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Reforma da previdência e graus de solidariedade

Social Security Reform and Degrees of Solidarity

RESUMO

O artigo apresenta brevemente a análise de Pierre Rosanvallon da Welfare State Crysis, a fim de lançar alguma luz sobre o presente debate sobre a Reforma da Segurança Social Brasileira. Em especial, são discutidos o conceito de justiça e a coesão social incorporada em algumas medidas propostas para trazer equilíbrio financeiro de longo prazo ao sistema.

PALAVRAS-CHAVE:
Bem-estar social; justiça, coesão social; sociologia econômica

ABSTRACT

The paper briefly presents Pierre Rosanvallon’s analysis of the Welfare State Crisis in order to shed some light to the present debate about the Brazilian Social Security Reform. In special the concept of justice and the social cohesion embedded in some measures proposed to bring long term financial equilibrium to the system are discussed.

KEYWORDS:
Social welfare; justice; social cohesion; economic sociology

A intenção do governo atual de promover a Reforma da Previdência tem gerado uma discussão acalorada no momento, como era de esperar, dados os interesses envolvidos no processo, que implica perdas e ganhos para diversos setores da sociedade. Nesse contexto, a reflexão acadêmica construída com rigor e com o exame das situações em seus fundamentos pode contribuir para o debate trazendo luz para onde até o presente só se vivencia calor. Sendo assim serão retomados brevemente neste texto alguns pontos abordados por Pierre Rosanvallon no livro A Nova Questão Social1 1 Rosanvallon, Pierre (1998). A Nova Questão Social: Repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela. , que trata dos “princípios fundamentais da organização da solidariedade e a própria concepção dos direitos sociais” (1998: 23) que estão implicados numa revisão do Sistema de Seguridade Social, do qual o regime previdenciário, ora em discussão, constitui um de seus componentes mais importantes.

O texto de Rosanvallon é importante porque explicita a noção de que formas alternativas de financiamento e de prestação de serviços de Seguridade Social não têm efeitos apenas econômicos. Chama a atenção para os efeitos em termos de justiça social e formas de solidariedade implícitos nessas medidas, ponto que tem recebido muito pouca atenção no debate recente.

O autor reconhece que os gastos com os diversos benefícios sociais, bem como a ineficiência do aparelho redistributivo e as modalidades de organização e de gestão do Estado Providência representam uma parte essencial do problema. Mas alerta que a crise do Estado Providência envolve, sobretudo, uma mudança decisiva na percepção do social. Representa uma crise filosófica que “obriga à reconsideração das expressões habituais do contrato social, a reformular a definição do que é justo e eqüitativo, a reinventar as formas da solidariedade social” (Rosanvallon, 1998: 26, grifos meus).

No exame dos diferentes mecanismos sociais de proteção do indivíduo contra a insegurança da existência, que constituem as ações de seguridade social, o autor procura explicitar os seus pressupostos e princípios no que se refere a: origem da incerteza que os fundamenta, forma como os custos aparecem e por quem são arcados, critérios de justiça e de solidariedade subjacentes e grau de solidariedade neles implícito. O autor entende que a solidariedade se caracteriza por uma ação positiva de distribuição. É tanto maior quanto maior a redistribuição vertical que promove entre diferentes classes de renda. Já a justiça refere-se a uma norma reconhecida como legítima para a realização dessa distribuição.

Considera que, em princípio, todo sistema securitário é redistributivo, mas em alguns casos sua redistribuição é puramente compensatória, procurando apenas anular danos. Outros sistemas de seguridade têm desenvolvido mecanismos de redistribuição vertical, entre diferentes classes de renda, e são, portanto, essencialmente solidários.

Rosanvallon trabalha com três modelos para conceber o vínculo social: o mercado (funcionando como uma mão invisível para associar economicamente os indivíduos), o seguro (agindo como uma espécie de mão invisível da solidariedade) e o contrato (resultante da confrontação política). A partir desses modelos podem ser deduzidos cinco sistemas de seguridade possíveis que se diferenciam em função de um ou mais pressupostos e princípios mencionados anteriormente, a saber: origem da incerteza que os fundamenta, forma como os custos aparecem e por quem são arcados, critério de justiça e de solidariedade subjacentes e grau implícito de solidariedade. No quadro anexo esses sistemas estão representados sinteticamente.

O primeiro caso é o do sistema no qual a insegurança e a incerteza são entendidas como tendo origem no comportamento do próprio indivíduo. Este não foi previdente o suficiente para gerar uma poupança que garanta a sua sobrevivência num momento de crise. Justa é considerada a situação na qual o indivíduo é compensado pelo seu próprio esforço e, por essa razão, não há nenhum grau de solidariedade associado a esse sistema, pois a idéia é de que cada indivíduo tome conta de si mesmo.

No segundo caso, a situação de insegurança representada por um dano pode ser imputada ao comportamento irresponsável de um outro indivíduo, que deve assumir a responsabilidade pela indenização. Considera-se justo que o prejuízo seja reparado por quem o causou e existe um grau de solidariedade baixo, que vai depender da circunstância na qual o dano foi causado e da condição social dos autores envolvidos. Efeitos sociais não são decorrência do reforço do vínculo interindividual, mas do aperfeiçoamento da lógica individualista. Esse sistema de seguridade reflete uma exacerbação dos direitos civis como alternativa à solidariedade. Entretanto, é necessário minimamente um acordo entre as partes sobre a responsabilidade e a indenização devida, bem como alguma forma social que garanta que esse acordo seja cumprido.

No terceiro caso, tem-se a situação clássica do seguro que baseou a construção do Estado Providência, da forma como é identificado historicamente: a instituição de uma sociedade securitária baseada no princípio da socialização da responsabilidade (passagem da noção de culpa à de risco). A incerteza está associada aos riscos da existência. A solidariedade é dada pelo sentido de eqüidade dos indivíduos perante esses riscos, que assim se dispõem a fazer contribuições para a formação de um fundo que os ampare nos momentos difíceis. A justiça é garantida por um mecanismo de redistribuição que garante a todos os contribuintes um tratamento segundo processos iguais. O grau de solidariedade é médio porque apenas os que contribuem para o fundo são dele beneficiários: este é o caso típico em que os custos são arcados por contribuições sociais.

O quarto caso é semelhante ao terceiro. A única diferença é que os custos são arcados pela sociedade como um todo por meio de tributos. Neste caso, a justiça é garantida pelo tratamento por processos de caráter universal e o grau de solidariedade implícito é alto. Segundo Rosanvallon, este caso descreve o Estado do BemEstar, cujos princípios entraram em crise a partir da década de 70.

O princípio securitário em que se baseava o Estado Providência pressupunha a igualdade dos indivíduos diante dos diferentes riscos que podiam afetar sua vida. A desconsideração dos dados individuais em prol de características gerais da população, de natureza estatística era assim uma condição implícita do sentimento de eqüidade. O progresso do conhecimento das desigualdades existentes entre os homens passou a permitir considerar as determinações da natureza, as variáveis de comportamento, como fatores de diferenciação, reduzindo o papel dos resultados da sorte.

O conhecimento dessas diferenças pode afetar o sentimento de solidariedade dos indivíduos: se os indivíduos sabem que serão poupados de uma doença grave, de tratamento muito custoso, aceitarão continuar pagando as mesmas contribuições para o seguro-doença pagas pelos que estão geneticamente condenados a desenvolver essa afecção? Se sabem que serão beneficiados durante menos tempo pela aposentadoria, por que deveriam aceitar o pagamento de uma contribuição igual a dos outros? A solidariedade se torna, por definição, um conceito fundamentado no tratamento diferenciado dos indivíduos, portanto não pode mais derivar da aplicação de uma norma fixa, de caráter universal. Sendo assim, é preciso repensar a solidariedade conhecendo mais claramente qual é a situação e quais as possibilidades de cada pessoa. As normas de justiça aceitáveis serão definidas por meio da interação direta dos grupos e dos indivíduos. A prática da solidariedade torna-se mais diretamente política.

Frente a essa crise do Estado Providência, o autor coloca duas questões. A primeira, de natureza filosófica, diz respeito a qual princípio de justiça o novo Estado Providência deve ser fundamentado, já que a simples mutualização dos riscos sociais não é mais possível. A segunda, aparentemente mais técnica, é de considerável amplitude: se a transferência para um sistema em sua essência mais cívico não implica passar do financiamento mediante contribuições sociais para o financiamento por meio de imposto (Rosanvallon, 1998: 56).

A reconstrução de um novo Estado Providência não é evidente e implica um reforço do sentimento de participação na comunidade. Daí se tem o quinto caso de sistema de seguridade apresentado pelo autor, no qual a origem da incerteza está associada a diferenças individuais e a sociedade arca com os custos sob forma do pagamento de impostos. A solidariedade passa a ser associada ao sentimento cívico de pertencer a uma comunidade e o critério de justiça, ou seja, o critério segundo o qual a redistribuição que fundamenta a solidariedade será feita, terá que ser objeto de ampla deliberação.

Fazendo a análise nesses termos, o autor torna claro que diferentes alternativas que visam garantir maior equilíbrio atuarial do Sistema de Previdência ou aumentar a eficiência na aplicação de seus recursos - pretensos objetivos da atual reforma - se assentam sobre fundamentos de justiça diversos, que precisam ser discutidos e implicam diferentes graus de solidariedade.

Por essa razão, mais do que tudo é necessário que o debate sobre a reforma seja o mais amplo possível, não apenas para que seja discutido que tipo de Previdência a sociedade deseja e quanto se dispõe a pagar por ela, mas porque o que está em jogo finalmente é o grau de coesão social com o qual a sociedade brasileira deseja conviver. É importante que não sejam colocadas soluções a priori, por mais racionais do ponto de vista econômico que possam parecer. Pois, se a intenção do atual governo eleito democraticamente, com a autoridade que lhe foi conferida pelo resultado das urnas, é a de fazer uma reforma efetiva do Sistema de Previdência, a sociedade como um todo deve poder participar da negociação relativa ao critério de justiça implicado no novo sistema, bem como se manifestar relativamente ao grau de solidariedade desejado.

Rosanvallon alerta que apenas a ampla deliberação pública - que só é possível no Estado democrático - pode levar à definição dos critérios de justiça e solidariedade pretendidos no novo sistema de seguridade. Assim é o próprio Estado democrático que é condição fundamental para que a atual reforma da Previdência prospere, ao possibilitar a ampla negociação entre os diversos atores sociais.


Características dos diferentes sistemas de seguridade social possíveis

  • 1
    Rosanvallon, Pierre (1998). A Nova Questão Social: Repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela.
  • JEL Classification: Z130.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2003
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