.

Foi mérito dos economistas clássicos destacar que as sociedades produtoras de mercadorias eram sociedades distintas dos modelos precedentes de organização da produção pelo fato de os produtores aparecerem agora como independentes uns dos outros, decidindo por si o quê e quanto produzir. Esta forma de organização da produção sugere que não há um reconhecimento social a priori do trabalho privado de cada produto como trabalho social, isto é, como trabalho necessário para a reprodução deste tipo particular de sociedade. Isto implica que cada produtor é compelido a ir ao mercado para validar o seu trabalho privado, para carimbá-lo como sendo trabalho social. Este processo de validação foi brilhantemente explorado por Marx, partindo da forma elementar do valor (troca de uma. mercadoria) até chegar à forma geral (troca das mercadorias por moeda, a mercadoria que é excluída para tornar-se o equivalente geral). O que precisa ficar claro neste processo é a distinção que Marx faz entre o ato de comprar, o ato de alienar e o ato de realizar.

a) O ato de compra - este ato pode ou não envolver a presença de ambos, mercadorias e moeda. A compra em alguns casos ocorre apenas nominalmente, isto é, juridicamente, sem a presença real de mercadorias ou moeda.

b) Alienação - a entrega das mercadorias, isto é, as mercadorias podem deixar as mãos do vendedor antes de serem pagas e, vice-versa, podem ser pagas antes de serem entregues.

c) Realização - o ato de pagar pela mercadoria. A mercadoria realiza seu preço quando é trocada pela moeda.

Estes três atos podem ou não ocorrer simultaneamente num mesmo instante de tempo mas é somente o último ato que caracteriza a moeda, pois é somente neste ato que ocorre a validação do trabalho privado como sendo trabalho social. Ou seja, o instrumento que é reconhecido legalmente pela sociedade como meio de pagamento (validante em última instância) é que é a moeda nacional.

Agora isto ajuda esclarecer porque o dólar nas condições atuais, apesar de ser utilizado (ou vir a ser) como padrão de preços não é a moeda nacional. Este simplesmente não existe em quantidade suficiente para realizar os preços das mercadorias. Obviamente poderá vir a sê-lo, mas isto envolverá seguramente uma inserção maior da economia brasileira na economia internacional.

O que foi elaborado até agora serve como arcabouço para discutirmos a outra afirmação. Nossa objeção é que coloca em níveis iguais o cruzado, cuja emissão não acarreta nenhuma dívida para o governo, e um título público (BTN ou seu equivalente), que é uma obrigação das autoridades monetárias.

Em primeiro lugar, acho que é ponto sem discussão que o cruzado é um dos equivalentes gerais nacionais. Mesmo os que advogam a existência da OTN como uma forma da moeda remunerada aceitam esta afirmação pois o argumento baseia-se na assertiva de que a economia brasileira trabalha com duas moedas, sendo o cruzado a não remunerada. Entretanto, vai-se mais além ao advogar-se que paralelamente ao cruzado existe outro equivalente geral, este último sendo um equivalente remunerado.

E preciso ter em mente que na troca de mercadorias por moeda (forma geral do valor) existe uma polarização. De um lado um bem que procura validação para o trabalho incorporado no mesmo. No outro polo o validante, que possui a capacidade de reconhecer o trabalho privado como trabalho social. A moeda adquire seu poder porque é o único instrumento que permite que uma compra possa ser efetuada sem antes ter havido uma venda.

Todo o produtor de mercadorias sabe que para comprar ele necessita primeiro vender. Se ele não fizer isto, a outra alternativa é comprar, mas se endividando ao mesmo tempo. Não é o caso com a emissão de moeda; simplesmente ela permite comprar a mercadoria que se desejar e sem se endividar. Basta para isto a emissão de moeda (vale frizar que a moeda emitida permite comprar a mercadoria que se desejar, mas não todas as mercadorias na quantidade que se desejar porque isto trará como uma de suas consequências a hiperinflação),

Esta é a grande distinção entre o equivalente geral (cruzado) e um título público. Com a emissão de um título público o governo recolhe moeda já existente. O fato de os poupadores privados procurarem proteção nos títulos públicos face à instabilidade inflacionária reinante se deve ao fato de procurar-se impingir ao Estado brasileiro que o mesmo garanta em última instância o poder de compra da moeda. Obviamente os títulos públicos cobrem a inflação mas nenhum governo pode garantir eternamente o poder de compra da moeda usando somente instrumentos de política monetária (controle da expansão do estoque de moeda e controle da taxa de juros) porque o valor da moeda no capitalismo depende da contínua metamorfose desta em capital produtivo e mercadorias, o que implica sempre um exame da permanência ou não das condições de reprodução vigentes em períodos anteriores, como por exemplo alteração da produtividade e de realização das mercadorias (oferta e demanda agregada).

O teste final para se verificar se o cruzado é ou não o equivalente geral pode advir de um processo de instabilidade onde a sociedade por qualquer motivo espectacional julgar que o governo não vai honrar os títulos públicos. Se eles fossem moeda poder-se-ia comprar com os mesmos. Entretanto os poupadores correm para os títulos públicos não porque julgam que o cruzado não é a moeda nacional, mas porque esperam receber em troca a moeda nacional acrescida de juros que cubram pelo menos a inflação. Mas um processo grande de instabilidade pode acarretar uma corrida para o cruzado que será procurado como o validante em última instância do trabalho privado dos produtores de mercadorias.

Se por acaso houver uma troca de títulos por cruzados, seguida de uma corrida para ativos tangíveis é porque a sociedade perdeu a confiança no equivalente geral e nenhum outro encontrasse disponível para substituí-lo, pois do contrário a corrida será para equivalente geral alternativo. Obviamente esse equivalente geral precisará existir em volume suficiente, ou seja, agir como meio de pagamento e não como padrão de preços, pois do contrário a economia não poderá continuar funcionando (não é o caso do dólar, por exemplo).

E preciso ficar claro também que quando da emissão da moeda esta tem o poder de comprar a preços vigentes. Não é, como costumam argumentar alguns economistas, um símbolo sem valor algum. Que uma emissão exagerada possa causar a desvalorização da moeda não invalida este argumento, pois a desvalorização, se é que se dará, ocorrerá ao longo do tempo.

A construção teórica de Marx é tão poderosa que sequer é compreendida pela economia neoclássica. Como é sabido, Marx definiu o capital como sendo a expansão própria do valor, valor que acrescenta a si mais valor num movimento contínuo. Este referencial é dinâmico por natureza. Tão importante era a dinâmica para Marx, que o próprio introduziu a feliz distinção entre valor (estoque) e valor em processo (fluxo). O capital é valor em expansão. Num dado instante de tempo existe uma quantidade de moeda, capital produtivo e mercadorias que se metamorfoseiam em períodos de tempo distintos nas outras formas. O acréscimo de um estoque de moeda ao estoque de capital vigente (emissão de moeda) não garante a priori que a mesma será desvalorizada.

É preciso verificar o que ocorrerá com esta moeda ao longo de todas as faces em que ela necessariamente terá que se metamorfosear, pois moeda é valor em movimento. Se por acaso os poupadores se escorarem nos títulos públicos exigindo uma remuneração real, o governo terá que deslocar parte do excedente para o setor privado. A grande questão é saber se existe excedente em volume suficiente para pagar os credores externos (banqueiros, firmas multinacionais) e os internos (firmas estaduais, firmas nacionais). Caso seja impossível, o juro se tornará negativo para compatibilizar as demandas monetárias sobre o excedente com o volume real do mesmo.

Um paralelo pode ser feito aqui entre o que ocorreu em épocas precedentes onde um certificado de dívida (não necessariamente público) foi usado como moeda, desde que não fossem quebradas certas condições.

Para tanto é bom lembrar a distinção entre duas funções da moeda, quando agindo como meio de compra e quando agindo como meio de pagamento. Quando a moeda funcionava como meio de compra era necessário (mesmo que a compra, alienação e pagamento não fossem coincidentes) que o proprie­tário de mercadorias e o proprietário de moeda fossem colocados em contato como proprietários de moeda e mercadorias existentes. Porém com o desenvolvimento do aparato institucional para melhorar a circulação de mercadorias foram criadas condições concretas para que a produção de uma mercadoria fosse separada por um intervalo de tempo da sua realização. Por exemplo, mercadorias específicas requerem tempos distintos para serem produzidas, podem ser produzidas em estações diferentes do ano etc. Como consequência destes diversos fatores um proprietário pode estar apto a vender antes que outro esteja pronto para comprar. O vendedor, portanto, vende uma mercadoria existente, mas o comprador pode comprar como um mero representante de “dinheiro futuro”. O vendedor se torna um credor e o comprador, um devedor. A partir destas situações concretas foram criadas condições para que certificados de dívidas resultantes destas transações circulassem com o propósito de transferir estes certificados para outras pessoas.

Mais cedo ou mais tarde as obrigações vincendas tinham que ser saldadas. Quando os certificados se cancelavam uns aos outros, ou seja, quando o montante de dívida de cada capitalista era idêntico ao de seu credor, nenhuma moeda precisava aparecer em cena. Entretanto, quando os pagamentos não se cancelavam entre si o equivalente geral precisava aparecer para saldar os débitos.

As entidades econômicas de credor e devedor surgiram no processo de circulação simples de mercadorias e permitem uma mudança de lugar nas duas metamorfoses que a mercadoria tem que sofrer, sendo que a moeda acaba se tornando o ponto de partida e o ponto final do processo.

Por exemplo, imaginemos a venda de uma casa. Esta pode ser comprada em um determinado dia, alienada um ano depois (isto é, o comprador recebe um certificado afirmando que a casa lhe será entregue efetivamente um ano depois) e poderá ser paga em parcelas ao longo do período. Agora, se o comprador adquiriu a casa apenas como representante de moeda futura, há uma confrontação de um representante de dinheiro futuro com um valor de uso real. O comprador realiza a segunda metamorfose das mercadorias, isto é, D-M (dinheiro-mercadoria) porém apenas como um representante de moeda real. Depois de comprar sem dinheiro (o cartão de crédito é um exemplo), ele tem que vender mercadorias, isto é, realizar a primeira metamorfose das mercadorias (M-D) com o objetivo de pagar a dívida. Se não tiver mercadorias comuns, restará a venda de uma mercadoria especial, a sua força de trabalho.

Para ele o circuito completo torna-se: D-M-D sendo a moeda o ponto inicial e final do circuito. Estas relações de devedor-credor evoluíram espontaneamente com o desenvolvimento da circulação simples de mercadorias, mas é somente dentro das relações capitalistas que podemos explicar o aparecimento de um montante de moeda maior no final do circuito sem negar a troca de equivalentes.

As relações devedor-credor que se estabeleceram entre o Estado brasileiro e a iniciativa privada, apesar de não terem surgido de um processo histórico semelhante ao descrito anteriormente, são de segundo tipo, isto é, os credores esperam no final da transação receber o que emprestaram acrescido de juros e correção monetária. Em outras palavras, é uma relação capitalista de produção de excedente e não de produtores independentes trocando equivalentes.

Para que isto ocorra é necessário ser gerado um excedente tal que permita que parte dele seja transferida para a iniciativa privada. Do contrário, ou seja, na ausência de um excedente crescente, a regra básica é comprimir os salários para que em última instância reste uma parcela maior de um excedente constante para ser apropriado pelas facções do capital (Estado, empresários e banqueiros). Quanto maior o juro real prometido para a colocação dos títulos públicos tanto maior terá que ser o esforço do Estado em aumentar a taxação que em última instância é o que garantirá o pagamento de juros reais maiores. Se o estoque de dívida for superior ao fluxo de produto produzido, é lógico que as demandas monetárias sobre o produto só poderão ser satisfeitas se os prazos de pagamento forem compatíveis. Do contrário, a taxação maior implicará em repasse para os preços desencadeando uma luta entre as diversas facções do capital, as principais protagonistas deste processo. Isto poderá levar a uma desvalorização bastante rápida da moeda, que é a forma que o mercado possui de acomodar demandas monetárias excessivas sobre um excedente com volume “constante”, ou seja, que não cresce suficientemente para acomodar as demandas monetárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Marx, Karl. (1976) A Contribution to the Critique of Political Economy. New York: International Publishers/
  • Marx, Karl. (1977) Capital, Volume I, New York Vintage Books.
  • JEL Classification: B51; E51; E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1990
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