Acessibilidade / Reportar erro

Financiamento do desenvolvimento agrícola

Financing agricultural development

RESUMO

Mesmo com a diminuição natural da participação relativa do setor agrícola à medida que as economias se desenvolvem, ele continua a ser um setor central, principalmente para as economias que ainda não alcançaram grandes níveis de desenvolvimento. Este artigo tem como objetivo explicar como esse importante setor tem sido (ou não) financiado nas últimas décadas e como isso impacta o desenvolvimento agrícola.

PALAVRAS-CHAVE:
Agricultura; financiamento agrícola; desenvolvimento econômico

ABSTRACT

Even with the natural decrease in relative participation of the agricultural sector as economies develop, it continues to be a pivotal sector, particularly for those economies that have not yet achieved great development levels. This paper aims to explain how this important sector has been (or not) financed for the past decades and how this impacts agricultural development.

KEYWORDS:
Agriculture; agricultural finance; economic development

1. AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

O setor agrícola ocupa papel fundamental na economia dos países em desenvolvimento, sendo responsável por uma elevada parcela do nível de emprego, renda e receitas de exportação. Cerca de 70-80% da força de trabalho dos países em desenvolvimento de baixa renda está empregada no setor agrícola, sendo que para o grupo de países em desenvolvimento de renda média esta proporção é ainda relativamente elevada, situando-se em torno de 35-55% do total.

Com relação à renda, aproximadamente 35-45% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países de renda baixa é proveniente da agricultura, sendo que para o grupo de países em desenvolvimento como um todo, a parcela do setor agrícola no PIB situou-se em torno de 20% no início dos anos oitenta.1 1 The World Bank, World Development Report. Washington, 1986.

Um grande número de países de baixa renda depende do setor agrícola para a geração de divisas necessárias ao crescimento econômico. Durante o período 1980-84, cerca de 68% das exportações africanas originaram-se na agricultura, sendo que para o grupo de países de baixa renda esta parcela situou-se em torno de 33% durante o mesmo período. Colocando-se de uma outra forma, constata-se que durante o período 1979-83, cerca de trinta países em desenvolvimento obtiveram mais de 60% de suas receitas de exportação a partir do setor agrícola.2 2 The World Bank, World Devepopment Report. Washington, 1986.

Apesar de sua magnitude, contudo, a parcela da agricultura no nível de renda, emprego e receita de exportação tende a declinar com o crescimento econômico devido a três razões básicas. Em primeiro lugar, o crescimento da renda real per capita fez com que uma parcela cada vez menor da mesma seja utilizada para alimentação (efeito Engel). Uma evidência desse processo é que a agricultura representa apenas 3% do PIB dos países industrializados (de renda per capita mais elevada). Em segundo lugar, o próprio processo de desenvolvimento faz com que a força de trabalho agrícola seja transferida para os centros urbanos sem prejuízo da produção do setor (em parte devido ao progresso tecnológico). Por exemplo, no início dos anos oitenta, somente 7% da força de trabalho dos países industrializados estava empregada em atividades agrícolas. Em terceiro lugar, a queda da parcela do setor agrícola na receita de exportação ocorre devido à diversificação produtiva que advém com o crescimento econômico, o que resulta em uma parcela crescente das exportações sendo atribuída a produtos manufaturados.

Não obstante sua parcela na economia declinar com o processo de desenvolvimento, o setor agrícola continua a desempenhar um papel fundamental na viabilidade do mesmo através de três mecanismos. O primeiro refere-se ao fato de que a tributação explícita da agricultura tem sido, historicamente, uma fonte importante de receitas públicas. Estimativas obtidas em um recente estudo com um grupo de 31 países em desenvolvimento durante o período 1973-79 indicam que impostos sobre a exportação agrícola foram responsáveis por mais de 20% da arrecadação fiscal em quatro países e por mais de l0% em quinze deles.3 3 Richard Goode, Government Finance in Developing Countries. The Brookings Institution, Studies in Government Finance, Washington, 1984. Na Argentina, aproximadamente 50% da renda agrícola medida a custo de fatores foi extraída do setor durante o período 1940- 72 através de impostos de exportação.4 4 D. Cavallo and Y. Mundlak, Agriculture and Economic Growth in an Open Economy: the case of Argentina. International Food Policy Research Institute Report 36, Washington, 1982.

Além da tributação das exportações, a agricultura historicamente sofreu um processo de tributação implícita, através da qual recursos agrícolas eram transferidos para outros setores como resultado de uma vasta gama de políticas econômicas. Entre estas, destacam-se aquelas relacionadas aos preços recebidos pelos produtores, margens e custos de comercialização, taxas de câmbio e fluxos comerciais. Por exemplo, uma sobrevalorização da moeda doméstica (resultante da política cambial) em países exportadores de produtos primários representa uma tributação implícita da agricultura, na medida em que os termos de troca domésticos são alterados em favor dos setores não-agrícolas (voltados ao mercado interno). Estimativas empíricas para o Brasil indicam uma redução de 18% e 27% nos níveis de emprego e utilização de capital agrícola, respectivamente, como resultado dessa tributação implícita.5 5 M. R. Lopes e G. E. Schuh, “A mobilização de recursos da agricultura: uma análise de política para o Brasil”. Comissão de Financiamento da Produção (CFP), coleção Análise e Pesquisa, 1980. Em geral, a tributação implícita da agricultura é resultado de políticas de estabilização macroeconômica que visam ao crescimento da renda e emprego, controle inflacionário e equilíbrio externo. Um estudo recente da FAO sobre políticas de preço agrícolas evidencia esse processo, particularmente no contexto dos países africanos.6 6 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), Agricultural Price Policies. Document C85/19, Rome, 1985.

O segundo aspecto relacionado à contínua importância da agricultura no processo de desenvolvimento refere-se aos preços agrícolas. Na medida em que os produtos agrícolas se constituem bens “básicos” (wages good), preços agrícolas em ascensão pressionam os salários nominais para cima, comprimindo dessa forma os lucros industriais. Menores lucros reduzem a taxa de retorno dos investimentos na indústria e o montante de capital disponível para novos investimentos.7 7 A discussão seminal desse mecanismo está contida em John Mellor, “The functions of agricultural prices in economic development”. Indian Journal of Agricultural Economics, n 23, janeiro-março 1968. Além disso, naqueles países onde existe um salário-mínimo institucional, o nível é estabelecido levando-se em conta uma cesta de produtos básicos, dos quais os alimentos são um componente importante. Em suma, o controle de pressões inflacionárias através de alimentos baratos, elemento básico da política econômica dos países em desenvolvimento, requer um desempenho agrícola satisfatório.

II. DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA: O ENFOQUE TRADICIONAL

A seção anterior ressaltou a importância do setor agrícola nas economias em desenvolvimento. Esta constatação formou a base de um processo de canalização substancial de recursos para o setor, a partir dos anos sessenta, em um contexto geral de cooperação internacional para o desenvolvimento econômico. A proposição básica desse enfoque era de que economias pré-industriais e relativamente atrasadas poderiam ser lançadas em uma trajetória de transformação econômica e social sem uma dependência prolongada da ajuda concessional.8 8 Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), Twenty-five Years of Development Cooperation. Paris, 1985.

Esse enfoque era viável somente na medida em que o ambiente econômico permitisse uma elevada provisão de crédito e fluxos de assistência econômica, além de gastos públicos crescentes. Com efeito, as condições econômicas mundiais que antecederam os anos oitenta eram extremamente favoráveis a esse enfoque: os países em desenvolvimento tinham amplo acesso a créditos internacionais, os preços do petróleo eram relativamente baixos e as taxas de juros internacionais eram estáveis. Além disso, alguns países exportadores de produtos primários tiveram seus termos de troca externos melhorados como resultado da alta dos preços desses produtos nos anos setenta.

A disponibilidade de recursos financeiros externos a um custo relativamente baixo foi talvez um dos fatores mais importantes na determinação do padrão de desenvolvimento das duas últimas décadas. A hipótese de que a carência de capital e divisas constituía a principal restrição ao crescimento econômico fez da assistência externa uma importante fonte de financiamento para o mesmo. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) identifica três períodos principais com relação às atividades do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (DAC)9 9 OECD, op. cit., p. 92. . Durante os anos cinquenta e meados dos anos sessenta, a assistência econômica expandiu-se rapidamente, estabilizando-se a partir de meados dos anos sessenta até os anos setenta. Neste segundo período, a redução da assistência dos EUA foi compensada por aquela proveniente de “novos doadores”. Uma nova rodada de assistência, via DAC, ocorreu nos anos setenta devido ao choque dos preços do petróleo e aos efeitos da recessão mundial. Em termos agregados, o nível de assistência econômica durante o período 1950-55 atingiu 8 bilhões de dólares (a preços e taxas de câmbio de 1983), tendo crescido 300% até o período 1975-76, quando alcançou 32 bilhões de dólares.

Além da assistência externa, um importante mecanismo de canalização de recursos financeiros para programas de desenvolvimento é o déficit fiscal. O setor público utiliza-se de recursos domésticos e externos para financiar déficits crescentes. Sendo a taxa de poupança dos países em desenvolvimento relativamente reduzida - o que limita a capacidade de se financiar o déficit fiscal por meio de recursos domésticos - os empréstimos externos constituíram-se, historicamente, a principal fonte de financiamento do déficit fiscal. Um aspecto negativo desse mecanismo é que ele tende, em geral, a criar um déficit na conta corrente do balanço de pagamentos (discutido detalhadamente mais adiante).

Dessa forma, o cenário macroeconômico durante as duas décadas que precederam os anos oitenta era extremamente favorável a programas de desenvolvimento baseados na disponibilidade de assistência externa e políticas fiscais domésticas expansionistas. Como resultado, o crescimento agrícola durante esse período baseou-se em uma combinação de despesas governamentais e recursos financeiros externos abundantes e pouco onerosos. Vários países estimularam o crescimento agrícola através de investimentos em infraestrutura rural, expansão da capacidade de irrigação e controle de enchentes, além do fortalecimento da pesquisa e extensão rural. Esse padrão de política agrícola - classificada como ‘’ redutora de custos’’ na medida em que promove o deslocamento contínuo da curva de oferta agregada do setor - foi viabilizado por meio do repasse daqueles recursos financeiros para a agricultura através dos gastos públicos. Estimativas da FAO baseadas em uma amostra de trinta países durante o período 1970-83 indicam que os gastos governamentais na agricultura foram, em média, equivalentes a 10% do PIB agrícola e 9% dos gastos públicos totais.

Além das políticas mencionadas acima, outras medidas tais como programas de subsídios para compra de insumos, mecanização e crédito rural também visavam à redução dos custos de produção como uma forma de expansão agrícola. Estimativas do Banco Mundial para o início dos anos oitenta indicam taxas de subsídios para fertilizantes raramente abaixo de 30% do custo total de produção, alcançando 80-90% em alguns países.10 10 The World Bank, World Development Report. Washington, 1986.

Os argumentos econômicos em favor de uma política de subsídios a insumos agrícolas incluem: superação da aversão ao risco e restrições creditícias; apoio a pequenos produtores; manutenção da fertilidade dos solos; acréscimo da produção daqueles produtos tidos como prioritários; e compensação dos efeitos negativos de políticas de preço e tributárias. Além destes, existe uma argumentação teórica em favor dessa política, segundo a qual os subsídios são um dos componentes de um pacote fiscal que minimiza o custo de eficiência resultante do objetivo de se gerar um dado nível de receita fiscal a partir dos produtores rurais.

Além de subsidiar o uso de insumos, vários países promoveram a mecanização agrícola através de uma política de subsídios. Estes tomaram a forma de subsídios explícitos - tais como tratamento tarifário e/ ou tributário preferencial - ou implícitos, que resultam, por exemplo, de uma taxa de câmbio sobrevalorizada. Em ambos os casos, contudo, uma política de subsídios só é viável na medida em que o controle do déficit fiscal não seja prioritário.

Programas de subsídio ao crédito rural foram também utilizados por vários países em desenvolvimento. Esta política era geralmente adotada com o objetivo de promover uma produção eficiente, além de transferir renda para os produtores mais pobres. O orçamento desses programas representava uma parcela considerável dos gastos públicos: no Brasil, o custo real dos empréstimos realizados a taxas de juros subsidiadas havia alcançado, no final dos anos setenta, um nível equivalente a mais de 5% do PIB.

Um enfoque de política agrícola alternativo àquele de “redução de custos” consiste na política de sustentação de preços agrícolas. A diferença básica reside no fato de que, ao invés de se utilizar a redução dos custos de produção (deslocamento da curva de oferta) para se aumentar/estabilizar a renda rural, utiliza-se a estabilização/acréscimo dos preços pagos aos produtores. A grande variabilidade observada nos preços agrícolas, especialmente durante os anos setenta, induziu vários países em desenvolvimento a tentar mecanismos de estabilização de preços que visavam proteger os produtores das quedas de preço acentuadas, e os consumidores das elevações bruscas de preços. Esses mecanismos incluem a criação de agências públicas de comercialização de produtos primários (trade/marketing boards), as quais constituem monopólios operadores de estoques reguladores (buffer stocks), além da criação de programas de preços mínimos agrícolas. Em ambos os casos, contudo, aquisições da safra agrícola por parte de agências estatais impõem pressões de custo significativas ao já precário orçamento fiscal desses países.

Outras políticas de preços agrícolas incluem programas de preços-meta (target-prices) e preços-suporte (support-price). Um programa de preços-meta paga aos produtores a diferença entre o preço-meta e o preço de mercado, através de um “deficiency payment”. Sob um programa de suporte de preços, a remuneração dos produtores é determinada através de uma margem acima do preço vigente no mercado, criando dessa forma um diferencial entre os preços recebidos pelos produtores e aqueles pagos pelos consumidores. Ambos os programas são utilizados principalmente por países industriais com o objetivo de ‘’calibrar’’ a produção e renda agrícolas, e são financiados através dos gastos públicos.

III. A NECESSIDADE DE NOVOS ENFOQUES AO FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA

Vimos na seção anterior o conjunto de políticas comumente utilizadas pelos países em desenvolvimento para a obtenção de elevadas taxas de crescimento da agricultura. Conforme mencionado anteriormente, esse enfoque foi viável somente na medida em que havia disponibilidade de assistência financeira externa e o controle do déficit fiscal não era prioridade.

Além do ambiente macroeconômico favorável, o enfoque tradicional para o financiamento do desenvolvimento agrícola apoiava-se na convicção de que o conjunto de medidas prescrito seria eficaz em alcançar seus objetivos de aumentar a renda agrícola, reduzir a pobreza rural e acelerar o processo de adoção de tecnologia moderna.

Entretanto, as mudanças no sistema econômico mundial que ocorreram a partir do início da década de oitenta tiveram profundo impacto sobre as perspectivas de desenvolvimento de vários países. No nível macroeconômico, as mudanças mais importantes relacionaram-se à retração da assistência financeira externa aos países em desenvolvimento, juntamente com a necessidade de um maior controle sobre o déficit fiscal. No nível microeconômico, houve crescente evidência de fracassos associados ao enfoque tradicional de financiamento do desenvolvimento agrícola, principalmente no que se refere aos programas de subsídios de insumos e crédito agrícola. Nas seções seguintes faz-se uma avaliação desses fracassos ao nível microeconômico, assim como das restrições impostas ao nível macroeconômico.

A. Nivel microeconômico

Entre as políticas mais comumente utilizadas pelos países em desenvolvimento para expandir a produção agrícola destacam-se os programas de subsídios a insumos agrícolas e o crédito rural. Os programas tradicionais de crédito rural geralmente incluíam taxas de juros reduzidas, grandes injeções de recursos governamentais e/ou provenientes de “doadores” através de linhas de redesconto (em termos concessionais) nos bancos centrais, além de um extensivo processo de seleção dos empréstimos (loan targeting). Estas políticas vêm sendo criticamente avaliadas nos últimos anos devido às limitações dos resultados obtidos com esse enfoque. Entre os problemas mais comuns que afetaram esses programas destacam-se a inadimplência de vários produtores e os elevados custos de transação, os quais encarecem o custo dos empréstimos para produtores novos e ou pequenos, apesar de taxas de juros reduzidas.

Além desses problemas, a evidência sugere que programas de crédito subsidiado tiveram uma contribuição limitada em relação aos objetivos de aumento da produção agrícola, promoção de adoção de tecnologia moderna, ou redução da pobreza rural. Empréstimos subsidiados foram tampouco eficazes em redistribuir a renda da agricultura: como o valor do subsídio ao crédito é proporcional ao valor do empréstimo, os pequenos produtores em geral terminavam por receber subsídios menores, dado que tomavam empréstimos menores. Tentativas de condicionar os empréstimos subsidiados para determinadas culturas foram dificultadas pela fungibilidade característica dos instrumentos financeiros. Finalmente, existe o aspecto de que, em geral, programas de crédito subsidiado foram prejudiciais ao funcionamento dos mercados financeiros rurais e ao sistema fiscal.

Políticas de subsídio de insumos, por sua vez, também tiveram sucesso limitado na realização de seus objetivos. Subsídios de fertilizantes em geral resultaram em racionamento do volume a ser distribuído, com os grandes produtores recebendo a maior parte dos benefícios do programa. Naqueles casos onde esses programas utilizaram-se de sistemas públicos de distribuição, foram constatados problemas adicionais tais como: entregas atrasadas, variedades limitadas, uso errático (em função do racionamento) e marginalização de distribuidores privados. Com relação às políticas de subsídios à mecanização, em geral elas tendem a beneficiar grandes produtores e regiões com infraestrutura razoável, provendo dessa forma uma vantagem competitiva aos produtores mais ricos.

B. Nível macroeconômico

Existem duas restrições básicas, ao nível macroeconômico, que reforçam a necessidade de se encontrar enfoques alternativos para o financiamento do desenvolvimento agrícola: o acesso limitado ao crédito externo e a necessidade de se controlar o orçamento fiscal do Estado.

O financiamento externo tem constituído uma severa restrição para vários países em desenvolvimento, na medida em que a extensão de novos créditos ao setor público foi drasticamente reduzida a partir de 1982. Estimativas do Banco Mundial indicam que o montante de novos capitais privados destinado aos países em desenvolvimento declinou de um pico de 64.2 bilhões de dólares em 1981 para 36.3 bilhões de dólares em 1984. Para o grupo de países altamente endividados, esse montante reduziu-se em mais de dois terços durante o mesmo período. Os fluxos de capitais líquidos de longo prazo destinados, aos países em desenvolvimento também mostraram um declínio a partir de 1981: de um pico em torno de 74.6 bilhões de dólares naquele ano, esses fundos reduziram-se a 35.5 bilhões de dólares em 1984, evidenciando uma queda de 52% nesse período. Esse declínio foi ainda mais drástico no caso dos países altamente endividados, para os quais esse fluxo de capitais caiu 76%, de 43 bilhões de dólares em 1981 para 10 bilhões de dólares em 1985.11 11 The World Bank, World Development Report. Washington, 1986

Os problemas criados pela reduzida disponibilidade de empréstimos externos induziram vários países a iniciar programas de estabilização baseados na redução das despesas agregadas. Políticas direcionadas à redução dos gastos governamentais, aumento da tributação, realinhamento da taxa de câmbio e restrição ao crédito foram implementadas com o objetivo de alcançar o equilíbrio econômico interno e externo. Os ajustes que se seguiram reduziram o déficit de bens, serviços e transferências privadas dos países em desenvolvimento de 74 bilhões de dólares em 1982 para menos de um bilhão em 1985. Além disso, as reservas cambiais foram aumentadas em 27 bilhões de dólares e os casos de inadimplência reduzidos em 3 bilhões de dólares durante 1984-85.12 12 International Monetary Fund, World Economic Outlook, 1986. Apesar desses ajustes, contudo, a reação dos credores privados foi moderada, pois havia pouca confiança no empenho dos governos em implementar os programas de ajuste estrutural; além disso, tanto o custo quanto o risco dos financiamentos haviam aumentado.

Dessa forma, a capacidade dos países em desenvolvimento de incorrer em déficits externos como parte de seu processo de crescimento foi limitada pela reduzida disposição dos credores em financiar este déficit. Por exemplo, o déficit em bens, serviços e transferências privadas dos países importadores de capital em 1985 foi, em grande parte, coberto por duas fontes de financiamento relativamente estáveis: fluxos não-criadores de débito e empréstimos de longo prazo de credores oficiais. Com efeito, grande parte da redução nos déficits após 1981 foi resultado da perda de acesso a fontes privadas de financiamento: os empréstimos líquidos de credores privados declinaram de 73 bilhões de dólares em 1981 para menos de 11 bilhões de dólares em 1985.

Além da restrição de financiamento externo, os esforços para se reduzir o déficit fiscal no contexto de programas de estabilização macroeconômica impuseram limitações adicionais ao enfoque tradicional de desenvolvimento agrícola. Isso porque vários instrumentos tradicionalmente utilizados para esse fim - tais como subsídios a insumos, sustentação de preços e crédito rural - apoiavam-se direta ou indiretamente no orçamento público.

A necessidade de orçamentos públicos restritivos na segunda metade dos anos oitenta resultou de dois aspectos principais. Em primeiro lugar, na medida em que os gastos governamentais são um componente da demanda agregada, políticas anti-inflacionárias de ajuste estrutural requerem uma redução dos mesmos. Este processo foi particularmente importante para os países exportadores de petróleo, mas importadores de capital (como Nigéria e Venezuela), os quais, impossibilitados de utilizarem-se de ativos externos (dado que eram importadores de capital), foram confrontados com a necessidade de severos ajustes, os quais incluíam redução da absorção doméstica, particularmente despesas de investimento. A queda dos preços do petróleo e do término do financiamento privado a partir de 1982 foram os catalisadores deste mecanismo.

O segundo aspecto de um maior controle dos gastos governamentais está relacionado ao processo de financiamento do déficit público. Para financiar seu déficit o governo pode (na ausência de uma elevação tributária) expandir a base monetária ou realizar operações de open market através das quais títulos governamentais são trocados por moeda. Expansão da base monetária, contudo, tende a ser inflacionário na medida em que a demanda agregada é acrescida sem uma contrapartida no setor real (i.e., bens e serviços). As operações de venda de títulos públicos forçam um aumento nas taxas de juros, o que tende a inibir o investimento agregado (efeito “crowding-out”). Além disso, maiores taxas de juros causam um aumento das despesas financeiras associadas à dívida pública. Dados do Fundo Monetário Internacional indicam um acréscimo significativo na parcela das despesas financeiras (incluindo pagamentos de juros a credores externos) no gasto total dos governos dos países em desenvolvimento, de 6,5% em 1980 para 13,0% em 1984.

Essa necessidade de redução do déficit público, alinhada a despesas financeiras crescentes, fez com que drásticas reduções fossem efetuadas nos gastos de investimentos, principalmente naqueles países submetidos a programas de ajuste externo. Em consequência, as possibilidades de se efetuar programas de desenvolvimento agrícola baseados em projetos de investimento em infraestrutura (tais como irrigação e armazenagem) foram consideravelmente reduzidas.

IV. CONCLUSÕES

As políticas econômicas utilizadas pelos países em desenvolvimento para promover o desenvolvimento da agricultura apoiaram-se em dois pressupostos básicos. O primeiro, de caráter macroeconômico, refere-se à contínua disponibilidade de financiamento externo a um custo relativamente baixo, juntamente com uma política fiscal pouco restritiva, domesticamente. A segunda premissa, de caráter microeconômico, era de que os instrumentos utilizados (intervenção nos mercados de crédito, insumos e equipamentos através de subsídios) eram eficazes em aumentar a renda agrícola, reduzir a pobreza rural e acelerar o processo de adoção de tecnologia moderna.

A partir do início dos anos oitenta, contudo, houve uma acentuada reversão das tendências observadas nas décadas anteriores com relação ao contexto macroeconômico. A disponibilidade de recursos externos foi consideravelmente reduzida, elevou-se o custo dos empréstimos e requereu-se um maior controle sobre o déficit público. Ao nível microeconômico, houve crescente evidência de fracassos associados aos instrumentos tradicionalmente utilizados na promoção do crescimento agrícola.

O enfoque tradicional do desenvolvimento agrícola teve, dessa forma, seus dois pilares, macro e microeconômico, seriamente abalados a partir do início dos anos oitenta. A médio prazo, será pouco provável que ocorra uma reversão da atual tendência de contenção de empréstimos externos e gastos públicos. Em consequência, faz-se necessário uma reavaliação deste enfoque para se estabelecer bases mais realistas de crescimento da agricultura. Em particular, atenção deve ser dada ao ‘’trade-off’’ entre eficiência econômica e os objetivos de bem-estar social comumente observado nas políticas agrícolas.

  • 1
    The World Bank, World Development Report. Washington, 1986.
  • 2
    The World Bank, World Devepopment Report. Washington, 1986.
  • 3
    Richard Goode, Government Finance in Developing Countries. The Brookings Institution, Studies in Government Finance, Washington, 1984.
  • 4
    D. Cavallo and Y. Mundlak, Agriculture and Economic Growth in an Open Economy: the case of Argentina. International Food Policy Research Institute Report 36, Washington, 1982.
  • 5
    M. R. Lopes e G. E. Schuh, “A mobilização de recursos da agricultura: uma análise de política para o Brasil”. Comissão de Financiamento da Produção (CFP), coleção Análise e Pesquisa, 1980.
  • 6
    Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), Agricultural Price Policies. Document C85/19, Rome, 1985.
  • 7
    A discussão seminal desse mecanismo está contida em John Mellor, “The functions of agricultural prices in economic development”. Indian Journal of Agricultural Economics, n 23, janeiro-março 1968.
  • 8
    Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), Twenty-five Years of Development Cooperation. Paris, 1985.
  • 9
    OECD, op. cit., p. 92.
  • 10
    The World Bank, World Development Report. Washington, 1986.
  • 11
    The World Bank, World Development Report. Washington, 1986
  • 12
    International Monetary Fund, World Economic Outlook, 1986.
  • 13
    JEL Classification: Q14; Q18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1991
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br