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Contra a parcimônia - Três maneiras fáceis de complicar algumas categorias do discurso econômico

Against parsimony - Three easy ways to complicate some categories of the economic discourse

RESUMO

O objetivo do ensaio de Hirschman é confrontar a tendência da teoria econômica de economizar argumentos, postulados e suposições. Segundo ele, vários domínios da investigação econômica exigem complicação e ele tenta responder a essa necessidade de três maneiras diferentes, todas elas desafiando a suposição de um indivíduo racional e egoísta que escolhe livremente entre cursos alternativos de ação após calcular seus custos e benefícios. Primeiro, ele propõe uma distinção dentro do conceito de preferências entre as de primeira e segunda ordem e argumenta que essa distinção é importante para a análise de seu padrão de mudança. Apenas assumindo que os seres humanos têm a capacidade de formular metapreferências (ou preferências de segunda ordem) seria possível iluminar a natureza variada desse padrão e diferenciar, por exemplo, entre uma mudança puramente impulsiva e publicitária e outra que é o resultado de um processo de aquisição de novos valores sociais ou pessoais. Em segundo lugar, propõe uma distinção dentro do conceito de atividades humanas e explora a ideia da existência de algumas delas que não são instrumentais, ou seja, cujos fins não são previsíveis e não estão relacionados com esforços preliminares. Essas atividades não-instrumentais, apesar de seu caráter frequentemente doloroso, têm a qualidade de serem esforços e realizações. O ponto levantado por Hirschman é que a economia está crescendo tão rapidamente em sua ambição que se torna cada vez mais importante incorporar em seu escopo esse outro tipo de ação humana, extremamente útil, por exemplo, no estudo de políticas públicas ou nas oscilações entre o individualismo e o privado. ações orientadas e ações em busca da felicidade pública. Em terceiro lugar, Hirschman tenta complicar a economia ao reintroduzir em seu domínio a ideia de que o sistema econômico precisa, para funcionar, assim como outros fatores de produção, de uma espécie de input moral. Em suma, complicar o discurso econômico significa aceitar e levar em conta a ideia de que a ação humana pode ser moral, cheia de valores e às vezes não instrumental.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia econômica; preferências; ação humana; moralidade

ABSTRACT

The aim of Hirschman’s essay is to confront the tendency of economic theory to economise arguments, postulates, and assumptions. According to him, various realms of economic enquiry call for complication and he tries to answer for this necessity in three different ways, all of them challenging the assumption of a self-interested and rational individual who chooses freely between alternative courses of action after calculating their costs and benefits. First, he proposes a distinction within the concept of preferences between first and second-order ones and argues that this distinction is important for the analysis of its pattern of change. Only assuming that human beings have the ability to formulate metapreferences (or second-order preferences) it would be possible to illuminate the varied nature of this pattern and differentiate, for example, between a change that is purely impulsive and publicity oriented and another which is the result of a process of acquisition of new social or personal values. Second, he proposes a distinction within the concept of human activities and explores the idea of the existence of some of them that are noninstrumental, that is, which ends are not predictable and not related with preliminaries efforts. These noninstrumental activities, in spite of its frequently painful character have the quality of being striving and attaining. The point Hirschman makes is that economics is growing so fast its ambition that it becomes of increasing importance to incorporate into its scope this other kind of human action, extremely useful, for instance, in studying public policies or in studying the oscillations between individualistic and private oriented actions and actions in pursuit of public happiness. Third, Hirschman tries to complicate economics by reintroducing into its realm the idea that economic system needs, to function, as well as of other factors of production, of a kind of moral input. In sum, to complicate the economic discourse means to accept and take into account the idea that human action can be moral, full of values and sometimes noninstrumental.

KEYWORDS:
Economic methodology; preferences; human action; morality

A Economia, como ciência do comportamento humano, tem-se fundamentado num postulado notavelmente parcimonioso: o do indivíduo egoísta, isolado, que escolhe livre e racionalmente entre cursos alternativos de ação depois de calcular seus custos e benefícios em perspectiva. Em décadas recentes, um grupo de economistas mostrou considerável diligência e engenhosidade em aplicar esse tipo de interpretação do mundo social a uma série de fenômenos claramente não econômicos: do crime à família, e da ação coletiva à democracia. A abordagem do “agente racional” ou “econômico” produziu algumas importantes introvisões, mas o seu ulterior avanço também revelou algumas de suas debilidades intrínsecas. O resultado é que se tornou possível montar uma crítica que, ironicamente, pode ser levada de volta até o cerne da disciplina pretensamente conquistadora. A tese básica deste trabalho é que a abordagem econômica nos fornece uma descrição demasiado simplória, mesmo de processos econômicos tão fundamentais como o consumo e a produção.1 1 Versões menores deste trabalho foram publicadas na American Economic Review, vol. 74, maio 1984, pp. 89-96, e em Bulletin. The American Academy of Arts and Sciences, vol. 37, maio 1984, pp. 11-28. Traduzido por Jalmar Nordin Carlson.

Não estou só nesta posição. Thomas Schelling assinalou recentemente que “a mente humana é algo embaraçoso para certas disciplinas, especialmente a economia ... que acharam ser o modelo do consumidor racional poderosamente frutífero” (1984, p. 342). E em artigo bem conhecido, significativamente intitulado “Tolos racionais: uma crítica dos fundamentos comportamentais da teoria econômica”, Amartya Sen sublinhou, não faz muito, que “a teoria (econômica) tradicional tem muito pouca estrutura” (1977, p. 335). Assinalando que as preferências individuais e o comportamento real de escolha estão longe de ser sempre os mesmos, ele introduziu conceitos originais, como obrigação e preferências de segunda ordem. Como qualquer virtude, como ele parecia dizer, a parcimônia na construção da teoria pode ser exagerada e algumas vezes pode-se ganhar algo tornando as coisas mais complicadas. Eu passei paulatinamente a também pensar desse modo. Há alguns anos, sugeri que a crítica dos consumidores ou “opinião” deveria ser reconhecida como uma força que mantinha alertas as administrações de empresas ou instituições, juntamente com a concorrência ou “saída”, e foi necessário um livro para tratar das complicações resultantes. Aqui trato de várias outras esferas da pesquisa econômica que igualmente têm necessidade de ser tornadas mais complexas. Concluindo, examino se as várias complicações têm algo em comum: isto por sua vez simplificaria e unificaria as coisas.

DOIS TIPOS DE MUDANÇAS DE PREFERÊNCIA

Uma proveitosa distinção foi feita, por Sen e outros, entre preferência de primeira e segunda ordem, ou entre preferência e metapreferência, respectivamente. Usarei aqui a última terminologia. A economia tem tradicionalmente tratado apenas das preferências (de primeira ordem), ou seja, as que são reveladas pelos agentes quando compram bens ou serviços. Os complexos processos psicológicos e culturais que estão por trás das escolhas do mercado realmente observadas foram geralmente considerados assunto de psicólogos, sociólogos e antropólogos.

Havia algumas boas razões para essa prática abnegada. No entanto, um aspecto do processo de escolha e de formação da preferência deve preocupar o economista, na medida em que ele pretenda se interessar pela compreensão dos processos de mudança econômica. Este aspecto não tem nada que ver, pelo menos num primeiro nível de pesquisa, com o condicionamento cultural de gostos e comportamento de escolha; seu ponto de partida é antes uma observação muito geral da natureza humana (e deveria, portanto, ser apropriado à economia, com suas amarras do século XVIII): homens e mulheres têm a capacidade de recuar de seus desejos “revelados”, volições e preferências, de perguntar a si mesmos se realmente desejam esses desejos e preferem essas preferências e consequentemente formar metapreferências que podem diferir de suas preferências. Sem surpresa, foi um filósofo, Harry Frankfurt (1971Frankfurt, Harry G., (1971). “Freedom of the Will and the Concept of a Person”, Journal of Philosophy, 68, pp. 5-20. ) que primeiro colocou as coisas desta maneira. Ele argumentou que essa capacidade de recuar é característica dos seres humanos, mas não está presente em todos eles. Aos que não têm essa capacidade, chamou de “irrefletidos”: eles estão inteiramente, irrefletidamente, nas garras de seus caprichos e paixões. (A terminologia é bem adequada, pois está conforme ao uso corrente: assassínio irrefletido é precisamente assassínio “sem nenhuma razão”, isto é, assassínio que não foi precedido pela formação de qualquer metapreferência pelo homicídio.)

É fácil ver que há um estreito vínculo entre a mudança de preferência e o conceito de metapreferência, pois, como já assinalei em outra ocasião (1982, p. 71), a certeza quanto à existência de metapreferências pode apenas ser obtida através de mudança no comportamento real de escolha. Se as preferências e metapreferências sempre coincidem, de modo que o agente esteja permanentemente em paz consigo mesmo, seja qual for a escolha que fizer, então as metapreferências dificilmente terão uma existência independente e serão meras sombras das preferências. Se, por outro lado, os dois tipos de preferências estiverem permanentemente em disputa, de modo que o agente sempre agirá contra seu bom senso, então novamente a metapreferência não pode apenas ser descartada como totalmente ineficaz, mas dúvidas surgirão quanto a sua real presença. Em tais casos, a situação é melhor caracterizada como “compra vinculada”: juntamente com o artigo preferido, o consumidor insiste em adquirir infelicidade, arrependimento e culpa por tê-lo preferido.

A noção de metapreferência não nos diz muito sobre o modo como ocorre a mudança real no comportamento de escolha. O combate para impor a metapreferência é travado no interior de cada um e é marcado por todos os tipos de avanços e recuos, bem como por artimanhas e recursos estratégicos. Não me ocupo aqui deste tópico, que Thomas Schelling ultimamente fez seu, mas apenas assinalo que um êxito ocasional na mudança do comportamento de escolha é essencial para convalidar o conceito de metapreferência.

Inversamente, esse conceito ilumina a natureza variada da mudança de preferência, porque agora é possível distinguir entre dois tipos de mudanças de preferência. Um é do tipo reflexivo e tortuoso, precedido da formação de uma metapreferência que está em disputa com a preferência até então observada e praticada. Mas também há mudanças de preferência que ocorrem sem um desenvolvimento elaborado anterior de metapreferências. Seguindo a terminologia de Frankfurt, estas mudanças de preferência podem ser chamadas de irrefletidas. Estas são as mudanças de preferência que os economistas examinaram em primeiro lugar: alterações de predileção impulsivas, não complicadas, fortuitas, induzidas pela publicidade e geralmente pequenas (maçãs versus peras). Em contraste, a mudança não irrefletida de preferência não é realmente uma mudança de predileção. Uma predileção é quase definida como uma preferência que não se discute - de gustibus non est disputandum. - Um gosto que se discute, com outros ou consigo mesmo, cessa ipsofacto de ser um gosto - torna-se um valor. Quando uma mudança de preferência foi precedida pela formação de uma metapreferência, muita discussão obviamente ocorreu dentro do ser dividido. Tipicamente, ela representa uma mudança de valores mais que uma mudança de gostos.

Dada a concentração dos economistas sobre as mudanças irrefletidas de preferência, e o consequente viés, as mudanças do tipo reflexivo têm sofrido a tendência de ser degradadas ao tipo irrefletido pela sua assimilação a mudança de gosto: assim, padrões de contratação discriminatória têm sido atribuídos a um “gosto pela discriminação” (Becker, 1957Becker, Gary S., (1957) The Economies of Discrimination, Chicago, Chicago University Press. ) e aumentos no protecionismo têm igualmente sido analisados como reflexo de um acentuado “gosto pelo nacionalismo” (Johnson, 1965Johnson, Harry G., (1965). “A Theoretical Model of Economic Nationalism in New and Developing States”, Political Science Quarterly, 80, pp. 169-185. ). Tais interpretações me parecem objetáveis por duas razões: primeiro, impedem um esforço intelectual sério para compreender o que são valores fortemente sustentados e dificultam a realização de mudanças de valores em vez de gostos e mudanças de gostos: segundo, alimenta-se a ilusão de que aumentar o custo da discriminação (ou do nacionalismo) é o instrumento simples e soberano de política para fazer as pessoas entregarem-se menos a tais gostos “esdrúxulos”.

Aqui há uma questão mais geral. Os economistas muitas vezes propõem tratar do comportamento aético ou antissocial elevando o custo de tal comportamento em vez de proclamar padrões e impor proibições e sanções. A razão é que provavelmente eles pensam nos cidadãos como consumidores com gostos inalteráveis ou arbitrariamente alteráveis em questões de comportamento civil ou de consumo. Esta visão tende a negligenciar a possibilidade de as pessoas serem capazes de mudar seus valores. Um dos propósitos principais das leis públicas e dos regulamentos é o de estigmatizar o comportamento antissocial e assim influenciar os valores e os códigos de comportamento dos cidadãos. Esta função educativa, formadora de valores, da lei, é tão importante quanto suas funções dissuasivas e repressivas.2 2 “Os legisladores fazem bons cidadãos incutindo-lhes (bons) hábitos, e este é o objetivo de todo legislador, se não tiver êxito em fazê-lo, sua legislação é um fracasso. É nisto que uma boa constituição difere de uma ruim.” (Aristóteles, Nicomachean Ethics, 1103b.) Em conformidade, como Steven Kelman (1981, pp. 44-53) mostrou, a resistência dos legisladores às propostas dos economistas de enfrentar a poluição exclusivamente com gravames fiscais e expedientes similares torna-se compreensível e até certo ponto defensável. A propensão a poluir dos industriais e das corporações não é necessariamente igual a um esquema fixo de demanda, de modo que tudo que se poderia fazer seria obrigá-los a pagar pela poluição que eles supostamente estariam inclinados a causar: esta propensão poderá ser afetada (a curva de demanda pode alterar-se) como resultado de uma mudança geral no clima cívico que é marcada - em parte - pela adoção de leis e regulamentos contra a poluição.

À luz da distinção entre mudanças de preferências irrefletidas e não irrefletidas, ou entre mudanças de gostos e mudanças de valores, também é possível compreender - e criticar - a recente tentativa de Gary Becker e George Stigler (1977Becker, Gary S. e Stigler, George, (1977). “De Gestibus Est Disputandum”, American Economic Review, 67, pp. 76-90. ) de deixar de lado a noção de mudanças de preferência na explicação de mudanças de comportamento. Igualando mudanças de preferência a mudanças do que eles mesmos chamam de “gostos inescrutáveis, muitas vezes caprichosos” (p. 76), eles acham, logicamente, que quaisquer mudanças nestes tipos de gostos (ou mudanças irrefletidas) têm pouco interesse analítico. Mas em sua subsequente tentativa de explicar toda mudança de comportamento através de diferenças de preços e renda, esquecem uma fonte importante de tal mudança: a mudança autônoma, refletida, de valores. Por exemplo, em sua análise de hábitos benéficos ou prejudiciais, tomam a flexibilidade da curva de demanda do indivíduo por música ou por heroína como dada, e ao que parece imutável. Deixem-me insistir em que mudanças de valores realmente ocorrem de tempos em tempos nas vidas dos indivíduos, dentro de gerações, e de uma geração para outra, e que estas mudanças e seus efeitos sobre o comportamento merecem ser explorados - em poucas palavras, que de valoribus est disputandum.

DOIS TIPOS DE ATIVIDADES

Do consumo passo agora para a produção e para as atividades humanas tais como o trabalho e o esforço envolvidos no alcance de objetivos da produção. Muito da atividade econômica é dirigido para a produção de bens e serviços (privados) que são então vendidos no mercado.

Do ponto de vista da empresa, a atividade contém em si uma clara distinção entre processo e resultado, entradas e saídas, ou custos e faturamento. Do ponto de vista do participante individual do processo, uma distinção aparentemente similar pode-se estabelecer entre trabalho e salário ou entre esforço e recompensa. No entanto, há uma clara diferença entre a empresa e o indivíduo: para a empresa, qualquer despesa tem que entrar sem dúvida na coluna negativa das contas, enquanto o trabalho pode ser mais ou menos maçante ou agradável - inclusive o mesmo trabalho pode ser sentido como mais agradável pela mesma pessoa de um dia para outro. Este problema, em particular suas consequências positivas e normativas para diferenciação de renda, tem merecido a atenção de um longo rol de economistas, começando com Adam Smith. Recentemente traçou-se uma distinção entre ‘’utilidade de processo” e “utilidade de objetivo” (Winston, 1982Winston. Gordon C, (1982). The Timing of Economic Activities, Cambridge, Cambridge University Press. , pp. 193-197), tornando claro que os meios destinados ao alvo do esforço produtivo não precisam ter entrada no lado negativo num cálculo de satisfação. Ao mesmo tempo, esta distinção mantém intacta a concepção instrumental básica do trabalho, a dicotomia de meio e fim sobre a qual nossa compreensão do trabalho e do processo de produção tem-se ba­eado essencialmente, e até certo ponto tão proveitosamente.

Mas é necessário ir mais além se a complexidade e o pleno alcance das atividades humanas, produtivas e outras têm que ser consideradas. Mais uma vez, seria útil ter mais estrutura. A possível existência de atividades totalmente não utilitárias é sugerida pela linguagem quotidiana, que fala de atividades executadas “por si mesmas” e que “são a sua própria recompensa”. Estas frases são algo banais, pouco convincentes. Afinal, qualquer atividade continuada, com a possível exceção do puro lazer, é executada com alguma ideia acerca de um resultado esperado. Uma pessoa que afirme estar trabalhando exclusivamente por causa da recompensa produzida pelo exercício em si é habitualmente suspeita de hipocrisia: o sentimento é de que ela está realmente atrás do dinheiro, de promoção ou - pelo menos - da glória, e que assim, afinal, é também um utilitarista.

Algum progresso pode ser feito nessa questão olhando-se a previsibilidade variável do resultado esperado de diferentes atividades produtivas. Certas atividades, de caráter tipicamente rotineiro, têm resultados perfeitamente previsíveis. A respeito de tais tarefas, não há dúvida na mente do indivíduo de que o esforço produzirá o resultado antevisto - uma hora de trabalho produzirá o bem conhecido, plenamente visível, bem como habilitará o trabalhador, se foi contratado para o trabalho, a um salário que poderá ser usado para a compra de bens desejados (e habitualmente bem conhecidos também). Sob estas condições, a separação do processo em meios e fins, ou em custos e benefícios, acontece quase espontaneamente e o trabalho parece assumir um caráter totalmente utilitário.

Mas há muitos tipos de atividades, desde a de um cientista, da pesquisa e do desenvolvimento, até a de um compositor ou de um defensor de alguma política pública, cujo resultado desejado não se pode ter certeza de que se materialize. Entre essas atividades há algumas -- a pesquisa aplicada de laboratório pode ser um exemplo - cujo resultado não pode ser previsto para qualquer dia ou mês isolado. No entanto, as probabilidades de êxito na consecução do resultado almejado aumentam continuamente à medida que se prolonga o tempo do trabalho. Neste caso, a incerteza é de natureza probabilística, e pode-se falar de um equivalente de certeza quanto ao resultado da atividade em qualquer período dado, de modo que, mais uma vez, vive-se a separação do processo entre meios e fins e o trabalho deste tipo mantém sua marca utilitária. A combinação da incerteza, quanto ao resultado do trabalho em qualquer período relativamente curto de tempo, com a quase certeza de êxito ao longo de um período maior, confere a esses tipos de atividades não rotineiras uma qualidade especialmente atraente, “estimulante”, “excitante”, que tende a estar ausente tanto das atividades totalmente rotineiras, cujo resultado nunca deixa de se materializar por mais curto que seja o período de trabalho, quanto de tipos bem diferentes de atividades não rotineiras, a serem discutidas agora.

Desde suas origens, os homens e as mulheres parecem ter dedicado uma porção considerável de seu tempo a atividades cujo êxito é simplesmente imprevisível. Tal é o caso de atividades como a busca da verdade, da beleza, da justiça, da liberdade, da comunhão, da amizade, do amor, da salvação, e assim por diante. Como regra, estas buscas são, é claro, feitas através de uma série de ações com objetivos aparentemente limitados e específicos (escrever um livro, participar de uma campanha política etc.), No entanto, um componente importante das atividades assim exercidas é melhor definido não como trabalho, mas como esforço - um termo que define exatamente a falta de um vínculo entre ação e resultado. Um cálculo de meios e de fins ou de custo/benefício é impossível em tais circunstâncias.

Essas atividades têm sido classificadas às vezes, em oposição às utilitárias, como “afetivas” ou ‘’expressivas” (Smelser, 1980Smelser, Neil J., (1980). “Vicissitudes of Work and Love in Anglo-American Society” in Themes of Work and Love in Adulthood, editado por Neil Smelser e Erik H. Erikson, pp. 105-119, Cambridge, Mass: Harvard University Press. ; Parsons, 1949Parsons, Talcott, (1949). “Toward a Common Language for the Area of Social Science”, Essays in Sociological Theory, Pure and Applied, Glencoe, Ili., Free Press. , 1960Parsons, Talcott, (1960). “Pattern Variables Revisited”, American Sociological Review, 25, pp. 467-483. , já citados). Mas a colocação de uma etiqueta não contribui muito para compreendê-las, pois a questão real é porque tais atividades deveriam ser exercidas, com o seu resultado sendo absolutamente tão incerto. É importante assinalar que de modo algum são tais atividades sempre agradáveis por si mesmas; de fato, algumas delas são sem dúvida cansativas ou mesmo perigosas. Temos aqui talvez um outro paradoxo ou enigma, que se relaciona não apenas com a escolha (por que pessoas racionais se incomodam em escolher), mas com um grupo de atividades muito mais amplas e mais vitais? Creio que sim - do ponto de vista da razão utilitária, a ação não utilitária permanece algo misterioso. Mas já propus (1982, pp. 84-91) uma explicação pelo menos meio racional: essas atividades não utilitárias cujo resultado é tão incerto são estranhamente caracterizadas por uma certa fusão (e confusão também) de esforço e de consecução.

De acordo com o pensamento econômico tradicional, a utilidade para um indivíduo advém primordialmente do alcance do objetivo do consumo, ou seja, no processo de realmente consumir um bem ou beneficiar-se de seu uso. Mas dada a nossa viva imaginação, as coisas são realmente um pouco mais complicadas. Quando ficamos certos de que algum bem desejado está prestes a se tornar nosso ou que algum evento esperado está definitivamente a ponto de realizar-se - seja uma boa refeição, um encontro com o ser amado ou a concessão de uma honraria - experimentamos o bem conhecido prazer de saborear antecipadamente esse futuro evento (o termo saborear foi-me sugerido por George Loewenstein). Mais ainda, esta apreciação antecipada da utilidade não se limita a situações em que o futuro evento é próximo e certo, ou se imagina como tal. Quando o alvo está distante e seu alcance é problemático, algo muito semelhante à experiência de saboreá-lo pode ocorrer, desde que uma determinada busca pessoal tenha lugar. Quem busca a verdade (ou a beleza) frequentemente experimenta a convicção, por mais débil que seja, de que encontrou ou realizou o que procurava. Quem participa de um movimento pela liberdade ou pela justiça frequentemente tem a sensação de já ter estes ideais ao seu alcance. Nas palavras de Pascal:

“A esperança que os cristãos têm de possuir um bem infinito está mesclada com a satisfação real ... pois não são como aqueles que esperariam por um reino do qual, como súditos, nada teriam; antes, têm esperança de santidade, e de libertar-se da injustiça, e compartilham as duas coisas” (Pensées, 540, tradução do autor).

Este saborear, esta fusão de esforço e consecução é um fato da experiência que é fundamental para a existência e importância das atividades não utilitárias. A modo de compensação para a incerteza do resultado, e para a fadiga ou o perigo da atividade, o esforço é suavizado pelo objetivo e assim dá origem a uma experiência que é muito mais do que agradável, prazerosa ou estimulante; apesar de seu caráter muitas vezes penoso, tem uma qualidade bem conhecida, inebriante.

A interpretação acima, da ação não utilitária, é completada por uma visão alternativa que foi proposta pelo sociólogo Alessandro Pizzorno. Para ele, a participação na política muitas vezes se inicia porque dá a sensação de se pertencer a um grupo. Eu acrescentaria que a ação não utilitária em geral faz as pessoas se sentirem mais humanas. Tal ação pode então ser considerada, em termos econômicos, como um investimento em identidade individual e de grupo. Os que advogam este modo alternativo de explicar a ação utilitária poderiam invocar Jean-Paul Sartre, em vez de Pascal, como seu santo padroeiro, em face das seguintes palavras do diário da época da guerra, publicado após a morte de Sartre:

“Através de seus empreendimentos (o homem) não objetiva a autopreservação, como se tem dito, muitas vezes, nem o auto engrandecimento; antes, ele procura construir-se a si mesmo. E ao final de cada um destes empreendimentos, descobre que está de volta onde começou: completamente sem objetivo. Daí estas bem conhecidas decepções que se seguem ao esforço, ao triunfo, ao amor” (1983, p. 141; tradução e grifo do autor).

Em outras palavras, a sensação de haver conseguido pertencer a algo e de qualidade pessoal provavelmente será tão fugaz quanto a fusão de esforço e consecução que assinalei antes. As duas visões são tentativas relacionadas de alcançar uma compreensão particularmente difícil: pensar utilitariamente acerca do não utilitário.

Mas por que a economia deveria se preocupar com tudo isto? Não seria bastante para essa disciplina tentar uma descrição adequada das atividades utilitárias do homem - uma vasta área por si mesma - deixando de lado as demais áreas algo nebulosas? Até certo ponto um tal limite fazia sentido. Mas com a economia tornando-se mais ambiciosa, cresceu a importância de compreender que o modelo de meios e fins, de custo/benefício, está longe de cobrir todos os aspectos da atividade e da experiência humanas. Veja-se a análise da ação política, uma área pela qual os economistas passaram a se interessar como prolongamento natural de seu trabalho sobre bens públicos. Aqui, o descaso do modo não utilitário de ação foi responsável pela incapacidade da abordagem econômica de compreender por que as pessoas se incomodam em votar e por que se engajam de tempos em tempos em ações coletivas.

Uma vez que se dedique alguma atenção ao modo não utilitário torna-se possível descrever estes fenômenos de outra maneira enigmáticos. É a fusão do esforço e da consecução, bem como o impulso de investir em identidade individual ou de grupo, que leva à conclusão exatamente oposta ao argumento da “carona” com respeito à ação coletiva: “como o resultado e o objetivo da ação coletiva são ... um bem público ao alcance de todos, a única maneira de um indivíduo elevar o benefício que lhe advém da ação coletiva é intensificar sua própria contribuição, seu esforço em nome da política pública que apoia. Longe de esquivar-se e tentar pegar uma carona, um indivíduo verdadeiramente interessado em engrandecer tentará ser o mais ativista possível ... “ (Hirschman, 1982Hirschman, Albert O., (1982). Shifting Involvements: Private Interest and Public Action, Princeton, N. J., Princeton University Press. , p. 86).

O argumento acima não significa, é claro, que os cidadãos nunca adotem o modo utilitário no que se refere à ação pelo interesse público. Pelo contrário, alguns deles podem muito bem passar de um modo para outro, e tais oscilações poderiam ajudar a explicar a instabilidade observada tanto no empenho individual como em muitos movimentos sociais em geral.

Uma melhor compreensão da ação coletiva não é de maneira alguma o único benefício que se pode obter com uma atitude mais aberta acerca da possibilidade da ação não utilitária. Como já se afirmou antes, existe uma forte afinidade entre atividades utilitárias e rotineiras, por um lado, e entre atividades não utilitárias e não rotineiras, por outro. Mas assim como assinalei a existência de atividades não rotineiras que são predominantemente utilitárias (no caso de um laboratório de pesquisa aplicada), também um trabalho rotineiro pode ter um componente mais ou menos não utilitário, como Veblen sublinhou em The Instinct of Workmanship. Ultimamente reforçou-se a convicção de que flutuações neste componente devem ser responsabilizadas pelas variações na produtividade do trabalho e por alterações na liderança industrial. Há uma grande diferença, assim parece, se as pessoas veem o seu trabalho apenas como ‘’uma ocupação’’ ou como parte de alguma realização coletiva.

Podemos voltar agora à nossa intenção inicial de complicar a análise do comportamento de escolha através do conceito de metapreferências. Uma aplicação importante deste conceito pode ser encontrada exatamente na decisão de um indivíduo de dedicar a maior parte do seu tempo e energia a atividades utilitárias às custas das não utilitárias, ou o contrário. Deslocamentos deste tipo podem significar uma troca real de um tipo de atividade para outro (por exemplo, da ação pública para ocupações privadas); frequentemente envolverão uma sequência de dois estágios em cujo transcurso um ator decide em primeiro lugar considerar, digamos, um envolvimento público através de lentes utilitárias antes de não utilitárias, e depois passa a sentir que deveria reduzir a atividade pública ou abandoná-la totalmente. Provavelmente, o que eu na realidade procurava (ou deveria procurar) em meu livro recente, Shifting Involvements (1982), era descrever uma oscilação entre os modos de ação utilitários e não utilitários, com os anelos pela felicidade individual ou pela pública servindo de manifestações concretas destes dois modos básicos.

“AMOR”: NEM RECURSO ESCASSO NEM HABILIDADE ACRESCENTÁVEL

A minha próxima intenção no complicar o discurso econômico também trata do lado da produção, mais especificamente com o papel de um importante pré-requisito ou ingrediente conhecido variavelmente como moralidade, espírito cívico, confiança, respeito a normas éticas elementares e assim por diante. A necessidade que qualquer sistema econômico viável tem deste fator é amplamente reconhecida. No entanto, existe desacordo quanto ao que acontece com este fator durante seu uso.

Há fundamentalmente dois modelos opostos de uso de fatores. O tradicional é construído com base em recursos dados, esgotáveis, que são incorporados ao produto. Quão mais escasso o recurso maior seu preço e menos será usado pela empresa econômica em combinação com outros fatores. Um modelo mais recente reconhece a possibilidade de “aprender fazendo” (Arrow, 1962Arrow, Kenneth J., (1962). “The Economic Implications of Learning by Doing”, Review of Economic Studies, 29, pp. 155-173. ). O uso de um recurso como a habilidade tem o efeito imediato de aperfeiçoar a habilidade, de ampliar (em vez de esgotar) sua disponibilidade. O reconhecimento deste tipo de processo foi uma percepção importante, estranhamente atrasada. E conduz a importantes conclusões heterodoxas de política, tal como a conveniência de subsidiar certos fatores “escassos”, uma vez que um aumento de seu uso induzido por subsídio conduzirá à oferta maior que, segundo o modelo mais tradicional, esperava-se ser produzida pela elevação do preço. Tentarei mostrar a seguir que nenhum destes dois modelos é capaz de refletir adequadamente a natureza do fator de produção que está sob discussão aqui.

Por ter sido dominante por muito tempo, o modelo do “recurso escasso” foi estendido a áreas onde sua validade é altamente duvidosa. Há uns trinta anos, Dennis Robertson escreveu um artigo tipicamente espirituoso intitulado “O que o economista economiza?” (1956). Sua muito citada resposta foi: amor, que ele chamou de “este escasso recurso” (p. 154). Robertson explicou, através de bem escolhidas ilustrações da cena econômica contemporânea, que era tarefa do economista criar um ambiente institucional e um padrão de motivação onde a menor carga possível fosse colocada, pelo objetivo do funcionamento da sociedade, sobre este “amor”, um termo por ele usado para englobar moralidade e espírito cívico. Assim argumentando, ele concordava, é claro, com Adam Smith, que celebrava a capacidade da sociedade de dispensar a “benevolência” (do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro) contanto que o “interesse” individual tivesse plena oportunidade. Robertson não invoca Smith, citando assim uma frase eficaz de Alfred Marshall: “O progresso depende primordialmente da medida em que as forças mais poderosas da natureza humana, e não apenas as mais elevadas, possam ser utilizadas para o aumento do bem social” (p. 148). Esta é mais uma maneira de afirmar que a ordem social está mais segura quando construída sobre o interesse em vez do amor ou da benevolência. Mas a intensidade da formulação de Robertson torna possível a identificação da falha neste modo recorrente de raciocínio.

Uma vez que o amor e a moralidade pública são vistos como recursos escassos, a necessidade de economizá-los parece evidente. No entanto, um momento de reflexão é suficiente para entender que a analogia não só é questionável, mas um tanto absurda - e, portanto, engraçada. Tome-se, por exemplo, o caso bem conhecido da pessoa que dirige na hora do pico matinal e graceja, após ceder a passagem a outro motorista: “Já fiz a minha boa ação de hoje, de agora em diante posso agir como um maluco’’. O que chama a atenção aqui como engraçado e absurdo é exatamente a suposição, de parte do nosso motorista, de que ele está munido de uma dose estritamente limitada de boas ações, de que, em outras palavras, o amor deveria ser tratado como recurso escasso, como argumentou Robertson. Sabemos instintivamente que a oferta de recursos como amor ou espírito público não é fixa ou limitada como pode ser o caso de outros fatores de produção. A analogia é falha por duas razões: em primeiro lugar, são recursos cuja oferta pode muito bem crescer em vez de diminuir com o uso; em segundo lugar, esses recursos não permanecem intactos se não forem usados: como a habilidade de falar um idioma estrangeiro ou de tocar piano, esses recursos morais provavelmente se exaurirão e atrofiarão se não usados.

Então, numa primeira abordagem, a receita de Robertson parece baseada numa confusão entre o uso de um recurso e a prática de uma habilidade. Enquanto as habilidades e capacidades humanas são valiosos recursos econômicos, a maioria delas responde positivamente à prática à maneira de aprender fazendo, e negativamente à falta de prática. (Apenas umas poucas habilidades - natação e ciclismo, por exemplo - parecem permanecer no mesmo nível apesar de prolongada falta de exercício: uma vez adquiridas, é virtualmente impossível perdê-las ou esquecê-las. Em contrapartida, tais habilidades frequentemente não são muito melhoradas pela prática acima do nível de cada um.)

Foi a partir dessa dinâmica da atrofia - quão menores as exigências de espírito público pela ordem social, maior a exaustão da oferta de espírito público - que o sociólogo inglês Richard Titmuss criticou o sistema estadunidense de obtenção de um estoque adequado de sangue humano para fins médicos, com seu apoio apenas parcial na doação voluntária. E um economista político britânico, Fred Hirsch, generalizou o tema: uma vez que um sistema social, como o capitalismo, convence cada cidadão de que se pode dispensar a moralidade e o espírito público, com a busca universal do interesse individual sendo tudo que se necessita para um desempenho satisfatório, o sistema minará sua própria viabilidade, que de fato tem como premissa o comportamento cívico e o respeito de certas normas morais em muito maior medida do que é admitido pela ideologia oficial do capitalismo.

Como é possível conciliar as observações de Titmuss e Hirsch com as aparentemente opostas, mas certamente não sem fundamento, de Robertson, Adam Smith e Alfred Marshall? A verdade é que, em sua inclinação pelo paradoxo, Robertson prestou um desserviço à sua tese: ele expôs seu flanco a um ataque fácil quando igualou o amor a um fator de produção com oferta estritamente limitada que deve ser economizado. No entanto, o que acontece com a analogia alternativa, que iguala amor, benevolência e espírito público a uma habilidade que é melhorada com a prática e atrofiada sem ela? Essa, também, tem os seus pontos fracos. Embora o espírito público se atrofie se for submetido a poucas exigências, não é absolutamente certo que a prática da benevolência tenha um efeito indefinidamente positivo de realimentação da oferta desta “habilidade”. A prática da benevolência produz satisfação (“faz você se sentir bem”), certamente, e assim se alimenta a si mesma até certo ponto, mas este processo é muito diferente da prática de uma habilidade manual (ou intelectual): aqui a prática conduz a maior destreza, que é habitualmente uma soma líquida às habilidades do indivíduo, ou seja, não é adquirida às custas de alguma outra habilidade ou capacidade. No caso da benevolência, por outro lado, rapidamente se atinge o ponto em que o aumento do seu exercício entra em conflito com o interesse próprio e mesmo com a autopreservação: voltando à piada do motorista, ele não esgota seu estoque diário de benevolência cedendo passagem uma vez, mas certamente haverá algum limite ao seu comportamento benevolente no trânsito, em consideração às suas próprias necessidades vitais - talvez até eticamente motivadas - de deslocamento.

Robertson tem razão, portanto, quando sustenta que poderia haver arranjos institucionais que fizessem exigências excessivas sobre o comportamento cívico, assim como Titmuss e Hirsch estavam certos em assinalar o perigo oposto: a possibilidade de que a sociedade faça exigências insuficientes ao espírito cívico. Em ambos os casos, há um desgaste do espírito público, mas, nos exemplos apontados por Robertson e outros, o remédio consiste em arranjos institucionais que coloquem menos peso no espírito cívico e mais no interesse individual, enquanto nas situações que chamaram a atenção de Titmuss e Hirsch, há necessidade de maior ênfase e maior prática de valores comunitários e benevolência. Esses dois grupos argumentam em linhas exatamente opostas, mas ambos têm certa razão. Amor, benevolência e espírito cívico não são fatores escassos com oferta fixa nem se comportam como habilidades e capacidades que melhoram e se expandem mais ou menos indefinidamente com a prática. Antes, mostram um comportamento complexo, composto: atrofiam-se quando não exercidos adequadamente e exigidos pelo regime socioeconômico vigente, porém se tornarão novamente escassos se preconizados e exercidos em excesso.

Para tornar as coisas mais difíceis, a localização precisa destas duas zonas de perigo - que, incidentalmente, podem corresponder aproximadamente aos males complementares das sociedades capitalistas e de planejamento centralizado de hoje - não é de modo algum conhecida, nem são estas zonas permanentemente estáveis:

Um regime ideológico institucional, que em tempo de guerra ou durante outros períodos de tensão e fervor público é ideal para mobilizar as energias e esforços da cidadania, deve prudentemente dar lugar a outro que apele mais para o interesse privado e menos para o espírito cívico num período subsequente, de menor exaltação. Inversamente, um regime do último tipo pode dar origem, devido à consequente “atrofia dos valores públicos” (Taylor, 1970Taylor, Charles, (1970). The Pattern of Politics, Toronto. McClelland and Stewart. , p. 123), à anomia e indisposição de sacrificar os interesses privados ou de grupo em favor do bem-estar público, de modo que seria pertinente a volta a um regime de orientação mais comunitária.

CONCLUSÃO

Prometi, anteriormente, examinar se as várias complicações dos conceitos tradicionais que foram apresentadas tinham qualquer estrutura em comum. A resposta parece evidente: todas estas complicações fluem de uma única fonte - a incrível complexidade da natureza humana que não foi considerada pela teoria tradicional por muito boas razões, mas que deve ser reintroduzida nas conclusões tradicionais com o objetivo de dar-lhes maior realismo.

Um apelo ao reconhecimento desta complexidade estava implícito em minha insistência anterior de que a “opinião” tivesse reconhecido seu papel em certos processos econômicos juntamente com o “êxito” ou competição. O agente econômico eficiente da teoria tradicional é essencialmente um explorador silencioso e “estatístico de alto nível” (Arrow, 1978Arrow, Kenneth J., (1978), “The Future and the Present in Economic Life”, Economic Inquiry, 16, p. 160. ), enquanto eu argumentava que ele também possui consideráveis dons de comunicação verbal e não verbal e de persuasão que o capacitarão a influir nos processos econômicos.

Outra característica fundamental dos seres humanos é que são seres que se avaliam, talvez os únicos entre os seres vivos. Este simples fato forçou a inclusão da metapreferência na teoria de escolha do consumidor e tornou possível fazer uma distinção entre dois tipos fundamentalmente diferentes de mudanças de preferência. A função de autoavaliação poderia ser considerada uma variante da função de comunicação ou de opinião; também consiste em que uma pessoa se dirige a alguém, critica ou convence, mas esse alguém é agora o próprio ego, antes de um fornecedor ou uma organização de que se faça parte. Mas tenhamos cuidado com a excessiva parcimônia!

Além de ser dotada com tais capacidades como comunicação, persuasão e autoavaliação, a humanidade está possuída de tensões várias, fundamentais, não resolvidas e talvez sem solução. Uma tensão deste tipo é aquela entre modos de comportamento e ação utilitários e não utilitários. A economia tem-se concentrado, por muito boas razões, inteiramente no modo utilitário. Defendo aqui uma preocupação com o modo oposto, baseando-me em que: 1) não é totalmente impertinente para o raciocínio econômico; 2) nos ajuda a compreender questões que têm sido consideradas enigmáticas, tais como a ação coletiva e as alterações na produtividade do trabalho.

Finalmente, voltei-me para outra tensão com que a humanidade deve viver, resultante do fato de que vivemos em sociedade. É a tensão entre o ego e os outros, entre o interesse próprio, por um lado, e a moralidade pública, serviço à comunidade ou mesmo o sacrifício abnegado, por outro, ou entre “interesse” e “benevolência” nas palavras de Adam Smith. Mais uma vez, a economia concentrou-se maciçamente em um termo da dicotomia, ao mesmo tempo que apresentava propostas simplistas e contraditórias sobre como tratar do outro termo. A contradição pode ser resolvida com maior atenção à natureza especial da moralidade pública como um “fator”.

Em suma, compliquei o discurso econômico tentando incorporar a ele dois dons humanos básicos e duas tensões básicas que são parte da condição humana. Na minha opinião, trata-se apenas de um começo.

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  • 1
    Versões menores deste trabalho foram publicadas na American Economic Review, vol. 74, maio 1984, pp. 89-96, e em Bulletin. The American Academy of Arts and Sciences, vol. 37, maio 1984, pp. 11-28. Traduzido por Jalmar Nordin Carlson.
  • 2
    “Os legisladores fazem bons cidadãos incutindo-lhes (bons) hábitos, e este é o objetivo de todo legislador, se não tiver êxito em fazê-lo, sua legislação é um fracasso. É nisto que uma boa constituição difere de uma ruim.” (AristótelesAristoteles, (1962), Nicomachean Ethics, trad. Martin Ostwald, Indianapolis, Bobbs-Merrill. , Nicomachean Ethics, 1103b.)
  • 3
    JEL Classification: B41; B25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1987
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