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O programa de biocombustíveis Proálcool no contexto da estratégia energética brasileira

The Proálcool biofuels program in the context of the Brazilian energy strategy

RESUMO

O programa de biocombustível foi iniciado em 1975 e aprimorado bastante em 1979/81 como uma reação aos aumentos de preços do petróleo e às quedas simultâneas de açúcar. Ele nunca se tornou economicamente viável, mas sempre deve sua existência ao apoio estatal que, por sua vez, foi justificado pelos poderosos interesses do açúcar. Como apenas os motores Otto (e não o diesel) podem ser movidos a álcool, o tráfego de automóveis de passageiros com seu conhecido desperdício de energia acaba sendo altamente subsidiado no Brasil, apesar da grave escassez geral de energia no país. As perspectivas futuras para o biocombustível são geralmente sombrias, pois mesmo com o aumento acentuado dos preços do petróleo, a energia na forma de alimentos deve ser mais cara que a energia para aquecimento e transporte, de modo que carvão e madeira minerais são candidatos muito mais prováveis como fontes de combustível do que a cana-de-açúcar e óleos comestíveis, quando a era do petróleo chegar ao fim.

PALAVRAS-CHAVE:
Combustíveis; biocombustíveis; etanol; Proálcool

ABSTRACT

The biofuel programme was started in 1975 and greatly enhanced in 1979/81 as a reaction to the price hikes of oil and the simultaneous price drops of sugar. It never became economically viable, but has always owed its existence to state support which, in tum was vindicated by the powerful sugar interests. Since only Otto engine (not Diesel) motors can be driven by alcohol, the individual passenger car traffic with its well-known waste of energy turns out to be highly subsidized in Brazil, in spite of the country’s serious overall energy shortage. Future prospects for biofuel are generally bleak, for even with steeply rising oil prices energy in the form of food is bound to be more expensive than energy for heating and transport so that mineral coal and wood are much more probable candidates as fuel sources than sugarcane and edible oils, once the era of oil comes to its end.

KEYWORDS:
Fuel; biofuel; etanol; Proálcool

1. INTRODUÇÃO

O programa brasileiro denominado “Programa Nacional do Álcool (Proálcool)” é, destacadamente, o maior e o mais duradouro esforço de substituição de combustível fóssil por biocombustível renovável, em termos mundiais. Nos últimos anos, foram utilizados entre 10 e 12 bilhões de litros de álcool de cana-de-açúcar por cerca de 3 e 3,5 milhões de carros de passeio equipados com motores especiais movidos a álcool (contra aproximadamente 4,5 milhões de carros movidos a gasolina misturada com 20% de álcool, aproximadamente). E foi só bem depois da queda dos preços do petróleo (a partir de 1981), especificamente com o aumento dos preços internacionais do açúcar em 1988/89 e com o agravamento dramático da crise econômica brasileira, que a validade do Proálcool tem sido seriamente questionada com base na alegação de que o programa foi inflacionário e que significou um escoadouro para as finanças públicas.

Desde os seus primórdios, o programa tem atraído grande atenção internacional. Sobre nós - um grupo de economistas, cientistas políticos e sociólogos do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim - exerceu-se a mesma atração, e, em função disso, formulamos uma proposta de pesquisa com o objetivo de estudar o Proálcool por ocasião da criação de um programa especial de apoio à pesquisa do setor energético pela Fundação Volkswagen (uma agência semipública de apoio à pesquisa, que não deve ser confundida com a empresa de mesmo nome) em 1980/81. Obtivemos recursos para a realização de um estudo detalhado a respeito do Proálcool durante os anos seguintes. Nossos resultados foram publicados em 1984 e, desde então, vimos ainda acompanhando o Programa ao participar de conferências no Brasil e na Europa, dando opiniões ao governo alemão e tentando sempre entender o que torna o Proálcool tão irresistível, mesmo apresentando um desempenho econômico sofrível.

A publicação da versão atualizada em português em 1988 suscitou novas controvérsias e comentários. A um breve relato da história do Proálcool segue-se uma avaliação de sua viabilidade econômica e uma descrição de seus efeitos sobre a agricultura, indústria e transportes; em seguida, o programa de biocombustíveis é inserido no contexto global das políticas energéticas brasileiras. A seção final aborda os vínculos fiscais, a economia política e as perspectivas internacionais dos biocombustíveis, isto é, a questão se o Brasil pode ser encarado, nessa área, como um modelo para outros países e como um fornecedor de equipamento e de conhecimento especializado.

2. HISTÓRIA DO PROÁLCOOL

A crise do petróleo de 1973 detonou a procura por fontes alternativas de energia em todo o mundo. Somente no Brasil, contudo, é que se lançou um programa maciço de biocombustíveis em 1975, e que vem expandindo-se desde então. A chave da compreensão das forças que determinaram o início bem-sucedido do Programa reside na conjunção da subida do preço do petróleo com a queda do preço do açúcar, como se pode verificar na figura 1. O pico sem precedentes verificado nos preços do açúcar em 1973 havia provocado enormes investimentos no setor e os cofres do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) estavam repletos. As perspectivas futuras do mercado do açúcar eram, no entanto, sombrias.

Figura 1:
Preços internacionais do açúcar e do petróleo (em US$ de 1982)

Desde a Grande Depressão dos anos 30, o setor açucareiro esteve acostumado a livrar-se do excedente de produção transformando o açúcar em álcool anidro e misturando-o a gasolina, o que é tecnicamente factível sem maiores problemas até o limite de aproximadamente 22%. Assim, era meramente lógico que se utilizasse na ocasião a mesma saída, amarrando com isso o problema de produção dos “velhos” interesses ligados ao açúcar, poderosos e bem entrincheirados, ao problema de insumo dos interesses igualmente influentes ligados ao petróleo (automóveis e transportes), que tentavam desesperadamente manter o ímpeto do “Modelo brasileiro” do início dos anos 70, em que o automóvel assumia um papel de destaque como símbolo do “novo” Brasil, um Brasil que “queimava etapas” do desenvolvimento em tempo reduzido, vislumbrando-se como ‘’país recém-industrializado’’ e’ ‘potência emergente’’.

A segunda escalada do preço do petróleo em 1979/81 coincidiu novamente, após 1980, com uma crise do açúcar, e ainda outros eventos deram impulso adicional ao Proálcool: um importante avanço tecnológico tornou exequível o carro totalmente movido a álcool, utilizando o etanol hidratado com um conteúdo alcoólico em torno de 94% (ao invés dos 99,7% do etanol anidro que pode ser misturado à gasolina). Parece ter sido muito importante que a principal contribuição tecnológica tenha sido dada pelo “Centro Técnico Aeroespacial - CTA’’, da Força Aérea Brasileira, para que as relutantes montadoras multinacionais no Brasil pudessem ser mais facilmente induzidas a um acordo com o governo: as firmas concordaram em produzir carros a álcool e o governo prometeu fornecer o combustível e manter os preços competitivos perante a gasolina. A companhia nacional de petróleo, Petrobrás, ficou encarregada de administrar o sistema global de combustíveis.

Em 1981, quando os preços do petróleo estavam em seu pico mais alto, o Banco Mundial estendeu um empréstimo de mais de US$ 250 milhões ao Proálcool, justificando o seu apoio ao programa “ainda não” economicamente viável, com base na projeção de preços ascendentes para o petróleo e estagnados para o açúcar (veja figura 1). Àquela época, o Banco Mundial estava sob forte pressão no sentido de envolver-se com energia, particularmente com projetos de energia renovável, e sua direção muito interessada em obter informações completas a respeito do único grande programa de biocombustíveis do mundo, de maneira que a solicitação brasileira de concessão de empréstimo foi bem-vinda. Uma vez que apenas os motores de ciclo Otto de carros de passeio e eventualmente caminhões leves podiam ser movidos a álcool, enquanto ônibus e caminhões ainda rodavam inteiramente à base de óleo diesel, derivado do petróleo, as necessidades a serem atendidas não eram assim tão “básicas”, e os custos eram elevados; mas esses escrúpulos foram preteridos, o que mais tarde suscitou a acusação de que o Banco Mundial havia usado o Brasil como ‘’cobaia’’, enquanto, por outro lado, as partes interessadas no Brasil tomaram a aprovação do empréstimo do Banco Mundial como um ‘’certificado de viabilidade econômica”, contrariando, com base no estudo (confidencial) de viabilidade do Banco Mundial, todos os cálculos que mostravam o oposto.

Após 1981, o preço do petróleo sofreu uma forte queda, mas também o preço internacional do açúcar caiu, permanecendo durante vários anos abaixo do limite de custo até mesmo de produtores eficientes, antes de recuperar-se recentemente em 1988/89. A crise financeira de 1982 e os problemas brasileiros de liquidez subsequentes tenderam a sustentar a crença popular de que o álcool era uma fonte nacional confiável de combustível, ignorando as perdas crescentes decorrentes da exportação de gasolina (devido ao fato de que o fracionamento do petróleo produzia necessariamente uma certa fração de gasolina).

Foi somente em 1989 que o crescimento da produção nacional de petróleo, coincidindo com problemas fiscais e com preços internacionais do açúcar também crescentes, levou a medidas políticas que frearam a expansão do Programa. Embora não se tivesse promovido um corte drástico, essa ocorrência já se vislumbrava, quando, outra vez, o salto do preço internacional do petróleo, depois da intervenção do Iraque no Kuwait, resgatou o Programa. O preço do açúcar, porém, desta vez ficou em um nível lucrativo, de maneira que chegou a ser administrativamente limitada a exportação do açúcar para assegurar o abastecimento do mercado interno com álcool.

3. AVALIAÇÃO DA VIABILIDADE ECONÔMICA DO PROÁLCOOL

A viabilidade econômica do Proálcool está diretamente relacionada a sua posição entre o açúcar e o transporte automobilístico, como descrito acima. A parte superior da figura 2 mostra o açúcar determinando os principais insumos, ou custos, já que cada pedaço de cana-de-açúcar usado para o álcool significa uma oportunidade perdida de produzir açúcar (daí o termo técnico de economia que define os custos como ‘’custos de oportunidade’’), e cada recurso (terra, força de trabalho, insumos importados etc.) destinado à cana-de-açúcar tem que ser desviado de outros produtos de exportação ou de uso doméstico.

Figura 2:
Vínculos da produção de álcool

A parte inferior da figura 2 representa os vínculos com o sistema de transportes, ou seja, os benefícios do álcool como substituto da gasolina produzida a partir do petróleo importado ou de origem interna. As empresas estatais IAA e Petrobrás protegem a produção do álcool das influências diretas do mercado em ambos os lados. Não é só no Brasil que o açúcar e outros produtos agrícolas, bem como os derivados de petróleo, automóveis e serviços públicos de transporte são oferecidos ao mercado mediante sistemas altamente regulamentados. Esta regulamentação se dá por meio de subsídios, impostos, isenções de impostos, controles de preço e licenças, dentro de um quadro de estipulações institucionais muito complexo, que resulta mais de um longo processo de evolução do que de algo deliberadamente projetado. A falta de transparência e controle, particularmente num regime militar com poucos poderes parlamentares, tende a tornar pouco nítido o limite entre interesses públicos e privados e difícil de definir as responsabilidades fiscais; em função ainda de um sistema bancário em grande medida de propriedade do Estado, e o refinanciamento deste pelo orçamento federal, pelo Banco Central e por credores externos - tanto bancos comerciais quanto instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial - , é plausível que os fluxos monetários adquiram sua própria dinâmica, possivelmente sobrepondo-se aos custos e benefícios a serem atribuídos aos fluxos de bens e serviços.

Voltando-nos a esses últimos e aplicando os métodos convencionais do Banco Mundial (ou de qualquer investidor comercial em se tratando dessa matéria) para determinar a viabilidade econômica de um certo empreendimento, a figura 3 relaciona os preços internacionais do petróleo e do açúcar com a estrutura de custos.

Figura 3:
Viabilidade econômica do açúcar, álcool e outros produtos

Tais custos são expressos em dólares americanos, levando em conta uma certa sobrevalorização da moeda brasileira. Os parâmetros técnicos, 114 quilogramas de açúcar ou 70 litros de álcool, por tonelada de cana, e as estimativas de custos (US$ 0,08 por libra de açúcar) datam do começo dos anos 80, quando refletiam a situação no estado de São Paulo. Pode ser, entretanto, que o progresso tecnológico tenha aumentado a eficiência, de maneira que hoje em dia reflete melhor o produto nacional. A figura 3 mostra que o preço internacional do petróleo teria que aumentar até US$ 52 o barril para tornar o álcool anidro competitivo em comparação com outros produtos agrícolas; para o álcool hidratado usado nos motores especiais a álcool, o ponto de equilíbrio só é atingido no valor de US$ 62/b. Ademais, esses números só valeriam para preços do açúcar muito baixos; as linhas de indiferença para o álcool anidro (l1) e hidratado (l2) indicam que qualquer preço internacional do açúcar acima de 8 centavos de dólar por libra torna mais atraente para o Brasil exportar açúcar do que substituir o petróleo, mesmo a preços muito acima de US$ 52 ou US$ 62/b, respectivamente.

Enquanto o preço do petróleo permanecer bem abaixo desse nível, o Proálcool precisa, assim, ser subsidiado a um nível muito elevado - seja através de pagamentos diretos, seja na forma de isenções fiscais, crédito baratos etc., como indicado acima pelos fluxos financeiros na figura 2.

4. EFEITOS SOBRE A AGRICULTURA, INDÚSTRIA E TRANSPORTES

A viabilidade econômica com base em preços internacionais certamente não é o maior, considerando apenas esse critério na avaliação de projetos, programas e indústrias em países desenvolvidos. É essencial, portanto, que se faça uma análise cuidadosa dos efeitos do Proálcool sobre o desenvolvimento antes que se possa chegar a um julgamento justo. A seguir, um resumo dos principais achados de nossa pesquisa.

Na agricultura, o Proálcool fortalece a concentração fundiária em função das economias de escala inerentes ao complexo agroindustrial do açúcar. Em muitas regiões, a cana-de-açúcar vem tomando o lugar da produção de alimentos e outros produtos de exportação de modo que tem sido necessário um “zoneamento” que restrinja o açúcar a certas regiões; também em “novas” fronteiras agrícolas, a cana-de-açúcar acaba inevitavelmente competindo com outros usos da terra. Se fosse correto o argumento da “abundância” de terra no Brasil, a zona rural não seria dominada por violentos conflitos em torno da terra em virtualmente todas as principais regiões. Com respeito ao meio ambiente, a cana-de-açúcar não parece ser muito diferente de outros produtos da agricultura moderna.

Os efeitos do Proálcool sobre o emprego são negativos quando comparados aos da agricultura de pequenas propriedades, e positivos quando comparados aos da soja - pelo menos enquanto a colheita não estiver mecanizada. A ameaça de mecanização da colheita - do tipo da utilizada na Austrália, EUA etc. - é que mantém os salários baixos e os sindicatos enfraquecidos. O problema social representado pela condição de boia-fria de grande parte da força de trabalho mereceria um estudo à parte.

Na área industrial, o Proálcool impulsionou uma indústria de bens de capital muito eficiente e competitiva no campo das destilarias e outros equipamentos relacionados. É aqui que se pode detectar o efeito positivo mais pronunciado sobre o desenvolvimento nacional. Contudo, a falta de viabilidade econômica dos biocombustíveis - tanto no Brasil como em qualquer lugar do mundo (uma vez que açúcar, petróleo, gasolina e etanol, bem como os produtos competidores: milho, frutas cítricas, soja, feijão, café e mandioca, ou, respectivamente, carvão e gás natural, são bens internacionalmente comercializados, cujos custos de transporte são relativamente baixos) - inibe as exportações dos produtos sofisticados dessa indústria especializada.

Os efeitos do Proálcool sobre o sistema de transporte e sobre a estrutura do povoamento rural e urbano são os efeitos da disseminação do carro individual de passageiros. Diferentemente de todos os outros países do mundo, o Brasil escolheu subsidiar o automóvel particular ao invés de taxá-lo - às custas de todas as outras necessidades de sua população, incluindo transporte público, produção de alimentos, saúde, educação, habitação etc. O argumento positivo da menor emissão de poluentes dos motores a álcool em relação àqueles a gasolina perde peso diante desse fato básico e indiscutível.

Em suma, a falta de viabilidade econômica do Proálcool não é contrabalançada por uma série de efeitos positivos sobre o desenvolvimento; estão certos os críticos que afirmam que o não aumento dos preços do petróleo eliminou a única justificativa para o Proálcool. E o que vai acontecer quando o petróleo acabar? Não estará o Brasil, com o Proálcool, experimentando o início do regime energético mundial do futuro? Essa questão é tratada na seção seguinte.

5. A ESTRATÉGIA ENERGÉTICA BRASILEIRA E O PROÁLCOOL

As crises do petróleo de 1973, 1979/81 e 1990 deram impulso não apenas ao programa de biocombustíveis, mas também a que se aumentassem os esforços de exploração e produção interna de petróleo e carvão, bem como a investimentos maciços em projetos de energia hidroelétrica. A figura 4 evidencia os resultados dessas estratégias no lado da produção e, juntamente com o que mostra a figura 5 no lado do consumo final, permite observar uma grande dose de correspondência entre os dois lados, ou seja, a dependência externa de energia importada tem sido reduzida com sucesso, e é o que está graficamente ilustrado na figura 6.

Figura 4:
Produção de energia primária (108 TEP)

Figura 5:
Consumo final de energia por fonte (108 TEP)

Figura 6:
Dependência externa de energia (%)

Em primeiro lugar, isso se deve a um aumento de mais de três vezes da produção doméstica de petróleo entre 1973 (8,3 milhões de toneladas de equivalentes de petróleo - TEP) e 1987 (28,5 milhões de TEPs), e as perspectivas para o futuro são promissoras, vislumbrando-se a autossuficiência para o final dos anos 90. A cana-de-açúcar é responsável por uma parcela considerável da produção nacional de energia, ou seja, 20,2 milhões de TEPs (1987), o que corresponde a 14% do total. O consumo de álcool constitui, no entanto, apenas 5,9 milhões de TEPs, ou seja, 3,6% do consumo total de energia. Este valor mostra que não se pode esperar do Proálcool uma solução global para os problemas energéticos brasileiros.

Uma visão mais cuidadosa do lado energético do Programa revela ainda outros aspectos problemáticos: o consumo total de energia de 164,5 milhões de TEPs significa para o Brasil (140 milhões de habitantes) um consumo per capita de 1,2 TEP. As comparações internacionais, tais como aparecem na figura 7, em que apenas a ‘’energia comercial’’ é levada em conta (isto é, madeira e cana-de-açúcar sendo parcialmente excluídas de maneira que o consumo energético no Brasil atinja apenas 0,8 TEP per capita), demonstram claramente que o Brasil, como quase todos os países em desenvolvimento, está muito atrás dos países industrializados - apesar do seu período de “milagre” e de todos os seus esforços de equiparar-se e de “queimar etapas”. Por outro lado, a taxa brasileira de automobilização (carros de passeio por 1.000 habitantes) é bem impressionante, sendo maior, por exemplo, do que a da Alemanha Ocidental de 1960, do que a da Espanha de 1968 e até mesmo maior do que a do Japão de 1970, como mostrado na figura 8. A primeira impressão que se tem das grandes cidades brasileiras, contudo, com sua aparente civilização do automóvel, que lembram as dos centros urbanos da Europa Ocidental, Estados Unidos e Japão, é enganosa (comparem-se as figuras 7 e 8): no Brasil, o grau de desigualdade, não só da distribuição de renda, mas também da distribuição do consumo de energia é absoluta e incomparavelmente maior que nos países capitalistas industrializados. Um carro particular de passageiros consome por volta de 1 TEP ao ano; essa quantia corresponde a aproximadamente um quinto do consumo total de um alemão ocidental médio e a pouco menos de um sétimo do de um americano; no Brasil, entretanto, um carro demanda quase que a totalidade da energia disponível para o cidadão médio. É por isso que o Proálcool, sendo um programa que provê combustível subsidiado para os carros de passageiros, exacerba, ao invés de atenuar, os problemas energéticos brasileiros, para não falar dos sociais.

Figura 7:
Produto Nacional Bruto per capita e energia comercial em países selecionados 1965-1987

Figura 8:
Concentração de automóveis em países selecionados 1960-1988

Mas então o que virá depois do petróleo? A questão não foi respondida por ninguém e, de fato, parece que a “comunidade” energética internacional é incapaz de respondê-la. A prestigiosa World Energy Conference publicou recentemente o seu “Survey of Energy Resources” trazendo projeções, até o ano 2020, que indicam um aumento de 40% no consumo de petróleo e um preço para o barril variando entre US$ 30 e US$ 50 por volta daquele ano (veja Czakainski, Michaelis e “Gefahr”). Até lá, certamente se descobrirão novos campos de petróleo e serão desenvolvidas novas tecnologias em energia solar, fissão nuclear, energia geotérmica e outros ramos. Ninguém pode dizer, entretanto, se será conseguido um avanço realmente significativo. O baixo preço do petróleo dos últimos anos contribuiu para minimizar a importância dos cenários energéticos alternativos e vem dando à era do automóvel uma sobrevida mais longa do que a esperada em 1973 e 1979/81.

Embora longe de serem impossíveis, preços para o petróleo consideravelmente mais altos, alcançando os limites de US$ 52/62 por barril como na figura 3, são, portanto, pouco prováveis. Contudo, os carros particulares de passageiros são típicos produtos de uma era de energia barata e, se é que se pode arriscar uma profecia, estes serão os primeiros a desaparecer como meio de transporte de massa - pelo menos em países como o Brasil - quando triplicar ou quadruplicar o preço do petróleo. Em parte, isso se deve ao fato de que as fontes de energia são bons substitutos, de maneira que a energia na forma dos principais alimentos terá a mesma tendência de aumentar de preço quando subirem os combustíveis. Assim, os custos de oportunidade dos biocombustíveis, isto é, a “oportunidade perdida” de produzir alimentos ao invés de combustíveis, crescerão na mesma medida, de modo que os atuais limites de US$ 52/62 por barril também sobem ou crescem ao longo das curvas de indiferença ante o açúcar.

Portanto, do ponto de vista da análise energética e das previsões para essa área, o Proálcool não faz sentido; isso significa que a razão para a sua continuação deve ser buscada, ao contrário, em sua economia política e em sua estrutura fiscal.

7. OS VÍNCULOS FISCAIS E A ECONOMIA POLÍTICA DO PROÁLCOOL

As ligações entre o álcool e o restante da economia brasileira não se resumem aos vínculos com as indústrias do açúcar e de equipamentos de destilaria, de um lado, e com os setores de combustíveis, de transportes e de automóveis de outro, mas também aos vínculos fiscais com o complexo sistema de finanças públicas. Como já foi mencionado, o aparato estatal brasileiro é altamente segmentado e o orçamento da União definido no nível parlamentar do governo federal cobre apenas uma parte dos fluxos fiscais, de maneira que o grosso dos impostos ou quase-impostos federais é apropriado e realocado direta ou indiretamente pelas empresas estatais (como a Petrobrás), agências reguladoras (como o IAA), “fundos” especiais sob controle de um secretariado ministerial ou interministerial (como o “Fundo de Mobilização Energética”) e - no caso de crédito subsidiado - por uma série grande de fundos de (re) financiamento parcialmente ligados ao Banco Central. A aparente invisibilidade do sistema fiscal fomentador do álcool também se deve ao fato de que a alternativa ao álcool é, obviamente, a gasolina, que é altamente taxada em todo lugar do mundo - e as isenções fiscais não aparecem em orçamentos.

De uma maneira geral, já que os preços do petróleo bruto e da gasolina movimentam-se paralelamente (de acordo com o estudo de viabilidade do Banco Mundial de 1981, p. 98, o preço da gasolina, em centavos de dólar por litro, é igual ao preço do petróleo bruto, em dólares por barril, multiplicado por 0,878), é relativamente fácil determinar o volume total de dinheiro público necessário para equalizar os preços da gasolina e do álcool, levando-se em consideração a diferença de quilometragem por litro: de acordo com a figura 3, os custos de produção de um litro de álcool chegam a 42 x 0,0878 = 36,9 centavos (álcool anidro) e 52 x 0,878 = 45,7 centavos (álcool hidratado), enquanto o preço internacional da gasolina, estando o barril a US$ 18, chega a apenas 15 ,8 centavos por litro. A diferença de aproximadamente 21 e 30 centavos/litro, respectivamente, é paga pelo contribuinte brasileiro. Para um total de 11 bilhões de litros de álcool - dos quais uma parte na forma anidro e três partes hidratado - seria, portanto, necessária uma quantia de aproximadamente US$ 3 bilhões. De acordo com a Folha de S. Paulo (3/set./1989, C-1), o Banco Mundial calcula serem necessários US$ 2,5 bilhões para o ano de 1988, utilizando o método de soma dos itens individuais ao invés de calcular a diferença bruta, e sem contar os empréstimos subsidiados e variadas isenções fiscais. Estimativas como essas são, é claro, sempre sujeitas à discussão em seus detalhes, mas a ordem geral de grandeza parece estar já bem determinada - e tendendo para a avaliação mais conservadora.

Note-se que o preço do açúcar em janeiro de 1990 foi de 14 centavos de dólar por libra, o que daria ao Brasil uma “renda” confortável, de modo que o preço correspondente do petróleo que houvesse tornado o álcool mais lucrativo do que o açúcar alcançaria bem mais que o astronômico valor de US$ 100/b. Não é de admirar que começou a haver diminuições da oferta e que o racionamento passou a ser necessário. Mais tarde, o preço do petróleo se recuperou substancialmente, enquanto o preço do açúcar declinou, muito embora a figura 3 mostre claramente que o ponto resultante de combinação ficou até novembro de 1990 bem dentro da área de viabilidade do açúcar.

Em termos do curso futuro do Proálcool, seus vínculos fiscais às entidades públicas de combustíveis e do açúcar garantem sua existência e ao mesmo tempo o tornam altamente vulnerável a mudanças de políticas. Pelo lado do açúcar, a alta nos preços internacionais faz com que seja muito mais lucrativo e institucionalmente (Acordo Internacional do Açúcar) mais fácil exportar açúcar do que subsidiar o álcool; e do lado dos combustíveis, a Petrobrás ganha força com a produção doméstica de petróleo e já começa a movimentar-se no sentido de se livrar do escoadouro de recursos representado pelos subsídios ao álcool.

A história da economia política do Proálcool estaria incompleta se só se considerasse a coincidência de interesses setoriais específicos, em que pese a importância desses setores. Além disso, para tornar plausível e compreensível a aceitação pública do Programa e sua auréola de ‘’irreversibilidade’’, deve ser levado em conta uma certa mitologia futurista do automóvel, um sentimento de nostalgia em relação a épocas passadas do açúcar, de orgulho nacional e “ufanismo” e de “segurança” e tecnologia moderna.

Esse tipo de atitude não está totalmente ausente em nível internacional e, uma vez que o Brasil, ao estabelecer uma minicompetição com a OPEP desenvolvendo um programa de biocombustíveis, não põe em jogo nenhum interesse vital relacionado ao petróleo, o Proálcool acaba contando com uma certa dose de incontestada simpatia e boa vontade. Os banqueiros também ainda não se ativeram aos efeitos do Programa sobre as finanças públicas e sobre o balanço de pagamentos, contrastando com as enormes quantias envolvidas em reescalonamentos de dívida, reduções, conversões etc. Adernais, não está esquecido o envolvimento do Banco Mundial, embora devam ser mencionados - para fazer justiça à sua posição assumida mais recentemente - não apenas sua mésalliance com o Proálcool em 1981 e sua crítica clara e dura em 1988/89, mas também as prolongadas negociações a respeito de um empréstimo de US$ 250-350 milhões para um segundo crédito Proálcool em 1984/85, que finalmente terminaram com a retirada do pedido brasileiro depois que muitas questões críticas, postas à mesa pelo Banco, não podiam ser satisfatoriamente respondidas.

A experiência brasileira com biocombustíveis tem sido amplamente estudada e pelo menos outros doze países experimentaram com diferentes tipos de álcool combustível em níveis de pesquisa ou de plano piloto. Tais esforços, contudo, não foram motivados primariamente por objetivos de substituição do petróleo, mas sim pela disponibilidade de excedentes agrícolas ou por considerações ambientais (já que o etanol e outros aditivos biológicos podem reduzir certas emissões e substituir o chumbo).

Resumindo novamente, mesmo se as reservas de petróleo provarem ser pouco duradouras, não se pode esperar um avanço significativo no campo dos biocombustíveis, uma vez que se pode fazer combustível a partir de fontes energéticas muito mais baratas do que aquelas tão próximas aos alimentos quanto as representadas pelo açúcar (de cana e beterraba) ou pelas sementes produtoras de óleos vegetais, especificamente o gás natural, o carvão mineral e a madeira. E é incontestável que a comida continue a ser uma necessidade básica dos seres humanos, de modo que, particularmente em condições mais prementes de escassez, é provável que uma caloria ou joule em ingestão de energia alimentar continuará a ser bem mais apreciada do que uma unidade energética em transporte ou aquecimento.

Vemos o programa brasileiro de biocombustíveis mais como uma experiência singular, cujo “sucesso” deve ser atribuído a uma dinâmica muito especial de convergência de fatores políticos, sociais, tecnológicos, comerciais e ideológicos.

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  • 1
    JEL Classification: Q29; L72.
  • *
    Versão revisada (novembro de 1990) do trabalho preparado para o seminário internacional “Brasil: 100 anos de experiência republicana e alternativas para o futuro”, Latinamerika-Institut, Estocolmo, 5-6 de dezembro de 1989. Traduzido do inglês por Ricardo B. Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1991
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