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Moeda, financiamento, sistema financeiro e trajetórias de desenvolvimento regional desigual: a perspectiva pós-keynesiana

Currency, financing, financial system and uneven regional development trajectories: the post-Keynesian perspective

RESUMO

O artigo examina os papéis que o dinheiro e o sistema financeiro desempenham no nível regional. Temos nossa análise baseada na teoria monetária pós-keynesiana e, mais precisamente, nos modelos desenvolvidos pela Dow. Esses modelos demonstram um processo de autoperpetuação que tende a ampliar as desigualdades iniciais em nível regional. O comportamento financeiro dos agentes tende a gerar um processo de concentração bancária que reforça as disparidades regionais reais.

PALAVRAS-CHAVE:
Concentração bancária; pós-keynesianismo; desenvolvimento regional; bancos públicos

ABSTRACT

The paper examines the roles that money and the financial system play at the regional level. We have our analysis based on post-Keynesian monetary theory and, most precisely, on the models developed by Dow. These models demonstrate a self-perpetuating process that tends to amplify initial inequalities at the regional level. The financial behavior of agents tends to generate a process of banking concentration which reinforces regional real disparities.

KEYWORDS:
bank concentration; post-Keynesianism; regional development; public banks

1. INTRODUÇÃO

O processo de concentração bancária por que passa o país tem, estranhamente, suscitado poucas discussões acerca das consequências regionais do mesmo. Quais seriam as causas para esse fato que parece ter uma certa relevância, visto que os bancos de caráter regional estão praticamente desaparecendo e a sede do sistema financeiro, que anteriormente estava fortemente concentrada em São Paulo, parece estar concentrando-se exclusivamente naquele estado? Seria a moeda estatal e privada neutra em seus efeitos macroeconômicos e por isso neutra também no nível regional e por esse motivo essa discussão seria absolutamente inócua? Ou a falta de discussão seria consequência da ausência de um referencial teórico adequado ao tratamento de processos concentradores em que círculos viciosos são criados e se reproduzem e intensificam através dos mecanismos de mercado?

A importância atribuída à moeda e à questão monetária tem sofrido modificações significativas através da história do pensamento econômico, contudo, de forma geral, a moeda tem sido tratada bem mais como um elemento sem importância e como uma mera conveniência do que como algo que realmente possui o poder de afetar de forma decisiva tanto a trajetória de curto como de longo prazo da economia. O tratamento dispensado pela ortodoxia à moeda foi sempre o de um elemento facilitador das trocas, destarte, a essência do processo econômico sempre esteve ligada ao lado real da economia, o que interessa é a troca de um bem por outro, a moeda é vista simplesmente como um óleo ou véu que encobre o real mecanismo de trocas e o agiliza. A importância que essa vertente do pensamento econômico atribui à moeda é reduzida aos seus efeitos transitórios de curto prazo, que são consequência de fricções que caracterizam esse período e não propriamente de nenhum elemento intrínseco ao processo econômico em economias monetárias de produção.

O tratamento keynesiano da moeda, ou ao menos o tratamento dispensado a esse elemento por Keynes em seus últimos trabalhos e pelos pós-keynesianos, ao contrário da tradição clássica, atribui à moeda um papel fundamental que está inerentemente relacionado à concepção de economias monetárias de produção, que são aquelas em que “money plays a part of its own and affects motives and decisions and is, in short, one of the operative factors in the situation, so that the course of events cannot be predicted, either in the long period or in the short period, without a knowledge of the behavior of money between the first state and the last” (Keynes, 1973aKEYNES, J.M. (1973) The General Theory. Part I: Preparation. Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIII. Cambridge, Macmillan., pp. 408-9). Desta forma, a moeda é concebida como sendo não-neutra tanto no longo como no curto prazos. Portanto, é difícil crer que um elemento dotado de semelhante relevância no nível macroeconômico seja neutro no nível regional.

A análise de modelos heterodoxos que lidam com a questão das desigualdades regionais e que assumem processos cumulativos que tendem a acentuar essas desigualdades ao invés de reduzi-las, como postula a teoria clássica e neoclássica, nos leva a observar que, basicamente, estas análises concentram-se na esfera real da economia. Esse fato não demonstra que os problemas financeiros não são levados em conta, mas que a concepção de sistema financeiro, no caso do modelo apresentado por Kaldor (1970KALDOR, N. (1970) “The Case for Regional Policies”. Scottish Journal of Political Economy, vol. 17.), Thirlwall (1980THIRLWALL, A.P. (1980) “Regional Problems Are Balance of Payments Problems”. Regional Studies, vol. 14.) e Dixon e Thirlwall (1975DIXON, R. & THIRLWALL, A.P. (1975) “A Model of Regional Growth-Rate Differences on Kaldorian Lines”. Oxford Economic Papers, vol. 27.) tende a tomar irrelevante o papel da esfera financeira, uma vez que seu papel é eminentemente acomodativo. Por outro lado, a teoria da dependência, embora introduzindo algumas limitantes financeiras para a explicação das desigualdades regionais, não desenvolve todos os papéis potenciais que o sistema financeiro e a moeda podem desempenhar no acirramento dessas desigualdades.1 1 A grande maioria dos modelos que lidam com problemas financeiros e monetários no nível regional baseia-se no referencial teórico ortodoxo e por isso observa como única possibilidade de interferência da moeda na esfera real da economia seus efeitos de curto prazo, sua neutralidade sendo restaurada no longo prazo, isso pode ser observado em Dreese (1973-74) e em Beare (1976). Por outro lado, há alguns modelos que seguindo o mesmo referencial observam a não-neutralidade da moeda como consequência da rigidez e imperfeições de mercado típicas de curto prazo. Robert e Fishkind (1979) elaboram um modelo onde a política monetária tem diferentes impactos em diferentes regiões como consequência do custo de informações que faz que a elasticidade da curva LM varie entre as regiões, isso sendo claramente uma consequência das imperfeições e fricções do mercado de capitais. Por outro lado, Fishkind (1977) observa que diferentes impactos da política monetária em diferentes regiões podem ser consequências das diferenças na estrutura produtiva das regiões que determinam diferentes elasticidade juros da curva IS em diferentes regiões.

Exatamente com o fim de cobrir esse hiato e de mostrar que as condições financeiras e a moeda têm um papel fundamental a desempenhar no desenvolvimento regional, Dow apresenta alguns modelos que estão preocupados exatamente com as funções que o sistema financeiro, enquanto criador de liquidez e moeda privada, pode desempenhar na definição de tendências ao desenvolvimento regional desigual2 2 Ver Dow (1982), (1987), (1990) e Chick e Dow (1988). e é nesses modelos que basearemos nossa análise.

A análise da questão regional no Brasil tem um viés real bastante intenso. Isso decorre, em grande medida, de suas bases terem sido lançadas em um momento em que as questões financeiras não eram o elemento definidor do problema e, portanto, a esfera real era prioritária em termos analíticos. Contudo, isso não implica que as variáveis monetárias não tenham nenhum papel a desempenhar nessa problemática. Cremos que a ausência de análises financeiras da questão regional deve-se, em grande medida, a se adotar um referencial teórico para abordar a dinâmica financeira que em última instância assume moeda neutra ou por não se ter um referencial teórico adequado para tratar da questão financeira no nível regional.3 3 Como exemplos de alguns estudos sobre o papel do sistema financeiro na dinâmica regional brasileira podemos citar: Bielschowsky (l975), Chaloult (l978) e Sayad e Jatobá (l980).

2. O PAPEL DA MOEDA, FINANCIAMENTO E SISTEMA FINANCEIRO NO DESENVOLVIMENTO REGIONAL: A VISÃO PÓS-KEYNESIANA

Com o objetivo de analisar diferentes trajetórias de desenvolvimento, Dow adaptou a teoria monetária keynesiana no nível regional e para compreender a complexidade dos papéis que a finança pode desempenhar nesse sistema ela adequou alguns elementos da teoria da dependência e criou uma teoria de efeitos cumulativos que salienta os círculos viciosos que o sistema financeiro pode originar em países com forte diferenças nos níveis de desenvolvimento de suas regiões. Desta forma, gera-se um modelo onde elementos reais e monetários estão interligados e criam processos dinâmicos que tendem, quando o livre jogo do mercado é permitido, a aprofundar as desigualdades em termos de desenvolvimento regional. Nossa preocupação será exatamente analisar esses modelos e tecer algumas considerações enriquecedoras sobre os mesmos.

3. O MODELO

Dow, nos artigos de 1982 e 1987, está basicamente preocupada em explicar, no nível puramente teórico, os mecanismos através dos quais o sistema financeiro pode reforçar e gerar processos cumulativos que acentuem a trajetória desigual de desenvolvimento regional de um determinado país. No primeiro artigo, ela trabalha com os multiplicadores monetários, quando desagregados e analisados no nível regional e com a influência das esferas monetária e financeira na determinação do emprego e da renda. No segundo artigo, ela procura explicar o papel do sistema financeiro quando sujeito a diferentes graus de precisão de informação e incerteza, e quando o grau de confiança com o qual os agentes formam suas expectativas varia de acordo com a região. Nesse sentido, o financiamento realmente representa uma limitante ao investimento em regiões com altos níveis de incerteza e, desta forma, efetivamente é uma fonte para a acentuação das desigualdades regionais. Em ambos os artigos, ela usa um modelo que apresenta dois polos regionais essencialmente diversos, ao fazer isso ela segue a caracterização utilizada por alguns modelos que trabalham com a noção de centro e periferia.

3.1. A caracterização de centro e periferia

Dow observa as regiões centrais como caracterizadas por uma trajetória mais estável de desenvolvimento, por mercados financeiros mais desenvolvidos, mais baixa propensão a importar e trajetória de crescimento autogerada e retroalimentada. Por outro lado, as regiões periféricas são caracterizadas pelos baixos níveis de renda, trajetória de crescimento bastante instável, a qual é basicamente dirigida pelas exportações, concentração da produção em setores primários, menor desenvolvimento do sistema financeiro e, consequentemente, bases mais voláteis para a difusão de informações (Dow, 1982DOW, S.C. (1982) “The Regional Composition of the Money Multiplier Process”. Scottish Journal of Political Economy, vol. 29, nº 1.: 25-6). Contudo, ao invés de observar essas características como intensificando os elementos reais das desigualdades regionais, Dow associa esses elementos reais da economia com os comportamentos resultantes dos agentes em relação à moeda e aos ativos financeiros e estabelece alguns mecanismos que explicam o papel da finança na determinação da trajetória de desenvolvimento regional.

J. Friedman (1972) também trabalha com a ideia de uma economia polarizada para explicar os desníveis de desenvolvimento regional. Contudo, aqui o elemento dinâmico é a inovação, e centro e periferia são definidos em relação a essa variável. O centro é a região onde se geram e ocorrem as inovações enquanto a periferia é definida em relação à sua posição dependente em termos da absorção das inovações geradas nas economias centrais (Friedman, 1972: 85). Desta forma, ele caracteriza o desenvolvimento como “a discontinuous, cumulative process that occurs as a series of elementary innovations which become organized into innovative clusters and finally into large scale systems of innovation. The innovation may be technically or institutional and, if the latter, may be usefully subsumed under the customary categories of social, economic, political and cultural” (Friedman, 1972: 86). A introdução da ideia de inovações institucionais na caracterização do modelo que trabalha com a noção de centro e periferia é fundamental quando se analisa a apropriação dos ganhos que a evolução do sistema bancário pode trazer às regiões onde essas inovações ocorrem. São exatamente essas inovações que são responsáveis pelas mudanças nos estágios de desenvolvimento do sistema bancário as quais são, normalmente, conduzidas pelas regiões centrais.

3.2. Os estágios do desenvolvimento bancário e seus impactos regionais

Seguindo a linha de pesquisa de Chick (1986CHICK, V (1986) “The Evolution of the Banking System and the Theory of Saving, Investment and Interest”, Econommies et Societes, vol. 20, Serie Monnaie et Production.), Chick e Dow (1988CHICK, V. & DOW, S.C. (1988) “A Post-Keynesian Perspective on the Relation Between Banking and Regional Development”. In Arestis, P. (ed.), Post Keynesian Monetary Economics. Aldershot, Elgar.), Dow desenvolve (1990) um modelo que explora os papéis do setor financeiro no desenvolvimento regional sob uma perspectiva pós-keynesiana, mas desta vez, considerando os diferentes momentos da história do desenvolvimento bancário e analisando as especificidades de cada um desses estágios. É fundamental observar que o próprio trabalho de Dow segue a linha dos estágios do desenvolvimento bancário sugerida por Chick (1986). A análise dos diversos textos produzidos por essa autora demonstra uma gradual evolução na concepção e no papel dos bancos que se coaduna, até mesmo cronologicamente, com os estágios do desenvolvimento bancário sugeridos por Chick (1986CHICK, V (1986) “The Evolution of the Banking System and the Theory of Saving, Investment and Interest”, Econommies et Societes, vol. 20, Serie Monnaie et Production.).

A análise da evolução do sistema bancário demonstra que o sistema gradualmente vai se “libertando” dos limites impostos à sua ação: primeiro ele se “liberta” dos depósitos enquanto um limite absoluto à extensão de empréstimos; então, ele se “liberta” do limite da base fracionai de reservas para a extensão de empréstimos, então ele pressiona para a criação de um emprestador de última instância que o torna ainda mais livre para estender empréstimos sem limites exogenamente impostos e assim ele evolui por sucessivos estágios. Essa é a representação perfeita de um sistema que supera as fricções e os impedimentos legais e reais ao pleno jogo das forças de mercado, uma vez que esse processo de sucessiva superação dos estágios do desenvolvimento bancário é um processo liderado por forças de mercado. Concomitantemente, esse processo torna a moeda gradualmente menos neutra e dá relevância aos bancos na economia como um todo, o que é o resultado oposto ao esperado pela teoria ortodoxa. A ortodoxia observa a não-neutralidade de curto prazo da moeda como consequência das fricções que são impostas aos mecanismos de mercado. Assim, ela sugere que essas barreiras deveriam ser eliminadas de forma a que os mercados pudessem ajustar-se livremente e os efeitos negativos da moeda serem eliminados.

A evolução do sistema financeiro também tem importantes impactos no papel que este desempenha no nível regional. A passagem do sistema bancário através dos sucessivos estágios de seu desenvolvimento tende a acentuar sua não-neutralidade regional e os círculos viciosos que ele gera. Desta forma, o sistema afasta-se cada vez mais dos resultados preditos pela teoria ortodoxa que vê no sistema financeiro um elemento que age no sentido da redução das desigualdades regionais. Portanto, é relevante analisar este sistema através do seu processo histórico de desenvolvimento.

Contudo, como em todas as tentativas de caracterização geral de um determinado processo ou sistema, a caracterização da evolução do sistema bancário proposta por Chick (1986CHICK, V (1986) “The Evolution of the Banking System and the Theory of Saving, Investment and Interest”, Econommies et Societes, vol. 20, Serie Monnaie et Production.) e Chick e Dow (1988CHICK, V. & DOW, S.C. (1988) “A Post-Keynesian Perspective on the Relation Between Banking and Regional Development”. In Arestis, P. (ed.), Post Keynesian Monetary Economics. Aldershot, Elgar.) também está sujeita a excessivas generalizações e imprecisões, o que, quando se trata de casos concretos, pode vir a gerar problemas. Por exemplo, a mera possibilidade legal de haver empréstimos interbancários não quer dizer que todos os bancos efetivamente tenham acesso a esse mecanismo. Desta forma, pode-se ter um sistema bancário que aparentemente está no estágio 3 do desenvolvimento bancário, mas apenas uma pequena parte do sistema efetivamente está neste estágio. Um outro exemplo típico refere-se à existência de um emprestador de última instância que levaria o sistema para o estágio 4 de desenvolvimento, mas esse mecanismo pode perfeitamente estar restrito a apenas uma parcela do sistema. Ou seja, bancos que têm uma escassez momentânea de reservas podem fazer eventualmente uso desse mecanismo, contudo, bancos que estruturalmente enfrentam problemas com suas reservas não têm acesso a ele. Como será observado posteriormente, os bancos do centro tendem a estar na primeira situação, enquanto os bancos da periferia tendem a estar na segunda. Assim, pode-se ter uma economia cujo centro aparentemente está no estágio 4, mas que tem grande parte de seus bancos operando no estágio 2.

3.3. Primeiro estágio do desenvolvimento bancário

Neste momento os depósitos são o elemento limitador do sistema, são eles que geram as reservas e o crédito. Os depósitos correspondem plenamente à poupança e, portanto, crédito é poupança. Os bancos são meros intermediários entre poupadores e investidores, e a taxa de juros é a variável que harmoniza os desejos destes dois grupos. Neste estágio estamos no mundo ortodoxo e, portanto, foi nele que os autores ligados a essa corrente pararam em suas análises monetárias. Em termos de regiões podemos observar que a poupança flui das regiões em que ela se encontra em excesso para aquelas em que ela é escassa e assim os fluxos “financeiros” igualam poupança e investimento. Neste momento o sistema financeiro tenderia a criar trajetórias de crescimento convergentes entre economias periféricas e centrais, o que está em pleno acordo com a posição ortodoxa.

3.4. Superação do conto de fadas ortodoxo: os estágios avançados do desenvolvimento bancário

No segundo estágio do desenvolvimento bancário as tendências gerais à criação de círculos viciosos financeiros aparecem. Neste momento os depósitos passam a ser tratados como meios de pagamento e, portanto, passam a ser usados como moeda. Os bancos passam a estender crédito como múltiplo de suas reservas. Agora não são mais os depósitos que limitam o crédito, mas sim as reservas. Os multiplicadores monetários, regionais e nacionais, passam a ser função inversa da preferência pela liquidez dos agentes a qual pode manifestar-se em diversos elementos, tais como: as relações reservas-depósitos e cash-depósitos.4 4 Dow (1982) está basicamente preocupada em analisar os multiplicadores monetários regionalizados. Para tanto, ela adapta o modelo de Tsiang (1978) de difusão de reservas bancárias à questão regional. Essa seção basear-se-á no modelo de 1982. Assim, se houver alguma razão para que a preferência pela liquidez varie entre as regiões, isso deverá ter repercussões sobre a possibilidade de criação de moeda dos bancos. Os multiplicadores monetários regionais também sofrem a influência dos vazamentos de recursos financeiros e reais. Ou seja, déficits em conta corrente tenderão a reduzir os multiplicadores regionais, o mesmo acontecendo com a saída de moeda através da conta de capitais.

O nível de reservas de cada região passa, então, a depender de: a) entrada de novas reservas provenientes do Banco Central, expansões da base monetária; b) fluxo de reservas real e financeiro entre regiões. Neste sentido, a oferta monetária é absolutamente endógena e está absolutamente fora do controle da autoridade monetária.

Uma vez que no nível regional há a possibilidade de vazamentos nos fluxos financeiros a ideia do “revolving fund of finance” proposta por Keynes desaparece. Dado que mesmo em estado estacionário a economia estará sofrendo drenos monetários e, portanto, para manter o nível de oferta de “finance” ou o sistema bancário terá que reduzir sua preferência pela liquidez ou os agentes terão que fazer isso, ou a autoridade monetária terá que expandir a base monetária.

A caracterização geral das economias centrais e periféricas estabelece que as primeiras têm uma trajetória mais estável de crescimento, enquanto as segundas estão mais expostas à instabilidade, portanto, a incerteza é mais intensa nestas últimas.5 5 A noção de incerteza adotada aqui é a keynesiana, onde risco difere de incerteza pelo caráter quantificável do primeiro e pelo caráter não-quantificável da segunda. Esse fato faz os agentes das segundas apresentarem uma maior preferência pela liquidez do que os agentes das primeiras. Isso se demonstra tanto na preferência pela liquidez decorrente do motivo precaucional para demandar moeda como no motivo especulativo. A maior demanda decorrente do primeiro motivo deve-se à maior instabilidade dessas economias e, consequentemente, à maior possibilidade de ocorrência de despesas imprevistas, ao mesmo tempo que os ativos dessas regiões são menos líquidos em decorrência do menor desenvolvimento institucional desses mercados. A maior demanda por moeda decorrente do segundo motivo deve-se também à maior instabilidade dessas economias o que torna os agentes imersos nesse ambiente mais propensos a reter liquidez para fins especulativos. Esse fato é observado mesmo sendo os mercados financeiros dessas economias menos desenvolvidos, uma vez que os agentes podem operar tanto nesses mercados como nos mercados das economias centrais. Ou seja, esses dois elementos somam-se e culminam em uma demanda por moeda muito mais intensa nas economias periféricas do que nas economias centrais. Por outro lado, o mais baixo nível de renda das economias periféricas torna a relação cash-depósitos maior nessas regiões, o que contribui para menores multiplicadores monetários. Nas economias periféricas a participação do setor informal também é maior do que nas economias centrais. O setor informal tem uma participação menor no sistema financeiro, seja porque ele não apresenta os requisitos mínimos para entrar no sistema, seja porque ele é um setor que apresenta menores rendas e por isso está excluído deste sistema ou mesmo porque ele está ligado à atividades ilegais. O acesso ao crédito por esse setor também é impedido por definição. Portanto, a penetração do sistema financeiro no tecido econômico das economias em que este setor tem uma grande participação é bem mais restrito. Isso também contribui para a redução dos multiplicadores monetários. Outro elemento que tende a reduzir o multiplicador e o multiplicando monetários, ou seja, a reduzir a base monetária regional diz respeito aos fluxos de finança especulativa que saem das regiões periféricas para as regiões centrais. Esses fluxos são decorrência do maior desenvolvimento institucional dos segundos mercados. Uma vez que esses mercados são mais desenvolvidos, os ativos transacionados neles tornam-se mais líquidos e, nesse sentido, mais atrativos. Por outro lado, normalmente, os ativos originários dessas regiões são lastreados por um background institucional mais sólido, o que exerce uma atratividade extra sobre os investidores, ou especuladores que vêm para esses mercados.6 6 Morgan (1973), analisando a economia britânica, observa a atração que os ativos financeiros das regiões centrais exercem sobre os agentes das regiões periféricas como que um elemento a mais a desequilibrar a conta de capitais dessas economias (Morgan, 1973: 21). Na mesma linha, Mckillop e Hutchinson (1991) observam que o emprego e o produto dos bancos dependem da demanda por seus serviços. Desta forma, como parte da demanda especulativa das regiões periféricas dirige-se aos bancos das regiões centrais, isto estimula os últimos em detrimento dos primeiros, gerando uma tendência à concentração bancária. Se somarmos a esses vazamentos especulativos os vazamentos reais que se observam nas economias periféricas, frutos dos déficits comerciais que essas regiões tendem a apresentar, chegamos a uma situação em que os vazamentos monetários podem ter importantes repercussões na disponibilidade de finança para essas regiões (tanto por impactos sobre os multiplicadores como sobre os multiplicandos), o que pode vir a constituir um importante entrave em seu processo de desenvolvimento. Desta forma, temos tanto menores multiplicadores como multiplicandos monetários nas regiões periféricas em relação às regiões centrais.

Contudo, não só por parte dos agentes em geral, observa-se uma maior preferência pela liquidez na periferia do que no centro. Os bancos também tendem a apresentar esse mesmo padrão comportamental, isso sendo decorrência da maior instabilidade observada ‘na periferia. A maior preferência pela liquidez dos bancos tende a manifestar-se numa maior relação reserva-depósitos na periferia do que no centro. A decisão de emprestar por parte dos bancos dependerá da confiabilidade que eles têm na base de informações disponível. Portanto, quanto mais remota a base de informações, mais relutantes eles serão em estender crédito: bancos que têm suas sedes em regiões centrais tenderão a ser mais relutantes em estender crédito a projetos das regiões periféricas, dada a base mais remota de informações. Quanto mais remota a base de informações, por sua vez, mais o processo de tomada de decisões basear-se-á em elementos convencionais, os quais, por definição, tenderão a perpetuar a situação de desigualdade existente na economia, quando muito reforçando-a, e nunca reduzindo-a.

Dentro do referencial pós-keynesiano, que está sendo adotado, as convenções assumem importante papel no processo decisório em ambientes dominados pela incerteza. Assim sendo, o processo decisório tende a ser viesado contra as regiões periféricas, uma vez que as convenções, enquanto balizadoras de decisões, tendem a reforçar situações já estabelecidas e não a transformá-las.

Fatos semelhantes aos acima expostos podem ser observados por um modelo de procedimento geral dos bancos exposto por Tobin em 1982. Este modelo traz conclusões próximas às anteriormente discutidas.

Tobin estabelece uma relação positiva entre os empréstimos e a razão de retenção (razão de redepósitos) e uma relação negativa entre aqueles e a posição defensiva dos bancos (relação reservas-depósitos). Ao mesmo tempo observa-se uma relação negativa entre a posição defensiva dos bancos e a razão de retenção de depósitos. Esses elementos podem levar-nos a pensar que os bancos do centro (que têm uma razão de retenção mais elevada, dada sua maior participação nos mercados centrais e periféricos) são mais aptos a estenderem crédito para a periferia do que os bancos periféricos que operam nacionalmente, que dividem os seus mercados locais com os bancos do centro e têm uma menor participação nesses mercados. Contudo, se desagregarmos a razão de retenção, veremos que diferentes bancos podem ter diferentes razões de retenção de acordo com a região em que atuam e a atividade que financiam dentro de cada região.

Assim, bancos periféricos que operam no nível nacional tendem a apresentar razões de retenção mais elevadas quando operando em seus mercados locais e têm uma participação marginal nos mercados centrais. Bancos do centro que operam ao nível nacional tendem a ter elevadas razões de retenção tanto nos mercados centrais como nos periféricos. Nesse sentido as razões de retenção desses bancos tendem a ser mais altas em ambos os mercados. Destarte, quando um banco do centro empresta para uma atividade na periferia que apresenta um grande vazamento no fluxo de renda, esse banco vai recuperar esse crédito na forma de depósitos nas economias centrais. Da mesma forma, bancos da periferia tendem a dar preferência a estenderem crédito a atividades que tenham fortes linkages regionais, uma vez que as suas razões de retenção são elevadas no nível local, mas inexpressivas nos mercados centrais. Nesse sentido, bancos periféricos tendem a discriminar contra atividades que têm altos vazamentos e, assim, a extensão de crédito por esses bancos tem um maior efeito multiplicador, real e monetário, do que a mesma extensão pelos bancos do centro.

Poderemos ser levados a pensar que, dadas essas condições, os bancos do centro teriam um papel muito mais importante na periferia do que os bancos locais, uma vez que eles apresentam maiores razões de retenção que os bancos da periferia, e por isso estendem mais empréstimos e mantêm posições defensivas mais baixas. Contudo, se a base remota de informações for considerada, essa situação muda. E mais, o fato de que os vazamentos no fluxo monetário, através de déficits na balança comercial ou de movimentos na conta de capital, são irrelevantes para os bancos do centro transforma essas conclusões radicalmente.

O terceiro estágio do desenvolvimento bancário caracteriza-se pela possibilidade de empréstimos entre bancos, o que torna os empréstimos livres da restrição que até então as reservas representavam. Agora estas limitam o sistema como um todo, mas não mais cada banco individualmente. Assim, o mecanismo do multiplicador monetário não é mais o responsável pela possibilidade de criação de moeda, os bancos podem estender crédito além das possibilidades impostas por aqueles mecanismos. Contudo, apesar dessa maior flexibilidade, eles ainda observam a perda/ganho de reservas quando da decisão de estender crédito. Por exemplo: se um banco observa saldos negativos na balança comercial de uma determinada região, procurará saber se se trata de déficits conjunturais ou estruturais. Caso sejam conjunturais ele continuará estendendo crédito; se forem estruturais o crédito a essa região será restringido.

Para o terceiro estágio do desenvolvimento bancário Dow (1987DOW, S.C. (1987) “The Treatment of Money in Regional Economics”. Journal of Regional Science, vol. 27, nº 1.) desenvolve um modelo em que existe a possibilidade de empréstimos interbancários. Nesse modelo ela inverte a direção de causalidade monetarista7 7 Esse modelo baseia-se em Hill e Moore (1982). Contudo, esses autores estão trabalhando dentro do referencial monetarista. Dow está, basicamente, preocupada em criticar esse referencial invertendo a relação de causalidade estabelecida por ele. Hill e Moore (1982) assumem que a direção de causalidade parte da renda para os depósitos e, então, para o crédito. E mais, eles estão preocupados com fricções de mercado, tais como deficiências de informações, na explicação dos diferenciais da taxa de juros e nos limites quantitativos impostos à expansão de crédito. Moore, Karaska e Hill (1985) mantêm a direção de causalidade do modelo anterior, assim eles assumem que a renda gera depósitos que por sua vez permitem a extensão de crédito em bases de reservas fracionárias, e, desta forma, o crédito é em certo sentido um elemento passivo (Moore, Karaska e Hill, 1985: 32). e passa a trabalhar com a ideia de que o crédito é que cria os depósitos, e que o real limite ao crescimento vem do crédito. Neste modelo trabalha-se com a determinação da taxa de juros através de um mecanismo de mark up8 8 A taxa de juros regional é determinada pelo mecanismo de mark up, que faz as margens variarem com as expectativas sobre os valores dos ativos regionais e com o nível de incerteza observado na economia. Esses elementos são contribuições significativas aos modelos de mark up tradicionais de determinação da taxa de juros (ver, por exemplo, Rousseas, 1985). e através desse mecanismo fixam-se taxas de juros mais altas na periferia ao mesmo tempo que se impõem limites quantitativos à extensão de crédito. Esses dois elementos limitam a renda e o emprego nas regiões periféricas. Nesse sentido, como observa Moore (1983MOORE, B.J. (1983) “Unpacking the Post Keynesian Black Box: Bank Lending and the Money Supply”, Journal of Post Keynesian Economics, vol. 5, nº 4.) “in the real world loans make deposits’’. E, portanto, o crédito é o elemento relevante a ser estudado.

Nesse momento podemos observar que a vantagem que era apresentada pelos bancos que operam no nível nacional, já presente no estágio 2 do desenvolvimento bancário, é acentuada, uma vez que eles alocam suas reservas com muito mais facilidade do que bancos que têm suas operações restritas no nível regional. Essas vantagens que os bancos nacionais têm, conjuntamente com o fato deles terem acesso às reservas que são drenadas das regiões periféricas e o maior multiplicador que esses bancos possuem, criam uma forte tendência à concentração bancária em favor dos bancos que operam no nível nacional e têm suas sedes nas economias centrais.

Contudo, o problema não se encerra aí. A concentração bancária tende a gerar/acentuar um processo de concentração industrial. Esse processo ocorre da seguinte forma: bancos que operam no nível nacional e que ganham importância em decorrência do processo de concentração bancária tenderão a estender crédito em economias periféricas através de firmas com as quais eles tenham alguma ligação, normalmente filiais de firmas que também têm suas sedes nas economias centrais, uma vez que a base de informações dessas firmas é menos volátil ao banco do que a de firmas locais. Isso tenderá a acentuar as vantagens que as primeiras firmas já possuem sobre as segundas. Esse processo de concentração industrial também terá efeitos sobre a futura disponibilidade financeira na região, uma vez que as firmas extra-regionais tendem a manter maiores ligações na compra de insumos com as suas regiões de origem e isso culminará por ampliar a drenagem financeira das regiões periféricas, reduzindo assim a disponibilidade de finança nessas regiões.

Assim, pode-se observar que o problema financeiro regional tem origem nos dois lados dos balanços dos bancos. Por um lado, os redepósitos são limitados em economias periféricas, o que tende a reduzir a possibilidade de criação de crédito nessas economias e, por outro, o crédito também é restringido, dado que os bancos têm uma maior preferência pela liquidez nas regiões periféricas em decorrência da maior instabilidade dessas economias, das bases mais voláteis para a difusão de informações e do caráter convencional da tomada de decisão.

No quarto estágio do desenvolvimento bancário a autoridade monetária assume o papel de emprestador de última instância. Neste momento, não só os bancos individualmente se libertam dos limites impostos à criação de crédito, como aconteceu no estágio três, mas todo o sistema fica livre deste limite. Contudo, o crédito não passa a ter um papel meramente acomodativo, como assumem alguns modelos (Kaldor, 1970KALDOR, N. (1970) “The Case for Regional Policies”. Scottish Journal of Political Economy, vol. 17.; Dixon e Thirlwall, 1975DIXON, R. & THIRLWALL, A.P. (1975) “A Model of Regional Growth-Rate Differences on Kaldorian Lines”. Oxford Economic Papers, vol. 27.; Thirlwall, 1980THIRLWALL, A.P. (1980) “Regional Problems Are Balance of Payments Problems”. Regional Studies, vol. 14.), muito pelo contrário: agora a extensão de crédito passa a depender das expectativas dos bancos que podem ter influência sobre o preço do crédito e sobre a quantidade ofertada.

Em nível regional observa-se que as tendências previamente observadas são acentuadas, uma vez que neste momento as expectativas dos bancos são o elemento definidor da oferta bancária e todas as tendências concentradoras dos bancos previamente mencionadas referem-se exatamente à forma como os bancos formam suas expectativas e interagem com a esfera real da economia.

O quinto estágio do desenvolvimento bancário caracteriza-se pela administração de passivos dos bancos (liability management): os bancos estendem crédito e logo após saem à procura de novos depósitos que equilibrem seus balanços e lhes possibilitem continuar o processo. Muitas vezes esses novos depósitos são atraídos com uma política de juros altos sobre novos depósitos, o que termina por ser repassado aos novos créditos, uma vez que os juros destes são formados através de uma política de mark up. Desta maneira o custo financeiro das firmas aumenta, o que terá repercussões regionais importantes, dado que o poder de mercado das firmas não é homogeneamente distribuído em termos regionais.9 9 Isso implica que somente firmas com forte poder de mercado, ou seja, firmas que possam transferir seus custos financeiros mais elevados a preços, continuarão a ter acesso ao crédito (Minsky, 1986: 159, 161,163, 170). Ou seja, as regiões centrais tendem a ter firmas com maior poder de mercado, caracterizando-se por mercados oligopolizados, enquanto as firmas das regiões periféricas atuam em mercados mais competitivos. Assim, a elevação dos custos financeiros das firmas é mais facilmente repassado a preços pelas firmas das regiões centrais do que pelas firmas das regiões periféricas. As firmas das regiões periféricas serão, então, duplamente penalizadas por esse processo: a) elas terão que arcar com os maiores custos financeiros, já que pelas suas estruturas de mercado elas têm menos possibilidades de transferi-los aos preços e b) elas terão que arcar com preços mais elevados dos insumos que importam das economias centrais e cujos preços embutem os maiores custos financeiros.

Neste momento o crédito passa a ser unicamente limitado pela preferência pela liquidez dos bancos. E como vimos estes discriminam contra as regiões periféricas. O processo de concentração bancária já mencionado se aguça, dadas as maiores facilidades que os bancos das economias centrais têm na captação de novos depósitos criados e a concentração industrial que a concentração bancária traz como consequência também se intensifica. Desta forma, os vazamentos de renda que este tipo de processo também propicia agem no sentido de beneficiar o sistema bancário das regiões centrais e, assim, reforçar ainda mais o círculo vicioso financeiro observado nessas economias.

4. IMPLICAÇÕES DE POLÍTICA ECONÔMICA DO MODELO

O rompimento dos círculos viciosos que acabamos de mencionar só pode ser levado a cabo com a intervenção de um elemento exógeno ao sistema e que por conseguinte atue dentro de uma lógica diferente da do mesmo. Esse elemento é sugerido por Dow como sendo o Estado.10 10 Em Amado (1995), analisamos os impactos das políticas regionais do Estado no caso brasileiro, adotando como referencial teórico os modelos de Dow. Este deveria atuar para tanto em duas frentes: a) políticas monetárias regionalmente diferenciadas e b) intervenção direta na estrutura do sistema financeiro (Dow, 1990DOW, S.C. (1990) Financial Markets and Regional Economic Development: The Canadian Experience. Averbury, Aldershot.).

A primeira fonte de intervenção sugeriria políticas do tipo seguido por diversos países e que procuram compensar a lógica perversa do sistema financeiro. Por exemplo, propõe-se a fixação de encaixes compulsórios diversificados segundo as regiões. Assim, regiões periféricas, em que os bancos voluntariamente estipulam maiores reservas voluntárias, poderiam manter menores encaixes compulsórios e, assim, os impactos da lógica privada seriam parcialmente compensados e os multiplicadores poderiam ser maiores. Outro exemplo seria escolher as regiões periféricas como alvos das expansões da base monetária. Isso ocorrendo, apesar de não se alterar os valores dos multiplicadores monetários alterar-se-iam os valores dos multiplicandos e desta forma estimular-se-ia o setor financeiro destas regiões e, ao menos parcialmente, reduzir-se-ia a restrição financeira da região.

A atuação sobre a estrutura financeira basicamente proporia a criação de um sistema bancário regional que contasse com bancos públicos, de preferência bancos que fossem geridos dentro da própria região e controlados por uma agência de planejamento, para evitar problemas relativos às bases remotas de dados que geram bases voláteis para a formação de expectativas em regiões periféricas. Por outro lado, dever-se-iam estimular os mercados de capitais locais como forma de fortalecer os ativos financeiros das regiões periféricas e procurar reter localmente a atividade especulativa das empresas. Como efeito colateral isso possibilitaria maior facilidade de acesso ao funding por empresas regionais.

Contudo, esses elementos de intervenção podem terminar por serem capturados pela lógica privada, reproduzindo e até mesmo acentuando a desigualdade regional existente. Por esse motivo é fundamental construir um quadro geral de intervenção do Estado no qual a política industrial deve estar perfeitamente coadunada com a política monetária e de reestruturação do setor financeiro regional. Por que dizemos isso? Caso não haja uma política industrial harmonizada com as demais políticas, a nova finance criada nas regiões periféricas através desses mecanismos pode apenas realizar seu primeiro round nessas economias e vazar imediatamente para as economias centrais através de importações regionais ou de atividades especulativas exercidas nas economias centrais, lá exercendo plenamente seus papéis de liquidez.

Um outro elemento relevante a ser levado em conta quando da tomada de decisão acerca de que setores estimular é a questão da origem do capital das firmas a serem estimuladas a se instalarem nas economias periféricas.11 11 Lever (1974) analisando o caso da Escócia observa que a origem intra-regional da firma é um elemento importante na possibilidade de geração de linkages regionais. Hoare (1978), estudando o caso da Irlanda do Norte, faz o mesmo tipo de observação. Contudo, Marshall (1979), observando o norte da Inglaterra, postula que a origem da propriedade do capital da firma não é suficiente para explicar diferentes níveis de linkages materiais. Todavia, ele observa que essa variável é significante para explicar a geração de demanda por serviços locais: firmas extra-regionais não demandam serviços locais, ou os demandam em menor escala do que firmas locais. Firmas extra-regionais atuando em economias periféricas tendem a ter um maior grau de vazamentos no fluxo de renda que firmas locais. Isso em decorrência da estratégia dessas firmas que, normalmente, é decidida no nível geral da matriz da firma e, portanto, vincula-se mais estreitamente à economia em que se encontra a sede. Por outro lado, essas firmas também tenderão a apresentar maiores vazamentos nos fluxos financeiros, uma vez que a atividade especulativa das mesmas vai ser exercida nas economias centrais, dada a melhor base de informações que ela detém naquela economia e o fato da estratégia de investi­mentos financeiros da mesma ser decidida na economia onde a firma tem sua matriz.

5. CONCLUSÃO

A análise dos modelos heterodoxos que lidam com trajetórias de desenvolvimento regional desigual e que não observam nenhuma tendência nas forças naturais do mercado em direção à redução dessas desigualdades mostra que a análise heterodoxa de desenvolvimento regional apresenta um importante hiato a ser preenchido: o papel que o sistema financeiro pode desempenhar aprofundando as desigualdades regionais.

O modelo de Dow chama a atenção para a tendência contínua em direção à concentração bancária nas regiões centrais, colocando por esse motivo limites efetivos ao investimento nas regiões periféricas. E mais, esse processo de concentração financeira tende a levar a um processo de concentração industrial, dada a base convencional do processo pelo qual os bancos estendem crédito, especialmente nas regiões periféricas.

Essa análise salienta a necessidade da intervenção exógena, no sentido de evitar a continuidade e intensificação desse processo. O elemento que exogenamente pode intervir nesse processo cumulativo é exatamente o Estado. Contudo, o Estado não é uma entidade absolutamente exógena, como é observado por grande parte dos teóricos da teoria da dependência, e mais, a intervenção do mesmo somente através de instrumentos de política monetária ou através da intervenção direta no sistema financeiro não assegura a quebra no processo cumulativo gerado. É fundamental romper o processo de formação de expectativas, no sentido de gerar fluxos constantes de finança das regiões centrais em direção às regiões periféricas e isso só é possível com uma política econômica integrada que compatibilize as políticas monetária, fiscal e industrial. Para tanto é necessário que essas políticas sejam muito bem orquestradas e que estejam vinculadas por instituições de planejamento que sejam capazes de compatibilizá-las. Portanto, os bancos, mesmo que públicos, devem ter algum tipo de controle que fuja dos mecanismos puramente financeiros e que possibilitem a retenção efetiva de “finance” nas regiões problema.

Portanto, os bancos públicos regionais ou estaduais têm, sim, um importante papel a desempenhar no desenvolvimento regional e no estreitamento do hiato de desenvolvimento que separa as diversas regiões de um país. Contudo, é necessário regulamentar a atuação desses bancos de forma a que eles venham a desempenhar um papel verdadeiramente dinâmico na economia regional e, para tanto, é necessário integrar políticas no sentido de reter os benefícios da política monetária-financeira do Estado nas regiões-problema do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • TSIANG, S.C. (1978) “The Diffusion of Reserves and the Money Supply Multiplier”. Economic Journal.
  • 1
    A grande maioria dos modelos que lidam com problemas financeiros e monetários no nível regional baseia-se no referencial teórico ortodoxo e por isso observa como única possibilidade de interferência da moeda na esfera real da economia seus efeitos de curto prazo, sua neutralidade sendo restaurada no longo prazo, isso pode ser observado em Dreese (1973-74DREESE, G.R. (1973-74) “Banks and Regional Economic Development”. Southern Economic Journal, vol. 40.) e em Beare (1976BEAR, J.B. (1976) “A Monetarist Model of Regional Business Cycle”. Journal of Regional Science, vol. 16, nº 1.). Por outro lado, há alguns modelos que seguindo o mesmo referencial observam a não-neutralidade da moeda como consequência da rigidez e imperfeições de mercado típicas de curto prazo. Robert e Fishkind (1979FISHKIND, H. & ROBERTS, R.B. (1979) “The Role of Monetary Forces in Regional Economic Activity: An Econometric Simulation Analysis”. Journal of Regional Science, vol. 19, nº 1.) elaboram um modelo onde a política monetária tem diferentes impactos em diferentes regiões como consequência do custo de informações que faz que a elasticidade da curva LM varie entre as regiões, isso sendo claramente uma consequência das imperfeições e fricções do mercado de capitais. Por outro lado, Fishkind (1977FISHKIND, H.H. (1977) “The Regional Impact of Monetary Policy: An Economic Simulation Study of Indiana 1958-1973”. Journal of Regional Science, vol. 17, nº 1.) observa que diferentes impactos da política monetária em diferentes regiões podem ser consequências das diferenças na estrutura produtiva das regiões que determinam diferentes elasticidade juros da curva IS em diferentes regiões.
  • 2
    Ver Dow (1982DOW, S.C. (1982) “The Regional Composition of the Money Multiplier Process”. Scottish Journal of Political Economy, vol. 29, nº 1.), (1987DOW, S.C. (1987) “The Treatment of Money in Regional Economics”. Journal of Regional Science, vol. 27, nº 1.), (1990DOW, S.C. (1990) Financial Markets and Regional Economic Development: The Canadian Experience. Averbury, Aldershot.) e Chick e Dow (1988CHICK, V. & DOW, S.C. (1988) “A Post-Keynesian Perspective on the Relation Between Banking and Regional Development”. In Arestis, P. (ed.), Post Keynesian Monetary Economics. Aldershot, Elgar.).
  • 3
    Como exemplos de alguns estudos sobre o papel do sistema financeiro na dinâmica regional brasileira podemos citar: Bielschowsky (l975BIELSCHOWSKY, R.A. (1975) Bancos e acumulação de capital na industrialização brasileira: uma análise introdutória. Tese de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília.), Chaloult (l978CHALOULT, Y. (1978) Estado, acumulação e colonialismo interno: contradições nordeste/sudeste, 1960-1977. Petrópolis, Editora Vozes.) e Sayad e Jatobá (l980SAYAD, J. & JATOBÁ, S.J. (1980) “Efeitos espaciais da política monetária e financeira”. Revista Econômica do Nordeste, vol. 11, nº 1, jan-mar.).
  • 4
    Dow (1982DOW, S.C. (1982) “The Regional Composition of the Money Multiplier Process”. Scottish Journal of Political Economy, vol. 29, nº 1.) está basicamente preocupada em analisar os multiplicadores monetários regionalizados. Para tanto, ela adapta o modelo de Tsiang (1978TSIANG, S.C. (1978) “The Diffusion of Reserves and the Money Supply Multiplier”. Economic Journal.) de difusão de reservas bancárias à questão regional. Essa seção basear-se-á no modelo de 1982.
  • 5
    A noção de incerteza adotada aqui é a keynesiana, onde risco difere de incerteza pelo caráter quantificável do primeiro e pelo caráter não-quantificável da segunda.
  • 6
    Morgan (1973MORGAN, E.V. (1973) “Regional Problems and Common Currencies”, Lloyds Bank Review, October.), analisando a economia britânica, observa a atração que os ativos financeiros das regiões centrais exercem sobre os agentes das regiões periféricas como que um elemento a mais a desequilibrar a conta de capitais dessas economias (Morgan, 1973MORGAN, E.V. (1973) “Regional Problems and Common Currencies”, Lloyds Bank Review, October.: 21). Na mesma linha, Mckillop e Hutchinson (1991MCKILLOP, D.G. & HUTCHINSON, R.W. (1991) “Financial Intermediaries and Financial Markets: A United Kingdon Perspective”. Regional Studies, vol. 25, nº 6.) observam que o emprego e o produto dos bancos dependem da demanda por seus serviços. Desta forma, como parte da demanda especulativa das regiões periféricas dirige-se aos bancos das regiões centrais, isto estimula os últimos em detrimento dos primeiros, gerando uma tendência à concentração bancária.
  • 7
    Esse modelo baseia-se em Hill e Moore (1982MOORE, C.L. & HILL, J.M. (1982) “Interregional Arbitrage and the Supply of Loanable Funds”, Journal of Regional Science, vol. 22.). Contudo, esses autores estão trabalhando dentro do referencial monetarista. Dow está, basicamente, preocupada em criticar esse referencial invertendo a relação de causalidade estabelecida por ele. Hill e Moore (1982MOORE, C.L. & HILL, J.M. (1982) “Interregional Arbitrage and the Supply of Loanable Funds”, Journal of Regional Science, vol. 22.) assumem que a direção de causalidade parte da renda para os depósitos e, então, para o crédito. E mais, eles estão preocupados com fricções de mercado, tais como deficiências de informações, na explicação dos diferenciais da taxa de juros e nos limites quantitativos impostos à expansão de crédito. Moore, Karaska e Hill (1985MOORE, C.L., KARASKA, G.J. & HILL, J.A. (1985) “The Impact of the Banking System on Regional Analyses”. Regional Studies, vol. 19, nº 1.) mantêm a direção de causalidade do modelo anterior, assim eles assumem que a renda gera depósitos que por sua vez permitem a extensão de crédito em bases de reservas fracionárias, e, desta forma, o crédito é em certo sentido um elemento passivo (Moore, Karaska e Hill, 1985MOORE, C.L., KARASKA, G.J. & HILL, J.A. (1985) “The Impact of the Banking System on Regional Analyses”. Regional Studies, vol. 19, nº 1.: 32).
  • 8
    A taxa de juros regional é determinada pelo mecanismo de mark up, que faz as margens variarem com as expectativas sobre os valores dos ativos regionais e com o nível de incerteza observado na economia. Esses elementos são contribuições significativas aos modelos de mark up tradicionais de determinação da taxa de juros (ver, por exemplo, Rousseas, 1985ROUSSEAS, S. (1985) “A Mark-Up Theory of Bank Loans Rates”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. 8, nº 1.).
  • 9
    Isso implica que somente firmas com forte poder de mercado, ou seja, firmas que possam transferir seus custos financeiros mais elevados a preços, continuarão a ter acesso ao crédito (Minsky, 1986MINSKY, H.P. (1986) Stabilizing an Unstable Economy. Yale, Yale University Press.: 159, 161,163, 170).
  • 10
    Em Amado (1995AMADO, A.M. (1995) Disparate Regional Development in Brazil: A Monetary Production Approach. Tese de Doutorado não publicada. London, University College London, Universtity of London.), analisamos os impactos das políticas regionais do Estado no caso brasileiro, adotando como referencial teórico os modelos de Dow.
  • 11
    Lever (1974LEVER, W. (1974) “Manufacturing Linkages and the Search for Suppliers and Markets”. In Hamilton, F.E.I., Spatial Perspective on Industrial Organization and Decision-Making. London, John Willey & Sons.) analisando o caso da Escócia observa que a origem intra-regional da firma é um elemento importante na possibilidade de geração de linkages regionais. Hoare (1978HOARE, A.G. (1978) “Industrial Linkages and the Dual Economy: The Case of Northern Ireland”. Regional Studies, vol. 12.), estudando o caso da Irlanda do Norte, faz o mesmo tipo de observação. Contudo, Marshall (1979MARSHALL, J.N. (1979) “Ownership, Organisation and Industrial Linkage: A Case Study on the Northern Region of England”. Regional Studies, vol. 13.), observando o norte da Inglaterra, postula que a origem da propriedade do capital da firma não é suficiente para explicar diferentes níveis de linkages materiais. Todavia, ele observa que essa variável é significante para explicar a geração de demanda por serviços locais: firmas extra-regionais não demandam serviços locais, ou os demandam em menor escala do que firmas locais.
  • 12
    JEL: Classification: G28; G21; E12; R19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1998
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