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Qual o valor do auto-interesse?

What is the value of self-interest?

Resumo

The article critically reviews past and current justifications for the theoretical use of the behavioral assumption of self-interest, explanatory, normative, representational and critical, focusing on the critical function. This latter emerges from an incursion into the modern history of ideas and may be shown still to fertilize a number of contemporary economic approaches.

Self-Interest; Adam Smith; Friedrich Hayek; Rational Choice; Institutions


Self-Interest; Adam Smith; Friedrich Hayek; Rational Choice; Institutions

ARTIGO

Qual o valor do auto-interesse?1 1 Paper apresentado no XXVI Encontro da Anpec, dezembro de 1999, Belém. Agradeço a Jaques Kerstenetzky e a Fábio Freitas, sem entretanto comprometê-los, pela leitura e comentários. Agradeço, ainda, aos pareceristas anônimos da REP.

What is the value of self-interest?

Celia Lessa Kerstenetzky

Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense - UFF, Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq. Email: celiakersten@terra.com.br

ABSTRACT

The article critically reviews past and current justifications for the theoretical use of the behavioral assumption of self-interest, explanatory, normative, representational and critical, focusing on the critical function. This latter emerges from an incursion into the modern history of ideas and may be shown still to fertilize a number of contemporary economic approaches.

Key-words: Self-Interest; Adam Smith; Friedrich Hayek; Rational Choice; Institutions.

JEL Classification: B12; B21; B41; B52

1. INTRODUÇÃO

A hipótese do comportamento individual auto-interessado tem desempenhado papel crucial na teoria econômica moderna, desde suas origens na Fisiocracia até as perspectivas mais recentes do mainstream da ciência. Não obstante essa permanência, é de se observar a variedade de justificativas, explícitas ou não, para a sua adoção; não há nada de auto-evidente a seu respeito.

De fato, é possível identificar um conjunto de funções que o interesse próprio tem cumprido em teorias econômicas, sociais e políticas. Neste trabalho, apresento uma classificação tentativa em termos de quatro funções: explanatória, normativa, representacional e crítica. Enquanto as três primeiras podem ser identificadas com facilidade em diferentes abordagens teóricas, e argumentos dentro e fora da ciência econômica (vide seção 2), a quarta função é menos evidente, tendo requerido um esforço especial de interpretação (seção 3).

Na verdade, recuperar essa quarta linha de defesa possível do auto-interesse é o propósito principal deste artigo. O valor teórico dessa recuperação, que é feita com recurso à história das idéias, pode ser apreciado por meio do uso desse suposto em teorias contemporâneas, em linha com a função crítica e em contraste com as demais funções (seção 4).

2. AS TRÊS FUNÇÕES DO INTERESSE PRÓPRIO: UMA DESCRIÇÃO PRELIMINAR

Em sua função explanatória, o suposto do auto-interesse é utilizado para explicar o comportamento humano, tanto individual quanto coletivo, na medida em que os fatos coletivos podem ser analisados em termos dos interesses próprios, motivadores, dos indivíduos. Nesse caso, a teoria deve empenhar-se em descobrir os conteúdos desses interesses, se ela pretende desenvolver predições sobre esse comportamento e sobre seus efeitos no agregado de ações individuais.

Smith afirma, por exemplo, que é possível entender as ações dos indivíduos e, ulteriormente, o agregado delas, em termos do interesse que eles possuem em "melhorar sua condição"; Jevons e Edgeworth consideram que as ações das pessoas são explicáveis por seu interesse em aumentar a satisfação ou a utilidade, o saldo prazer/dor por elas antecipado como efeito dessas ações. Jevons, em particular, observa que a economia é a mecânica do interesse individual e da utilidade2 2 Cf. Jevons, no prefácio à edição de 1879 de seu The Theory of Political Economy. Ver Jevons, 1983, p. 7. .

Nessa função, o suposto do interesse próprio é freqüentemente acusado de contaminar a explicação de forte reducionismo psicológico, como quando se afirma que outras motivações humanas são secundárias, uma vez que podem ser subsumidas à lógica do auto-interesse. É assim, por exemplo, com o altruísmo, que passaria a descrever um comportamento auto-interessado de segunda ordem, o desejo de agradar aos outros sendo subordinado ao prazer egoísta, de primeira ordem do indivíduo, de ver o seu desejo benevolente satisfeito3 3 Ver Becker, 1976. .

Os limites mais notáveis da função explanatória do auto-interesse são o risco de se produzirem afirmações de natureza estritamente tautológica, portanto incapazes de explicar, bem como o risco, talvez mais danoso, de se gerarem afirmações ininteligíveis.

Quanto a proposições tautológicas — que afirmam, por exemplo, que o interesse de um indivíduo é tudo o que a ele interessa —, revelam-se claramente insuficientes do ponto de vista explicativo. Depois que as ações foram realizadas, pode-se arriscar inferir as motivações, mas, partindo da motivação do interesse próprio definido de modo tão plástico, dificilmente deduzem-se as ações que se lhe seguiriam. Voltaremos a esse problema na seção 3, com a crítica do historiador inglês do século XIX Thomas Macaulay a James Mill.

Já o problema da inteligibilidade, diz respeito ao fato de que nossas proposições teóricas, por mais contra-intuitivas que sejam, ao se fazerem exprimir em uma linguagem, devem ainda fazer sentido. E é justamente o sentido o que parece oscilar quando se propõe uma equivalência entre o altruísmo e o auto-interesse.

A segunda função a que farei referência é a normativa. Segundo essa função, o interesse próprio operaria como a motivação que deveria guiar as demais motivações e impulsos dos indivíduos e, além disso, seria a única capaz de conduzi-los a uma coordenação espontânea e harmônica de suas ações. Indivíduos guiados por seus interesses não se enganam, diz Helvétius; indivíduos movidos por interesse próprio promoverão o interesse comum, afirmam, entre outros, Quesnay e Smith (com as devidas qualificações). As propriedades de equilíbrio e eficiência associadas a comportamentos auto-interessados, na moderna teoria do bem estar e da escolha social4 4 Quanto à economia do bem estar, ver Feldman (1987), Screpanti e Zamagni (1995). Quanto à escolha social, o teorema da possibilidade de Arrow (1963 [1951]), demonstra, na verdade, a impossibilidade de geração satisfatória de preferências sociais a partir de preferências individuais consistentes. Mas, a teoria da escolha social pós-Arrow segue tentando demonstrar esta possibilidade através do relaxamento das condições de Arrow. — ou de equilíbrio, eficiência e justiça nas teorias econômicas contemporâneas sobre a ordem política —, testemunham a ativação da função normativa5 5 Ver Gauthier (1986), Taylor (1976, 1987), Tsebelis (1990), Lessa (1993). .

O ponto vulnerável, aqui, parece ser a questão de quais os verdadeiros interesses, as motivações que se revelarão candidatas dignas ao posto de interesse próprio. Além disso, permanece igualmente não resolvido, o problema das propriedades do interesse próprio em virtude das quais ele promoveria espontaneamente a harmonia coletiva. Voltaremos a esses problemas na seção 3.

Em sua terceira função, o suposto do auto-interesse desempenharia um papel meramente representacional, qual seja, o de permitir a produção de uma teoria coerente que possa representar um comportamento "idealizado" dos indivíduos, controlado por axiomas, e passível de extrapolações, na forma de predições e explicações qualificadas. Nessa versão mais sofisticada, imputa-se ao auto-interesse tão somente a função de circunscrever o conjunto de motivações que se comportam segundo axiomas de consistência da teoria. As teorias sobre a tomada de decisão individual, baseadas nas preferências ou, simplesmente, na escolha (como a teoria das preferências reveladas de Samuelson), seriam os exemplos mais notáveis6 6 Ver Mas-Colell et al. (1995). . Nessa chave de leitura, o auto-interesse não é revelador de "o que é", ou "o que deve ser", a motivação dos indivíduos, mas é equivalente a preferências ou escolhas racionais e, nesse sentido, representável teoricamente.

Nossa atenção deve voltar-se, nesse caso, para o conjunto de justificativas que podem ser invocadas em apoio dos axiomas (bem como as objeções que estas têm encontrado), e para as visões de sistema econômico envolvidas. Refiro-me, entre outros problemas conhecidos, à postulação de preferências completas e transitivas, e também a visões extremamente racionalistas do funcionamento do sistema econômico como a que o resume através da imagem do indivíduo representativo7 7 Ver Broome (1991) e Hampton (1994) para uma discussão dos axiomas. A propósito de visões alternativas como a estratégico-evolucionária, refira-se a Kirman (1992 e 1995), e Arrow (1988) para visões de complexidade. . Acrescento à lista, o problema de inteligibilidade, que uma manobra reducionista, como a do uso representacional do suposto do auto-interesse, se arrisca a enfrentar. Esses problemas serão abordados na seção 4.

Sem detalhar a classificação tentativa das funções teóricas do interesse próprio, e que, reitero, não é o propósito principal deste artigo, passo, agora, a desenvolver uma linha de defesa para o uso desse suposto comportamental. Esta introduz uma quarta função, a função crítica, que, entre outros benefícios teóricos, ajudará a iluminar as dificuldades — tanto para o uso positivo (como na função explanatória), quanto para o uso normativo — do suposto de interesse próprio. Contraste preliminar entre as funções representacional e crítica é proposto na seção 4.

3. A FUNÇÃO CRÍTICA DO AUTO-INTERESSE

3.1. A relação de limitação recíproca entre auto-interesse e interesse público

A noção de interesse próprio teve importância crucial nas origens do pensamento social moderno ao infundir, indiretamente ao menos, um sentido potencialmente democrático, igualitarista8 8 Sobre o papel do interesse econômico na constituição da sociedade moderna, igualitária por contraste com o modelo de sociedade tradicional hierárquica, refira-se à obra já clássica de Louis Dumont (1977). Para uma crítica à ideologia econômica e à "naturalização" do interesse econômico, a referência obrigatória é Karl Polanyi (1980). e universalizante no entendimento do que era, ou deveria ser, o interesse público. Essa virtude crítica do interesse próprio foi, talvez, a principal responsável por sua reabilitação pelos modernos, uma vez superadas as conhecidas suspeitas que os antigos nutriam, especialmente em relação à resistência oferecida pelo comportamento interessado à subordinação a práticas e normas sociais tradicionais.

Ora, o que fez os modernos superarem os receios antigos quanto ao potencial socialmente disruptivo do auto-interesse? Consulta à abundante literatura anglo-saxônica sobre a época9 9 Especialmente, Hobbes (1968), Hume (1985, 1994), Locke (1988), bem como os intérpretes já clássicos Gough (1957), Gunn (1969), Hirschman (1977, 1986), Holmes (1990), Mansbridge (1990). nos revela que as discussões e problemas que precederam imediatamente a revisão de atitudes em favor do interesse próprio assinalavam outro inimigo muito mais poderoso a ameaçar a estabilidade da ordem política e social: o facciosismo ou interesse de grupos exclusivos. Este começa a ser descoberto no interior das próprias acepções tradicionalmente aceitas de interesse público.

O interesse público era, pelo menos até meados do século XVII na Europa, identificado com a peculiar interpretação deste pelo rei e, através da tese da origem divina dos reis, com os desígnios de Deus (cf. Gunn, 1969). Ocorre que tal identificação entra em colapso e é fortemente questionada no debate político inglês a partir de meados do século, quando passa a circular a suspeita de que tal compreensão do interesse público (como reputado pelo rei e como desígnio divino traduzido e implementado pelo rei) teria sido a responsável pela crescente instabilidade política.

É nesse contexto que a noção de interesse próprio é reabilitada. Parece importante trazer à tona as circunstâncias dessa reabilitação. A primeira tese a ser defendida aqui é que o auto-interesse, como motivação, é recuperado, no referido debate público, tendo em vista seu potencial limitador dos conteúdos possíveis do interesse público, uma vez que certos conteúdos pareciam conduzir definitivamente à instabilidade política e às guerras civis, como as experimentadas pela Europa de então. Portanto, o interesse próprio é reabilitado por conta de sua função crítica.

De fato, o debate inglês, que tem o Parlamento como palco central, é revelador a esse respeito. Tratava-se da disputa, travada entre o Parlamento e o rei, em torno de quem seria o representante legítimo do interesse público. Os argumentos pró-Parlamento, de um modo geral, acentuavam o fato de que este teria a capacidade de opor os interesses dos muitos súditos (fonte última do interesse público) à visão peculiar de interesse público como o interesse dos privilegiados. A multiplicidade de interesses dos súditos imunizaria o interesse público contra a eventualidade de ser monopolizado por uma visão privilegiada. Além disso, esses interesses estariam irmanados pela condição comum de sujeição ao rei, adquirindo portanto uma importante função crítica com relação às motivações e ações deste, função que seria absorvida e ativada pelo Parlamento.

Na verdade, esses muitos interesses dos súditos receberam interpretações plurais segundo os princípios políticos sustentados por seus diferentes defensores. Unia-os, contudo, o propósito de questionar a identidade entre o interesse público e o "interesse" do rei. Mas a multiplicidade de interpretações do interesse próprio dos súditos, que deveria ser o substrato do interesse público, é reveladora de uma outra conexão, que faz o interesse público participar das acepções aceitáveis de interesse próprio. E, de novo, recorrer à origem do problema é esclarecedor.

Durante o debate público a que fizemos referência, nos diz o historiador britânico J. A.W.Gunn (1969), o interesse público, tal como interpretado pelo rei, era contraposto a diferentes entendimentos que se propunham a levar em conta os "interesses múltiplos dos muitos súditos". Desse modo, alguns contendores sustentavam que o interesse público não era idêntico à versão que o rei tinha dele, mas sim aos interesses comuns dos ricos, ou seus interesses de propriedade, uma vez que, como proprietários, pensava-se que estariam mais comprometidos com os negócios da nação.

Ao longo do debate, a identificação entre interesse público e garantia de direitos de propriedade vai ganhando forma mais ampliada, abrangendo direitos privados, os quais, por sua vez, eram defendidos como, no mínimo, compatíveis com a paz e a ordem pública. Mais radicalmente, a demanda por direitos privados foi interpretada, pelos proto-democratas da época, como John Warr, como reivindicação pela dilatação dos domínios da liberdade individual, onde deveria ser dada ao "povo" a oportunidade de expressar seus interesses segundo o seu próprio entendimento destes, e não através da versão oficial, pasteurizada e excludente, desses interesses em termos de direitos de propriedade.

Mais do que sua qualidade democrática, que é no século XVII ainda bastante incipiente, a expressão talvez mais importante desse movimento de idéias encontra-se no fato de estarem os argumentos políticos da época se deslocando de suas bases tradicionais, em termos de precedente histórico e religioso, em direção à busca de fundamentos na doutrina dos direitos naturais. Já os primeiros parlamentares fundavam seus argumentos em favor da intromissão de um elemento de privacidade na compreensão do interesse público, nas leis da necessidade e da natureza e, especialmente, conforme assinala Gunn, na lei da preservação da própria vida.

Aparentemente, então, encontraríamos na idéia de auto-preservação um sentido que estabilizaria o significado de interesse próprio, definindo ao mesmo tempo contornos mais aceitáveis para a noção de interesse público. Desafortunadamente, tal não é o caso. O respeito à auto-preservação não oferecia a segurança requerida. Na verdade, como observa Gunn, a preocupação com a auto-preservação apenas desloca o debate um passo à frente, pois o próprio significado dela estava longe de ser claro. Em certo sentido, as pessoas tinham lutado precisamente em nome da — e por diferentes sentidos de — preservação da vida. Alguns afirmariam que o direito à auto-preservação é idêntico aos direitos de propriedade, outros, como os proto-democratas da época, discordavam enfaticamente, certamente pensando nos destituídos. De fato, enquanto alguns insistiam que "taking away a man's property was the effective equivalent of taking away his life" (cf. Gunn, 1969:20), outros retorquiam que o interesse público, interpretado como direito de propriedade, não passava de uma medida da opressão oficial.

De todo modo, pode-se observar que, durante o debate acima descrito, uma confusa correspondência entre interesses público e privados é esboçada, cuja motivação vem a ser a clara negação de que um ponto de vista partisan, vocalizado quer pelo rei, quer por doutrinas religiosas, viesse a monopolizar o conteúdo do interesse público. A melhor arma que os primeiros modernos encontraram para combater a visão hierárquica de espaço público tradicional foi reabilitar o interesse próprio de seu exílio pré-moderno, iluminando seu potencial universalista e democratizante (todos possuem interesses particulares), e igualitário (não há, em princípio, motivo para que um interesse particular prevaleça sobre outros). Entretanto, esse potencial benigno do auto-interesse só pode se realizar uma vez que se tenham resolvido, por sua vez, as conotações aceitáveis da idéia de auto-preservação, com a qual vem associado, como um conjunto variado de direitos individuais. E aqui o círculo se fecha com a constatação de que estes dependem de restrições a serem impostas a partir de um entendimento comum sobre o que é o interesse público!

Como resolver o problema? A solução liberal clássica é a de postular o problema como determinação recíproca. Assim é que a construção da ordem política, em várias doutrinas do contrato social10 10 A passagem do domínio do precedente histórico ou da autoridade religiosa para o da doutrina dos direitos naturais pode ser facilmente acompanhada na literatura que examina as diferentes formas tomadas pelas doutrinas do contrato social, como Gough (1957). Em particular, Mansbridge (1990) chama a atenção para o fato de que as doutrinas do contrato social antes de Hobbes costumavam descrever o chamado estado de natureza como um estado de guerra de alguns contra alguns outros, de guerra entre facções, e não como um estado de conflito generalizado, aberto ou não, de todos contra todos, como o faz Hobbes. , por exemplo, baseia-se no auto-interesse dos indivíduos, ao mesmo tempo em que restringe o espectro de significados aceitáveis de auto-interesse àqueles compatíveis com a paz civil.

Na realidade, a construção da ordem política, assim concebida, faz apelo a uma certa porção das motivações humanas que seriam compatíveis com a paz civil. O interesse próprio exerceria, dessa forma, um papel restritivo no conjunto possível de ações e motivações que se conciliariam com o interesse público, através da importante indicação fornecida pelas leis civis (e não apenas pelas leis da natureza), as quais colocam limites importantes à ação humana.

Aqui, seria importante recordar a percepção de Hobbes (1968) de que a auto-preservação, tal como ditada pelas leis da natureza, poderia conduzir tanto à paz quanto à guerra de todos contra todos. Na ausência de leis civis, dada a incerteza generalizada, as fronteiras internas da auto-preservação perdem nitidez. Nessa circunstância, o auto-interesse poderia se revestir de um componente estratégico potencialmente perigoso que poderia, por sua vez, indicar a aniquilação preventiva do outro como o curso de ação mais eficaz para se atender às obrigações naturais de uma pessoa para consigo mesma. Trata-se, pois, de criar, de algum modo, as circunstâncias nas quais as exigências da auto-preservação sejam compatíveis com a paz, isto é, com um entendimento comum do que a auto-preservação requer.

Na medida em que a mensagem da (lei da) natureza não é diretamente compreensível, necessitamos de uma sua tradução em termos de leis civis. Estas, por sua vez, conteriam o significado do auto-interesse através de obrigações claras, complementando dessa forma a lacuna de informação no que diz respeito aos nossos interesses reais.

Se é assim, podemos enunciar a segunda tese: a definição do interesse público, tendo sido criticada e revista a partir do viés do interesse próprio dos "muitos", entra, por sua vez, na definição de auto-interesse, na medida em que eleva barreiras que contêm a extensão deste. Dito de outra forma, esta visão "constrói" o auto-interesse como aquela porção das motivações humanas que é compatível com a paz civil.

3.2. O contraste com as funções explanatória e normativa do auto-interesse

Quais as propriedades do interesse próprio que o qualificam como sustentáculo do interesse público?

Como vimos, a noção de auto-interesse parece ter emergido de um inquérito crítico quanto ao significado de interesse público, e permaneceu de tal modo misturada à definição de interesse público, que acabou por criar o mal entendido, persistente até os nossos dias, de que o auto-interesse seria portador de qualidades otimizadoras, políticas e morais, manobra que, vale recordar, não seria autorizada por Adam Smith (e muito menos por David Hume e Thomas Hobbes). Na verdade, encontraremos no berço de nossas origens modernas, a fonte da polêmica sobre as possíveis funções explanatórias e normativas do interesse próprio.

Assim, em numerosos argumentos políticos nos séculos XVII e XVIII (cf. Hirschman, 1977), o interesse é elaborado como motivação alternativa à razão ineficaz e às paixões não confiáveis, e, nessa qualidade, exaltado como possível fundamento para a ordem.

Misto de paixão e razão, que calcula os meios de a satisfazer, o interesse prometeria infundir previsibilidade e constância no intercurso social, não sendo, em princípio, incompatível com a vida social, ao contrário do facciosismo. Hume (1994) nos ensina que as facções se formam por meio de uma identificação emocional com um grupo exclusivo e excludente, baseado em opiniões compartilhadas, e que sua afirmação freqüentemente demanda não apenas a aniquilação do(s) outro(s), mas também de nossa própria individualidade. Isso ocorreria porque tal identificação turvaria a percepção de nossa vantagem real, ou prejudicaria a escolha da ação efetiva para alcançá-la, se chegássemos a compreendê-la com clareza.

Ainda que as paixões que animam nossos interesses possam variar bastante, o elemento de cálculo racional torna-os permeáveis aos argumentos políticos, às convenções, aos sistemas de incentivos vigentes, vinculando as vantagens próprias às vantagens alheias através da ordem política, social e econômica.

Desse modo, os benefícios normativos — em sentido fraco — do interesse próprio seriam a expectativa de maior previsibilidade e constância nas ações humanas por ele motivadas, em virtude de sua permeabilidade aos limites impostos pela convivência pacífica com os outros. Sem mencionar, evidentemente, as virtudes igualitárias e democratizantes, ligadas ao reconhecimento de que todos possuem interesses (e não apenas os governantes ou certos grupos privilegiados) e, por isso mesmo, compreendem o bem comum, pelo menos em parte, como a condição de possibilidade de realização desses interesses.

Observe-se, entretanto, que tais conclusões não subscrevem à tese de uma identidade entre o interesse público, ou o bem comum, e o interesse próprio dos indivíduos. Em conjunto com as considerações que vimos desenvolvendo, o interesse público e o interesse próprio, sem se confundir um com o outro, impuseram-se limitações recíprocas.

Entretanto, no mesmo século XVIII de Hume, outra corrente de pensamento elaborou a noção da identidade de interesses privados e públicos. Com os utilitaristas, o interesse foi suposto cobrir qualquer área de aspiração e ação humana, cancelando a diferença entre interesse e paixão, o que tornava qualquer explicação das ações humanas com base nele — antes que uma explicação genuína, ou mesmo a possibilidade de predição dessas ações a partir de nossa percepção de quais são esses interesses — uma mera tautologia ou um truísmo, como denunciado por Thomas Macaulay e indicado por Hirschman (1986).

Diz Macaulay, em sua famosa crítica ao Essay on Government, do utilitarista James Mill:

What proposition is there respecting human nature which is absolutely and universally true? We know of only one: and that is not only true but identical; that men always act from self-interest. This truism the Utilitarians proclaim with as much pride as if it were new, and as much zeal as if it were important. But in fact, when explained, it means only that men, if they can, will do as they choose. When we see the actions of a man, we know with certainty what he thinks his interest to be. But it is impossible to reason with certainty from what we take to be his interests to his actions: one man goes without dinner, that he may add a shilling to a hundred thousand pounds: another runs in debt to give balls and masquerades. One man cuts his father's throat to get possession of his old clothes; another hazards his own life to save that of an enemy. One man volunteers on a forlorn hope: another is drummed out of a regiment for cowardice. Each of these men has, no doubt, acted from self-interest. But we gain nothing by knowing this ( ). In fact, this principle is just as recondite, and just as important, as the great truth, that whatever is, is. ( ) it is ( ) idle to attribute any importance to a proposition, which, when interpreted, means only that a man had rather do what he had rather do. (Macaulay, 1978:124-125)

Além disso, Jeremy Bentham, John Stuart Mill e outros utilitaristas propõem uma concepção agregativa de interesse público — mera adição dos interesses privados dos indivíduos — segundo a qual, portanto, a diferença entre o privado e o público seria de grau e não de gênero. Nessa concepção, o propósito da ordem social seria permitir a maximização da felicidade geral, concebida agregativamente, como na doutrina da identidade de interesses.

À parte essa visão quantitativa do interesse público, como somatório dos interesses privados, podemos identificar, no século XVIII, três outros padrões de compatibilização entre os interesses particulares e o interesse público. São eles: a doutrina de que os interesses privados são, apesar de conflitantes, compatíveis com o interesse comum; a doutrina de que o são precisamente porque são conflitantes; e a versão fraca dessa última doutrina.

Segundo a primeira doutrina dos "interesses compatíveis apesar de conflitantes", os interesses particulares dos indivíduos podem ser conciliados se mediados por um sistema de instituições políticas, sociais e econômicas, cuja função primária é reduzir a incidência de incerteza na interação social, viabilizando os cálculos privados e selecionando as motivações. Hume, por exemplo, conecta o auto-interesse com o interesse público, por meio das convenções.

É do interesse de cada um atender aos interesses de outros, argumenta Hume. Contudo, ele não parece estar aqui afirmando o mesmo que Adam Smith afirmaria mais tarde, referindo-se à interdependência geral dos interesses numa sociedade extensa, por intermédio do exemplo, freqüentemente citado, dos efeitos benéficos, ainda que não benevolentes em intento, dos interesses do açougueiro, do padeiro e do cervejeiro. Hume está, aqui, lidando com a seguinte conjectura de um indivíduo qualquer: "to leave another in the possession of his good, provided he will act in the same manner with regard to me". Trata-se, na verdade, (de uma versão) do princípio da reciprocidade. A expectativa de uma ação da parte dos outros condiciona a ação do indivíduo, e as convenções podem tornar o cumprimento dessa expectativa quase uma certeza:

When this common sense of interest is mutually expressed, and is known to both, it produces a suitable resolution and behavior. And this may properly enough be called a convention or agreement betwixt us, though without the interposition of a promise; since the actions of each of us have a reference to those of the other, and are performed upon the supposition, that something is to be performed on the other part. Two men, who pull the oars of a boat, do it by an agreement or convention, though they have never given promises to each other. (Hume, 1985:490)

Espera-se, pois, de convenções não contratadas, um aumento no grau de previsibilidade na interação social. A coordenação resultante não é necessariamente harmônica11 11 A origem arbitrária das convenções pode ocasionalmente ser um elemento gerador de instabilidade e entropia em interações sociais. Este problema é discutido extensamente pelo filósofo David Lewis (1969). . Tudo o que se pode afirmar é que há espaço para um entendimento comum, uma vez que a lógica do auto-interesse se faça complementar por convenções adequadas à vida comum. De resto, o limitado alcance, tanto explicativo quanto normativo, do interesse próprio é esclarecido por Hume, ao advertir que interesses, paixões e normas conspiram para dominar a ação humana. O interesse seria dominado pela opinião, e esse fato deveria ser suficiente para impedir que fôssemos enfeitiçados por sua aparente clareza.

Argumentos do tipo "interesses-compatíveis-apesar-de-conflitantes" chamam a atenção, portanto, para a possibilidade de conciliação dos muitos interesses conflitantes, cuja concretização dependeria, em última instância, da existência de formas sociais intermediárias, como as convenções. Estas reforçam a confiança generalizada de que cada um agirá segundo seus interesses (ao invés de fustigados por motivações nocivas), ao tornar possível algum cálculo racional das conseqüências.

A segunda doutrina de compatibilidade propõe que os interesses privados são compatíveis com o bem comum precisamente porque são conflitantes. Trata-se, aqui, da famosa visão comercial de ordem, onde o "conflito" entre os vários interesses particulares, reduzidos a interesses econômicos, se acomoda na divisão do trabalho e na noção de complementaridade. São ilustrações conhecidas as teses do século XVIII do doux commerce, ironizadas no século seguinte por Marx.

Helvétius identificou o auto-interesse com a verdadeira virtude e com atos da mais esclarecida caridade. As virtudes genuínas, que esperava ver emergir da interação entre indivíduos auto-interessados, estavam provavelmente fundadas em sua visão comercial de ordem, como trocas regidas pelo princípio da complementaridade, bem como na noção subjacente de conflito, como mera e saudável diversidade. Sua conhecida analogia entre as leis físicas e as leis morais (graças ao interesse) vinha acrescida da expectativa de que efeitos verdadeiramente morais seguir-se-iam à operação da lógica do auto-interesse.

Montesquieu e James Steuart também produziram justificativas otimistas para o interesse próprio, enfatizando seus notáveis efeitos políticos. Eles afirmavam a crença de que a ordem, baseada no interesse próprio de indivíduos, estaria destinada a produzir resultados políticos adequados, desde que nela prevalecesse o espírito comercial, os interesses econômicos se contrapondo às paixões políticas:

it is fortunate for men to be in a situation in which, though their passions may prompt them to be wicked, they have nevertheless an interest in not being so. (Montesquieu, Esprit des Lois, citado em Hirschman, 1977:71)

James Steuart enfatiza a complexidade e a delicadeza da tessitura da comunidade econômica moderna, bem como os notáveis efeitos políticos que se lhes seguem:

The power of a modern prince, let it be, by the constitution of his kingdom, ever so absolute, immediately becomes limited so soon as he establishes the plan of œconomy which we are endeavoring to explain. If his authority formerly resembled the solidity and force of the wedge (which may indifferently be made use of, for splitting of timber, stones and other hard bodies, and which may be thrown aside and taken up again at pleasure), it will at length come to resemble the delicacy of the watch, which is good for no other purpose than to mark the progression of time, and which is immediately destroyed, if put to any other use, or touched with any but the gentlest hand. A modern œconomy, therefore, is the most effectual bridle ever was invented against the folly despotism ... (James Steuart, An Inquiry into the Principles of Political Oeconomy, citado em Hirschman, 1977:85)

É de Adam Smith, no Wealth of Nations (WN), contudo, a doutrina que nos interessa mais de perto examinar12 12 A centralidade (ainda que não exclusividade) do interesse próprio no WN é certamente muito maior que em outros escritos smithianos em filosofia moral, notadamente o Theory of Moral Sentiments. A indústria smithiana sobretudo pós 1976 é já próspera e plenamente difundida. Recomendo, não obstante, os volumes de Donald Winch (1996) e Emma Rothschild (2003) para uma interpretação das sutilezas envolvendo interesses (econômicos) e sentimentos (morais), os "sentimentos econômicos" nos termos de Rothschild. , o terceiro argumento fraco dos interesses compatíveis porque conflitantes.

Segundo Smith, os interesses privados dos indivíduos em "melhorar sua condição", em uma sociedade extensa, são os principais responsáveis pela promoção da ordem econômica, uma vez acomodados pela divisão do trabalho, e mobilizados pelo sistema de preços.

Cabe destacar dois aspectos. Em primeiro lugar, a utilização que Smith dá à noção de auto-interesse não subscreve plenamente à função explanatória em virtude de seu notório ceticismo filosófico, como será explicado a seguir. Em segundo lugar, a função normativa do auto-interesse é limitada na compreensão de Smith, uma vez que ele nos revela tanto os efeitos de composição que são deslanchados pela ação auto-interessada, quanto os efeitos, por assim dizer, de "decomposição", que podem estar associados à visão completa de uma fusão ou identidade natural de interesses entre o interesse próprio e o interesse comum, e cuja correção seria função do Estado. Aqui, permito-me, portanto, discordar da interpretação clássica de Élie Halevyi (1972), a quem, por razões de espaço, simplesmente remeto.

De fato, examinando o WN, observamos que Smith estava longe de perceber o auto-interesse como uma panacéia para os males sociais, e mesmo de afirmar que o auto-interesse fosse capaz de iluminar as motivações por trás das ações dos indivíduos.

Em primeiro lugar, convém recordar o ceticismo smithiano em sua defesa qualificada do auto-interesse. Smith não reduz as motivações humanas ao auto-interesse (não há como conhecê-las confiavelmente), e reconhece, explicitamente, a função putativa deste, produzindo um argumento em torno dos benefícios contingentes da ação auto-interessada numa sociedade extensa. Em função da extensão das cadeias de interdependência, não há como julgar o caráter das pessoas com quem transacionamos, não há como investir de modo viável em relações especiais com elas, e, portanto, não há como contar com sua benevolência. Em conseqüência, como sugere Holmes (1990), é máxima prudencial o não contarmos com a benevolência dos diferentes indivíduos com os quais nos engajamos em transações econômicas. Por isso, levamos em conta o seu interesse:

Numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a amizade de algumas pessoas. ( ) O homem ( ) tem necessidade constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. (Smith, 1983:49-50)

O interesse próprio, que é capaz de promover efeitos de composição desejáveis, é elaborado, no WN, como o desejo por melhorar de condição que todo homem possuiria, numa manobra que restringe a diversidade motivacional humana àquela porção que Smith julga compatível com a ordem econômica. E mesmo essa compatibilidade está sujeita a perturbações como quando interesses "injustos" querem prevalecer. O desejo de monopólio, que mesmo os protagonistas da ordem smithiana parecem abrigar em seu peito, precisa ser contido, uma vez que se trata de um interesse que quer se realizar pela eliminação de outros interesses.

Adam Smith, liberal clássico, é antes de tudo avesso à coerção, à imposição de interesses seccionais sobre os interesses dos demais, à interpretação do interesse público como interesse de grupos privilegiados. Seu elogio ao auto-interesse alinha-se ao de Hume e dos proto-democratas do século XVII, na crítica à insistência do Estado pré-moderno em dar livre expressão aos interesses de grupos. Adam Smith, que como Hume, "had never known much good done by those who affected to trade for the public good"(apud Hischman, 1986:40), está defendendo a qualidade potencialmente democrática e universalizante do interesse próprio, na medida em que todos têm interesses e que o interesse público deve em alguma medida ser sensível a esse fato.

De novo, o elogio a essas virtudes potenciais do interesse próprio, ao que chamei de sua função crítica ou negativa, não equivale, mesmo em Smith, a subscrever à atitude extrema de reconhecer nele virtudes positivas, em termos, por exemplo, de sua alegada habilidade de promover harmonia social ou sua capacidade de fornecer uma explicação realista sobre o comportamento e as ações humanas. Entre as várias motivações e o auto-interesse interpõe-se o cálculo (em conexão com as instituições lato sensu vigentes); entre o auto-interesse e a ordem devem mediar as instituições humanas, instituições políticas, jurídicas e econômicas, um Estado, provavelmente invisível do ponto de vista econômico stricto sensu, sem funções alocativas, mas ativo em outros sentidos.

Vale mencionar que a crítica de Smith ao Estado mercantilista tem como alvo precisamente os interesses injustos mencionados, os quais Smith temia monopolizassem as funções públicas de Estado. O temor era de que o Estado ativasse o comportamento rent-seeking dos próprios capitalistas.

Os aristocratas rurais e arrendatários, dispersos em regiões diferentes do país, não têm a mesma facilidade de se associar que os comerciantes e que os fabricantes, que, por viver concentrados nas cidades e por estarem habituados a esse espírito de corporação que predomina entre eles, naturalmente se empenham em conseguir em oposição a seus concidadãos o mesmo privilégio exclusivo que geralmente possuem em oposição aos habitantes de suas respectivas cidades. Por isso, parecem ter sido eles os primeiros inventores dessas restrições à importação de mercadorias estrangeiras, que lhes asseguram o monopólio do mercado interno. ...Se os oficiais do Exército se opusessem com o mesmo ardor e unanimidade a qualquer redução do contingente de tropas com o qual os donos de manufaturas tomam posição contra qualquer lei suscetível de aumentar o número de seus concorrentes no mercado interno , tentar reduzir o Exército seria tão perigoso como se tornou perigoso atualmente tentar reduzir, sob qualquer aspecto, o monopólio que nossos manufatores conseguiram conquistar em oposição a nós. Esse monopólio fez aumentar tanto o número de alguns grupos específicos desses manufatores que, à maneira de um grande exército permanente, tornaram-se temíveis ao governo e, em muitas ocasiões, intimidam os legisladores. (ibidem, 384 e 391, grifos nossos)

Se a coordenação econômica conduzida pelo auto-interesse, no chamado sistema da liberdade natural — coordenação descentralizada, levada a cabo pela divisão do trabalho em associação com o sistema de preços —, por um lado, como benefício, a neutralização de alguns interesses injustos, por outro, não estaria suficientemente imunizada contra outros perigos, adverte Smith.

Desigualdades sócio-econômicas acompanhariam o progresso e, possivelmente, fariam ressurgir antigas injustiças. Além disso, o próprio mecanismo virtuoso através do qual interesses particulares encontrariam conciliação na construção não planejada do progresso econômico como efeito de composição, nomeadamente, a divisão do trabalho, engendraria, por outro lado, efeitos degenerativos — ou efeitos de "decomposição" — sobre a ordem social: o interesse próprio, como desejo de melhorar a condição material dos homens, realizando-se por meio da especialização crescente, acabaria por gerar uma visão de "liberdade natural" promotora de alienação, ou seja, estupidificação e banalização moral dos trabalhadores.

Vale conferir a observação de Smith, no livro V, em contraste com a visão otimista tecida no livro I:

Com o avanço da divisão do trabalho, a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, da maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas. Ora, a compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando operações simples, cujos efeitos são, talvez, sempre os mesmos ou mais ou menos os mesmos, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. ... O entorpecimento de sua mente o torna não apenas incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas das obrigações normais da vida privada. Ele é totalmente incapaz de formar juízo sobre os grandes e vastos interesses de seu país; e, a menos que se tenha empreendido um esforço inaudito para transformá-lo, é igualmente incapaz de defender seu país na guerra. ... Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida à custa de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais. Ora, em toda sociedade evoluída e civilizada, esse é o estado em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres — isto é, a grande massa da população — a menos que o Governo tome algumas providências para impedir que tal aconteça. (idem, v. II: 213-214)

Enquanto no livro I,

É a grande multiplicação das produções de todos os diversos ofícios — multiplicação essa decorrente da divisão do trabalho — que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela riqueza universal que se estende até às camadas mais baixas do povo. (ibidem, v. I:45)

Se colocarmos a visão de Smith na perspectiva de uma história intelectual em economia, torna-se claro que, como genuíno filósofo cético, ele não poderia alinhar-se com uma concepção perfeccionista de ordem econômica, portadora de virtudes políticas e morais, centrada na liberdade natural, no auto-interesse e na divisão do trabalho. Essa visão, de resto, Smith identifica com o ponto de vista dos fisiocratas, e explicitamente critica no livro IV:

Alguns médicos teóricos parecem haver imaginado que a saúde do organismo humano só poderia ser preservada por um certo regime preciso de dieta e ginástica e que qualquer violação ao mesmo, por mínima que fosse, inevitavelmente provocaria algum grau de doença ou desordem, proporcional a esse grau de violação. ( ) O Sr. Quesnay, ele próprio médico, e médico muito teórico, parece ter tido uma idéia do mesmo tipo, no tocante ao organismo político, e parece ter imaginado que ele se fortaleceria e se desenvolveria somente sob um determinado regime preciso, o exato regime da liberdade e da justiça perfeitas. Parece não ter levado em conta que, no organismo político, o esforço natural que cada pessoa faz continuamente para melhorar sua própria condição representa um princípio de preservação suscetível de evitar e corrigir, sob muitos aspectos, os maus efeitos, até certo ponto, de uma Economia Política parcial e opressiva. ( ) Se uma nação não pudesse prosperar a não ser desfrutando de liberdade e justiça completas, jamais haveria no mundo uma única nação que conseguisse ter prosperado. (ibidem,vol. II:137-138)

Os aspectos positivos e negativos da divisão do trabalho podem consistentemente coexistir, e para que o saldo final seja favorável, é necessário ativar certas funções do Estado, como por exemplo a educação pública. Estaríamos, nesse caso, tocando os limites de uma concepção de ordem social como ordem econômica, motivada exclusivamente pelo interesse próprio — econômico — de seus membros. Smith faz aqui apelo a um ponto de vista público, eticamente construído, que pudesse corrigir as falhas da lógica do auto-interesse, como Locke antes dele já fizera13 13 Refiro-me às leis de Justiça de Locke (1988), em que ele detecta a insuficiência da lógica do interesse para a constituição do Bem Geral. .

4. INTERESSE PRÓPRIO, ESCOLHA RACIONAL E RESTRIÇÕES

Nossa análise das justificativas para o uso do suposto do auto-interesse destacou a função crítica, baseada numa recuperação da história intelectual moderna da noção de interesse próprio. Por intermédio desse percurso, o "conteúdo" do interesse próprio só se esclarece após contraste com restrições externas de natureza variada. O valor, quer explicativo quer normativo, do auto-interesse seria, pois, relativo a restrições socialmente construídas. Mas, essa proposição é apenas metade da história, uma vez que as restrições "externas", limitativas dos "interesses" dos indivíduos, seriam, por sua vez, por eles limitadas, revelando a natureza parcialmente "interna" das restrições. Interesse e restrições apresentam-se organicamente ligados, sem, no entanto, se confundir um com o outro, refratários a uma abordagem reducionista (quer das restrições em termos de interesses, quer dos interesses em termos de restrições).

A aproximação da teoria econômica a uma teoria da escolha racional à la Becker (1976), integrável com a visão de decisão individual de Samuelson (1938), e com a função representacional do suposto do auto-interesse tal qual apresentada, ligeiramente, na seção 2, assinalaria a especificidade da teoria econômica antes na abordagem que no objeto de análise.

Discussões como as travadas ao longo da seção 3, e as críticas à função explanatória e normativa ali presentes, se revelariam trivialmente incorporáveis na leitura representacional. O suposto comportamental do interesse próprio seria traduzido em termos da maximização de utilidade, e os argumentos da função utilidade poderiam ser, em princípio, vários. Altruísmo, eqüidade, inveja e normas sociais ou morais, como em teorias da ação não individualistas, poderiam ser adequadamente incorporados às funções-utilidade individuais, e passíveis de maximização. O interesse próprio seria identificado com a racionalidade — cálculo dos meios para satisfação máxima dos fins — e, assumindo a forma de truísmo, não seria afetado pela crítica à função explanatória, uma vez que a pretensão não é explicar, mas representar um comportamento estilizado pelos axiomas.

Não pretendo reportar a extensa literatura sobre a possibilidade de sucesso dessa manobra reducionista de Becker14 14 Vale entretanto a referência à obra de Amartya Sen, com destaque para o opúsculo de 1987 (tradução brasileira de 1999) On Ethics and Economics [ Sobre Ética e Economia]. , cujas origens remontam às primeiras décadas do século XX, com o desenvolvimento da moderna teoria não-hedonista da utilidade, baseada em preferências ordinais, e que receberá sua forma acabada, ao fim dos anos 1930, com a teoria da preferência revelada de Samuelson15 15 Radicalizando a tendência dos anos 1930, Samuelson propõe basear a teoria do consumidor inteiramente no comportamento observado, inferindo as preferências dos indivíduos de suas escolhas. Os mais importantes ataques ao hedonismo cardinalista de Edgeworth viriam já no século passado de Fisher e Pareto, mas teriam recebido tratamento extensivo apenas durantes os anos 1930 com os trabalhos de Robbins, Hicks e Allen. Ver Backhouse (1985) e Screpanti e Zamagni (1995). . De todo modo, vale a pena examinar, ainda que superficialmente, a possibilidade do reducionismo, tendo em vista a discussão da função crítica levada a termo na seção anterior.

Tomemos, por exemplo, o problema do altruísmo. Até que ponto pode ser ele incorporado inteligivelmente em uma função-utilidade, como interesse próprio de segunda ordem? Quais os benefícios de uma tal incorporação? Que o indivíduo aufira satisfação ao ver os interesses de outrem atendidos não liquida o que parece ser a proposição anterior de que para que sua felicidade aumente, com o incremento da felicidade alheia, esses outros tem de possuir uma importância intrínseca, em razão da qual ele deseja agradar-lhes. Raciocínio semelhante pode ser aplicado quanto ao alegado uso estratégico de normas sociais, que não reconheceria a necessidade lógica de autonomia dessas normas, como sugerido por Edgerton:

Unless rules were considered important and were taken seriously and followed, it would make sense to manipulate them for personal benefit. If many people did not believe that rules were legitimate and compelling, how could anyone use these rules for personal advantage? (apud Elster, 1989:128)

E ainda, o caso da eqüidade, ou de regras morais: se postularmos que as pessoas têm preocupações éticas que incorporam em sua função utilidade, ao lado de seu desejo por bem-estar (próprio e alheio), teremos que resolver um problema nada trivial, qual seja, o fato de que nossas "preferências"16 16 O termo preferência aparece aqui entre aspas para recordar quão estranha essa palavra soa quando vinculada a características dissociadas da vontade ou do arbítrio do indivíduo, como na discussão de Pizzorno (1986) sobre a motivação dos indivíduos para se envolverem em ações coletivas. Em algumas situações de adesão a ações coletivas, afirma Pizzorno, mais do que escolhas racionais estaria envolvida a própria identidade dos atores sociais, algo que antecederia sua capacidade de escolher e de calcular. éticas normalmente são inegociáveis, isto é, que normalmente não estamos dispostos a transigir a eticidade de certas escolhas, em troca de ter outras preferências satisfeitas. Este pode ser o caso das preferências lexicográficas discutidas por John Rawls em seu A Theory of Justice, que expressariam a prioridade absoluta da liberdade sobre as vantagens econômicas, no problema de escolha social por ele especificado.

Talvez seja ainda possível "trivializar" essas dificuldades e outras mais, através do recurso à formalização matemática, mas convém recordar que a estratégia de construir uma justificativa inteiramente axiomática para os supostos de uma teoria não parece muito alvissareira17 17 Vide, por exemplo, o fracasso do programa de pesquisa matemático, axiomático compreensivo, liderado por Hilbert e que envolveu von Neumann nos anos 1920. Cf. Leonard (1995) e Mirowski (1992). . De todo modo, é preciso observar que há, freqüentemente, na manobra reducionista, um problema lógico-conceitual, que está para as definições formais como o critério popperiano da falseabilidade está para as proposições empíricas de uma teoria, qual seja, o problema da inteligibilidade.

Ou seja, da mesma forma que proposições empíricas devem postular a ocorrência de certos estados do mundo e, simultaneamente, a não ocorrência das alternativas ("amanhã choverá e não choverá" não é uma proposição falseável), definições e conceitos devem obedecer o critério da inteligibilidade. As definições, por etimologia, tem que ser finitas; são estipulações que cobrem um conjunto de aspectos e propriedades separado de outro(s) conjunto(s). Por exemplo, auto-interesse, confina com interesse de outros ou dos outros; escolha confina com não-escolha, ausência de opções. Por isso, soam tão estranhamente ininteligíveis proposições tipicamente reducionistas como "escolha sem escolha"18 18 Notemos aqui algumas proposições que a linguagem das "preferências" nos obriga a cometer. Quanto às preferências completas, vale comentar o argumento racionalizador de preferências incompletas de Lisboa (1997): se o indivíduo, entre duas alternativas A e B, acaba por não escolher nenhuma delas, isto significa que havia três opções, a terceira, C, sendo "não escolher". Ignorando-se a estranheza provocada por esta proposição tanto maior quanto se suponha que é o próprio indivíduo a definir o conjunto de opções, e atendo-se meramente ao aspecto formal dela, me parece que esta manobra não "completa" as preferências binárias uma vez que se agora é claro que C é preferida a A e B, continuamos no escuro quanto à relação de preferência entre A e B. O indivíduo não foi capaz de comparar estas alternativas. Problema simétrico parece ser o da escolha de Sofia, que sem preferir, escolhe: ainda que Sofia não seja capaz de comparar entre a opção A "salvar a filha" e B "salvar o filho", ela escolhe B, A e B sendo superiores a C "condenar os dois" ou "não escolher". Devemos concluir que por sua escolha Sofia revelou preferir salvar seu filho a salvar sua filha? E quanto ao escrevente Bartleby, célebre personagem de Melville, que diante de diferentes situações e opções, dia após dia, insiste em " prefer not to"? Escolher "não escolher", preferir "não preferir"? , isto é, "escolha por um único ponto de um conjunto unitário de possibilidades", ou "altruísmo como uma forma de auto-interesse". Não obstante, são essas estranhas máximas que seguimos quando fazemos todas as motivações se confundirem com o auto-interesse, regras se confundirem com escolhas, dando seqüência à estratégia argumentativa de Becker.

Em contraste, visões sociológicas tradicionais enfatizam a importância de regras e normas, práticas sociais que determinariam o comportamento dos indivíduos revelando a ociosidade da noção de escolha individual. Sempre se pode, contudo, apontar a circularidade dessa argumentação, que explica a coordenação entre os indivíduos através de práticas sociais pré-existentes. Na verdade, essa forma de explicação holística, reducionista às avessas, ao traduzir escolhas em determinação social, padeceria dos mesmos defeitos da explicação de escolha racional referida, carecendo de inteligibilidade no sentido mencionado acima.

Pode-se, entretanto, identificar, na teoria econômica contemporânea, uma vertente híbrida, entre a escolha racional e as visões holísticas que fazem as ações dos indivíduos depender de práticas sociais, e cuja filiação à nossa análise da função crítica do suposto comportamental do interesse próprio é fácil atestar. Podemos identificá-la, entre outras, nas teorias da ação de Hayek (1949), Keynes (1973) e Simon (1976), de novos institucionalistas (Hodgson, 1997, 2001; North, 1990) e da economia evolucionária (Weibull, 1995; Nelson e Winter, 1982). Como observação geral, essas teorias da ação potencialmente preservariam a distância entre os interesses dos indivíduos e as restrições a eles, característica de nossa discussão sobre as relações entre o interesse próprio e o interesse público. Reconhecendo duas origens relativamente autônomas, a dos interesses particulares e a das restrições, propõem, seguindo a tradição, uma perspectiva relacional, de determinação recíproca. Tomemos Hayek como ilustração.

A teoria da ação de Hayek, cujos rudimentos podemos encontrar, entre outros, em seu famoso opúsculo Individualism and Economic Order, esclarece os limites explanatórios e normativos do auto-interesse. Segundo Hayek, em um mundo caracterizado pela ignorância radical de seus membros, reportar-se ao seu auto-interesse é singularmente pouco revelador, quer das suas ações, quer das conseqüências de suas ações combinadas.

Na verdade, esse insight de Hayek é derivado de sua interpretação da visão de coordenação econômica projetada por Smith no WN. Dada a extensão da sociedade moderna, é impossível que as transações entre os indivíduos se baseiem em relações especiais que façam apelo à sociabilidade humana, devendo, ao contrário, basear-se no interesse. Todavia, na medida em que entretanto, que as transações se façam entre desconhecidos, os indivíduos deixam de contar com o tipo de conhecimento no qual sua competência é maior, qual seja, o conhecimento de fatos e circunstâncias particulares, e cuja fonte é sua experiência mais ou menos direta, e passam, cada vez mais, a depender do controle de outro tipo de conhecimento, um conhecimento social condensado em regras de conduta cujo grau de certeza é tipicamente inferior ao primeiro tipo.

Sobre esse segundo tipo de conhecimento, incide um importante elemento de subjetividade, na medida em que os indivíduos não são homogeneamente socializados por regras de conduta sempre explicitamente articuláveis. Muitas das regras que usamos, aprendemos sem saber como, e conhecemos sem sermos capazes de articular plenamente. Hayek, então, nos caracteriza como seguidores de regras articuláveis e não passíveis de articulação. Estas últimas dificultariam uma abordagem de escolha racional para o seu uso. Por exemplo, há regras que são a própria condição de possibilidade da linguagem e do pensamento, são as que nos permitem articular outras.

Numa sociedade extensa, como a moderna economia de mercado, não somos capazes de prever as conseqüências finais de nossas ações, não possuímos o conhecimento do todo que nossas interações perfazem e, em conseqüência, regulamos nossa conduta por regras mais ou menos articuláveis, na esperança de que elas viabilizem nossos propósitos. Na verdade, nosso consumo de regras, de modo tácito ou consciente, acaba por ser responsável pelos contornos que assume o nosso interesse. Na medida em que elas delimitam nossas percepções sensoriais e indicam que objetos do mundo correspondem aos nossos instintos e desejos mais básicos, constróem nossa visão de mundo, como, por exemplo, as regras de linguagem (Sprachgefühl) e nosso senso de justiça (Rechtsgefühl), que guiam nossa percepção das ações dos outros, conferindo significado a elas.

Após haver assim caracterizado nossa motivação para a ação, parece claro que conhecer o impulso inicial motivador das ações dos indivíduos é muito menos importante que conhecer as regras, ou o que vimos chamando de restrições, que conformam a ação intencional, em nossa busca por compreender o porquê das ações humanas, bem como a possibilidade da coordenação bem sucedida dessas ações.

Mas, em linha com a observação de uma determinação recíproca entre interesses e restrições, ou ação intencional e regras, Hayek nota que estas são, por assim dizer, consumidas individualmente, enfatizando um elemento de subjetividade no consumo de conhecimento. Este será responsável pelo fato de a aquisição de conhecimento no mundo social ser uma fonte extra de geração de ignorância — como diferentes indivíduos interpretam as regras19 19 Ver Lessa (1998a), Lessa Kerstenetzky (1999) e (2000). . Ademais, o conhecimento de fatos e circunstâncias particulares terá um papel ativo na exploração de oportunidades econômicas e na explicação da inovação. Através do consumo de conhecimento geral encapsulado em regras, e do uso do conhecimento de fatos e circunstâncias particulares, os indivíduos estão constantemente testando normas existentes, em sua capacidade de resposta a novas circunstâncias, e às vezes provocando mudanças nelas.

5. CONCLUSÃO

O objetivo deste artigo foi apresentar, de modo cursivo, justificativas correntes para o uso teórico do suposto comportamental do auto-interesse, concentrando-se na função crítica, em sua moderna utilização na história das idéias, e, secundariamente, ilustrar a ativação dessa função em teorias contemporâneas.

Através de um exame da história intelectual da noção de auto-interesse, foram apresentados argumentos em favor da função crítica desse suposto. Mais do que mera ilustração anedótica, considerou-se que questões teóricas relevantes foram tocadas nas discussões dos séculos XVII e XVIII. Em particular, um padrão estava ali proposto de relação entre interesse próprio e restrições de natureza complementar, cada um impondo limites algo "constitutivos" do outro.

Do ponto de vista da teoria econômica, esse padrão parece corroborar uma revisão de nossas teorias da ação de modo a intensificar o foco sobre a análise das restrições (regras, instituições, hábitos etc.), ou dos aspectos sociais da racionalidade, em detrimento do foco exclusivo sobre a escolha racional de indivíduos, versão atualizada do suposto do interesse próprio. O artigo indicou, sem maior detalhamento, desenvolvimentos teóricos contemporâneos que caminham nessa direção.

Finalmente, o artigo sugeriu críticas à tendência reducionista recentemente adotada pela teoria econômica, a mais importante chamando atenção para o critério de inteligibilidade que proposições lógico-conceituais devem obedecer. A sugestão é que nossas proposições teóricas, mesmo que não corroboradas pelos fatos, ainda devem fazer sentido.

Submetido: setembro 2003; aceito março 2004

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  • TSEBELIS, G. (1990), Nested Games rational choice in comparative politics, Berkeley: University of California Press.
  • WEIBULL, J. W. (1995), Evolutionary Game Theory, Cambridge, & Londres: The MIT Press.
  • WEINTRAUB, E. R. (ed.), (1992), Toward a History of Game Theory, Durham and Londres: Duke University Press.
  • WINCH, D. (1996), Riches and Poverty an intellectual history of political economy in Britain, 1750-1834, Cambridge: Cambridge University Press.
  • 1
    Paper apresentado no XXVI Encontro da Anpec, dezembro de 1999, Belém. Agradeço a Jaques Kerstenetzky e a Fábio Freitas, sem entretanto comprometê-los, pela leitura e comentários. Agradeço, ainda, aos pareceristas anônimos da REP.
  • 2
    Cf. Jevons, no prefácio à edição de 1879 de seu
    The Theory of Political Economy. Ver Jevons, 1983, p. 7.
  • 3
    Ver Becker, 1976.
  • 4
    Quanto à economia do bem estar, ver Feldman (1987), Screpanti e Zamagni (1995). Quanto à escolha social, o teorema da possibilidade de Arrow (1963 [1951]), demonstra, na verdade, a
    impossibilidade de geração satisfatória de preferências sociais a partir de preferências individuais consistentes. Mas, a teoria da escolha social pós-Arrow segue tentando demonstrar esta possibilidade através do relaxamento das condições de Arrow.
  • 5
    Ver Gauthier (1986), Taylor (1976, 1987), Tsebelis (1990), Lessa (1993).
  • 6
    Ver Mas-Colell et al. (1995).
  • 7
    Ver Broome (1991) e Hampton (1994) para uma discussão dos axiomas. A propósito de visões alternativas como a estratégico-evolucionária, refira-se a Kirman (1992 e 1995), e Arrow (1988) para visões de complexidade.
  • 8
    Sobre o papel do interesse econômico na constituição da sociedade moderna, igualitária por contraste com o modelo de sociedade tradicional hierárquica, refira-se à obra já clássica de Louis Dumont (1977). Para uma crítica à ideologia econômica e à "naturalização" do interesse econômico, a referência obrigatória é Karl Polanyi (1980).
  • 9
    Especialmente, Hobbes (1968), Hume (1985, 1994), Locke (1988), bem como os intérpretes já clássicos Gough (1957), Gunn (1969), Hirschman (1977, 1986), Holmes (1990), Mansbridge (1990).
  • 10
    A passagem do domínio do precedente histórico ou da autoridade religiosa para o da doutrina dos direitos naturais pode ser facilmente acompanhada na literatura que examina as diferentes formas tomadas pelas doutrinas do contrato social, como Gough (1957). Em particular, Mansbridge (1990) chama a atenção para o fato de que as doutrinas do contrato social antes de Hobbes costumavam descrever o chamado estado de natureza como um estado de guerra de alguns contra alguns outros, de guerra entre facções, e não como um estado de conflito generalizado, aberto ou não, de todos contra todos, como o faz Hobbes.
  • 11
    A origem arbitrária das convenções pode ocasionalmente ser um elemento gerador de instabilidade e entropia em interações sociais. Este problema é discutido extensamente pelo filósofo David Lewis (1969).
  • 12
    A centralidade (ainda que não exclusividade) do interesse próprio no
    WN é certamente muito maior que em outros escritos smithianos em filosofia moral, notadamente o
    Theory of Moral Sentiments. A indústria smithiana sobretudo pós 1976 é já próspera e plenamente difundida. Recomendo, não obstante, os volumes de Donald Winch (1996) e Emma Rothschild (2003) para uma interpretação das sutilezas envolvendo interesses (econômicos) e sentimentos (morais), os "sentimentos econômicos" nos termos de Rothschild.
  • 13
    Refiro-me às leis de Justiça de Locke (1988), em que ele detecta a insuficiência da lógica do interesse para a constituição do Bem Geral.
  • 14
    Vale entretanto a referência à obra de Amartya Sen, com destaque para o opúsculo de 1987 (tradução brasileira de 1999)
    On Ethics and Economics [
    Sobre Ética e Economia].
  • 15
    Radicalizando a tendência dos anos 1930, Samuelson propõe basear a teoria do consumidor inteiramente no comportamento observado, inferindo as preferências dos indivíduos de suas escolhas. Os mais importantes ataques ao hedonismo cardinalista de Edgeworth viriam já no século passado de Fisher e Pareto, mas teriam recebido tratamento extensivo apenas durantes os anos 1930 com os trabalhos de Robbins, Hicks e Allen. Ver Backhouse (1985) e Screpanti e Zamagni (1995).
  • 16
    O termo
    preferência aparece aqui entre aspas para recordar quão estranha essa palavra soa quando vinculada a características dissociadas da vontade ou do arbítrio do indivíduo, como na discussão de Pizzorno (1986) sobre a motivação dos indivíduos para se envolverem em ações coletivas. Em algumas situações de adesão a ações coletivas, afirma Pizzorno, mais do que escolhas racionais estaria envolvida a própria
    identidade dos atores sociais, algo que antecederia sua capacidade de escolher e de calcular.
  • 17
    Vide, por exemplo, o fracasso do programa de pesquisa matemático, axiomático compreensivo, liderado por Hilbert e que envolveu von Neumann nos anos 1920. Cf. Leonard (1995) e Mirowski (1992).
  • 18
    Notemos aqui algumas proposições que a linguagem das "preferências" nos obriga a cometer. Quanto às preferências completas, vale comentar o argumento racionalizador de preferências incompletas de Lisboa (1997): se o indivíduo, entre duas alternativas A e B, acaba por não escolher nenhuma delas, isto significa que havia três opções, a terceira, C, sendo "não escolher". Ignorando-se a estranheza provocada por esta proposição tanto maior quanto se suponha que é o próprio indivíduo a definir o conjunto de opções, e atendo-se meramente ao aspecto formal dela, me parece que esta manobra não "completa" as preferências binárias uma vez que se agora é claro que C é preferida a A e B, continuamos no escuro quanto à relação de preferência entre A e B. O indivíduo não foi capaz de comparar estas alternativas. Problema simétrico parece ser o da escolha de Sofia, que sem preferir, escolhe: ainda que Sofia não seja capaz de comparar entre a opção A "salvar a filha" e B "salvar o filho", ela escolhe B, A e B sendo superiores a C "condenar os dois" ou "não escolher". Devemos concluir que por sua escolha Sofia revelou preferir salvar seu filho a salvar sua filha? E quanto ao escrevente Bartleby, célebre personagem de Melville, que diante de diferentes situações e opções, dia após dia, insiste em "
    prefer not to"? Escolher "não escolher", preferir "não preferir"?
  • 19
    Ver Lessa (1998a), Lessa Kerstenetzky (1999) e (2000).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Recebido
      Set 2003
    • Aceito
      Mar 2004
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