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A economia política no Brasil hoje

Political economy in Brazil today

RESUMO

Este artigo está dividido em duas partes completamente diferentes. A primeira apresenta um breve comentário comentado sobre as principais contribuições para o debate teórico em Economia Política no Brasil nos anos 80, compreendendo três grandes correntes: a marxista/neomarxista, a neoricardiana e a pós-keynesiana. A segunda parte tenta identificar algumas das questões mais importantes que os economistas políticos (não apenas no Brasil) enfrentam na atual crise da teoria econômica que dizem respeito, na visão do autor, aos problemas teóricos do tempo na economia: lógica vs. tempo histórico; curto prazo vs. longo prazo; equilíbrio vs. análise dinâmica.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico

ABSTRACT

This paper is divided in two completely different parts. The first one presents a briefly commented survey on-the main contributions to the theoretical debate in Political Economy in Brazil during the 80’s, comprising three major currents: the marxist/neomarxist, the neoricardian and the postkeynesian. The second part tries to identify some of the most important issues that are facing political economists (not only in Brazil) in the present crisis in economic theory which concern, in the author’s view, the theoretical problems of time in economics: logical vs. historical time; short vs. long run; equilibrium vs. dynamic analysis.

KEYWORDS:
History of economic thought

1. INTRODUÇÃO

Resistindo ao impulso de tentar definir o que seja Economia Política hoje, e particularmente no Brasil, contento-me em registrar, como recomenda o bom senso, que nela tem de haver lugar para os pós-keynesianos, além obviamente dos que intervêm no debate acadêmico através das óticas marxistas, neomarxista,. clássica e neo-ricardiana, aos quais a expressão se aplica histórica e literalmente.

No Brasil, o debate tem focalizado em doses aproximadamente uniformes todas essas· correntes. O objetivo deste breve ensaio é dar conta, em traços gerais, dos principais temas que têm estado em discussão ao longo da década de 80 - um corte bastante arbitrário, mas algum tem que ser feito -, enfatizando, em seguida, um conjunto de questões a meu ver centrais que possivelmente deverão - ou, ao menos, deveriam - nortear as tendências futuras do esforço teórico em Economia Política, inclusive entre os economistas acadêmicos deste país.

Assim, a seção 2 esboçará um relato sintético dos principais temas em debate no país dentro de três grandes correntes: a marxista/neomarxista, a neo-ricardiana e a pós-keynesiana; há, naturalmente, interseções, e pelo menos uma delas - entre as duas últimas correntes - vem estabelecendo um debate importante, que acompanha e intervém no debate internacional. Dado que, salvo tais exceções, as temáticas são mais específicas que compartilhadas, justifica-se centrar o relato essencialmente na problemática interna das três correntes específicas. E claro que alguns recortes em parte arbitrários terão que ser feitos. Por. exemplo, abordagens keynesianas sob enfoque predominante neoclássico não serão consideradas, assim como as que focalizem temas muito específicos ligados à economia brasileira. Em geral, serão priorizadas as intervenções teóricas sobre as empíricas e históricas, tal como se tem caracterizado a área de Economia Política nos encontros anuais da ANPEC. Por outro lado, teses acadêmicas não publicadas, ainda que importantes, não serão referidas por limitação de acesso aos leitores e ao próprio autor deste ensaio.

A terceira e última seção procurará identificar, agora sem maior ênfase no debate doméstico, temas de importância e interesse basicamente comuns a essas correntes não-ortodoxas, a partir de um diagnóstico sucinto do estado atual de crise da teoria econômica - o que inclui a Economia Política -, que aponta na direção de uma problemática mais ampla que permeia os diferentes obstáculos e impasses teóricos localizados, a saber, o tratamento do tempo na teoria econômica. Dados os limites deste ensaio, os comentários sobre tema tão complexo não serão mais do que tópicos e introdutórios.

2. TEMAS RECENTES EM DEBATE NO BRASIL

2.1. ·No âmbito da Economia marxista e correntes afins - que se poderia chamar, sem qualquer originalidade, de Neomarxistas - estão em debate tanto questões tradicionais quanto questões mais atuais, ou, mais precisamente, enfoques pretensamente originais sobre temas antigos. Contudo, o tempo médio de maturação dos debates sobre antigas questões no interior do campo marxista (ou marxiano) é habitualmente grande, o que poderia parcialmente explicar a relativa escassez de contribuições neste campo. Outro possível elemento explicativo é o reduzido número de economias que trabalham nesta área no Brasil, dificilmente chegando a constituir “massa crítica” para fertilizar e dar continuidade a um debate, razão pela qual as contribuições tendem a permanecer isoladas, além de esparsas.

Podem-se identificar, com o risco de omissões localizadas, quatro temas gerais do grupo “tradicional” que receberam contribuições no período. O primeiro é o da transformação de valores em preços de produção, que foi objeto de diferentes intervenções autossuficientes, sem que tenham chegado a configurar um debate. Em ordem cronológica, registrem-se os artigos de Maldonado (1981Maldonado Filho, E. A. (1981). Liberação e absorção de capital e a transformação do valor das mercadorias em preços de produção. Ensaios F.E.E., 2(2), 1982.) e (1987Maldonado Filho, E. A. (1987). A transformação de valores em preços de produção e o fenômeno da absorção e liberação de capital produtivo. Anais do XV E.N.E., Salvador. - versão ampliada) que focaliza o problema da ótica defendida por A. Shaikh, pela qual a “transformação” de Marx pode ser interpretada como correta, e não inconsistente conforme a crítica neo-ricardiana, se vista como iterativa, numa sucessão de períodos em que se dariam liberação e absorção setorial de capital-dinheiro por pressão da concorrência. O autor emprega exemplos numéricos extraídos de Steedman para, reafirmando a solução formal sraffiana por ele desenvolvida, interpretá-la teoricamente; não há, portanto, sugestão da nova solução ao problema, e sua existência bem como a validade formal da solução sraffiana são de certa forma reconhecidas, apesar da “redefinição’’ teórica proposta. Em Possas (1982Possas, M. (1982). Valor, preço e concorrência: não é preciso recomeçar tudo desde o início. R.E.P., 2(4), n. 8, outubro-dezembro.) o problema é visto como efetivamente existente em Marx e uma solução do tipo Morishima & Seton ou sraffiana é adotada, mas teoricamente interpretada não como “desvio” de preços da produção em relação aos valores, já que as respectivas unidades de medida são reconhecidas como distintas, e sim como uma correspondência entre os dois sistemas unificados pela mesma estrutura produtiva e sem comensurabilidade preços-valores. Por fim, em Tolipan (1983Tolipan, R. (1983). Dinheiro e transformação em Marx. R.E.P., 3(3), n. 11, julho-setembro.) o· problema também é aceito como pertinente e não-resolvido, a necessidade de novas soluções formais em reprodução ampliada é descartada e a questão da tradução monetária da transformação de valores em preços é trazida ao primeiro plano. Os preços são vistos como intrinsicamente monetários e por isso tão “absolutos” quanto os valores, o que asseguraria uma distinção métrica preços x valores e uma correspondente não-comensurabilidade. Ainda outras intervenções foram mais ortodoxas ao apenas recusarem a existência de algum “problema” da transformação.

Um segundo tema, não tão tradicional, porém derivado de aspectos centrais da obra de Marx, é a questão do status teórico da concorrência. Em Tolipan (1981Tolipan, R. (1981). Capital, concorrência e emprego da técnica. R.E.P., 11(1), abril.) a possibilidade de teorizar a concorrência numa perspectiva marxiana é posta seriamente em questão dado o caráter executor de leis subjacentes que ela assume, descartando em simultâneo a legitimidade de qualquer unificação Marx/Schumpeter em termos de uma teoria da concorrência centrada no processo inovativo e na busca de superlucros. Em Possas (1984Possas, M. (1984). Marx e os fundamentos da dinâmica econômica capitalista. R.E.P., 4(3), n. 15, julho-setembro.), ao contrário, distintas posições de Marx a esse respeito são catalogadas e recebe destaque a visão centrada no papel dinâmico/disruptivo da concorrência, em detrimento da visão centrada no ajustamento e na mobilidade em direção a uma taxa de lucro uniforme, reconhecidamente presente em Marx, porém vista como viés ricardiano. Ao discutir a concorrência capitalista em seu livro dirigido à teoria marxista das crises, Mazzucchelli (1985Mazzucchelli, F. (1985). A Contradição em Processo: o Capitalismo e suas Crises. São Paulo, Brasiliense.) compartilha a mesma visão básica de que a concorrência possui determinações próprias relevantes para a concretização das leis de movimento formuladas por Marx. Semmler (1985Semmler, W. (1985). Concorrência, monopólio e diferenciais de taxas de lucro: considerações teóricas e evidência empírica. Ensaios F.E.E., 6(1), n. 11.) sustenta posição oposta, criticando teórica e empiricamente as restrições à concorrência alegadas pelos autores que sustentam a relevância, notadamente no capitalismo monopolista, de diferenciais das taxas de lucro, identificando assim concorrência com mobilidade dos capitais e tendência à equalização das taxas de lucro. Em Zoninsein (1986Zoninsein, J. (1986). Valor, concorrência e concentração. R.E.P., 6(3), n. 23, julho-setembro.) a questão é retomada em sentido semelhante, incorporando a noção de mobilidade em Marx e Hilferding, com apoio crítico neste último e convergindo basicamente para a posição Shaikh/Semmler, com acréscimos possibilitados pela leitura de Hilferding em direção a aspectos teóricos relativos a condições/barreiras à entrada nas indústrias.

A terceira questão básica objeto de análises diversas é a da teoria monetária e financeira de Marx. Destacam-se no contexto os trabalhos de Carvalho (1986Carvalho, F. C. (1986). A teoria monetária de Marx: uma interpretação pós-keynesiana. R.E.P., 6(4), n. 24, outubro-dezembro.) e de Mollo (1988aMollo, M. L. (1988a). Moeda e taxa de juros em Keynes e Marx: observações sobre a preferência pela liquidez. E.E., 18(1), janeiro-abril.), ambos procurando comparar a teoria de Marx com a de Keynes. O primeiro artigo discute a essencialidade do dinheiro em ambas as teorias, mostrando-as como teorias monetárias da produção capitalista e destacando a relevância do tempo e da anarquia da produção ao desenvolver a visão de Marx. Entre outros paralelos com a leitura de Keynes vale ressaltar a conexão entre incerteza como base da preferência por liquidez e o dinheiro com forma geral da riqueza numa economia de produção mercantil independente e não-coordenada. O segundo artigo desenvolve comparação semelhante fixando pontos comuns ou conflitantes em torno principalmente do conceito de liquidez.

Finalmente, registra-se a ocorrência de trabalhos esparsos sobre a problemática teórica da crise articulada à lei da tendência declinante da taxa de lucros em Marx. Zoninsein (1985Zoninsein, J. (1985). Capital financeiro, demanda efetiva e causas da crise. Ensaios F.E.E., 6(1), n. 11.) discute a questão a partir da leitura de Hilferding, incorporando igualmente as hipóteses de desproporção entre ramos de produção e problemas de realização (demanda efetiva) na explicação da crise, organizadas, como em Hilferding, em torno do conceito de capital financeiro. Bresser-Pereira (1986Bresser-Pereira, L. (1986). Tendência declinante da taxa de lucro e progresso técnico. R.E.P., 6(4), n. 24, outubro-dezembro. e 1987Bresser-Pereira, L. (1987). Lucro, Acumulação e Crise, São Paulo, Brasiliense.). efetua uma análise específica da lei de tendência da taxa de lucro a partir de Marx, porém incorporando autores recentes, inclusive não-marxistas, especificamente o teorema de Okishio e teoremas de progresso técnico neutro (constância da relação capital/produto). Sua conclusão é de recusar a aplicabilidade do teorema de Okishio devido à interveniência da “concorrência shumpeteriana” (taxas de lucro supranormais), mas de recusar igualmente a validade teórica e empírica da lei em face, segundo o autor, da relativa constância tanto da taxa de mais-valia - com crescimento tendencial pari passu da produtividade e dos salários - e da composição orgânica do capital, com progresso técnico aproximadamente neutro. O livro de Mazzucchelli (1985Mazzucchelli, F. (1985). A Contradição em Processo: o Capitalismo e suas Crises. São Paulo, Brasiliense.) aborda a mesma questão, porém dentro da temática mais ampla da natureza das crises capitalistas e de sua transformação na etapa monopolista.

Uma linha menos “tradicional”, ou talvez menos “economicista”, da análise marxista é marcada por algumas incursões na teoria marxista do Estado e em particular na teoria neomarxista da regulação. No primeiro bloco de questões registrem-se os trabalhos de Bresser-Pereira (1982Bresser-Pereira, L. (1982). Despesas do Estado, repartição e valor. R.E.P., 2(3), n. 7, julho-setembro.), em que a inserção do Estado no econômico é tratada teoricamente em perspectiva eclética, embora referencialmente marxista, voltada à questão da crise fiscal; e de Teixeira (1983Teixeira, A. (1983). Capitalismo monopolista de Estado: um ponto de vista crítico. R.E.P., 3(4), n. 12, outubro-dezembro.), que põe em xeque, sob ótica marxista histórico-teórica, o conceito de capitalismo monopolista de Estado. Mais recentemente, a teoria marxista do Estado, tal como se tem desenvolvido no debate anglo-germânico das teorias da “derivação” do Estado a partir do econômico no capitalismo, recebe divulgação e contribuição específica de Brunet (1987Brunet, F. (1987). A forma administração pública. R.E.P., 7(3), n. 27, julho-setembro.) para a análise das formas de organização do Estado e da administração pública. Finalmente, a “escola francesa da regulação”, de cunho neomarxista, desenvolvida a partir da segunda metade dos anos 70, começa a ser divulgada e debatida no país, com ênfase nos conceitos originais de modo de regulação e regime de acumulação como referências teóricas para pensar as regularidades socioeconômicas da reprodução capitalista sem maior ênfase em relações de equilíbrio. Mencionam-se as intervenções de Conceição (1987Conceição, D. A. (1987). Crise e regulação: a metamorfose restauradora da reprodução capitalista. Ensaios F.E.E., 8(1), n. 15.), centrada naqueles conceitos e voltada à análise teórica da crise, de Sabóia (1987Sabóia, J. L. (1987). Teoria da Regulação e “rapport salarial” no Brasil. Anais do XV E.N.E., Salvador.), igualmente expondo os conceitos básicos mas com ênfase na relação salarial, e de Possas (1988Possas, M. (1988). O projeto teórico da Escola da Regulação. Novos Estudos Cebrap, 21.), também com apresentação dos conceitos mas com enfoque crítico à escola pela necessidade de mediações teóricas na explicação da crise e pela ênfase na relação salarial. Recentemente foi publicado no Brasil livro de um dos principais expoentes da escola, Lipietz (1988Lipietz, A. (1988). Miragens e Milagres: Problemas da Industrialização no Terceiro Mundo, S. Paulo, Nobel.), em que desenvolve aplicação da ideia de regulação a países periféricos.

2.2. No âmbito da Economia clássica e neo-ricardiana o debate local tem sido mais limitado e as intervenções, escassas. Na discussão de tópicos de economia política clássica registram-se por exemplo os artigos de Coutinho (1987Coutinho, M. (1987). Adam Smith e o valor. L.E., 9(3), outubro.) e Bianchi (1988Bianchi, A M. (1988). O (presumido) paradoxo de Adam Smith, moralista e pai da Economia. L.E., 19(1), fevereiro.), enfatizando ambos a continuidade em Adam Smith da postura filosófica à teoria econômica, no primeiro caso relativizando as críticas ricardianas às insuficiências lógicas da teoria do valor smithiana e no segundo criticando as leituras economicistas de Smith que abstraem a continuidade entre a Teoria dos Sentimentos Morais e a Riqueza das Nações.

No terreno especificamente neo-ricardiano verificaram-se, além de um ou outro artigo de divulgação de Sraffa, intervenções mais analíticas sobre a obra deste autor, através de Tolipan, abrindo a década (1979Tolipan, R. (1979). Capital e taxa de juros em Sraffa. P.P.E., 9(2), agosto.) com uma exposição simpática a Sraffa, mas com preocupação de resgatar sua sugestão de determinação exógena da taxa de lucros pela taxa de juros para uma eventual síntese com Keynes em face da indeterminação teórica da distribuição no modelo estático sraffiano. Em Possas (1983Possas, M. (1983). Preços e distribuição em Sraffa: uma reconsideração. P.P.E., 13(2), agosto.) é feita uma crítica à ambição neo-ricardiana de fundar uma alternativa teórica não-neoclássica no modelo de Sraffa pela ausência neste de determinações teóricas (em contraste com as lógicas) na formação dos preços e distribuição e pelas hipóteses irrealistas que esta última se vê obrigada a assumir. Embora polêmico, este artigo não despertou senão uma controvérsia localizada e pouco extensa. Desde uma perspectiva neo-ricardiana, Machado e Serrano (1986Machado, J. B. e Serrano, F. (1986). Uma nota sobre a crise da teoria econômica. IEI/UFRJ, Textos para Discussão; n. 105.) identificam na crise atual da teoria econômica uma coexistência de paradigmas incompletos e assumem uma instigante posição de defesa de um ecletismo keynesiano-neo-ricardiano que aposta na complementaridade das respectivas teorias: a monetária, do produto e do emprego (“curto prazo”), e a dos preços e distribuição (“longo prazo”). Em linha semelhante de impulso conciliatório, porém bem mais elaborado e exaustivo na análise e na argumentação, o recente artigo de Amadeo e Dutt (1987Amadeo, E. e Dutt, A. (1987). Os keynesianos neo-ricardianos e os pós-keynesianos. P.P.E., 17(3), dezembro.) vai além e identifica importante terreno comum entre os pós-keynesianos - desde que se disponham a aceitar que a incerteza das expectativas não seria incompatível com alguma trajetória de equilíbrio e com análises de “longo prazo” - e os neo-ricardianos keynesianos - desde que dispostos a aceitar os desequilíbrios e a volatilidade das expectativas não como um “imperfeccionismo” teórico, mas como parte relevante da economia real.

2.3. É no campo relativamente vasto da Economia pós-keynesiana que o debate tem provavelmente atraído o maior interesse dos economistas heterodoxos. Podemos identificar aí alguns terrenos específicos que vale a pena mencionar.

A década de 80 inicia com uma controvérsia sobre a demanda efetiva que reuniu forças em defesa e contrárias às posições keynesiana-kaleckianas sobre a relevância do princípio da demanda efetiva para o estudo da dinâmica econômica capitalista. O debate foi desencadeado por Castro (1979Castro, A. B. (1979). O Capitalismo Ainda é Aquele. Rio de Janeiro, Forense Universitária.) em sua rejeição da teoria do ciclo econômico de Kalecki e em geral da postura keynesiana frente à relação produção x demanda. A crítica de Possas e Baltar (1981Possas, M. e Baltar, P. (1981). Demanda efetiva e dinâmica em Kalecki. P.P.E., 11(1), abril.) retoma o ciclo em Kalecki a partir do princípio da demanda efetiva em suas implicações dinâmicas e é replicado (uma versão preliminar) por Castro (1980Castro, A. B. (1980). A controvérsia da demanda efetiva. Cadernos de Opinião, n. 15.), que inclui Keynes e Steindl como alvos de crítica. Segue-se a defesa de Keynes por Belluzzo e Tavares (1981Belluzzo, L. G. e Tavares, M. C. (1981). Ainda a controvérsia sobre a demanda efetiva: uma pequena intervenção. R.E.P., 1(3), n. 3, julho-setembro.) quanto à essencialidade da demanda efetiva e nova crítica de Castro (1981Castro, A. B. (1981). A controvérsia da demanda efetiva: o deslocamento da questão. R.E.P. 1(4), n. 4, outubro-dezembro.). Após artigo de Braga (1983Braga, J. C. (1983). Instabilidade capitalista e demanda efetiva (a razão de Kalecki), R.E.P., 3(3), n. 11, julho-setembro.) buscando repor a discussão na direção original da teoria dinâmica a partir de Kalecki, o debate recebe ainda intervenções esparsas e arrefece. O livro de Jobim (1984Jobim, A. J. (1984). A ‘Macrodinâmica de Michal Kalecki, Rio de Janeiro, Graal.) apresenta minuciosamente as posições de Kalecki, combinando clareza didática com esforço interpretativo. No livro de Possas (1987Possas, M. (1987). A Dinâmica da Economia Capitalista: uma Abordagem Teórica. São Paulo, Brasiliense.) a problemática é retomada no mesmo contexto de uma teoria da dinâmica econômica mas incluindo referências a Schumpeter e Keynes.

Nos anos mais recentes a análise dinâmica “keynesiana” a partir de Kalecki e Steindl recebe uma interessante contribuição de Amadeo (1986bAmadeo, E. (1986b). Crescimento, distribuição e utilização da capacidade: um modelo neo-steindliano. P.P.E., 16(3), dezembro.), na qual procura mostrar, a partir de modelos estilizados neokeynesiano e neomarxista (este último do gênero profit squeeze), a relevância de endogeneizar o grau de utilização da capacidade produtiva nos determinantes do investimento em modelos de crescimento, à la Steindl e Kalecki, caracterizando seu modelo como “neo-steindliano”, do qual resulta uma correlação positiva - contrariamente aos dois modelos precedentes - entre taxa de lucros e de salários, de um lado, e entre crescimento e consumo, de outro. Em resenha, Araújo (1987Araújo, J. L. (1987). Crescimento, distribuição e utilização da capacidade: um modelo neo-steindliano - Comentários. P.P.E., 17(3), dezembro.) sugere que o resultado do modelo é devido em parte a seu caráter estático, pois a análise do equilíbrio poupança x investimento resultante não leva em conta os efeitos dinâmicos da nova capacidade sobre o grau de utilização e o investimento, generalizando assim o modelo. Em resposta na mesma revista, Amadeo concorda no essencial e discute apenas se o ajuste inicialmente considerado é ou não intuitivo, já que ambos são estáveis. Numa linha distinta, aspectos da análise de Kalecki são trabalhados empiricamente com o objetivo de testar a aplicabilidade de sua teoria do investimento e dos lucros a países específicos, no caso os EUA, por Araquém da Silva (1986Araquém da Silva, E. (1986). O modelo de investimento de Kalecki: análise empírica dos Estados Unidos, 1948-1980. R.E.P., 6(2), n. 22, abril-junho.) e (1987Araquém da Silva, E. (1987). A determinação do lucro em Kalecki: análise empírica dos Estados Unidos, 1947-1985. R.E.P., 7(4), n. 28, outubro-dezembro.).

A relação entre salários nominais e reais e os preços na teoria de Keynes e nos autores keynesianos recebe numerosas contribuições, notadamente, entre outras, de Amadeo (1986aAmadeo, E. (1986a). Sobre salários nominais: as críticas keynesiana e monetarista à abordagem de Keynes sobre o mercado de trabalho. P.P.E., 16(2), agosto.) e (1988Amadeo, E. (1988). As diferentes facetas da rigidez e flexibilidade dos salários na análise keynesiana. R.E.P., 8(1), n. 29, janeiro-março.), onde mostra que a demonstração por Keynes, na Teoria Geral, de equilíbrio aquém do pleno emprego não supõe logicamente rigidez de salários nominais ou ilusão monetária nem constitui caso especial do modelo neoclássico como alegam os monetaristas, especialmente os novos clássicos; mas somente que não há ajustamento automático ao pleno emprego ainda que os salários nominais sejam flexíveis.

De outro lado, o debate pós-keynesiano tem sido alimentado crescentemente nos últimos anos com temas especialmente caros a esta tradição - incerteza, expectativas, investimento, instabilidade. Esta última noção foi explorada por Possas (1986Possas, M. (1986). Para uma releitura teórica da Teoria Geral. P.P.E., 16(2), agosto.) no contexto da análise do tempo na Teoria Geral de Keynes, enquanto Simonsen (1986Simonsen, M. H. (1986). Keynes versus expectativas racionais. P.P.E., 16(2), agosto.) propôs um confronto da concepção pós-keynesiana ortodoxa na formação de expectativas com os modelos de expectativas racionais, concluindo que ambos tendem a assumir posições extremas em termos de comportamento dos agentes, em detrimento da hipótese mais razoável de expectativas parcialmente adaptativas. Mollo (1988bMollo, M. L. (1988b). Instabilidade do capitalismo, incerteza e papel das autoridades monetárias: uma leitura de Minsky. R.E.P., 8(1), n. 29, janeiro-março.) desenvolve a mesma problemática instabilidade-incerteza com ênfase no papel das instituições e autoridades monetárias a partir de uma interpretação de Minsky, onde as noções fundamentais de fragilidade financeira e endogeneidade da moeda são retomadas. Carvalho (1987Carvalho, F. C. (1987). Keynes on probability and uncertainty and decision-making. Anais do XV E.N.E., Salvador.) enfatiza por sua vez a distinção entre incerteza e probabilidade a partir de escritos de Keynes pré-Teoria Geral, introduzindo a noção empregada por Davidson de não-ergodicidade da economia capitalista em face da ocorrência sistemática de “experimentos cruciais”, que tornam a incerteza irredutível a sucedâneos calculáveis.

A teoria monetária pós-keynesiana tem sido provavelmente o filão mais explorado. Além das já referidas comparações Marx-Keynes feitas por Carvalho (1986Carvalho, F. C. (1986). A teoria monetária de Marx: uma interpretação pós-keynesiana. R.E.P., 6(4), n. 24, outubro-dezembro.) e Mollo (1988Mollo, M. L. (1988a). Moeda e taxa de juros em Keynes e Marx: observações sobre a preferência pela liquidez. E.E., 18(1), janeiro-abril.), registram-se os seguintes artigos: Silva (1987Silva, M. F. (1987). O conceito de moeda em Keynes e a circulação financeira. E.E., 17(3), setembro-dezembro.) apresenta, baseado em Minsky e Davidson, um esquema de análise da circulação monetária e financeira num enfoque pós-keynesiano, com especial ênfase na demarcação entre os conceitos associados aos ativos financeiros e ao financiamento do investimento, permitindo explicitar as formas de endogeneidade da moeda a partir de Keynes. Boianovsky (1986Boianovsky, M. (1986). Banco ideal e reforma monetária em Wicksell. Anais do XIV E.N.E., Brasília.) retoma conceitos monetários wicksllianos e, ao nível introdutório, o debate dos anos 30 entre Keynes, Kalecki e Ohlin sobre a teoria monetária da Teoria Geral (1987Boianovsky, M. (1987). Uma nota introdutória aos artigos de Kalecki, Keynes e Ohlin. L.E., 9(2), junho.). A relação entre finance motive e poupança é focalizada no interior da análise de Kalecki da relação investimento x poupança por Andrade (1987Andrade, J. (1987). Motivo finanças ou motivo poupança: o papel transitório do crédito em Kalecki. Anais do XV E.N.F., Salvador.) que revela as ambiguidades do autor ao não distinguir tão claramente como Keynes o elemento liquidez do elemento crédito lastreado (reembolsável pelos bancos). Tema semelhante é competentemente tratado na relação entre o Treatise on Money e a Teoria Geral de Keynes por Torres Filho (1988Torres Filho, E. (1988). A economia monetária. a poupança e o financiamento: do Tratado à Teoria Geral. IEI/UFRJ, Textos para Discussão, n. 166.). A curiosa ligação teórica, via eficácia real da política monetária, entre Keynes e a “velha Chicago” pré-Friedman é explorada por Simoens da Silva (1987Simoens da Silva, L. A. (1987). Política monetária: Chicago, Keynes e os pós-keynesianos. Anais do XV E.N.E., Salvador.).

Finalmente, o já mencionado artigo de Amadeo e Dutt (1987Amadeo, E. e Dutt, A. (1987). Os keynesianos neo-ricardianos e os pós-keynesianos. P.P.E., 17(3), dezembro.) lança aos pós-keynesianos um provocativo repto, ainda não respondido, no sentido de buscar um entendimento redutor de discrepâncias, supostamente não insanáveis, com os neo-ricardianos keynesianos da estirpe Garegnani, Milgate, Eatwell, a fim de tornarem a eventual minoria composta mais robusta para enfrentar a ortodoxia. A dificuldade mais aparente aos pós-keynesianos será possivelmente admitir algum tipo de equilíbrio de longo prazo apoiado na uniformidade das taxas de lucro setoriais como factível e relevante para a análise temporal da economia capitalista, mesmo se compatível - o que está longe de ser óbvio - com a incerteza nas expectativas de longo prazo.

2.4. Cabe uma referência final a esforços relativamente isolados numa área que se poderia denominar estruturalista/schumpeteriana, entre os quais sem dúvida mereceriam destaque o artigo de Rosenberg e Frischtak (1983Rosenberg, N. e Frischtak, C. (1983). Inovação tecnológica e ciclos de Kondratiev. P.P.E., 13(3), dezembro.), que problematiza a visão neo-schumpeteriana da conexão necessária entre ciclos longos e inovações tecnológicas e o de Rangel (1984Rangel, 1. (1984). Dualidade e ciclo longo. R.E.P., 4(1), n. 13, janeiro-março.), entre outras intervenções, onde sustenta a relação entre ciclo longo (Kondratiev), a sucessão de dualidades sociais/institucionais e a persistência cíclica da complementaridade entre capacidade ociosa e poupança financeira potencial em distintos setores produtivos.

Também na área metodológica da Economia Política registram-se alguns esforços isolados que não serão aqui referidos. Tratam desde o método de Marx em O Capital ao de Keynes na Teoria Geral, passando pela possível interdisciplinaridade tendencial da ciência econômica em crise. O papel relevante da História do Pensamento nesta disciplina ganha um apoio engajado no ensaio de Tolipan (1982Tolipan, R. (1982). A necessidade da História do Pensamento Econômico. L.E., 4(6), novembro-dezembro.).

A seção seguinte não se furta a uma breve mas potencialmente polêmica incursão em questões de método na teoria, ao procurar identificar alguns dos obstáculos centrais, na opinião do autor, ao avanço e eventual preenchimento, por parte dos adeptos da Economia Política, do importante vazio teórico situado no núcleo da “ciência econômica” em crise de hegemonia.

3. A CRISE DA “CIÊNCIA ECONÔMICA”, SEU NÚCLEO TEÓRICO COMO UM ESPAÇo ABERTO À ECONOMIA POLlTICA

É impossível fugir ao lugar-comum de que a teoria econômica está em crise - e com ela a “ciência econômica”, se é que algum dia existiu algo digno deste nome. Uma característica marcante dessa crise é a ausência de convergência de opiniões quanto à sua natureza - o que é, provavelmente, parte da própria crise. Os economistas em geral, e talvez especialmente os teóricos, tinham uma opinião de si próprios e do que faziam muito orgulhosamente próxima do que os cientistas exatos e da natureza têm do seu trabalho científico. Tal opinião, evidentemente ilusória, estava ancorada na hegemonia quase absoluta, hoje posta em xeque mas não destruída, da teoria econômica neoclássica em suas diferentes versões.

A presunção de que se reproduzia, em trajetória contínua, um certo tipo, embora específico, de ciência da natureza - no caso, humana - foi duramente abalada por um século de surpresas e descontinuidades nas ciências físicas e, de outro lado, por crises econômicas e outras evidências incontornáveis de profunda inadequação do paradigma dominante. Esse processo culminou há cerca de duas décadas com a derrubada de dois mitos - o de que a teoria neoclássica, ao menos em suas vertentes mais difundidas à época, seria invulnerável em sua consistência interna, e a de que ela não possuiria alternativas aptas à legitimação pelo discurso científico. As correntes não-ortodoxas hoje mais representativas, a pós-keynesiana e a neo-ricardiana, assim como até certo ponto as neomarxistas, difundiram-se no rastro da retração neoclássica, que entretanto não tardou a reafirmar-se através de novo impulso dado às correntes neowalrasianas, por sua capacidade de dar respostas, senão mais convincentes e/ou relevantes, no mínimo mais consistentes.

Trata-se, assim, de uma crise de hegemonia. Daí a percepção difusa de que os discursos correm paralelos em lugar de convergirem, abalando a auto-imagem dos economistas como modestos acumuladores de novos dados e teorias locais e/ou respectivos aplicadores, subordinados a uma ciência unificada. Daí, também, a disputada corrida em direção ao trono vago, em que cada corrente busca não uma possível integração, mas uma nova hegemonia. Nesse contexto, a crise é, curiosamente, sempre a crise “dos outros”: neowalrasianos, neo-ricardianos e neo-schumpeterianos estão seguros, naturalmente, de que o keynesianismo está em crise - esquecendo-se quase sempre de questionar o que Keynes teria a ver com isso -, mas discordam em todo o restante. Neo-ricardianos, marxistas, neo-schumpeterianos e pós-keynesianos, por sua vez, sabem que a crise central é a do paradigma neoclássico, e estão de acordo em que seu objeto é o capitalismo, mas imediatamente passam a discutir sobre se faz sentido teorizar a “longo prazo” e sobre o significado das palavras “estrutural” e “equilíbrio”. Esta situação, embora pareça caótica para uma área de conhecimento com ambições científicas, é no entanto positiva, ao restaurar o sentido originalmente pluralista da economia como ciência histórico-social, que por natureza deve abrigar correntes e/ou paradigmas conflitantes, cuja permanente e saudável competição pela persuasão dos seus praticantes não tende a resolver-se periodicamente pela progressiva consensualidade dos mecanismos de validação e refutação aceitos pela comunidade científica. O secular período de trevas da dominação neoclássica é que permitiu e assegurou a usurpação do estatuto de cientificidade pelas normas e critérios - geralmente pobres e inadequados ao objeto - do corpo teórico majoritário na academia e na vida profissional.

Diante desse quadro de extrema complexidade e dispersão de esforços, qualquer comentário, por mais breve, sobre o. estado da arte na teoria econômica pressupõe uma estratégia bem definida Proponho que os elementos para reflexão a seguir sugeridos situem-se em torno de um eixo principal, que a meu ver condensa não só a crise da teoria econômica em seu conjunto, como as crises e/ou obstáculos de cada uma das correntes teóricas individuais em disputa. Esse eixo é o tempo econômico. A crise da teoria econômica é, hoje como antes - porém cada vez mais claramente -, a dificuldade de pensar o tempo. Neste problema como em outros, aliás, a Economia não tem maior originalidade, porém as analogias são perigosas e não devem ser forçadas. O erro fatal foi justamente o de ter copiado da Mecânica clássica a solução do problema, tomando emprestada a ideia de equilíbrio e o corte estático/dinâmico, entre outras, a partir de analogias superficiais que violam de forma irrecorrível - porque erigidas em método - a natureza específica de seu objeto.

O problema surge de formas tão variadas que seria dispersivo e inútil tentar reconstituí-las. Apenas para compor um roteiro de discussão, sem pretensão alguma à sistematicidade, proponho identificar e tratar sucintamente de três destas formas em que o problema “tempo” surge, obviamente articuladas entre si: a noção de tempo histórico, a relação entre longo e curto prazos e a noção de equilíbrio. Espero apenas que esta sequência permita um grau relativamente crescente de focalização do problema teórico, e estou consciente de que poderá provocar também um potencial crescente de polêmica.

Começo propositalmente pela questão do tempo histórico porque, sendo a mais difícil, não desperta expectativas mais imediatas de solução nem cria obstáculos que pareçam mais facilmente removíveis, com o que podemos tratá-la mais rapidamente.

A dificuldade central para a teoria econômica é a de encontrar um papel para o tempo histórico que não o torne a tal ponto dominante que anule a própria possibilidade da teoria. Cabe esclarecer, desde o início, que não me refiro à possível integração entre o conhecimento econômico e o histórico: a historiografia econômica tem proporcionado exemplos significativos de avanço no conhecimento de processos históricos mediante incorporação de categorias de análise econômica, muito embora grande parte destes estudos revelem grau além do razoável de ecletismo teórico ou de teorização implícita - quando não, simplesmente, de empirismo. Tampouco me refiro à ideia de tempo histórico utilizada livremente pelos economistas desde Joan Robinson, que o identifica ao tempo cronológico ou de calendário por oposição a um suposto tempo lógico, e que a meu ver mais confunde que esclarece a questão. Refiro-me, isto sim, à peculiaridade inerente à Economia como ciência histórico-social de que seu objeto é definido historicamente, em sua natureza, condições de existência, reprodução e leis de funcionamento, com o que o tempo teórico - caso seja possível de ser formulado, e espero que o seja - está inexoravelmente atado e subordinado ao processo histórico. Mais concretamente, isto significa que mesmo no contexto de um sistema econômico historicamente definido, como por exemplo o capitalismo, suas leis fundamentais e os teoremas possivelmente delas derivados terão validade condicionada a situações históricas determinadas e, em particular, as relações de determinação vigentes estarão sujeitas a parâmetros e condições estruturais não estáveis, mas sim variáveis, ainda que a ritmos distintos.

É claro que este problema não pode ser dado por resolvido abstratamente e implica reconhecer a existência de uma ameaça permanente à validade e relevância dos teoremas econômicos. Ignorá-lo tem levado a maior parte da teoria econômica mainstream a teorizações vazias por indeterminação das condições de existência do objeto teórico definido, enquanto, ao inverso, superestimá-lo pode conduzir ao extremo oposto de absoluto ceticismo quanto à factibilidade de qualquer teoria com um mínimo de generalidade, caracterizando as posições institucionalista e, no limite, puramente historicista. Um reconhecimento sensato do problema e, portanto, de fronteiras muito estreitas à possibilidade de teorização econômica é uma imposição irrecorrível da historicidade do seu objeto que os economistas parecem estar em sua maioria pouco dispostos a assumir seriamente.

O segundo aspecto típico que proponho levantar é o da relação entre curto e longo prazos. Sujeita a muitos mal-entendidos, creio conveniente lembrar as situações mais frequentes em que os economistas costumam basear o uso desta dicotomia.1 1 Apresentações detalhadas e competentes desta problemática encontram-se em Carvalho (1983/4) e (1984/5).

Afastada, como irrelevante, a conotação puramente cronológica do curto e do longo prazos econômicos, existem em princípio três interpretações básicas. A primeira e mais comum é a marshalliana, pela qual a longo prazo inclui como variáveis a capacidade produtiva e os estoques correspondentes, além das variáveis de curto prazo relativas ao nível de atividade - produção, emprego etc. A segunda, keynesiana, não exclui a anterior, mas a amplia ao enfatizar o tempo, curto ou longo, como um horizonte de cálculo dos agentes econômicos (em particular os empresários) relativamente à produção - ou, mais genericamente, à utilização dos estoques de capital - e à capacidade produtiva - ou ao nível e à diversidade dos estoques de capital. A terceira, que poderia ser chamada de schumpeteriana, distingue o contexto teórico por assim dizer de “longo prazo”, em que parâmetros estruturais - tecnológicos, competitivos e institucionais - podem tornar-se variáveis; daquele de “curto prazo”, no qual tais fatores permaneceriam essencialmente estáveis, na ausência de inovações de qualquer natureza.

As três definições possuem alguma implicação cronológica, mas caracterizam-se fundamentalmente por terem uma base analítica e conceitual específica, e legítima em cada caso. Assim, o “longo prazo” é menos um período de tempo - embora também seja, em certo sentido - do que um nível das decisões capitalistas, distinto por seu conteúdo das de “curto prazo”, ainda que sob certas condições - geralmente menos estáveis - o alcance temporal e a frequência de ambas possa não diferir muito. Entretanto, o “longo prazo” que chamei de “schumpeteriano” contém. adicionalmente ao conteúdo das decisões capitalistas, um elemento ausente dos outros dois e da grande maioria das formulações teóricas em economia, que é a mudança estrutural, em sua gênese e suas implicações sobre o sistema econômico, sobre a qual voltarei adiante.

Seja como for, é essencial para a validade da dicotomia curto x longo prazo que as variáveis econômicas objeto de análise em cada caso, tanto ao nível das decisões dos agentes como de seus efeitos globais, sejam suficientemente autônomas quanto à sua interdependência no tempo para justificar a separação. Caso contrário - o que infelizmente é muito frequente - a dicotomia estará apenas servindo para encobrir a crônica deficiência da teoria econômica em lidar com o tempo, ao deslocar para o “longo prazo” a solução desejada para os problemas de determinação, de ajustamento e de equilíbrio que a análise de curto prazo não consegue em geral oferecer. Isto se dá tanto em termos do período de ajustamento das variáveis e dos agentes ao equilíbrio sob determinadas condições de comportamento - o que é mais frequente em modelos neoclássicos -, quanto em termos do recorte analítico entre as próprias variáveis, separadas entre as que se ajustam (ou determinam) a curto prazo e as que supostamente só o fazem a longo prazo. Este caso ocorre não só em modelos neoclássicos, mas igualmente no esforço neo-ricardiano de conciliação com a teoria keynesiana, ao deslocar para. um “longo prazo” hipotético e problemático, porque desprovido das necessárias mediações, o ajustamento do sistema econômico em termos dos preços de produção e da distribuição de renda.

O ponto central que quero destacar neste aspecto é que a dicotomia curto x longo prazo é quase sempre usada de forma ambígua e por isso pode ser teoricamente enganosa, ao parecer remeter para um recorte abstrato, e não raro arbitrário, do tempo, a eventual solução de um problema que frequentemente nem chegou a ser formulado, dado o caráter em geral estático das análises de curto prazo. O tempo só terá sido introduzido nominal e ritualmente, sem um conteúdo teórico definido, e não se terá saído de fato de um referencial teórico estático atemporal. Portanto, ou já se tem uma análise temporal - e, por isso, não-estática - no próprio “curto prazo”, o que quer que isto signifique, ou o “longo prazo”, como quer que se o defina, não terá jamais conteúdo temporal relevante, sem ir além de referências adjetivas tais como “tendencial”, “estrutural” e “gravitacional”, entre outras metáforas.

Em suma, a introdução explícita do tempo em suas dimensões teóricas relevantes - ao menos como horizonte expectacional de cálculo capitalista e como elemento-chave na análise intra e Inter períodos entre decisões dos agentes - deve preceder logicamente qualquer recorte de “prazos” que se refiram a variáveis, distintas ou não, cujo ajustamento se pretenda estabelecer. O que nos leva ao terceiro e mais importante problema no tratamento do tempo: a noção de equilíbrio.

O uso de equilíbrio em Economia é tão generalizado que quase nos obrigamos a pedir desculpas por problematizá-lo.2 2 As intervenções teóricas no tema são igualmente tão numerosas e variadas que nos impedem aqui· uma revisão bibliográfica crítica mínima, que será objeto de um futuro ensaio específico. No entanto, estou convencido de que é o principal responsável pela resistência dos economistas em introduzir plenamente o tempo na análise econômica. Quero sublinhar precisamente isto: a impossibilidade de conciliar uma incorporação teoricamente relevante do tempo com a pressuposição metodológica do equilibrio, em qualquer de suas acepções habituais.

Convém, para prevenir objeções de princípio, pôr logo em questão alguns mitos aceitos com demasiada facilidade. Primeiro, o de que a noção de equilíbrio é indispensável a qualquer teoria econômica. Segundo, o de que se trata de mera aproximação às. tendências básicas do sistema e que, como tal, seu uso não implicaria distorções tão· graves, ao menos a longo prazo. Terceiro - e ao contrário-, que, de um ponto de vista keynesiano, uma analise que parte do equilíbrio estático a curto prazo pode ser uma primeira aproximação válida, já que só frente a expectativas de longo prazo, no contexto das decisões de investir, é que os desequilíbrios realmente importantes e a instabilidade da economia capitalista se apresentam.

Não é difícil perceber o equívoco da primeira ideia, embora muito frequente. O que uma teoria requer, com ou sem formalização matemática, é determinação, com sentido e causalidade definidos, da qual o equilíbrio é uma forma (ou conjunto de formas) muito particular. Foi provavelmente o uso indiscriminado desta noção que a tornou virtualmente insubstituível para os economistas e praticamente sinônimo de rigor teórico e de determinação de relações gerais, inclusive funcionais, e até mesmo as dinâmicas - embora a ideia de equilíbrio dinâmico em Economia seja, até prova em contrário, pouco menos que em absurdo lógico. Mesmo na Física clássica, que os economistas ortodoxos tanto admiram - o que dizer, então, da contemporânea? -, o equilíbrio é uma entre muitas outras situações possíveis; só que o equilíbrio estático é parte integrante efetiva do objeto da ciência, e não·mera construção auxiliar e aproximativa, geralmente do tipo as if, como em Economia. Como simples ilustração, consideremos, no caso de relações de determinação quantificáveis, os variados significados em Economia de uma relação de igualdade, que como se sabe pode expressar desde uma identidade contábil definicional, podendo ou não envolver causalidade predeterminada, até uma relação funcional, obviamente causal, passando por relações de determinação unilateral que também implicam identidade contábil - por exemplo, as equações de determinação da renda baseadas na demanda efetiva. Nenhuma dessas supõem necessariamente equilíbrio, o qual envolveria duas ou mais relações funcionais e comportamentais entre variáveis, com restrições adicionais quanto à forma das funções.

Vale observar, a propósito, que a ideia de equilíbrio, tendo sido formulada e difundida pela teoria neoclássica, carrega consigo conotações obrigatórias dela derivadas e que estou aqui pressupondo, das quais três pelo menos são essenciais: a de interação entre duas ou mais “forças” distintas (ou seja, em última análise critérios compulsórios de comportamento das partes ou agentes envolvidos); a de que o equilíbrio supõe satisfação de todos os agentes envolvidos, implícita nas funções de comportamento utilizadas; e a de ele seja estável, isto é, de que o sistema ou subsistema retorne a ele espontaneamente uma vez afastado. Esta última não é uma exigência estrita, mas cobre a esmagadora maioria dos casos relevantes, e por isso foi incluída aqui. Não se justifica, portanto, a suposição frequente e em geral implícita de que toda e qualquer construção teórica que envolva a determinação de trajetórias dinâmicas, ou um conjunto limitado de trajetórias possíveis, ou a simples obtenção de alguma “ordem” objetiva que impeça o caos, constitua equilíbrio - a menos, é claro, que atenda todas as condições mencionadas.

Consideremos em seguida a ideia de que o equilíbrio é mera aproximação, ceteris paribus, às tendências de “longo prazo” do sistema econômico, que entretanto poderia estar em desequilíbrio a “curto prazo”. Esta posição é grosso modo compartilhada por neoclássicos e neoricardianos, sob diferentes rótulos. Além de ter de cumprir as condições que acabei de mencionar - o que nem sempre se verifica - essa ideia genérica e difundida sobre o equilíbrio padece do mesmo problema básico mencionado anteriormente com respeito à dicotomia entre curto e longo prazo, isto é, o da indeterminação das condições teóricas que o tempo deve satisfazer para ser adequadamente introduzido nos dois “prazos” de forma distinta. Com o agravante, no caso, de pressupor que o “longo prazo” é um âmbito necessário e suficiente para o equilíbrio, sem que o “curto prazo” o seja e não é nem um pouco trivial demonstrar que uma sucessão de períodos passíveis individualmente de desequilíbrio convirja, sob hipóteses razoáveis, para algum estado final de equilíbrio - ainda que apenas “tendencial” -, assumindo com isso todo o irrealismo das cláusulas creteris raribus em períodos mais do que extremamente curtos. A questão, aqui como antes, é necessidade de demonstrar a hipótese adotada· a partir de alguma teoria que incorpora explicitamente o tempo; ao invés de pressupô-la, agravada pela suposição não-trivial de que algum equilíbrio estático seja a priori conciliável com uma teoria não-estática, porque temporal.

Finalmente, também é errônea, embora mais sutil, a impressão inversa, aparentemente keynesiana - e por isso mais palatável a quem se preocupa com o tempo - de que a suposição de equilíbrio a curto prazo é inócua, por ser o longo prazo, e com ele o investimento, o gerador de instabilidade no sistema. Como se sabe, a hipótese de que as expectativas de curto prazo são satisfeitas, e, portanto, o equilíbrio de curto prazo na determinação de produção e emprego pelas empresas, foi realmente assumida por Keynes no contexto da conceituação de demanda efetiva. Entretanto, a própria lógica da construção desse “equilíbrio” na Teoria Geral, além de passagens dela própria e de textos posteriores a ela, evidenciam que se trata de um procedimento simplificador expositivo, e não de uma suposição teórica essencial, já que não existe na visão de Keynes qualquer mecanismo ex-post de ajustamento ao equilíbrio, dentro do mesmo período ou fora dele. Provavelmente Keynes pretendia evitar complicações inerentes a uma análise de desequilíbrios de curto prazo, já que estes não produzem uma dinâmica nem tampouco uma instabilidade relevantes (ao contrário da frustração das expectativas de longo prazo), desviando-o de sua preocupação central no início da Teoria Geral - a de demonstrar que o desemprego, assim como a capacidade subutilizada, não é inerente apenas a situações de desequilíbrio. Convenhamos que assim era de fato mais fácil refutar para a academia a “lei de Say”.

No entanto, a teoria keynesiana pagou caro por essa simplificação expositiva, rapidamente erigida em norma de equilíbrio entre oferta e demanda agregadas, ou entre investimento e poupança etc. - quando se tratava apenas de um equilíbrio “nocional”, relevante apenas ex-ante para efeito do cálculo capitalista e da determinação da demanda efetiva, e não necessariamente alcançável. Contrariamente à aparente evidência, portanto, sustento que não há equilíbrio em Keynes, nem a “curto prazo”, ele é apenas uma possibilidade entre uma infinidade de outras, privilegiada apenas para efeito de apresentação de sua teoria à ortodoxia acadêmica. Se o empresário, por hipótese, tiver errado sua avaliação da demanda ao definir ex-ante o nível de produção e/ou dos preços terá perdido de vez a oportunidade do equilíbrio no período, continuará tentando nos próximos - já que ele corresponde a um critério de cálculo empresarial racional -, mas sem nenhuma garantia de êxito.

Mesmo deixando de lado as “verdadeiras” intenções dos autores, sempre difíceis de avaliar, o ponto central a destacar é que, a partir do tratamento dado ao tempo por Keynes na sua Teoria Geral, ficou demonstrada a impossibilidade lógica de pressupor qualquer tendência de ajustamento ao equilíbrio no interior de um período de decisões capitalistas - sejam estas relativas ao investimento ou mesmo à produção e ao emprego.3 3 Estou-me referindo ao uso apriorístico (metodológico) do equilíbrio numa teoria monetária da produção capitalista. É claro que o equilíbrio entre oferta e demanda pode ser válido para mercados de estoques, como os mercados monetários e de capitais - isto é, não alimentados por fluxos de produção. Assim, não importa quão “racionalmente” os empresários formulem suas expectativas - e, como é notório, para Keynes a incerteza a elas inerente influi significativamente sobre os critérios desta racionalidade -, a satisfação destas expectativas ao final do período, por menor que ele seja, jamais pode ser assegurada. Consideremos o período de produção, relativo às decisões de produção, emprego e preços: o empresário pode fixar ex-ante sua produção e seus preços, mas nunca pode fixar simultaneamente os preços e as quantidades vendidas, isto é, o valor de sua receita de vendas. Esta é a essência do princípio da demanda efetiva enquanto expressão do primado do gasto sobre a renda. Qualquer ajustamento, neste caso - de estoques ou preços -. é um ajustamento em face de desequilíbrio, e não em direção ao equilíbrio. Como já observou Hicks - embora tardiamente -, as expectativas não podem ser corrigidas pelos resultados ex-post do funcionamento do mercado que eles procuraram antecipar, não importando o tempo envolvido - uma semana, um dia, ou o que for; Tal situação só seria logicamente consistente com um período de tempo infinitesimal. No entanto, é óbvio que um intervalo de tempo positivo entre decisão/antecipação e resultados, precedendo decisões subsequentes, é pressuposto obrigatório de uma economia qualquer baseada na produção para o mercado.

Segue-se, portanto, que algum equilíbrio, caso faça sentido, só poderia vir a ser demonstrado como factível numa sucessão de períodos. Mas, nesse caso, a existência de incerteza nas expectativas e a impossibilidade de eliminá-la através de qualquer expediente (maior informação, por exemplo) as torna irremediavelmente sujeitas a mudanças bruscas e violentas, associadas a descontinuidades no estado de confiança, sempre precário, como mostrou Keynes. Logo, a demonstração da possibilidade lógica do equilíbrio, a qualquer prazo, está condicionada, de forma incontornável, a hipóteses muito específicas de formação de expectativas, que não apenas abstraiam a possibilidade de um deslocamento abrupto na função que as caracteriza, como também suponham um comportamento temporal, para ela e para as variáveis que dependem das decisões dos demais agentes (assim como os valores dos parâmetros estruturais e institucionais envolvidos), de tal modo a produzir uma trajetória convergente. Os exercícios neowalrasianos que envolvem expectativas - os modelos de “expectativas racionais” são um exemplo - se enquadram nesta categoria. Seu vício básico é o irrealismo nas premissas, o que equivale a dizer, a pressuposição do equilíbrio tendencial que deveriam demonstrar, ao menos, porém, não recaem no mesmo erro lógico de supor ajuste ao equilíbrio no próprio período de decisão.

De um ponto de vista keynesiano, além disso, e por extensão para toda teoria econômica baseada no tempo e centrada no futuro via expectativas incertas, é fundamental ter-se em conta que a possibilidade de desequilíbrios a curto prazo (no período de produção), além de logicamente irrecorrível, é indispensável também para propagar toda e qualquer eventual instabilidade no sistema econômico, mesmo se decorrente do investimento. Afinal, é no curto prazo que a produção e o emprego (o nível de atividade) se adequam, com maior ou menor rapidez, à avaliação que os empresários fazem acerca do futuro a mais longo prazo ao decidirem o quanto investir. A possibilidade do desequilíbrio neste nível implica a possibilidade de que as expectativas de curto prazo e a demanda efetiva se alterem na direção do movimento ditado pelas decisões de gasto na economia, mesmo se inicialmente imprevistas.

Em síntese, até este ponto podemos concluir que:

  1. o equilíbrio é impossível, numa teoria monetária da produção, como resultado de qualquer tipo de ajuste durante o período de decisão (produção ou investimento) das empresas, e, portanto, não é mais que uma possibilidade fortuita;

  2. o equilíbrio só é possível como resultado de ajuste numa sucessão de períodos sob hipóteses restritivas específicas a respeito da formação de expectativas, dos valores dos parâmetros do sistema e da interação macroeconômica entre decisões que leve necessariamente à convergência.

Entretanto, o problema com a segunda situação acima é não apenas o de restringir seriamente o âmbito da incerteza a situações de estabilidade - cujo espaço teórico, se existir, é muito limitado, e em todo caso não cabe discutir aqui -, mas o de omitir um aspecto crucial, ao evitar um enfoque direto e explicitamente dinâmico: o da mudança estrutural e, com ela, dos parâmetros, cujo comportamento temporal é suposto constante (nas cláusulas ceteris paribus), ou no máximo variável dentro de limites que não impeçam a estabilidade da trajetória. O que nos leva a um último ponto, antes de concluir: a teoria econômica tem que abandonar o equilíbrio, como um obstáculo epistemológico, assim como a estática, como um método inadequado à natureza do seu objeto, e partir inteiramente para a análise dinâmica. E, ao fazê-lo, não apenas investigar trajetórias dinâmicas sob hipóteses restritivas de constância de parâmetros, mas incluir como um objeto central a própria mudança estrutural e, com ela, a dos próprios parâmetros do sistema. É claro que estamos apontando nitidamente para um mundo familiar a Marx e Schumpeter.

Neste sentido, um dos esforços mais interessantes da teoria econômica não-ortodoxa - e, por extensão, da Economia Política - contemporânea provém exatamente do campo neo-schumpeteriano, que vem procurando desenvolver os fundamentos e o referencial teórico para uma microeconomia dinâmica, centrada nos processos, endógenos· às indústrias de inovação tecnológica e sua potencialidade de afetar o ambiente competitivo, o comportamento estratégico das empresas e, finalmente, a própria estrutura industrial e de mercado. Sem entrar em mais detalhes, basta notar que se o processo inovativo não for aleatório, mas sujeito a contornos razoavelmente definidos - como sugere a noção de trajetória tecnológica, crescentemente estudada -, ter-se-á disponível uma primeira indicação de que o tempo da mudança estrutural, ao menos no âmbito mais acessível à análise econômica, é passível de ser teorizado. O que não o for, obviamente, deve ser introduzido exogenamente, como os economistas costumavam vir fazendo erroneamente com toda a mudança tecnológica, atribuída aos desígnios divinos e dos engenheiros.

Para concluir, duas implicações desse enfoque para as questões colocadas anteriormente merecem referência especial. A primeira diz respeito à difícil conciliação deste referencial com o keynesiano, não raro recusado pelos adeptos de ambas· as correntes. É, porém, indispensável, já que Keynes é o teórico do tempo, mas não da dinâmica, e que as inovações tecnológicas não prescindem de expectativas.4 4 Ver a propósito Rosenberg (1982), cap. 5. As condições estão claramente postas, se observarmos, de um lado, que o próprio enfoque neo-schumpeteriano enfatiza a importância da presença de incerteza nas expectativas associadas às inovações e a não recorrência a qualquer noção de equilíbrio como método de análise; e, de outro lado, que a própria noção de “estrutura”, tão cara a schumpeterianos, marxistas e neo-ricardianos, só ganha sentido num mundo keynesiano se redefinida, paradoxalmente, através das expectativas a ela associadas. Contudo, não há qualquer surpresa: num mundo keynesiano, qualquer passado, por mais “estrutural”, só importa para as decisões presentes se afetar o futuro e, portanto, se estiver incluído no cálculo das expectativas de rendimento futuro a que todos os ativos, bens ou títulos, estão sujeitos para que tenham algum valor presente.

A segunda implicação diz respeito à peculiar ruptura deste enfoque com o referencial de equilíbrio, ao desenvolver análises de trajetórias possíveis através de modelos de “auto-organização” das estruturas de indústrias sujeitas a modificação pela introdução e difusão de inovações, que demonstram a possibilidade de alguma “ordem” - no sentido de ausência de caos, ou de alguma tendência desagregadora ou autodestrutiva das estruturas - sem qualquer referência ao equilíbrio. Não é sequer necessária alguma referência à noção, em geral enganosa, de equilíbrio “local”, em que esta retorna pela porta dos fundos. O aprofundamento desta linha de investigação permitirá eventualmente maior grau de integração com o referencial teórico keynesiano, com o qual se enriquecerá na direção de uma teoria das decisões sob incerteza que inclua expressamente - ao contrário da auto-restrição deliberada, mas atualmente desnecessária, de Keynes - a mudança tecnológica e a mudança estrutural lato sensu.

Talvez haja dupla ironia numa integração de Schumpeter com Keynes, ainda mais quando este último costuma ser considerado indevidamente como estático - apenas por não ter feito análise Inter períodos ou de trajetórias -, equilibrista e de “curto prazo”. Porém a maior ironia é que essa integração está sendo proposta, a partir de um enfoque dinâmico, sob a égide de Keynes e não de Schumpeter, porque só o primeiro possui uma teoria geral do cálculo capitalista acerca do futuro e, portanto, uma teoria geral do tempo no capitalismo, um regime econômico definitivamente “puxado” pelo futuro.

À medida que esse programa, assumidamente otimista, de integração ou síntese teórica puder avançar, serão progressivamente dissolvidas as duas dualidades curto prazo x longo prazo - substituída pelo corte, apenas analítico, mas com temporalidades suficientemente distintas para viabilizar o corte, entre a dinâmica do nível de atividade e a dinâmica da mudança estrutural, ambas teoricamente integradas na mesma teoria geral keynesiana do cálculo sob incerteza, mas com expectativas condicionadas pela trajetória; e microeconomia x macroeconomia - também substituída pelo corte, também apenas analítico, entre a teoria das decisões empresariais e a teoria dos seus efeitos globais (não necessariamente agregados), ambas também integradas. É claro que já se estará então em pleno terreno da dinâmica sem restrições, e o equilíbrio será apenas uma lembrança remota e desagradável de uma época em que se pensava fazer ciência importando paradigmas antiquados de outras ciências mais respeitáveis, e não se tinha a coragem de “sujar as mãos” com o tratamento do tempo, precondição de qualquer reflexão relevante sobre o mundo.

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  • 1
    Apresentações detalhadas e competentes desta problemática encontram-se em Carvalho (1983/4Carvalho, F. C. (1983/4). On the concept of time in Shacklian and Sraffian economics. Journal of Post Keynesian Economics (JPKE), VI(2), Winter.) e (1984/5Carvalho, F. C. (1984/5). Alternative analyses of short and long run in Post Keynesian economics. JPKE, VIl(2), Winter.).
  • 2
    As intervenções teóricas no tema são igualmente tão numerosas e variadas que nos impedem aqui· uma revisão bibliográfica crítica mínima, que será objeto de um futuro ensaio específico.
  • 3
    Estou-me referindo ao uso apriorístico (metodológico) do equilíbrio numa teoria monetária da produção capitalista. É claro que o equilíbrio entre oferta e demanda pode ser válido para mercados de estoques, como os mercados monetários e de capitais - isto é, não alimentados por fluxos de produção.
  • 4
    Ver a propósito Rosenberg (1982Rosenberg, N. (1982). Inside the Black Box: Essays on Technology and Economics. Cambridge University Press.), cap. 5.
  • 5
    Obs. - Siglas utilizadas para periódicos: P.P.E. - Pesquisa e Planejamento Econômico, INPES/IPEA R.E.P. - Revista de Economia Política; E.E. - Estudos Econômicos, IPE/USP; F.E.E. - Ensaios F.E.E. (Fundação de Economia e Estatística), SEPLAN/RS; E.N .E./ANPEC - Anais de Encontro Nacional de Economia, organizado pela ANPEC; L.E. - Literatura Econômica, INPES/IPEA
  • 6
    JEL Classification: B22; B24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1990
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