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As razões do laissez-faire: uma análise do ataque ao mercantilismo e da defesa da liberdade econômica na Riqueza das Nações

Resumo

The reasons of the laissez-faire: an analysis of the attack to mercantilism and of the defense of economic liberty in The Wealth of Nations. The main reasons presented in The Wealth of Nations to advocate the system of economic liberty and reject mercantilism are analyzed. These two systems are evaluated considering basically their impact on the annual product, and the degree of liberty and justice they engender. Based on his views of man and of capital hierarchy, Smith defends the superiority of economic liberty in what concerns the growth of the annual product. This system is also considered superior to mercantilism in terms of justice since it does not privilege any sector of society and allows a great level of liberty to the individuals.


Adam Smith; liberalismo econômico; mercantilismo; justiça; acumulação de capital

ARTIGOS

As razões do laissez-faire: uma análise do ataque ao mercantilismo e da defesa da liberdade econômica na Riqueza das Nações

Laura Valladão de Mattos * * Este artigo foi elaborado como parte dos meus deveres como bolsista de Produtividade em pesquisa do CNPq — agradeço o apoio financeiro concedido. Agradeço também os comentários de Raul Cristóvão dos Santos, Antônio Carlos dos Santos, José Eduardo Godoy Jr. e Darcio Genicolo Martins. Por fim, gostaria de registrar a minha dívida intelectual com o Raul Cristóvão dos Santos — que influenciou sobremaneira a minha visão sobre Adam Smith. Tenho mantido conversas sobre Smith com o Raul há mais de uma década e boa parte da motivação para escrever este artigo surgiu de comentários instigantes feitos por ele.

Da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) E-mail: lauramat@uol.com.br

ABSTRACT

The reasons of the laissez-faire: an analysis of the attack to mercantilism and of the defense of economic liberty in The Wealth of Nations. The main reasons presented in The Wealth of Nations to advocate the system of economic liberty and reject mercantilism are analyzed. These two systems are evaluated considering basically their impact on the annual product, and the degree of liberty and justice they engender. Based on his views of man and of capital hierarchy, Smith defends the superiority of economic liberty in what concerns the growth of the annual product. This system is also considered superior to mercantilism in terms of justice since it does not privilege any sector of society and allows a great level of liberty to the individuals.

Key-words: Adam Smith, liberalismo econômico, mercantilismo, justiça, acumulação de capital.

JEL classification: B12.

INTRODUÇÃO

Como nota Rosenberg, praticamente "(...) qualquer pessoa instruída submetida a um teste de associação de palavras, quando solicitada a identificar algum personagem histórico com o termo 'laissez-faire' responderia 'Adam Smith'"(Rosenberg, 1979: 20).

A metáfora da mão-invisível de Smith habita o imaginário de quase todos os economistas, e é, em geral, interpretada como representando a idéia de que o "mercado" seria uma instituição capaz de "transformar" o auto-interesse individual em benefícios sociais, sem a necessidade de intervenção da "mão-visível" do Estado1 1 Brown (1994:166) enfatiza que, em geral, se associa a metáfora da mão invisível ao mecanismo pelo qual mercados competitivos atingem uma alocação eficiente dos recursos, e chama a atenção para a inadequação desta interpretação (idem: 186). No entanto, apesar dessa interpretação (neoclássica) do significado da mão invisível ser a mais comum, ela está longe de ser a única. Grampp (2000) faz uma taxionomia das interpretações existentes e enumera nada menos do que nove interpretações usuais (que ele julga incorretas) às quais ele contrapõe a sua. Para uma análise sobre as três utilizações que Smith faz da metáfora da mão invisível em sua obra, ver Santos & Bianchi, 2005. . A este cumpriria apenas garantir a ordem institucional e administrar a justiça.

Nesta interpretação convencional (ou canonizada) Smith é representado como sendo um "(....) apologista do capitalismo liberal, o pregador do desejo ininterrupto dos indivíduos melhorarem suas condições, o porta-voz do livre comércio (free-trade)" (Winch, 1994:60)2 2 Brown aponta que a visão geral que se tem sobre a Riqueza das Nações é de que "(...) ela representa uma atitude ideológica que era altamente favorável senão totalmente acrítica à emergência e consolidação do capitalismo comercial e industrial que emergiu mais tarde no século XIX ." (Brown, 1994: 165). .

Ao longo do tempo, diversos esforços foram empreendidos no sentido de corrigir e qualificar esta visão. As inúmeras funções sociais e econômicas atribuídas por Smith ao Estado na Riqueza das Nações (doravante RN) foram enfatizadas, as suas posições políticas foram analisadas e a compreensão dos especialistas refinou-se consideravelmente.3 3 No que se refere ao papel do Estado, os textos clássicos sobre o assunto são Viner (1958), Robbins (1952), Skinner (1978). Mas há inúmeros outros trabalhos que tratam do tema como Rosenberg (1979), Stone (1992), ou outros como Freeman(1969), que tratam de aspectos específicos da intervenção do Estado na economia, educação, etc. Esses autores ressaltam, entre outras coisas, que o laissez-faire não significava para Smith a ausência de Estado ou uma idéia de Estado mínimo. Entendo que tais esforços no sentido de desbancar a visão "canonizada" de Smith foram cruciais. No entanto, considero que as interpretações sobre Smith deram um salto qualitativo importante principalmente com os trabalhos de Winch (1978, 1983 &1992) e Brown (1994). Estes autores tiveram muita influência sobre a minha visão a respeito das questões que serão tratadas neste artigo, e as suas interpretações serão fartamente utilizadas. No entanto, a visão "canonizada" em pouco se modificou.

No aspecto específico que este artigo pretende abordar, é possível observar que apesar de Smith ser consensualmente associado à liberdade econômica, há muitas distorções na visão mais corrente sobre o autor no que concerne ao significado que esta assumiu em sua obra e às razões que ele aponta para a sua defesa. Não há como negar que Smith criticou duramente as diversas regulamentações e privilégios encampados pelos Estados nacionais de sua época e contrapôs a este conjunto de intervenções o seu 'sistema de liberdade natural'. No entanto, as interpretações usuais sobre as razões pelas quais Smith rejeita o "intervencionismo" e defende o "liberalismo" são anacrônicas, estando muito mais relacionadas a concepções atuais sobre o funcionamento dos mercados, do que à visão que Smith tinha da economia e sociedade no final do século XVIII.

Vale, portanto, voltar novamente o olhar para este aspecto da obra de Smith. O artigo pretende, assim, analisar os dois principais sistemas que ele confronta na RN, ou seja, "o sistema mercantil" e "o sistema de liberdade natural", e expor os argumentos arrolados para defender que este último seria superior. Esse exercício revelará que as razões apresentadas por Smith estão intimamente ligadas a concepções peculiares de natureza humana, de Estado, de riqueza, da contribuição de cada setor da economia para o produto nacional, de justiça, etc. – muitas das quais foram paulatinamente abandonadas por seus seguidores e dificilmente seriam endossadas pelos autores atuais que citam Smith em apoio ao laissez-faire.

Ao contextualizar a defesa que Smith faz do seu "sistema de liberdade natural", acredito que esse artigo poderá contribuir para as tentativas recentes de Tribe (1999), Brown (1994) Winch (1983,1992 & 1994) de "(...) resgatar Smith daquelas perspectivas do século XIX predominantemente marxistas ou liberais, que dominaram nosso pensamento (...)"(Winch, 1994: 261). Talvez o "Smith" resultante não seja tão passível de ser utilizado em apoio a teorias e posições políticas atuais quanto é a visão canonizada. No entanto, acredito que se ganhará uma melhor compreensão das questões que mobilizaram há mais de dois séculos os esforços deste grande pensador.

Com o objetivo de reconstruir a crítica de Smith ao mercantilismo e as bases da sua defesa do sistema de liberdade natural, o artigo contará com esta introdução, três seções, uma conclusão e referências bibliográficas. Na seção II serão expostos os sistemas "mercantil" e de "liberdade natural". Na seção III serão apresentados os fundamentos econômicos para a sua crítica ao mercantilismo e sua defesa da liberdade natural. Na seção IV será exposta a avaliação que Smith apresenta dos dois sistemas com base nos critérios de justiça e liberdade. Por fim, na seção V serão tecidas algumas considerações finais.

VISÕES ALTERNATIVAS DE SISTEMAS DE ECONOMIA POLÍTICA: O "SITEMA MERCANTIL" E O "ÓBVIO E SIMPLES SISTEMA DE LIBERDADE NATURAL"

É quase impossível caracterizar o que seria o 'sistema de liberdade natural' de Smith sem fazer referência ao que ele denomina 'sistema comercial ou mercantil', uma vez que o primeiro aparece praticamente como uma antítese do segundo.4 4 Winch (1978: 81) também caracteriza o "sistema de liberdade natural" como sendo a antítese do "sistema mercantil". Em outro texto, o mesmo autor coloca com muita propriedade que "(...) ao lidar com o sistema mercantil ele [Smith] estava construindo um anti-tipo (anti-type) que serve de uma imagem-espelhada (mirror-image) valiosa do seu próprio sistema ."(Winch, 1992:97). Como sugere poeticamente Schumpeter, é das cinzas do sistema mercantil que "(...) emerge, como fênix, o sistema político de Smith" (Schumpeter, 1966: 186-7). E, de fato, o "sistema de liberdade natural" (e a famosa metáfora da mão invisível) foi apresentado no Livro IV da RN, no contexto de uma discussão crítica deste sistema.

Nos séculos que se seguiram à publicação da RN o interesse dos economistas voltou-se, em geral, para os seus dois primeiros livros — nos quais é explicitada a teoria de Smith sobre a natureza e as causas da riqueza.5 5 Este viés na leitura da RN, segundo Coats (1975: 220-1) e Tribe (1999:613), teve início ainda no século XIX nas leituras dos economistas clássicos. Coats afirma que ele "(...) encorajou o hábito de ver o ataque de Smith ao sistema mercantil simples e somente como uma análise dos impedimentos ao funcionamento suave de uma economia de mercado competitiva, ao invés de como parte integral de um sistema maior de idéias políticas, históricas, social-filosoficas e de moral(...) " (Coats, 1975: 221). No entanto, seria um erro minimizar a importância que os demais livros tinham para Adam Smith e para os leitores do século XVIII. A discussão de "(...) Œconomia Política, considerada como um ramo da ciência do estadista ou legislador, [que] se propõe dois objetivos distintos; primeiro, prover um rendimento (revenue) ou subsistência abundante (plentiful) para o povo (people) ou, mais propriamente, permitir que eles provejam tal renda ou subsistência para eles mesmos; e em segundo lugar, ofertar ao Estado ou Commonwealth, uma renda suficiente para os serviços públicos."(WN, IV, i: 428) era, segundo Schumpeter (1966: 186), o que interessava acima de tudo a Smith e aos contemporâneos.6 6 Adoto implicitamente a visão de que o discurso de Smith ainda se encontrava no campo da Œconomia Política (ou da economia pública). No entanto, não há consenso na literatura a esse respeito. Schumpeter (1966: 186), Dean (1989: 58) e Santos (1997: 167) defendem que a discussão da RN ainda ocorria neste domínio enquanto que Brown (1994: 156) e Coutinho (1993: 102) afirmam de Smith rompe estes limites. A própria estrutura da RN revela isso: somados, os livros IV (sobre os Sistemas de Œconomia Política) e V (que discute os deveres e as fontes de receitas do Estado) ocupam nada menos do que 57% da obra (idem).

Podemos até argumentar que toda a obra culmina neste livro.7 7 Santos (1997) afirma que desde a Lectures on Jurisprudence (LJ) e também na RN "(...) o argumento de Smith estrutura-se como uma crítica às regulamentações por ele denominadas de mercantilistas ." (Santos, 1997:167). Segundo o autor, esse é "(...) o eixo sobre o qual as idéias de Smith se organizam (...)" (idem). Coutinho parece concordar com a relevância que essa crítica ao mercantilismo tinha para Smith. Segundo sua interpretação, a RN seria "(...) antes de tudo um contundente libelo contra o protecionismo mercantilista (...) "(Coutinho, 1993: 97) e a favor do liberalismo. Como nota Brown,"(...) os elementos teóricos subjacentes ao sistema de liberdade natural são desenrolados a um ritmo vagaroso ao longo dos três primeiros livros e são então colocados em ação no decorrer do longo livro IV."(Brown, 1994: 197). Smith expõe a teoria que ele considera correta sobre a natureza e causas da riqueza para, na seqüência, se lançar à tarefa de respaldar a crítica ao mercantilismo no rigor da teoria econômica (Coutinho, 1993: 136).

Assim, a tentarei seguir caracterizar o que Smith entender por "sistema mercantil" e "sistema de liberdade natural", para depois, em seções posteriores, expor as críticas ao primeiro e os argumentos utilizados na defesa do laissez-faire como alternativa superior.

O "sistema comercial ou mercantil"

Smith praticamente "inventa" a escola mercantilista (na verdade um conjunto de políticas, artigos, panfletos, propaganda, etc.) ao sistematizar no Livro IV os seus pontos centrais antes de combatê-los8 8 Esta idéia foi sugerida por Raul Cristóvão dos Santos. Neste artigo irei me basear na caracterização que Smith faz dos mercantilistas sem discutir se ela retrata de forma fidedigna as políticas ou idéias dos autores da época. Até porque, como ressalta La Nauze (1996: 55-6), Smith estava mais preocupado em combater as 'noções populares' e as práticas políticas provenientes do auto-interesse dos mercadores, do que em fazer uma análise minuciosa dos tratados teóricos dos pensadores mercantilistas. .

Segundo ele, as principais características desse sistema seriam: a identificação de riqueza com riqueza metálica, e a idéia de que para deter metais era preciso manter a Balança Comercial superavitária (WN, IV, i: 450). Aceitos esses princípios, "(...) tornou-se necessariamente o grande objeto da Œconomia Política [dos mercantilistas], diminuir tanto quanto possível a importação de produtos externos para o consumo doméstico, e aumentar tanto quanto possível a exportação do produto da indústria doméstica. Seus dois grandes mecanismos para enriquecer um país, portanto, eram restrições sobre importações e incentivos às exportações. (WN, IV, i: 450).

Ao Estado caberia, então, intervir na vida econômica de forma a garantir que a ação dos indivíduos engendrasse o maior acúmulo possível de metais para a nação.

Smith dedica praticamente todo o Livro IV da RN à análise detalhada das principais políticas que ele associa a este sistema de Œconomia Política — que são divididas, em grandes linhas, em políticas que limitam as importações e estimulam as exportações.

Do lado das restrições às importações, ele discute a limitação imposta à importação de produtos produzidos domesticamente (similares nacionais), especialmente quando provenientes de países com os quais a nação apresentasse déficits comerciais. Do lado do estímulo às exportações, Smith analisa as políticas de drawbacks; de subsídios (bounties); os tratados comerciais e a política colonial9 9 De todas as políticas mercantilistas que Smith discute no Livro IV da RN, a única que Smith avalia como sendo razoável é a política de drawbacks já que ela simplesmente corrigiria uma distorção anterior ( WN, IV, iv: 499). Em relação a todas as demais medidas Smith é extremamente crítico. Ele ataca com especial rigor a política de conceder subsídio à exportação que, segundo ele, engendraria uma situação na qual uma das partes — a que concede o subsídio — teria prejuízo permanente no comércio ( WN, IV, v: 505-6) e direcionaria o capital para uma atividade claramente desvantajosa em relação às demais ( WN, IV, v: 516). Ele discorda também dos subsídios concedidos à produção, cujo efeito usual seria encorajar empreendedores ( undertakes) precipitados a entrarem num negócio que não compreendem ( WN, IV, v: 522). Sobre os tratados comerciais, afirma que tenderiam a favorecer alguns mercadores e manufatores, mas seriam prejudiciais para a população como um todo ( WN, IV, vi: 545). A sua avaliação da política colonial britânica também é muito negativa. Apesar de considerar o comércio com as colônias benéfico, ele argumenta que a concessão de monopólios e privilégios só teria contribuído para diminuir potenciais benefícios ( WN, IV, vii: 607-9). Vale notar, entretanto, que apesar de acreditar que medidas protecionistas teriam o efeito de reduzir a riqueza, Smith estava pronto para apoiá-las nos casos em que questões de defesa nacional estivessem em jogo (WN, IV, v: 523 e WN, IV, ii: 463-5). Isso porque, para ele, considerações sobre a defesa nacional claramente teriam prioridade em relação às considerações sobre riqueza ( WN, IV, ii, 464). .

Mas as políticas mercantilistas não se limitavam a essas medidas. Smith discute também algumas políticas que visavam estimular a importação e restringir a exportação de matérias primas com o objetivo de tornar as manufaturas mais competitivas, além de medidas que restringiam a liberdade dos artesãos, impedindo-os de trabalhar ou residir em outros países como forma de evitar que seu saber fosse apropriado pelos países concorrentes.

Vários aspectos deste conjunto de políticas que constituiriam o "sistema mercantil" foram duramente atacados por Smith. Neste artigo serão analisadas basicamente duas críticas que avalio como sendo as mais importantes na RN: uma crítica mais especificamente "econômica", e uma crítica de caráter mais filosófico, que diz respeito aos graus de justiça e liberdade garantidos pelo sistema.10 10 Ao longo da RN aparecem várias outras críticas ao sistema mercantil que não serão abordadas neste trabalho. Uma que me parece importante, mas cuja discussão ampliaria em demasia o escopo deste trabalho, é o efeito deletério que as instituições mercantilistas teriam sobre o caráter dos homens. Rosenberg (1979: 22-4) argumenta que no centro das críticas de Smith ao mercantilismo está a sua visão de que este aparato institucional estimularia tendências ruins da natureza humana, como a inclinação à indolência e à preguiça; a tendência a querer enganar o público fazendo passar por geral seus interesses privados; a propensão a monopolizar, a associar-se com outros com o objetivo de aumentar sua renda. A busca auto-interessada neste contexto não levaria ao benefício geral. Estes não seriam, no entanto, os únicos efeitos perversos do sistema sobre o caráter dos homens ressaltados na RN. Smith aponta também que as altas taxas de lucro obtidas por conta dos privilégios e monopólios tenderiam a minar a prudência e parcimônia (e incentivaria a prodigalidade e o desperdício) não só dos mercadores e produtores, mas também da população em geral que se miraria, segundo o autor, no exemplo dos seus empregadores ( WN, IV, vii: 612). Além disso, o sistema mercantil disseminaria o ódio entre os povos, e a discórdia entre as nações ( WN, IV, m, c,: 493). Como argumenta Rosenberg (1979), efeito do sistema de liberdade natural seria, ao contrário, o de estimular as boas inclinações naturais do homem (reprimir as ruins) e fazê-las funcionarem em prol da coletividade.

Sendo a RN um livro que se propõe a estudar a natureza e as causas da riqueza das nações, não é de se estranhar que a crítica "econômica" seja a mais elaborada e desenvolvida. No entanto, a questão da justiça também aparece de forma recorrente na obra. Como veremos, ao comparar o mercantilismo com o 'sistema de liberdade natural', Smith argumenta que este último além de ser o que tenderia a maximizar a riqueza das nações, seria também o mais justo e que permitiria o maior grau de liberdade aos indivíduos.

O "óbvio e simples sistema de liberdade natural"

Se o mercantilismo caracterizava-se pela predominância de restrições, privilégios, concessões, subsídios, incentivos, etc. com vistas a aumentar a quantidade de metais preciosos do país, o "sistema de liberdade natural" (a sua antítese) define-se essencialmente pela ausência desses cerceamentos ou privilégios no âmbito das atividades econômicas dos indivíduos:

"Todos os sistemas de preferências ou de restrições sendo, portanto, completamente retirados, o sistema óbvio e simples de liberdade natural se estabelece espontaneamente. Todo homem, desde que não viole as leis de justiça, é deixado perfeitamente livre para buscar seu próprio interesse do seu próprio jeito, e para colocar o seu empenho (industry) e o seu capital em concorrência com aquele de qualquer outro homem, ou ordem de homens (...)" (WN, IV, ix: 687).

O escopo da atuação do Estado seria, neste sistema, evidentemente bem mais restrito do que aquele defendido pelos mercantilistas. No entanto, é importante frisar que, mesmo no "sistema de liberdade natural", o Estado continuaria a exercer funções essenciais para o bom funcionamento da economia e para a garantia da estabilidade, ordem e desenvolvimento sociais. Smith aponta três funções básicas (e cruciais) para o Estado: a garantia da defesa nacional, a administração da justiça e a execução de obras públicas que, apesar de importantes para a sociedade, não seriam empreendidas se deixadas ao encargo das decisões individuais — entre elas, podemos citar como relevantes, a educação e as obras de infra-estrutura (WN, IV, ix: 688). 11 11 Como mencionei anteriormente, vários autores têm ressaltado a importância que o Estado tem em Smith e a distância a que ele se encontra de vertentes de Estado Mínimo ou de uma visão de que o mercado é capaz de resolver sozinho todos os problemas econômicos e sociais. Mesmo dentro das três funções delineadas por Smith para o Estado está contida uma gama relativamente grande de intervenções. No entanto, o escopo sugerido de atuação do Estado na RN não se resumiu àquelas que ele explicitamente advogou como legítimo. Smith defendeu muitas medidas que claramente transcendiam esses limites — e que, eventualmente, se chocariam com o 'sistema de liberdade natural' (Viner, 1958: 242; Rosenberg, 1979: 28; Skinner, 1978: 58-9; Stone, 1992: 73; Young & Gordon, 1996: 8-9). Os exemplos mais citados na literatura são: a defesa de Smith dos Atos de Navegação; seu posicionamento contra a usura e a favor de leis bancárias; a sua disposição a utilizar os impostos como instrumento de reforma social, como forma de fazer políticas re-distributivas, ou para direcionar o consumo dos indivíduos. Enfim, como ressaltam Viner (1958), Robbins (1952) e Rosenberg (1979), Smith parecia disposto a aceitar a intervenção do Estado, e a intervir na liberdade individual toda vez que dessa intervenção pudesse resultar um benefício social importante. Assim, o Estado deveria ser atuante, mas não deveria assumir a função de deliberadamente tentar direcionar ou influenciar as decisões individuais sobre onde aplicar as suas energias ou o seu capital.

"(...) O soberano é completamente isento (discharged) de um dever; de tentar desempenhar aquilo para o qual ele está necessariamente sujeito a inúmeros enganos (delusions), e para a boa performance do qual nenhuma sabedoria ou conhecimento humano poderia jamais ser suficiente; o dever de dirigir (superintending) a atividade (industry) das pessoas privadas, e de direcioná-la para os empregos mais favoráveis para a sociedade (...)" (WN, IV, ix: 687).

Assim, no "sistema de liberdade natural", o Estado retirar-se-ia de boa parte das funções que estava exercendo (o que incluía todo o sistema de regulação mercantilista) e deixaria que os indivíduos, guiados por seu auto-interesse, escolhessem livremente onde empregar as suas energias.

Estas seriam, no meu entender, em linhas gerais, as principais características atribuídas por Smith a estes dois sistemas que estão em embate na RN.

Mas quais seriam, para Smith, as virtudes do sistema de "liberdade natural" vis-à-vis o 'sistema mercantil'? Em outras palavras, por que ele considera o laissez-faire uma política mais desejável do que o intervencionismo mercantilista?

AS CRÍTICAS "ECONÔMICAS" AO "SISTEMA MERCANTI" E A DEFESA DO "SISTEMA DE LIBERDADE NATURAL"

Smith não parece questionar no âmbito da RN a riqueza (da população e do Soberano) como meta a ser perseguida.12 12 Para interpretação similar, ver Prasch (1991: 346). Como aponta Macfie o "(...) [a]uto-interesse econômico perseguido de forma justa, e dentro das leis da justiça, é positivamente virtuoso como prudência" (Macfie, 1996: 345). No entanto, como ressaltam Campbell (1996: 353) e Santos & Bianchi (2005: 8), Macfie (1996: 345), apesar de ser uma virtude, a prudência não é considerada por Smith uma das virtudes mais nobres. Ela comandaria, apenas, um apreço sem entusiasmo ( cold esteem), e não "admiração" ou "amor ardente" ( ardent love). Enquanto filósofo moral, Smith não considerava a busca da riqueza como uma meta moralmente muito elevada– e quando buscada em excesso seria corruptora dos sentimentos morais (Macfie, 1996: 345; Billet, 1996: 209). A riqueza não seria tampouco a base da felicidade. Smith sugere na Teoria dos Sentimentos Morais (doravante TMS) que os homens buscam riqueza para serem percebidos e admirados pelos demais e com isso julgam que serão mais felizes. Nota, entretanto, que isso não passa de uma ilusão. Esta ilusão é útil, por levar os homens a "(...) cultivar o solo, a construir casas, a fundar cidades e nações e a inventar e aperfeiçoar todas as ciências e artes que enobrecem e embelezam a vida humana" (TMS: 183-4), mas seria ainda assim uma ilusão pois "(...)a riqueza e a grandeza são meros adornos ( trinkets) com utilidade fútil (...)"(TMS: 182). De qualquer forma, como afirma Coase, mesmo"(....) se o homem ambicioso não se torna mais feliz pela forças internas que o movem ( drive him) o restante de nós ganha" (Coase, 1976: 542). Na TMS também Smith faz referência a uma "mão invisível" que faria com que os ricos, ao buscarem o seu auto-interesse, acabassem provendo uma vida digna e feliz para os pobres, levando a uma distribuição quase igualitária da felicidade (TMS: 184-5). Tanto que no centro da sua defesa do "sistema de liberdade natural" está o argumento de que este produziria melhores resultados em termos de riqueza do que os produzidos quando o Estado se incumbe de promovê-la intencionalmente por meio de restrições ou estímulos a atividades específicas.

No entanto, subjacente às suas criticas econômicas ao "sistema mercantil" está uma redefinição do que é riqueza e de qual seria a sua origem13 13 Ver Santos (1997: 169). . A riqueza passa a estar associada à quantidade de bens e serviços à disposição da população, e o trabalho é apontado com a sua fonte14:

"O trabalho anual de cada nação é o fundo que originalmente a provê com todos os confortos e bens necessários à vida que ela anualmente consome, e que consiste sempre, ou de produto direto deste trabalho ou daquilo que é comprado de outras nações com base neste produto" (WN, Introdução: 10).

É importante notar, no entanto, que, para Smith, não interessa apenas riqueza enquanto estoque de bens — seu ritmo de crescimento da riqueza aparece também como uma variável fundamental. A questão da acumulação de capital e do crescimento do produto anual da nação é central à sua análise porque dela dependeria, por exemplo, a qualidade de vida dos trabalhadores.15 15 No que se refere aos salários, para Smith, mais importante do que o tamanho da riqueza é o seu ritmo de crescimento ( WN, I, viii: 87). Por conta disso, ele afirma que: "(...) é no estado progressivo, quando a sociedade está avançando para adquirir mais riqueza, e não quando já adquiriu toda a sua riqueza, que a condição dos trabalhadores pobres (labouring poor), parece ser a mais feliz e confortável (...) O estado progressivo [aquele onde há acumulação de capital] é na verdade um estado alegre e vigoroso para todas as diferentes ordens da sociedade. O estado estacionário é entorpecido (dull); o declinante melancólico" ( WN, I, viii: 99). Hollander (1973: 252) argumenta que Smith via o desenvolvimento econômico como sendo desejável justamente por elevar o padrão de vida dos trabalhadores.

Assim, a riqueza não é mais definida como sendo quantidades de ouro e prata e a sua fonte não é mais vista como sendo o comércio externo. E, como o trabalho e não o comércio é visto como a fonte da riqueza, Smith desvia o foco do saldo comercial para um outro "saldo" que ele considera crucial para a prosperidade (ou decadência) da nação:

"(...) Esse é o saldo (balance) do produto e do consumo anual. Se o valor de troca do produto anual (...) excede aquele do consumo anual, o capital da sociedade aumenta na proporção desse excesso (...) o que é economizado anualmente da receita é naturalmente adicionado ao seu capital, e empregado de forma a aumentar ainda mais o produto anual. Se, ao contrário, o valor do produto anual é menor do que o do consumo anual, o capital da sociedade irá anualmente decair na proporção dessa deficiência (...) e junto com ele o valor de troca do produto anual de sua indústria (industry)" (WN, IV, iii: 497).

Portanto, a análise do que ocorre com o valor do produto anual ou, o que é a mesma coisa, com a renda anual (WN, IV, ii: 455) é essencial. Aumentos no valor do produto anual (e da renda) propiciariam um aumento na poupança e isso, por sua vez, se traduziria em adição ao capital do país (WN, II, v: 366) e em um subseqüente aumento na riqueza.

Neste contexto, fica claro que, para Smith, mesmo que as políticas mercantilistas, porventura, surtissem o efeito visado de aumentar a quantidade de metais da nação — o que ele questiona — elas não estariam aumentando a sua riqueza (agora redefinida). Pelo contrário, veremos que, para Smith, as regulamentações do "sistema mercantil" teriam o efeito inverso de diminuir a riqueza dos países que as adotam ao diminuir o valor do seu produto anual.

A "hierarquia" dos setores econômicos e o caminho para a maximização da riqueza

No Livro II, Smith introduz o argumento de que uma mesma quantidade de capital aplicada a diferentes setores da economia engendraria efeitos diferentes em termos da quantidade de trabalho produtivo empregada, e em termos de acréscimo ao valor do produto anual. Com base nesta capacidade de gerar empregos produtivos e de aumentar o valor do produto, Smith ordena os diversos setores.

Nesta hierarquia, a agricultura ocuparia um lugar de destaque uma vez que para Smith, "[n]enhum capital de igual dimensão (equal capital) coloca em movimento uma quantidade maior de trabalho produtivo do que aquele do fazendeiro (farmer)(...)" (WN, II, v:363), ou adiciona mais "(...) ao valor do produto anual da terra e do trabalho do país,[e] à riqueza real em rendimento de seus habitantes." (WN, II, v: 364). 16 16 O capital aplicado na agricultura não só empregaria mais trabalho produtivo do que quando empregado em outros setores, como também o trabalho produtivo empregado neste setor adicionaria proporcionalmente mais ao valor do produto anual do que o trabalho produtivo empregado nas demais atividades. Assim, apesar das críticas feitas à fisiocracia por eles considerarem o trabalho agrícola o único capaz de gerar excedente, Smith não discorda que este seja o setor mais produtivo da economia. Ele justifica a maior produtividade na agricultura pelo fato de que nela, "(...) a natureza também trabalha ao lado do homem; e apesar de seu trabalho não custar nenhuma despesa, seu produto tem o seu valor, bem como aquele do mais caro trabalhador." ( WN, II, v: 363). Canton (1985: 835) nota a deficiência deste argumento de Smith uma vez que é possível considerar que a natureza também presta a sua "ajuda" no setor de manufaturas (vento, moinhos de água, combustão, etc). Isso, no seu entender, comprometeria as conclusões de Smith. De qualquer forma, ele ressalta que no centro da teoria de Smith está "(...) a tese central da primazia da agricultura na acumulação de capital" (Canton, 1985: 834), e argumenta que a "(...) avaliação de Smith sobre produtividade, seu entendimento do crescimento econômico, sua defesa da liberdade de comércio e seu "plano liberal" de igualdade e justiça estão todos relacionados a essa tese. " (idem). Assim, ele conclui que "(...) [d]e todas as formas nas quais o capital pode ser empregado, esta é de longe a mais vantajosa para a sociedade." (idem).

O trabalho produtivo na agricultura seria capaz não somente de repor um valor igual ao capital que o empregou acrescido da remuneração do capitalista, mas reproduziria um valor muito maior — que permitiria também o pagamento de uma renda para o dono da terra (WN, II, v: 364).

A seguir nesta ordenação encontrar-se-ia a manufatura (WN, II, v: 366) – que reporia o capital adiantado à produção com lucro, mas seria incapaz de gerar uma renda da terra. Depois viriam as atividades ligadas ao comércio que Smith subdivide em três, a saber, comércio doméstico (home trade), comércio externo de consumo (foreign trade of consumption), comércio externo de transporte (carrying trade) e, utilizando os mesmos critérios, ordena-os nesta ordem (WN, II, v: 371-2). 17 17 Blecker relaciona essa hierarquização das produtividades do capital à medida do valor que Smith adotou, ou seja, ao trabalho comandado: "(...) ele [Smith] assume, essencialmente, que a 'produtividade do capital' (...) é determinada pelo valor que ele cria, que por sua vez, é medido pela quantidade de trabalho que contrata. O ranking relativo da agricultura, manufatura e comércio em termos de sua 'produtividade (...') é, assim, baseado no julgamento de que capitais iguais investidos nessas atividades tendem a gerar o maior emprego quando aplicados na agricultura, o segundo maior emprego quando aplicado na manufatura, e o menor emprego no comércio (e ainda menos no comércio externo do que no interno)"(Blecker, 1997: 531).

Assim, o mais proveitoso para a sociedade seria a que a aplicação avançasse nesta ordem da agricultura para o comércio externo apenas na medida em que as oportunidades de emprego dos capitais nos setores mais produtivos fossem se esgotando. Desta forma, a renda e o valor do produto seriam maximizados, e o maior crescimento da riqueza da nação seria promovido.

Uma avaliação "econômica" das políticas mercantilistas

Uma conclusão que se tira desta análise é que, para Smith, o Estado "(...)[n]ão deve, portanto, dar preferência nem encorajamento superior ao comércio externo para consumo sobre o comércio doméstico, nem para o comércio de transporte (carrying trade) sobre qualquer dos dois. Não deve forçar nem atrair para esses dois canais uma parcela maior do capital do país do que naturalmente se direcionaria para eles por conta própria" (WN, II, v:372). No entanto, este era exatamente o impacto das diversas políticas adotadas na vigência do mercantilismo.

Como vimos, de uma forma geral os governos voltaram-se "(...) para cuidar (watch over) da Balança Comercial, como a única causa que poderia ocasionar qualquer aumento ou diminuição daqueles metais [preciosos](...)" (WN, IV, i: 435). E com isso, o "(...) o comércio interno ou o comércio doméstico (...) foi considerado apenas subsidiário ao comércio externo (...)" (idem).

Na verdade, a preponderância do comércio externo sobre o doméstico e das cidades sobre o campo não é atribuída por Smith unicamente a essas políticas. No Livro III, Smith discorre longamente sobre os eventos ocorridos desde a queda do Império Romano, e argumenta que uma série de fatos e instituições fez com que a agricultura se tornasse, aos olhos dos indivíduos, desvantajosa em relação às atividades desenvolvidas nas cidades. Especial ênfase é dada à boa administração da justiça e às garantias à propriedade e à pessoa que, por razões políticas e institucionais, passaram a vigorar antes nas cidades do que no campo (WN, III, iii: 405) .18 18 A defesa da propriedade privada e da pessoa aparece em Smith como um elemento essencial para a estabilidade e para a prosperidade da sociedade. Na ausência destas garantias, o empenho e a poupança não seriam estimulados uma vez que não seriam vias seguras de ascensão social. Como enfatiza Smith, "(...) homens em um estado vulnerável (defenceless state) se contentam naturalmente com sua subsistência (...) Ao contrário, quando estão seguros de que desfrutarão os frutos do seu empenho (industry), eles naturalmente o exercem no sentido de melhorarem sua condição (...) "(WN, III, iii: 405).

Assim, o "(...) empenho (industry) que visa a algo além da subsistência foi estabelecido nas cidades muito antes de ser comumente praticada no campo." (idem), o que fez com que as cidades enriquecessem e o campo permanecesse, ao contrário, pobre e mal cultivado. E, sem encontrar mercado para o seus produtos nas zonas rurais, as cidades acabaram desenvolvendo-se vinculadas aos mercados externos (Bowles, 1986: 113).

O fato de grande parte das atividades das cidades, ao contrário do que ocorria no campo, serem regulamentadas por corporações de ofícios, também teria contribuído para tornar essas atividades mais atraentes. Ao limitarem artificialmente o número de trabalhadores nestas atividades (limitando o número de aprendizes que cada artesão poderia ter, ou exigindo dos interessados a exercerem a profissão longos períodos de aprendizagem sob a orientação de um mestre artesão) as leis das corporações teriam tido o efeito de aumentar os salários e lucros prevalecentes nas cidades acima do que seriam na sua ausência, tornando as atividades no campo menos rentáveis quando comparadas às das cidades (WN, I, x, c: 142).

No entanto, apesar de não terem sido as únicas responsáveis pela situação vigente, as políticas mercantilistas certamente vieram a aumentar essa distorção e reforçar essa tendência .19 19 "A superioridade que a indústria das cidades tem em todo lugar na Europa sobre a do campo não se deve totalmente às corporações e às leis das corporações. Ela é sustentada por muitas outras regulamentações. As altas taxas sobre manufaturas estrangeiras e sobre bens importados por mercadores estrangeiros, todas tendem ao mesmo propósito. Leis de corporações permitem aos habitantes das cidades aumentarem seus preços, sem ter o temor de ser under-sold pela competição livre dos homens do campo. Aquelas outras regulamentações protegem-nos igualmente da competição de estrangeiros. O aumento do preço ocasionado pelos dois é em todo lado no final pago pelos donos de terra, fazendeiros ( farmers) e trabalhadores do campo (...)" ( WN, I, x, c: 144).

A avaliação geral de Smith é que, ao privilegiarem os mercados externos em relação ao interno e a manufatura em relação à agricultura, as regulamentações mercantilistas teriam engendrado um resultado no qual a "(...) indústria (industry) do país é desviada de um emprego melhor para um emprego pior (...)"(WN, IV, ii: 457). Ele conclui, então, que "(...) o valor de troca do produto anual ao invés de ser aumentado, conforme a intenção do legislador (lawgiver), será necessariamente reduzido por qualquer regulação do gênero"(idem).

Estas políticas reduziriam também o ritmo de acumulação de capital nos países onde eram implementadas e, portanto, a possibilidade de crescimento futuro. Segundo Smith, a sua adoção "(...) [n]ão só impede sempre o capital de manter uma quantidade tão grande de trabalho produtivo do que de outra forma manteria, mas também o impede de aumentar tão rapidamente quanto iria de outra forma aumentar e, conseqüentemente, de manter uma quantidade ainda maior de trabalho produtivo." (WN, IV, vii: 608).

Assim, para Smith, o enorme crescimento da riqueza observado no período no qual prevaleceram políticas mercantilistas não poderia ser explicado pela adoção das recomendações provenientes do "sistema mercantil" 20 20 Segundo Smith, esse crescimento permitiu que os comerciantes e manufatores enganassem o governo e a sociedade em geral. Para ele, a legislação mercantilista teria sido desenhada, e os privilégios concedidos, sob a influência destes agentes que argumentavam que esta beneficiaria a todos quando, na verdade, enriqueceria somente a eles próprios, prejudicando os demais segmentos da sociedade (WN, IV, i : 434 e WN, I, x, c: 144). É curioso notar que Smith não demonstra qualquer simpatia pelos mercadores e os produtores de manufaturas. Pelo contrário, a sua oposição ao "sistema mercantil" era uma crítica direta à atuação dos agentes que, segundo ele, seriam os verdadeiros beneficiários e arquitetos deste sistema de intervenção. A sua visão sobre estes homens não era nada enobrecedora. Ao longo de toda a RN eles são tratados como sendo gananciosos, enganadores e engabeladores. Smith refere-se repetidas vezes às suas estratégias malignas, ao seu espírito monopolizador, à sua tendência a rapinar etc. (para uma lista, não exaustiva, destas referências ver Rosenberg, 1979:21). E o Estado não tinha as informações, em geral, nem a competência, nem a lisura, nem a vontade de defender o interesse da sociedade como um todo vis-à-vis esses interesses particulares. Como ressalta Viner, isso pode justificar em parte a prevenção que Smith tinha contra intervenções discricionária do Estado na vida econômica (Viner, 1958, pp. 234-5). . Ele não decorreria da existência de proteções, restrições ou monopólio, mas ao contrário, seria conseqüência do ambiente de liberdade e justiça que prevalecia, em maior grau na Grã-Bretanha do que nas outras nações. O seu sucesso econômico devia-se "(...) acima de tudo, àquela administração igualitária e imparcial da justiça que torna os direitos do mais miserável (meanest) súdito britânico respeitável frente aos poderosos (respectable to the greatest) e que ao assegurar para todos os homens os frutos de seu próprio empenho (industry), dá o maior e mais efetivo encorajamento a todo tipo de esforço (industry)" (WN, IV, vii: 610).21 21 Ver também WN, IV, v: 540. Buchanan vai realçar esse aspecto da obra de Smith. Segundo ele: "Uma das mais importantes lições da obra prima de 1776 é o elo existente entre a segurança geral da propriedade (...) e o funcionamento dos mercados (...) " (Buchanan, 1978: 274).

Enfim, segundo Smith, apesar não terem sido suficientes para impedir o crescimento, as políticas mercantilistas teriam retardado ou diminuído o crescimento potencial das nações ao direcionar artificialmente o capital de usos mais produtivos para usos menos produtivos. Assim, teriam feito com que o crescimento da opulência se tornasse "(...) vagaroso, incerto e sujeito a ser interrompido por inúmeros acidentes" (WN, I, x, c: 145).

O "sistema de liberdade natural" e o "progresso natural da opulência"

No entanto, o fato de o mercantilismo ser um arranjo institucional "inadequado" não prova a superioridade do "sistema de liberdade natural". Resta ainda expor argumentos para sustentar que esse sistema seria mais desejável.

Em termos do crescimento do produto nacional, por exemplo, não é de forma alguma auto-evidente que os resultados seriam preferíveis.

Smith afirma que retirados os "sistemas de preferências ou de restrições" os indivíduos irão buscar "o seu próprio interesse do seu próprio jeito", no entanto, disto não se deduz que eles irão aplicar os seus capitais da forma que gere mais riqueza para a sociedade. Pelo contrário, Smith é explicito em afirmar que maximizar o valor do produto anual simplesmente não faz parte das metas individuais:

"A consideração de seu próprio lucro privado é o único motivo que leva um dono de qualquer capital a empregá-lo na agricultura, na indústria ou em algum ramo particular do comércio atacadista ou varejista. As diferentes quantidades de trabalho produtivo que ele pode adicionar ao produto anual da terra e do trabalho da sociedade de acordo com ele ser empregado em uma ou outra dessas formas nunca passa por seus pensamentos (never enter into his thoughts)( )" (WN, II, v, 374, ênfase adicionada).

Os indivíduos só aplicariam, portanto, os seus capitais na ordem mais benéfica socialmente, caso esta ordem fosse por eles percebida como a mais favorável à promoção dos seus interesses individuais.

E aqui se coloca o argumento fundamental de Smith sobre como, na vigência do "sistema de liberdade natural", os interesses individuais se vinculariam àqueles da comunidade com o um todo. Na base da sua defesa está a idéia de que, quando seguidas livremente, as próprias inclinações inerentes aos indivíduos os levariam a aplicar os seus respectivos capitais exatamente naquela ordem mais favorável à sociedade. Assim, o "sistema de liberdade natural" seria capaz de produzir um resultado que as instituições mercantilistas não eram capazes de produzir, ou seja, ele amarraria de forma indelével o auto-interesse individual e o interesse social.22 22 O fato de o mercantilismo não operar essa 'mágica' é apontada por Rosenberg (1979) como a principal razão para Smith rejeitar este sistema.

No centro desta análise estão duas motivações do homem. A busca do lucro — sempre enfatizada nas interpretações sobre o funcionamento da "mão invisível" — e o desejo de segurança, que também é crucial, mas que tem sido muitas vezes negligenciado.23 23 Como aponta Persky: "A hipótese de Smith de uma forte preocupação privada com a obtenção de 'segurança' e uma conseqüente aversão a investimento externo é tanto parte do mecanismo da mão invisível quanto o desejo básico por lucro " (Persky, 1989: 198). Como veremos, é ela que garante que, na ausência de distorções, a ordem de produtividade setorial seja respeitada e que o benefício privado leve ao benefício coletivo.

Segundo Smith, além de terem impactos diferenciados no produto e renda nacional, as aplicações do capital forneceriam em diferentes ramos de atividade um sentimento (e um nível) de segurança diverso ao capitalista. E a avaliação deste último elemento seria fundamental nas suas escolhas sobre como alocar o capital.

Para Smith, a aplicação de capital que daria aos indivíduos uma maior sensação de segurança seria o seu emprego na atividade agrícola. O capital "(...) que é fixado no melhoramento da terra parece ser tão seguro quanto a natureza dos assuntos humanos permite que seja (...)"(WN, III,i: 378). Mas este não seria o único atrativo da atividade agrícola: "(...) A beleza do campo e, além disso, os prazeres de uma vida campestre, a tranqüilidade de espírito que promete, e onde a injustiça das leis humanas não a atrapalha, a independência que ela fornece, tem um charme que atrai praticamente todo mundo (...)" (idem).

Os indivíduos sentir-se-iam mais seguros e felizes (dado lucros semelhantes) ao investirem seus capitais na agricultura do que na manufatura, no comércio interno ou no comércio externo. Por razões semelhantes, Smith afirma que naturalmente o setor de manufaturas seria preferível ao comércio externo por este estar "(...) sempre mais à sua vista e comando (...)"(WN, III, i: 379).

O curso natural do desenvolvimento das nações ou "progresso natural da opulência" – aquele que vigoraria na ausência de restrições, leis, costumes ou outros tipos de interferências que distorceriam as decisões alocativas dos agentes — se daria, portanto, da seguinte forma: "(...) a maior parte do capital de qualquer sociedade em crescimento é direcionada em primeiro lugar à agricultura, depois à manufatura e por último ao comércio externo." (WN, III, i: 380).

E esta, como vimos, seria a seqüência que — ao respeitar a hierarquia de produtividade do capital — maximizaria a riqueza24 24 Bowles chama a atenção para metodologia envolvida nesse raciocínio de Smith sobre o "progresso natural da opulência". Este "(...) seria um conceito definido sem referência a experiência factual dos países comerciais (...) era um conceito a priori usado para explicar tanto como as sociedades iriam se desenvolver, como o modo segundo o qual elas deveriam se desenvolver para maximizar seu crescimento. " (Bowles, 1986: 113) . Somente depois de determinado qual seria o curso natural, Smith compara com a prática e constata que houve desvio em relação a ele (idem). .

Temos, assim, uma das principais peças da defesa de Smith da liberdade econômica, pois neste contexto, o "(...) o interesse e paixões privados dos indivíduos naturalmente os dispõem a direcionar o seu estoque para os empregos nos quais de forma geral são mais vantajosos para a sociedade (...)" (WN, IV, viii: 603)25 25 Para passagens similares ver WN, IV, ii: 454 e WN, IV, vii,c: 631. Assim, como aponta com pertinência Brown: "(...) a análise do sistema de liberdade natural não é baseada na propriedade de eficiência de mercados competitivos como nós entendemos hoje, mas numa abordagem que localizava as contribuições individuais à renda anual dentro de um contexto de uma visão setorial da economia (...) Dentro do sistema de liberdade natural a competição assegura a maior renda anual, não ao promover equilíbrio no mercado, mas ao facilitar o curso adequado de desenvolvimento setorial, que está na base do progresso natural da opulência"(Brown, 1994: 183 ). Assim , "[a] metáfora da mão invisível se refere às conseqüências não intencionais do comportamento individual, mas essa metáfora é construída no âmbito de um discurso sobre hierarquias de capitais (...)" (Brown, 1994: 182). e as bases econômicas para o feroz ataque de Smith ao mercantilismo, já que, segundo o autor, "[t]odas as diferentes regulamentações do sistema mercantil necessariamente perturbam mais ou menos essa distribuição natural e mais vantajosa do estoque" (idem).

Vimos que as políticas mercantilistas e outras instituições humanas acabaram por solapar os benefícios naturais — em termos de sensação de segurança, liberdade e independência — que levariam as pessoas a preferirem naturalmente investir na agricultura a investirem nas manufaturas, e as atividades relacionadas ao mercado externo, as menos "produtivas" dentre as diversas aplicações de capital, se tornaram prematuramente estimuladas. O curso natural foi, assim, "(...) inteiramente invertido" (WN, III, i: 380) e, na avaliação de Smith, a ordem que prevaleceu historicamente seria uma "(...) ordem não natural e retrógrada" (idem) e socialmente menos desejável por diminuir as possibilidades de crescimento da riqueza.26 26 A América seria um exemplo de uma nação na qual a "ordem natural" teria sido respeitada (até por conta de legislação mercantilista que impedia que a Colônia comercializasse ou produzisse várias manufaturas). E, como ressalta Canton (1985: 836), o rápido crescimento da América vis-à-vis o crescimento mais lento da Europa era utilizado por Smith como evidência das vantagens de se seguir a "ordem natural".

O "sistema de liberdade natural" proposto por Smith envolveria, em grande medida, a correção de vários dos fatores que causaram essa inversão indesejável da "ordem natural" da opulência. Isto implicaria uma diminuição do peso do comércio externo e das manufaturas e um crescimento relativo do setor agrícola.27 27 Ver Canton (1985: 844). E, como ressalta Brown, esse elemento foi em grande parte ignorado pela literatura, levando a equívocos de interpretação. No seu entender existem algumas ironias na forma como as idéias de Smith foram canonizadas: "(...) o argumento da RN contra a expansão indevida do comércio e manufaturas passou a ser interpretado como um argumento em favor de tal expansão. As denúncias contra os mercadores e manufatores foram construídas como uma apologia da nova classe capitalista que emergiu numa época posterior. "(Brown, 1994: 220). Neste ambiente institucional, as escolhas que favoreceriam individualmente os agentes seriam compatíveis com aquelas que maximizam a opulência das nações. Este é, talvez, o principal argumento arrolado na RN por Smith na sua defesa da liberdade natural.

No entanto, como foi mencionado anteriormente, a avaliação do resultado econômico das regulamentações mercantilistas, apesar de ter bastante relevo na RN, não foi o único critério utilizado por Smith para chegar à conclusão de que o sistema de liberdade natural seria superior ao mercantil. Também no que se refere a justiça e liberdade este sistema engendraria resultados mais desejáveis.

CONSIDERAÇÕES SOBRE JUSTIÇA E LIBERDADE: A SUPERIORIDADE DO "SISTEMA DE LIBERDADE NATURAL" VIS-À-VIS O "SISTEMA MERCANTIL"

Para Smith, o conceito de justiça não envolve a noção de igualdade, pelo contrário, ele remete a desigualdade de riquezas às diferenças naturais existentes entre os indivíduos no que se refere ao seu empenho, diligência e suas habilidades.28 28 E, para Smith, essa desigualdade seria até certo ponto útil,. Ver Young & Gordon (1996: 11 e 16) e Gilbert (1997: 280). E seria justamente a existência de grandes desigualdades de fortuna que tornaria, segundo Smith, necessária a existência do governo. Este teria a incumbência de impedir que a busca auto-interessada dos pobres os levassem a prejudicar os ricos que — através de seu empenho e esforço — acumularam mais propriedade (WN, V, i, b: 710).29 29 A justiça demarcaria assim, "(...) a fronteira ou o limite que nenhuma busca de auto-interesse poderia cruzar. E mais, a observância deste limite não deve ser deixada à discrição individual (...) pode ser exortada pela força (...)" (Campbell, 1996: 353). Viner afirma que, dada a importância que a Justiça tem no sistema de Smith, a ação do Estado de administração da justiça deveria ser vista como parte integrante e essencial do "sistema de liberdade natural" e não como uma intervenção neste sistema (Viner, 1958: 233). Assim, garantir a justiça envolveria "(...) proteger, tanto quanto possível, todo membro da sociedade de injustiça e opressão por parte de todos os seus outros membros (...)" (WN, V, i, b: 708).30 30 A boa administração da justiça incluiria não só direito à propriedade, mas garantia dos contratos, garantias contra fraude (e isso vale também para o governo como agente), e exigiriam também um comportamento ético ( fair play) por parte dos agentes na sua busca de riquezas. Skinner argumenta que "(...) o conceito smithiano de justiça tinha menos a ver com a eqüidade do que com honestidade dentro de uma situação competitiva (...)" (Skinner, 1978: 76).

Quando utilizado como critério para avaliação de políticas, o conceito de justiça ganha em Smith, segundo Campbell, o significado de um "(...) tratamento imparcial que implica igualdade perante a lei: nenhum indivíduo ou grupo deve ser premiado com privilégios especiais ou deve ser forçado a suportar restrições especiais" (Campbell, 1996: 355).

Neste sentido Smith coloca:

"(...) Ferir em qualquer grau os interesses de qualquer ordem de cidadãos, por nenhuma outra razão que não a de promover aqueles de outra ordem, é evidentemente contrário àquela justiça e igualdade de tratamento que o soberano deve a todas as diferentes ordens de súditos" (WN, IV, vii: 654).

No entanto, como vimos, na percepção de Smith, era exatamente isso que as políticas mercantilistas e instituições tais como as leis de corporações, Settlement Laws, estariam fazendo — elas promoveriam os interesses de alguns em detrimento dos interesses dos demais membros da sociedade.31 31 Ao defender o sistema de liberdade natural, Smith estava pregando o fim de todas essas regulamentações. Além das políticas mercantilistas, Smith atacava, como vimos, entre outras instituições, as regulamentações existentes sobre as corporações de ofício, as formas específicas de aplicação da Lei dos Pobres ( Settlement Laws), que praticamente impedia que os trabalhadores mudassem de cidade atrás de oportunidades melhores de emprego. Ele considera esta última "(...) uma evidente violação da liberdade natural e justiça (...) "( WN, I, x, c: 157) . No que se refere especificamente ao sistema mercantilista, os principais beneficiários seriam, segundo Smith, os mercadores e alguns ramos da manufatura e os principais prejudicados seriam os outros segmentos da produção (em especial os donos de terra, fazendeiros — farmers — e trabalhadores rurais) e os consumidores em geral, que eram forçados a pagar um preço mais elevado do que aquele que prevaleceria sob condições competitivas.32 32 Ver WN, I, x, c: 140, WN, IV, viii: 661-2; WN, IV, iii: 494 e WN, IV, viii: 660, WN, IV, iii: 494. Winch (1992) afirma que pode parecer paradoxal que Smith trate, por um lado, a participação dos mercadores e manufatores na cidade como sendo uma força positiva que fez com que a justiça, a liberdade e o bom governo prevalecessem nas cidades e depois fossem irradiadas para o campo, e por outro, seja tão feroz na sua crítica à associação dessa classe de homens à legislação mercantilista. Para Winch, esse suposto paradoxo deriva do fracasso em observar "(...) a distinção entre a busca do auto-interesse individual sob condições competitivas, quando todas as regras do fair play e de justiça estão sendo respeitadas, e a busca coletiva do auto-interesse através de combinações, monopólios e atividade de grupos de pressão extra-parlamentares (...) Nas sociedades comerciais tais práticas tinham perpetrado uma inversão prematura do progresso natural da opulência, destruído 'o equilíbrio natural da indústria' (natural balance of industry) e dado surgimento a infrações generalizadas da liberdade natural e justiça" (Winch, 1992: 107-8). Sobre a avaliação de Smith de que o sistema mercantil é injusto ver também Winch (1992: 100) e Brown (1994: 188-9). É interessante notar que também a fisiocracia seria, utilizando esse critério, injusta ao pretender privilegiar a agricultura (Campbell, 1996: 355 e Brown, 1994: 189). Os interesses dos comerciantes e manufatores se oporiam, neste sentido, aos da maioria da população e privilegiá-los seria, segundo o autor, além de inadequado do ponto de vista econômico, socialmente injusto.

Winch (1992) aponta a importância deste argumento em relação à justiça nas reflexões de Smith.33 33 Buchanan também enfatiza o peso que o critério de justiça tinha para Smith. Segundo ele, é possível interpretar a RN como uma tentativa por parte de seu autor de provar que aquele sistema que ele considerava o mais justo — ou seja, o sistema de liberdade natural — teria adicionalmente a qualidade de ser eficiente (Buchanan, 1979: 123 e 129). Os ganhos e perdas devidos à legislação mercantil não eram medidos apenas de acordo com o impacto das transferências de renda ou dos benefícios pecuniários, a sua justiça também era considerada:

"(...) Não é dado um status supremo à Justiça, mas ela é uma das considerações que devem ser constantemente lembradas (borne in mind) por aqueles avaliando políticas e instituições" (Winch, 1992: 100).

Assim, não somente em termos econômicos o sistema de liberdade natural parecia, para Smith, preferível ao "mercantil", ele seria também mais justo.34 34 Young & Gordon (1996: 6) argumentam que a noção de Smith de justiça é basicamente comutativa, mas que isso não significa uma total ausência de preocupação com justiça distributiva. O sistema de liberdade natural teria, segundo eles, a vantagem de engendrar as duas simultaneamente. Na interpretação destes autores: "(...) o mercado dá a cada ocupação o que merece, levando em consideração o seu mérito (worthiness) e status. Esse resultado pode ser tomado como significando que os diferenciais de lucros e salários determinados pelo mercado são justos tanto em um sentido comutativo como no sentido distributivo(....) Conseqüentemente, políticas mercantilistas que põem obstáculo ao movimento do capital e do trabalho violam a primeira quando interferem com a liberdade do indivíduo e violam a última quando eles dão a alguns uma parcela maior da renda nacional do que eles deveriam ter (...)" (Young & Gordon, 1996: 15). Ver também Billet (1996). Ao serem retirados os privilégios e as restrições (inclusive aquelas relacionadas às corporações de ofício, às Settlement laws, etc.) a igualdade de tratamento dos súditos seria estabelecida e as injustiças grandemente minoradas. Sob esse sistema, estaria garantida a proteção à pessoa e à propriedade e um tratamento não discriminatório em relação aos cidadãos.

CONCLUSÃO

De uma forma geral, pode-se afirmar com segurança que Smith prezava o advento da sociedade comercial. Além de ter propiciado um enorme aumento de riqueza para a sociedade por meio da divisão de trabalho e acumulação de capital, este processo teria resultado em um aumento na segurança, na liberdade, na justiça, na autonomia e na redução nas relações de dependência pessoal.35 Estes elementos, por sua vez, teriam estimulado ainda mais o aumento na riqueza, já que, em um ambiente de maior de segurança e de liberdade, as virtudes da prudência e a parcimônia teriam sido incentivadas e o desejo de melhorar a condição material se tornado um eficaz incentivo ao esforço e diligência individuais.

Entretanto, apesar de esta forma de sociabilidade ter sido engendrada, em parte, sob a égide de uma série de regulamentações (mercantilistas e de natureza feudal), argumentou-se que, para Smith, estas intervenções humanas apenas entravavam o processo de desenvolvimento — não constituindo boas formas de gerir a sociedade comercial.36 36 No entanto, apesar de muito crítico em relação às regulamentações, não devemos ficar com a impressão de que Smith acreditava ser possível implementar imediatamente, ou integralmente, na Grã-Bretanha ou em qualquer outro lugar, a liberdade econômica. Mesmo que fosse possível, impô-la de uma hora para outra não seria desejável ou justo. Muitas pessoas que pautaram as suas decisões nas regras existentes seriam extremamente prejudicadas — algumas perderiam os seus capitais, outras os seus empregos. A retirada de privilégios concedidos requereria muita cautela e tempo ( WN, IV, ii : 469 e WN, IV, ii, 472). Para Smith as regulamentações do sistema mercantil "(...) não somente introduzem desordens (...) mas desordens que são muito difíceis de remediar sem ocasionar, pelo menos temporariamente, desordens ainda maiores(...)" (WN, IV, vii, 606). A decisão sobre o quão rápido instituir o sistema de liberdade natural ou sobre quais restrições devem ser retiradas e quais devem ser mantidas de forma a evitar males maiores, dependeria da sabedoria e da arte dos legisladores (idem). E, como ressalta Winch (1983), a arte do legislador não se confunde com política econômica. O legislador teria que levar em conta considerações sobre justiça, estabilidade e ordem social, defesa nacional, etc e não apenas a prosperidade material (Winch, 1983: 510).

Como os elementos necessários para o crescimento econômico estariam, em grande medida, para Smith, inscritos no próprio homem, a prosperidade exigiria, basicamente, deixar os homens guiarem-se espontaneamente pela sua natureza, tomando as suas decisões com base nestas inclinações naturais.37 37 Para argumento similar, ver Santos (1997: 196). Entre estas inclinações podemos citar como as mais relevantes a propensão natural à troca ( WN, I, ii: 25), que estaria, como vimos, na base da divisão social do trabalho; a vontade de melhorar sua condição material ( WN, II, iii: 341), que estaria, como vimos, na base da acumulação de capital, e a busca pela segurança, que levaria os homens a investirem seus capitais na ordem mais benéfica para a sociedade. O "sistema de liberdade natural" aparece, assim, do ponto de vista econômico, como sendo um conjunto de instituições que compatibilizaria as inclinações naturais dos homens com resultados socialmente benéficos, medidos em termos do aumento máximo da riqueza — mágica esta que, como vimos, as instituições do sistema mercantil não seriam capazes de operar.

No que concerne à justiça e à liberdade, o "sistema de liberdade natural" também seria, segundo Smith, superior. Ao retirar boa parte das restrições impostas aos indivíduos, e ao não privilegiar nem punir qualquer classe de indivíduos, este sistema garantiria graus de justiça e de liberdade maiores do que o sistema mercantil.

Como deve estar claro, esta defesa que Smith faz do "sistema de liberdade natural" vis-à-vis o "sistema mercantil" está fundamentada em concepções bastante peculiares sobre natureza humana, produtividade dos capitais, justiça, etc. Concepções estas que poucos economistas atuais estariam dispostos a aceitar integralmente.38 38 Coase (1976: 545) enfatiza as diferenças existentes entre o homem de Smith e o homem maximizador racional de utilidade da economia neoclássica. Brown, por sua vez, mostra que a visão setorial de Smith, que vimos ser tão central à sua defesa da liberdade econômica, foi criticada e acabou por ser abandonada pelos economistas ainda no século XIX (Brown, 1994: 203). Como foi visto, Smith não utiliza nesta defesa os argumentos mais familiares aos economistas modernos como, por exemplo, aqueles sobre a eficiência de mercados competitivos, ou sobre a importância de se garantir a liberdade de escolha dos indivíduos, etc. — as suas preocupações são outras.

Sendo assim, acredito que evocar, hoje, a "mão invisível" de Smith como justificativa para defender o liberalismo econômico — apesar de eficiente em termos retóricos — é prestar um duplo desserviço. Descontextualiza-se, por um lado, o pensamento de Smith, contribuindo para disseminar uma versão empobrecida (ou distorcida) do seu sistema. Por outro, acrescenta-se muito pouco ao entendimento das razões que, de fato, estão subjacentes a essas defesas modernas do laissez-faire, uma vez que me parece evidente que não são aquelas apresentadas por Smith na RN.

Submetido: junho 2005; aceito: outubro 2005.

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  • *
    Este artigo foi elaborado como parte dos meus deveres como bolsista de
    Produtividade em pesquisa do CNPq — agradeço o apoio financeiro concedido. Agradeço também os comentários de Raul Cristóvão dos Santos, Antônio Carlos dos Santos, José Eduardo Godoy Jr. e Darcio Genicolo Martins. Por fim, gostaria de registrar a minha dívida intelectual com o Raul Cristóvão dos Santos — que influenciou sobremaneira a minha visão sobre Adam Smith. Tenho mantido conversas sobre Smith com o Raul há mais de uma década e boa parte da motivação para escrever este artigo surgiu de comentários instigantes feitos por ele.
  • 1
    Brown (1994:166) enfatiza que, em geral, se associa a metáfora da mão invisível ao mecanismo pelo qual mercados competitivos atingem uma alocação eficiente dos recursos, e chama a atenção para a inadequação desta interpretação (idem: 186). No entanto, apesar dessa interpretação (neoclássica) do significado da mão invisível ser a mais comum, ela está longe de ser a única. Grampp (2000) faz uma taxionomia das interpretações existentes e enumera nada menos do que
    nove interpretações usuais (que ele julga incorretas) às quais ele contrapõe a sua. Para uma análise sobre as três utilizações que Smith faz da metáfora da mão invisível em sua obra, ver Santos & Bianchi, 2005.
  • 2
    Brown aponta que a visão geral que se tem sobre a
    Riqueza das Nações é de que
    "(...) ela representa uma atitude ideológica que era altamente favorável senão totalmente acrítica à emergência e consolidação do capitalismo comercial e industrial que emergiu mais tarde no século XIX
    ." (Brown, 1994: 165).
  • 3
    No que se refere ao papel do Estado, os textos clássicos sobre o assunto são Viner (1958), Robbins (1952), Skinner (1978). Mas há inúmeros outros trabalhos que tratam do tema como Rosenberg (1979), Stone (1992), ou outros como Freeman(1969), que tratam de aspectos específicos da intervenção do Estado na economia, educação, etc. Esses autores ressaltam, entre outras coisas, que o
    laissez-faire não significava para Smith a ausência de Estado ou uma idéia de Estado mínimo. Entendo que tais esforços no sentido de desbancar a visão "canonizada" de Smith foram cruciais. No entanto, considero que as interpretações sobre Smith deram um salto qualitativo importante principalmente com os trabalhos de Winch (1978, 1983 &1992) e Brown (1994). Estes autores tiveram muita influência sobre a minha visão a respeito das questões que serão tratadas neste artigo, e as suas interpretações serão fartamente utilizadas.
  • 4
    Winch (1978: 81) também caracteriza o "sistema de liberdade natural" como sendo a antítese do "sistema mercantil". Em outro texto, o mesmo autor coloca com muita propriedade que
    "(...) ao lidar com o sistema mercantil ele [Smith] estava construindo um anti-tipo
    (anti-type) que serve de uma imagem-espelhada (mirror-image) valiosa do seu próprio sistema
    ."(Winch, 1992:97).
  • 5
    Este viés na leitura da
    RN, segundo Coats (1975: 220-1) e Tribe (1999:613), teve início ainda no século XIX nas leituras dos economistas clássicos. Coats afirma que ele
    "(...) encorajou o hábito de ver o ataque de Smith ao sistema mercantil simples e somente como uma análise dos impedimentos ao funcionamento suave de uma economia de mercado competitiva, ao invés de como parte integral de um sistema maior de idéias políticas, históricas, social-filosoficas e de moral(...)
    " (Coats, 1975: 221).
  • 6
    Adoto implicitamente a visão de que o discurso de Smith ainda se encontrava no campo da
    Œconomia Política (ou da economia pública). No entanto, não há consenso na literatura a esse respeito. Schumpeter (1966: 186), Dean (1989: 58) e Santos (1997: 167) defendem que a discussão da
    RN ainda ocorria neste domínio enquanto que Brown (1994: 156) e Coutinho (1993: 102) afirmam de Smith rompe estes limites.
  • 7
    Santos (1997) afirma que desde a
    Lectures on Jurisprudence (LJ) e também na
    RN "(...) o argumento de Smith estrutura-se como uma crítica às regulamentações por ele denominadas de mercantilistas
    ." (Santos, 1997:167). Segundo o autor, esse é
    "(...) o eixo sobre o qual as idéias de Smith se organizam (...)" (idem). Coutinho parece concordar com a relevância que essa crítica ao mercantilismo tinha para Smith. Segundo sua interpretação, a
    RN seria
    "(...) antes de tudo um contundente libelo contra o protecionismo mercantilista (...)
    "(Coutinho, 1993: 97) e a favor do liberalismo.
  • 8
    Esta idéia foi sugerida por Raul Cristóvão dos Santos. Neste artigo irei me basear na caracterização que Smith faz dos mercantilistas
    sem discutir se ela retrata de forma fidedigna as políticas ou idéias dos autores da época. Até porque, como ressalta La Nauze (1996: 55-6), Smith estava mais preocupado em combater as 'noções populares' e as práticas políticas provenientes do auto-interesse dos mercadores, do que em fazer uma análise minuciosa dos tratados teóricos dos pensadores mercantilistas.
  • 9
    De todas as políticas mercantilistas que Smith discute no
    Livro IV da
    RN, a única que Smith avalia como sendo razoável é a política de
    drawbacks já que ela simplesmente corrigiria uma distorção anterior (
    WN, IV, iv: 499). Em relação a todas as demais medidas Smith é extremamente crítico. Ele ataca com especial rigor a política de conceder subsídio à exportação que, segundo ele, engendraria uma situação na qual uma das partes — a que concede o subsídio — teria prejuízo permanente no comércio (
    WN, IV, v: 505-6) e direcionaria o capital para uma atividade claramente desvantajosa em relação às demais (
    WN, IV, v: 516). Ele discorda também dos subsídios concedidos à produção, cujo efeito usual seria encorajar empreendedores (
    undertakes) precipitados a entrarem num negócio que não compreendem (
    WN, IV, v: 522). Sobre os tratados comerciais, afirma que tenderiam a favorecer alguns mercadores e manufatores, mas seriam prejudiciais para a população como um todo (
    WN, IV, vi: 545). A sua avaliação da política colonial britânica também é muito negativa. Apesar de considerar o comércio com as colônias benéfico, ele argumenta que a concessão de monopólios e privilégios só teria contribuído para diminuir potenciais benefícios (
    WN, IV, vii: 607-9). Vale notar, entretanto, que apesar de acreditar que medidas protecionistas teriam o efeito de reduzir a riqueza, Smith estava pronto para apoiá-las nos casos em que questões de defesa nacional estivessem em jogo (WN, IV, v: 523 e
    WN, IV, ii: 463-5). Isso porque, para ele, considerações sobre a defesa nacional claramente teriam prioridade em relação às considerações sobre riqueza (
    WN, IV, ii, 464).
  • 10
    Ao longo da
    RN aparecem várias outras críticas ao sistema mercantil que não serão abordadas neste trabalho. Uma que me parece importante, mas cuja discussão ampliaria em demasia o escopo deste trabalho, é o efeito deletério que as instituições mercantilistas teriam sobre o caráter dos homens. Rosenberg (1979: 22-4) argumenta que no centro das críticas de Smith ao mercantilismo está a sua visão de que este aparato institucional estimularia tendências ruins da natureza humana, como a inclinação à indolência e à preguiça; a tendência a querer enganar o público fazendo passar por geral seus interesses privados; a propensão a monopolizar, a associar-se com outros com o objetivo de aumentar sua renda. A busca auto-interessada neste contexto não levaria ao benefício geral. Estes não seriam, no entanto, os únicos efeitos perversos do sistema sobre o caráter dos homens ressaltados na
    RN. Smith aponta também que as altas taxas de lucro obtidas por conta dos privilégios e monopólios tenderiam a minar a prudência e parcimônia (e incentivaria a prodigalidade e o desperdício) não só dos mercadores e produtores, mas também da população em geral que se miraria, segundo o autor, no exemplo dos seus empregadores (
    WN, IV, vii: 612). Além disso, o sistema mercantil disseminaria o ódio entre os povos, e a discórdia entre as nações (
    WN, IV, m, c,: 493). Como argumenta Rosenberg (1979), efeito do sistema de liberdade natural seria, ao contrário, o de estimular as boas inclinações naturais do homem (reprimir as ruins) e fazê-las funcionarem em prol da coletividade.
  • 11
    Como mencionei anteriormente, vários autores têm ressaltado a importância que o Estado tem em Smith e a distância a que ele se encontra de vertentes de Estado Mínimo ou de uma visão de que o mercado é capaz de resolver sozinho todos os problemas econômicos e sociais. Mesmo dentro das três funções delineadas por Smith para o Estado está contida uma gama relativamente grande de intervenções. No entanto, o escopo sugerido de atuação do Estado na
    RN não se resumiu àquelas que ele explicitamente advogou como legítimo. Smith defendeu muitas medidas que claramente transcendiam esses limites — e que, eventualmente, se chocariam com o 'sistema de liberdade natural' (Viner, 1958: 242; Rosenberg, 1979: 28; Skinner, 1978: 58-9; Stone, 1992: 73; Young & Gordon, 1996: 8-9). Os exemplos mais citados na literatura são: a defesa de Smith dos Atos de Navegação; seu posicionamento contra a usura e a favor de leis bancárias; a sua disposição a utilizar os impostos como instrumento de reforma social, como forma de fazer políticas re-distributivas, ou para direcionar o consumo dos indivíduos. Enfim, como ressaltam Viner (1958), Robbins (1952) e Rosenberg (1979), Smith parecia disposto a aceitar a intervenção do Estado, e a intervir na liberdade individual toda vez que dessa intervenção pudesse resultar um benefício social importante.
  • 12
    Para interpretação similar, ver Prasch (1991: 346). Como aponta Macfie o "(...) [a]uto-interesse econômico perseguido de forma justa, e dentro das leis da justiça, é positivamente virtuoso como prudência" (Macfie, 1996: 345). No entanto, como ressaltam Campbell (1996: 353) e Santos & Bianchi (2005: 8), Macfie (1996: 345), apesar de ser uma virtude, a prudência não é considerada por Smith uma das virtudes mais nobres. Ela comandaria, apenas, um apreço sem entusiasmo (
    cold esteem), e não "admiração" ou "amor ardente" (
    ardent love). Enquanto filósofo moral, Smith não considerava a busca da riqueza como uma meta moralmente muito elevada– e quando buscada em excesso seria corruptora dos sentimentos morais (Macfie, 1996: 345; Billet, 1996: 209). A riqueza não seria tampouco a base da felicidade. Smith sugere na Teoria dos Sentimentos Morais (doravante TMS) que os homens buscam riqueza para serem percebidos e admirados pelos demais e com isso julgam que serão mais felizes. Nota, entretanto, que isso não passa de uma ilusão. Esta ilusão é útil, por levar os homens a "(...) cultivar o solo, a construir casas, a fundar cidades e nações e a inventar e aperfeiçoar todas as ciências e artes que enobrecem e embelezam a vida humana" (TMS: 183-4), mas seria ainda assim uma ilusão pois "(...)a riqueza e a grandeza são meros adornos (
    trinkets) com utilidade fútil (...)"(TMS: 182). De qualquer forma, como afirma Coase, mesmo"(....) se o homem ambicioso não se torna mais feliz pela forças internas que o movem (
    drive him) o restante de nós ganha" (Coase, 1976: 542). Na TMS também Smith faz referência a uma "mão invisível" que faria com que os ricos, ao buscarem o seu auto-interesse, acabassem provendo uma vida digna e feliz para os pobres, levando a uma distribuição quase igualitária da felicidade (TMS: 184-5).
  • 13
    Ver Santos (1997: 169).
  • 15
    No que se refere aos salários, para Smith, mais importante do que o tamanho da riqueza é o seu ritmo de crescimento (
    WN, I, viii: 87). Por conta disso, ele afirma que:
    "(...) é no estado progressivo, quando a sociedade está avançando para adquirir mais riqueza, e não quando já adquiriu toda a sua riqueza, que a condição dos trabalhadores pobres
    (labouring poor), parece ser a mais feliz e confortável (...) O estado progressivo [aquele onde há acumulação de capital] é na verdade um estado alegre e vigoroso para todas as diferentes ordens da sociedade. O estado estacionário é entorpecido (dull);
    o declinante melancólico" (
    WN, I, viii: 99). Hollander (1973: 252) argumenta que Smith via o desenvolvimento econômico como sendo desejável justamente por elevar o padrão de vida dos trabalhadores.
  • 16
    O capital aplicado na agricultura não só empregaria mais trabalho produtivo do que quando empregado em outros setores, como também o trabalho produtivo empregado neste setor adicionaria proporcionalmente mais ao valor do produto anual do que o trabalho produtivo empregado nas demais atividades. Assim, apesar das críticas feitas à fisiocracia por eles considerarem o trabalho agrícola o único capaz de gerar excedente, Smith não discorda que este seja o setor mais produtivo da economia. Ele justifica a maior produtividade na agricultura pelo fato de que nela, "(...) a natureza também trabalha ao lado do homem; e apesar de seu trabalho não custar nenhuma despesa, seu produto tem o seu valor, bem como aquele do mais caro trabalhador." (
    WN, II, v: 363). Canton (1985: 835) nota a deficiência deste argumento de Smith uma vez que é possível considerar que a natureza também presta a sua "ajuda" no setor de manufaturas (vento, moinhos de água, combustão, etc). Isso, no seu entender, comprometeria as conclusões de Smith. De qualquer forma, ele ressalta que no centro da teoria de Smith está "(...) a tese central da primazia da agricultura na acumulação de capital" (Canton, 1985: 834), e argumenta que a "(...) avaliação de Smith sobre produtividade, seu entendimento do crescimento econômico, sua defesa da liberdade de comércio e seu "plano liberal" de igualdade e justiça estão todos relacionados a essa tese.
    " (idem).
  • 17
    Blecker relaciona essa hierarquização das produtividades do capital à medida do valor que Smith adotou, ou seja, ao trabalho comandado: "(...) ele [Smith] assume, essencialmente, que a 'produtividade do capital' (...) é determinada pelo valor que ele cria, que por sua vez, é medido pela quantidade de trabalho que contrata. O ranking relativo da agricultura, manufatura e comércio em termos de sua 'produtividade (...') é, assim, baseado no julgamento de que capitais iguais investidos nessas atividades tendem a gerar o maior emprego quando aplicados na agricultura, o segundo maior emprego quando aplicado na manufatura, e o menor emprego no comércio (e ainda menos no comércio externo do que no interno)"(Blecker, 1997: 531).
  • 18
    A defesa da propriedade privada e da pessoa aparece em Smith como um elemento essencial para a estabilidade e para a prosperidade da sociedade. Na ausência destas garantias, o empenho e a poupança não seriam estimulados uma vez que não seriam vias seguras de ascensão social. Como enfatiza Smith, "(...) homens em um estado vulnerável
    (defenceless state) se contentam naturalmente com sua subsistência (...) Ao contrário, quando estão seguros de que desfrutarão os frutos do seu empenho
    (industry), eles naturalmente o exercem no sentido de melhorarem sua condição (...)
    "(WN, III, iii: 405).
  • 19
    "A superioridade que a indústria das cidades tem em todo lugar na Europa sobre a do campo não se deve totalmente às corporações e às leis das corporações. Ela é sustentada por muitas outras regulamentações. As altas taxas sobre manufaturas estrangeiras e sobre bens importados por mercadores estrangeiros, todas tendem ao mesmo propósito. Leis de corporações permitem aos habitantes das cidades aumentarem seus preços, sem ter o temor de ser
    under-sold pela competição livre dos homens do campo. Aquelas outras regulamentações protegem-nos igualmente da competição de estrangeiros. O aumento do preço ocasionado pelos dois é em todo lado no final pago pelos donos de terra, fazendeiros (
    farmers) e trabalhadores do campo (...)" (
    WN, I, x, c: 144).
  • 20
    Segundo Smith, esse crescimento permitiu que os comerciantes e manufatores enganassem o governo e a sociedade em geral. Para ele, a legislação mercantilista teria sido desenhada, e os privilégios concedidos, sob a influência destes agentes que argumentavam que esta beneficiaria a todos quando, na verdade, enriqueceria somente a eles próprios, prejudicando os demais segmentos da sociedade
    (WN, IV, i
    : 434 e
    WN, I, x, c: 144). É curioso notar que Smith não demonstra qualquer simpatia pelos mercadores e os produtores de manufaturas. Pelo contrário, a sua oposição ao "sistema mercantil" era uma crítica direta à atuação dos agentes que, segundo ele, seriam os verdadeiros beneficiários e arquitetos deste sistema de intervenção. A sua visão sobre estes homens não era nada enobrecedora. Ao longo de toda a
    RN eles são tratados como sendo gananciosos, enganadores e engabeladores. Smith refere-se repetidas vezes às suas estratégias malignas, ao seu espírito monopolizador, à sua tendência a rapinar etc. (para uma lista, não exaustiva, destas referências ver Rosenberg, 1979:21). E o Estado não tinha as informações, em geral, nem a competência, nem a lisura, nem a vontade de defender o interesse da sociedade como um todo vis-à-vis esses interesses particulares. Como ressalta Viner, isso pode justificar em parte a prevenção que Smith tinha contra intervenções discricionária do Estado na vida econômica (Viner, 1958, pp. 234-5).
  • 21
    Ver também
    WN, IV, v: 540. Buchanan vai realçar esse aspecto da obra de Smith. Segundo ele: "Uma das mais importantes lições da obra prima de 1776 é o elo existente entre a segurança geral da propriedade (...) e o funcionamento dos mercados (...)
    " (Buchanan, 1978: 274).
  • 22
    O fato de o mercantilismo não operar essa 'mágica' é apontada por Rosenberg (1979) como a principal razão para Smith rejeitar este sistema.
  • 23
    Como aponta Persky:
    "A hipótese de Smith de uma forte preocupação privada com a obtenção de 'segurança' e uma conseqüente aversão a investimento externo é tanto parte do mecanismo da mão invisível quanto o desejo básico por lucro
    " (Persky, 1989: 198). Como veremos, é ela que garante que, na ausência de distorções, a ordem de produtividade setorial seja respeitada e que o benefício privado leve ao benefício coletivo.
  • 24
    Bowles chama a atenção para metodologia envolvida nesse raciocínio de Smith sobre o "progresso natural da opulência". Este
    "(...) seria um conceito definido sem referência a experiência factual dos países comerciais (...) era um conceito a priori usado para explicar tanto como as sociedades iriam se desenvolver, como o modo segundo o qual elas deveriam se desenvolver para maximizar seu crescimento.
    " (Bowles, 1986: 113)
    . Somente depois de determinado qual seria o curso natural, Smith compara com a prática e constata que houve desvio em relação a ele (idem).
  • 25
    Para passagens similares ver
    WN, IV, ii: 454
    e WN, IV, vii,c: 631. Assim, como aponta com pertinência Brown: "(...) a análise do sistema de liberdade natural não é baseada na propriedade de eficiência de mercados competitivos como nós entendemos hoje, mas numa abordagem que localizava as contribuições individuais à renda anual dentro de um contexto de uma visão setorial da economia (...) Dentro do sistema de liberdade natural a competição assegura a maior renda anual, não ao promover equilíbrio no mercado, mas ao facilitar o curso adequado de desenvolvimento setorial, que está na base do progresso natural da opulência"(Brown, 1994: 183
    ). Assim
    , "[a] metáfora da mão invisível se refere às conseqüências não intencionais do comportamento individual, mas essa metáfora é construída no âmbito de um discurso sobre hierarquias de capitais (...)" (Brown, 1994: 182).
  • 26
    A América seria um exemplo de uma nação na qual a "ordem natural" teria sido respeitada (até por conta de legislação mercantilista que impedia que a Colônia comercializasse ou produzisse várias manufaturas). E, como ressalta Canton (1985: 836), o rápido crescimento da América vis-à-vis o crescimento mais lento da Europa era utilizado por Smith como evidência das vantagens de se seguir a "ordem natural".
  • 27
    Ver Canton (1985: 844). E, como ressalta Brown, esse elemento foi em grande parte ignorado pela literatura, levando a equívocos de interpretação. No seu entender existem algumas ironias na forma como as idéias de Smith foram canonizadas:
    "(...) o argumento da RN contra a expansão indevida do comércio e manufaturas passou a ser interpretado como um argumento em favor de tal expansão. As denúncias contra os mercadores e manufatores foram construídas como uma apologia da nova classe capitalista que emergiu numa época posterior.
    "(Brown, 1994: 220).
  • 28
    E, para Smith, essa desigualdade seria até certo ponto útil,. Ver Young & Gordon (1996: 11 e 16) e Gilbert (1997: 280).
  • 29
    A justiça demarcaria assim,
    "(...) a fronteira ou o limite que nenhuma busca de auto-interesse poderia cruzar. E mais, a observância deste limite não deve ser deixada à discrição individual (...) pode ser exortada pela força (...)" (Campbell, 1996: 353). Viner afirma que, dada a importância que a Justiça tem no sistema de Smith, a ação do Estado de administração da justiça deveria ser vista como parte integrante e essencial do "sistema de liberdade natural" e não como uma intervenção neste sistema (Viner, 1958: 233).
  • 30
    A boa administração da justiça incluiria não só direito à propriedade, mas garantia dos contratos, garantias contra fraude (e isso vale também para o governo como agente), e exigiriam também um comportamento ético (
    fair play) por parte dos agentes na sua busca de riquezas. Skinner argumenta que
    "(...) o conceito smithiano de justiça tinha menos a ver com a eqüidade do que com honestidade dentro de uma situação competitiva (...)" (Skinner, 1978: 76).
  • 31
    Ao defender o sistema de liberdade natural, Smith estava pregando o fim de todas essas regulamentações. Além das políticas mercantilistas, Smith atacava, como vimos, entre outras instituições, as regulamentações existentes sobre as corporações de ofício, as formas específicas de aplicação da Lei dos Pobres (
    Settlement Laws), que praticamente impedia que os trabalhadores mudassem de cidade atrás de oportunidades melhores de emprego. Ele considera esta última
    "(...) uma evidente violação da liberdade natural e justiça (...)
    "(
    WN, I, x, c: 157) .
  • 32
    Ver
    WN, I, x, c: 140,
    WN, IV, viii: 661-2;
    WN, IV, iii: 494 e
    WN, IV, viii: 660,
    WN, IV, iii: 494. Winch (1992) afirma que pode parecer paradoxal que Smith trate, por um lado, a participação dos mercadores e manufatores na cidade como sendo uma força positiva que fez com que a justiça, a liberdade e o bom governo prevalecessem nas cidades e depois fossem irradiadas para o campo, e por outro, seja tão feroz na sua crítica à associação dessa classe de homens à legislação mercantilista. Para Winch, esse suposto paradoxo deriva do fracasso em observar "(...) a distinção entre a busca do auto-interesse individual sob condições competitivas, quando todas as regras do
    fair play e de justiça estão sendo respeitadas, e a busca coletiva do auto-interesse através de combinações, monopólios e atividade de grupos de pressão extra-parlamentares (...) Nas sociedades comerciais tais práticas tinham perpetrado uma inversão prematura do progresso natural da opulência, destruído 'o equilíbrio natural da indústria' (natural balance of industry) e dado surgimento a infrações generalizadas da liberdade natural e justiça" (Winch, 1992: 107-8). Sobre a avaliação de Smith de que o sistema mercantil é injusto ver também Winch (1992: 100) e Brown (1994: 188-9). É interessante notar que também a fisiocracia seria, utilizando esse critério, injusta ao pretender privilegiar a agricultura (Campbell, 1996: 355 e Brown, 1994: 189).
  • 33
    Buchanan também enfatiza o peso que o critério de justiça tinha para Smith. Segundo ele, é possível interpretar a
    RN como uma tentativa por parte de seu autor de provar que aquele sistema que ele considerava o mais justo — ou seja, o sistema de liberdade natural — teria adicionalmente a qualidade de ser eficiente (Buchanan, 1979: 123 e 129).
  • 34
    Young & Gordon (1996: 6) argumentam que a noção de Smith de justiça é basicamente comutativa, mas que isso não significa uma total ausência de preocupação com justiça distributiva. O sistema de liberdade natural teria, segundo eles, a vantagem de engendrar as duas simultaneamente. Na interpretação destes autores:
    "(...) o mercado dá a cada ocupação o que merece, levando em consideração o seu mérito (worthiness) e status. Esse resultado pode ser tomado como significando que os diferenciais de lucros e salários determinados pelo mercado são justos tanto em um sentido comutativo como no sentido distributivo(....) Conseqüentemente, políticas mercantilistas que põem obstáculo ao movimento do capital e do trabalho violam a primeira quando interferem com a liberdade do indivíduo e violam a última quando eles dão a alguns uma parcela maior da renda nacional do que eles deveriam ter (...)" (Young & Gordon, 1996: 15). Ver também Billet (1996).
  • 36
    No entanto, apesar de muito crítico em relação às regulamentações, não devemos ficar com a impressão de que Smith acreditava ser possível implementar imediatamente, ou integralmente, na Grã-Bretanha ou em qualquer outro lugar, a liberdade econômica. Mesmo que fosse possível, impô-la de uma hora para outra não seria desejável ou justo. Muitas pessoas que pautaram as suas decisões nas regras existentes seriam extremamente prejudicadas — algumas perderiam os seus capitais, outras os seus empregos. A retirada de privilégios concedidos requereria muita cautela e tempo (
    WN, IV, ii
    : 469 e
    WN, IV, ii, 472). Para Smith as regulamentações do sistema mercantil "(...) não somente introduzem desordens (...) mas desordens que são muito difíceis de remediar sem ocasionar, pelo menos temporariamente, desordens ainda maiores(...)"
    (WN, IV, vii, 606). A decisão sobre o quão rápido instituir o sistema de liberdade natural ou sobre quais restrições devem ser retiradas e quais devem ser mantidas de forma a evitar males maiores, dependeria da sabedoria e da arte dos legisladores (idem). E, como ressalta Winch (1983), a arte do legislador não se confunde com política econômica. O legislador teria que levar em conta considerações sobre justiça, estabilidade e ordem social, defesa nacional, etc e não apenas a prosperidade material (Winch, 1983: 510).
  • 37
    Para argumento similar, ver Santos (1997: 196). Entre estas inclinações podemos citar como as mais relevantes a propensão natural à troca (
    WN, I, ii: 25), que estaria, como vimos, na base da divisão social do trabalho; a vontade de melhorar sua condição material (
    WN, II, iii: 341), que estaria, como vimos, na base da acumulação de capital, e a busca pela segurança, que levaria os homens a investirem seus capitais na ordem mais benéfica para a sociedade.
  • 38
    Coase (1976: 545) enfatiza as diferenças existentes entre o homem de Smith e o homem maximizador racional de utilidade da economia neoclássica. Brown, por sua vez, mostra que a visão setorial de Smith, que vimos ser tão central à sua defesa da liberdade econômica, foi criticada e acabou por ser abandonada pelos economistas ainda no século XIX (Brown, 1994: 203).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      Out 2005
    • Recebido
      Jun 2005
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