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Notas sobre arte e política* * Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no colóquio “A dimensão estética imanente à política”, no seminário “São Paulo S.A.- práticas estéticas, sociais e políticas em debate”, promovido por Exo Experimental Org. e Sesc-São Paulo, 17/04/2005. Publicado na extinta revista Cadernos de pós-graduação do IA-Unicamp, ano 9, v. 9, n. 1, 2007.

Notes on art and politics

Resumo

A partir de ideias de Jacques Rancière em A partilha do sensível, o texto propõe-se a pensar a relação entre eficácia estética e eficácia política na arte, especialmente as manifestações que destacam a “participação” como categoria fundamental das transformações ocorridas entre as práticas modernas e as contemporâneas.

Palavras-chaves:
Arte; Política; Crítica; Participação; Generalização estética

Abstract

Based on the ideas of Jacques Rancière in A Partition of the Sensible, the text proposes to think about the relationship between aesthetic effectiveness and political effectiveness in art, especially the manifestations that highlight “participation” as a fundamental category of the transformations that have occurred between modern and contemporary practices.

Keywords:
Art; Politics; Criticism; Participation; Aesthetic generalization

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As modalidades artísticas que enfatizam a ideia de participação parecem ser muito apropriadas para se pensar relações de arte e política, pois aí a “partilha do sensível” aparece com forte evidência. Sabe-se que na arte moderna, especialmente a de vanguarda, a participação aparece quase como cumprimento de algo inevitável, como se fosse, desde os construtivistas russos, um suposto dos desenvolvimentos das proposições e experimentações - um suposto que, frequentemente, é emblematizado no desejo de passar da arte à vida, de pensar a arte e a vida compartilhadas socialmente. A participação surge, digamos, para suprir um déficit de ação, suposta imanente na arte desde os primórdios da arte moderna.

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Fala-se num revival da participação na arte contemporânea das últimas décadas, depois dos grandes investimentos na participação nos anos de 1960-70 e nos desinvestimentos dos anos de 1980, no quadro do que foi considerado como pós-moderno. Mas parece que a participação que não mais investe o político, como o que ocorria na década de 1960, virou consensual, manifestando-se por experiências sem grande interesse e vitalidade, quase sempre referidas direta ou indiretamente a esquemas da recepção midiática. Parece que as experiências mais recentes ressentem-se da falta daquilo que, nos anos 1960-70, constituía-se na força de toda arte nova, de todo interesse crítico centrado na importante questão - o que é a arte? -, e de todo o trabalho de extensão do campo da arte e das tentativas de fazer da arte um lugar de resistência no interior do campo social.

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O que é interessante de se pensar, é se a atual reproposição da “imanência” tem a ver com a insatisfação dos próprios artistas a respeito do “valor social da arte”, ou com o apaziguamento crítico das tensões e debates que envolveram as discussões sobre a “função social” da arte moderna de vanguarda. No Brasil, a questão foi muito claramente enfrentada nos anos 1960-70, delineando-se, nos projetos, programas e nos debates, o essencial das proposições sobre a imanência do político na arte e vice-versa - tanto nas artes em que a participação era explícita, em seus diversos matizes, às vezes até mesmo sectários, quanto nos projetos e práticas em que a participação não era direta, mas suposta intrínseca aos processos formais de modo constituinte. Passada a febre, as ilusões, ou simplesmente a necessidade de tais projetos e debates, o que restou? Ao se repor a questão, será que o que se quer assinalar é a extraordinária indiferença que salta da arte contemporânea? Por que a volta desse assunto, se as experimentações que motivaram o debate já foram devidamente codificadas? O que incomoda? Talvez uma excessiva mornidão da arte? Ou uma falta de contundência, quando e onde há claras intenções em significar o político? Mais ainda: porque a aposta na participação não mais é operante, caindo na indiferença? Seriam, estas práticas artísticas, apenas práticas “compensatórias”, porque as “intervenções” não teriam mais a eficácia que tiveram nos anos 1960? E que eficácia teria sido a daquela época?

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Tratava-se, naquele tempo, de propor a arte como modalidade de intervenção na “realidade” como um todo, ou especificamente em alguns de seus aspectos, como o urbano, ou como intervenção no sistema de produção cultural e de comunicação. Basta lembrar a novidade da intervenção tropicalista nos festivais de música popular dos anos de 1960, por exemplo. Enfim, tratava-se de fazer a crítica dos lugares institucionalizados de evidenciação e de circulação da arte. Uma arte da ação, de convite, exigência ou imposição de participação, que seria irrecuperável pelo princípio da representação, concebia experiências que implicavam o coletivo, no modo de se apresentar e na significação, visando quase sempre a uma eficácia imediata, e mais, a uma eficácia simbólica. Estas experiências configuravam novos modos de sentir, de relacionar-se, de agir socialmente, com que pretendiam induzir “novas formas da subjetividade política” (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. trad. Mônica Costa Netto, São Paulo: Ed. 34, 2005., p. 11), pelo entendimento que faziam da fusão da arte com a vida. Tempo das ilusões (revolucionárias e dos comportamentos); tempo “das promessas da emancipação”, muito diversa da desilusão histórica recente. Aliás, dada esta visada da desilusão, entende-se porque a reposição da “participação” se faz ao modo da “reparação” e da reconciliação (ARDENNE, 2004ARDENNE, P. Un art contextuel. Paris: Flammarion, 2004., p. 203). As tendências mais significativas da arte brasileira dos anos 1960, e mesmo já dos 1950, estiveram comprometidas com o imperativo modernista da emancipação; as diferenças entre os projetos dependiam, da maneira como compreendiam a imbricação de arte e política, ao articularem teorias e práticas às exigências da realidade brasileira, que se impunham como necessidade.

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Considerando, como diz Rancière, que “as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade”, tratava-se então de inventar proposições, soluções imaginativas, que por uma ação que visava a resultados esperados - a conscientização por exemplo -, deveriam distender as formas da experiência política, como a sempre sonhada pela arte: definição de um lugar de fala, inauguração de um tempo de promessas. Lembrando Foucault, conceber a vida como arte, implicando a constituição de modos de existência, de estilos de vida, que relevam da estética e da política, pois ambas das dimensões humanas postulam regras, ainda que facultativas, para o que há para se fazer, para o que se faz e para o que pode ser feito (DELEUZE, 1992DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.). Imbricamento, portanto, de ética e estética, como queriam os artistas dos anos 1960, visionários, que viam neste modo de generalização da arte a possibilidade de reinvenção da política.

Este imbricamento, como se sabe, princípio e procedimento modernos, implica, e implica ainda, uma intervenção no próprio coração do ato artístico: o novo, o que diferencia e abre o vulto da significação, é ruptura, abolição da representação, da forma eleita, inventor da vida nova. Busca política, isto é, busca do que é “comum”, procura “das reconfigurações do sensível comum” (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. trad. Mônica Costa Netto, São Paulo: Ed. 34, 2005., p. 61). Algo que remete, sem dúvida, àquilo que Deleuze denomina “enunciação coletiva”, fraturas que Rancière entende como contribuição “para a formação de coletivos de enunciação que repõem em questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens [...] desses sujeitos políticos que recolocam em causa a partilha já dada do sensível” (RANCIÈRE, 2005, p. 60). A intervenção artística deriva, assim, dos modos específicos do sensível com que se apresentam os produtos artísticos, sendo aí que se operam as transformações estéticas que podem fazer o político repercutir sensivelmente.

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Embora às vezes ingênuos (pensados hoje, retrospectivamente, não no seu surgimento) os projetos e ações das artes dos anos 1960, enquanto prefiguravam, imaginavam um modo solidário de vida social, emblematizadas ou alegorizadas em suas experiências, consideravam que as ações derivadas das propostas e programas eram já agentes efetivos, de uma maneira ou outra, de transformação das relações intersubjetivas e coletivas. Acreditava-se, quase sempre, no valor simbólico das ações, na força do instante e do gesto. Ora, estes atos eram “produzidos”. Substituía-se o mito da “criação artística” pela ideia de que a invenção é “trabalho”, é “fabricação”. Considerava-se, assim, que a arte realiza o mesmo princípio do trabalho - a “transformação do pensamento em experiência sensível da comunidade” (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. trad. Mônica Costa Netto, São Paulo: Ed. 34, 2005., p. 67).

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Tomemos como exemplar a maneira como Oiticica propôs a participação coletiva. A sua proposição de antiarte ambiental, além de conceito mobilizador para conjugar a reversão artística e o interesse político, enfim as dimensões ética e estética, a superação da arte, a renovação da sensibilidade e a participação, implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das ações. As proposições visavam a liberar as atividades do ilusionismo, para que as ações funcionassem como intervenção nos debates daquele tempo. As propostas estéticas não se desligavam da intervenção cultural. Pois, para ele, o campo de ação de sua atividade não se reduzia à crítica do sistema da arte: inscrevia-se como uma atividade coletiva, visionária, em que se interceptavam a produção de novas subjetividades e a significação social das ações. Como ele dizia, não visava com a antiarte à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano; nem simplesmente diluir as estruturas no cotidiano, mas, acima de tudo, transformar os participantes “proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, de modo a torná-lo “objetivo em seu comportamento ético-social”. Tratava-se, portanto, de uma outra inscrição do estético: o artista enquanto motivador da criação; a arte como intervenção cultural.

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O imaginário que conduzia o experimental de Oiticica é aquele que se interessa pela função simbólica das atividades - o que implica a suplantação da imaginação pessoal em favor de um imaginativo coletivo - e não pelos simbolismos da arte. O requisito para que isto se cumpra é que as atividades, as ações, devem supor uma adequada perspectiva crítica para a identificação das práticas culturais com efetivo poder de transgressão - o que, por sua vez, provém da confrontação dos participantes com as situações. Inconformismo estético e inconformismo social coincidem na conexão de individual e coletivo. A circularidade entre experiência pessoal e experiência artística atinge uma outra ordem do simbólico, redefinindo o estético pelo deslocamento social da atividade artística.

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Se, com se sugeriu, tal posição pode hoje parecer ingênua, pois teria sido uma espécie de suplemento de sentido investido na arte, por força do imaginário da participação mobilizador das esperanças daquele tempo, pode-se perguntar que possibilidades estariam à disposição hoje para realizar alguma ação com poder de exemplaridade. Como os meios à disposição são atualmente muito maiores; seria de se supor que estaríamos mais perto da possibilidade de tornar eficazes as ações. Mas não é bem assim. De um lado, o valor simbólico das ações foi comprometido na raiz pelo enfraquecimento das imagens, do seu poder de atuar nos instantes decisivos, por razões óbvias, pelo seu desgaste pelo excesso de exposição. De outro, porque a proposição de situações participativas exige do artista talentos de organização, de articulação de meios diversos, além da dificuldade de se selecionar as práticas culturais e imagens com efetivo poder de interferência - na arte, nas instituições, na vida.

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Nesta chave, em que a participação é efeito de um conjunto de requisitos materiais para a sua aparição, e supondo que a fundação política da arte mudou de posição, importa considerar um aspecto dessa arte contemporânea interessada ainda nos efeitos de participação, que se tornou quase um princípio fundamental. Referimo-nos à prática em que o aspecto “evento”, é inseparável de toda a arte que tem como requisito fundante a ambientação. Pretende-se com isto provocar, além dos efeitos artísticos, um deslizamento dos rituais da arte para a política. A ambição é ressignificar a participação nas condições atuais de produção, exatamente porque expõe, torna transparente, visível e sensível, o aspecto mercadoria implícito na espetacularidade do evento (FAVARETTO, 2000FAVARETTO, C. “Arte do tempo: o evento”. Sexta feira n. 5 [tempo]. São Paulo: Hedra, 2000., p. 110 ss.).

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Se é verdade que a arte contemporânea é, em grande, parte determinada pelo caráter institucional do lugar em que aparece, então a modalidade de sua apresentação, como evento, é proposta como uma possibilidade de, de algum modo, interferir na situação, já que este modo de apresentação faz parte da própria “obra” ou qualquer outra coisa que seja. De que modo? Destinado a princípio à inserção de um trabalho artístico no meio de arte, o evento é um acontecimento que vira o próprio fato artístico, confundindo as expectativas dos receptores que buscam uma experiência estética. E uma das consequências é que a experiência estética se confunde com a realidade mais imediata da arte, com a instância do mercado e do lazer: um exercício superior da fantasia, como diz sibilinamente o crítico Ronaldo Brito (1983BRITO, R. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim, n. 350, p. 5. Folha de São Paulo, 2/10/1983.). No evento, tudo se torna simplesmente interessante: nada mais releva do belo ou do maravilhoso; do novo e da ruptura. O evento não propicia a fruição dos trabalhos apresentados. A passagem da simples presença à presentificação de uma experiência significativa, de que proviria o efeito estético materializado na participação, supõe que esta derive do valor exemplar dos signos articulados ou disseminados na situação. Ou seja, os eventos tiram toda a sua eficácia do poder simbólico do espetáculo. Tudo depende, diz Lyotard, da maneira como aquilo que é designado como arte é apresentado. Ora, esta apresentação tem muito a ver com a política cultural que dá suporte aos eventos. Esta arte política é “a cultura” e “a cultura é a arte de guiar a transferência”. A transferência ocorre conforme o “estilo”, a “maneira” de apresentação, de articulação dos processos e dos seus efeitos (LYOTARD, 1996LYOTARD, J-F. Moralidades pós-modernas. trad. Marina Appenzeller, Campinas: Papirus, 1996., p. 27 ss.).

Mas, se o evento tira toda a sua eficácia do poder simbólico do espetáculo; isto, a princípio, implica um tempo pseudo-crítico. Poderia ser crítico? Haveria a possibilidade de se dominar aí a fuga do instante e do prazer, da simples exposição aos acontecimentos que fluem? Aos mecanismos da simples repetição? Talvez considerando-se o peso da frustração que os participantes do evento, do público de arte contemporânea experimentam. Pois a fruição da arte contemporânea é mediada obrigatoriamente pela reflexão sobre os limites do trabalho moderno, a experiência estética não se torna contundente diretamente a partir do sensível, uma vez que a mediação da novidade, da ruptura, da significação social não são, via de regra, aparentes. Assim, não tomar a frustração como uma atitude comum, mas espessá-la, poderia ser um modo de simplesmente se recodificar a intervenção.

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A este regime estético, de uma estética generalizada, de uma estetização difusa - como aquela, narcisista, que nos convida a prestar cada vez mais atenção ao corpo, ao eu, que para além do interessante que há nisto, pois devemos nos manter e nos tratar bem, se torna fastidiosa -, deve-se associar uma outra mudança do regime estético: aquele provocado pelas novas tecnologias , que propõem mudanças substanciais no estatuto da imagem na cultura contemporânea, com repercussões profundas na experiência estética. Alain Renaud propõe que a noção de visibilidade cultural está substituindo atualmente o conceito de imagem. Deste modo, as novas tecnologias estariam redefinindo a experiência estética que, frequentemente, não mais se refere ao vivido, mas à experiência virtual, com que, aliás, com a passagem do óptico ao digital, ocorre uma transformação radical no conceito de representação. Toda a questão resume-se no seguinte: saber de que modo e em qual proporção, as experimentações propiciadas pelas novas tecnologias atingem a sensibilidade, atuam no sensível de modo a relegar as imagens óticas ao passado (RENAUD, 1987RENAUD, A. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers un “imaginaire numérique” (“Il faut imaginer un Démiurge heureux”). Cahiers Internationaux de Sociologie, v. LXXXII. Paris: PUF, 1987.).

Annateresa Fabris, comentando ideias de Alain Renaud, diz que “os ensaios das novas tecnologias redefinem a relação do fruidor com a obra, obrigando-o a ter uma atenção concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em sua totalidade ao introjetar a temporalidade proposta pelo artista, enquanto não é raro um olhar transeunte sobre os produtos tradicionais, que nada mais fazem do que exibir estruturas e relações perceptivas conhecidas a sobejo” (FABRIS, 1998FABRIS, A. “Redefinindo o conceito de imagem”. Revista Brasileira de História [dossiê: arte e linguagens], São Paulo: ANPUH/ Humanitas, n. 35, v. 18, 1998., p. 221). Assim, pode-se dizer esta nova situação experimental, corresponde a uma nova configuração do trabalho artístico, entendido agora, diz Renaud, como um “laboratório experimental da sensibilidade e do pensamento visual”. Assim sendo, estaria ocorrendo um alargamento nunca visto, desde o Renascimento, da experiência estética e do regime estético, “em direção a uma estética de procedimentos, na qual o processo se impõe sobre o objeto: a forma cede lugar à morfogênese”. Segundo ele, “vivemos o fim da hegemonia do espetáculo fechado e estável: a cenografia subordina-se à cenologia; em direção a relações inéditas entre o Corpo, a Materialidade e o Artificial, em direção ao deslocamento tecno-estético da ordem representativa analógica” (REANUD, 1987, p. 126).

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Uma estetização generalizada pode, contudo, ser entendida de outra maneira: como alargamento da experiência estética (GALARD, 1982GALARD, J. “Repéres pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, n. 119. Paris, 1982.). Trata-se de pensar a dimensão estética da vida a partir das experiências das vanguardas, em que o questionamento da obra de arte, ou mesmo os projetos de abolição da arte, não implicam recusa da arte, antes um desejo de mais arte. Algo que deixa a sensação de que há uma continuidade possível entre os mundos representados e os espaços cotidianos. Não se trata, obviamente, do esteticismo dos românticos do fim do século XIX, ao colocarem a sua genialidade na vida e não mais na obra, ou então, daquele esteticismo da obra de arte total à maneira wagneriana. E nem, obviamente, daquele esteticismo narcisista que vem da submissão do destino individual às exigências da obra de arte, como ocorre na estetização dos comportamentos como, por exemplo, a difundida pela publicidade e seu convite de embelezamento dos corpos. Há, nas existências esteticamente bem-sucedidas, diz Jean Galard, uma beleza involuntária que não leva a arte em consideração, mas que requer, entretanto, uma certa arte. Esta é uma via interessante de se pensar, por exemplo, a “arte pública”, não como uma arte na rua, mas uma arte da rua. Mas a qualificação de “artístico” aplica-se “a operações, a um trabalho, cujos resultados não podem ser involuntários”. Assim, pode-se falar em “uma experiência estética da paisagem natural, onde a intenção artística é, por definição, ausente. Há uma experiência estética de certas realidades urbanas desagradáveis, como as cidades de São Paulo e do México, que podem ser interessantes. Esses lugares monstruosos são involuntariamente belos, posto que mágicos - uma reminiscência, sem dúvida, das experiências surrealistas. É claro que esta oposição entre beleza premeditada e involuntária deve ser atenuada: a beleza involuntária, de uma cidade, por exemplo, não é estranha a intenções. Esta beleza é mediatizada pelo cinema, pela fotografia, pela literatura. É uma beleza produzida por palavras e imagens, que artializando nossas estruturas perceptivas, mitologizam a cidade e produzem a sua magia (GALARD, 1982, p. 112).

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Tudo isto que aqui vem sendo dito talvez possa ser equivocadamente entendido, segundo a advertência de J. Rancière, como “a nostalgia de uma arte instauradora de uma co-presença entre homens e coisas e dos homens entre si”, num tempo em que não mais se pode radicalmente opor “a pureza das formas ao comércio das imagens” (RANCIÈRE, 2001RANCIÈRE, J. “O destino das imagens”. Folha de São Paulo, Mais!, 28/01/2001., p. 16). Mas, ao se recusar as promessas redentoras da arte e do pensamento, enfim da representação, talvez se possa fazer uma aposta: a de não nos rendermos à tentação de colmatar o vazio. Inventar, pensar, fazer arte talvez signifiquem, cada vez mais, que temos que trabalhar nos interstícios do vazio, nas falhas e nas brechas. Na linguagem, no pensamento e na arte trata-se, talvez, de assumir as coisas em sua singularidade, que, frequentemente, está na literalidade, antes da interpretação. Trata-se de descobrir, como na música, uma dicção, um timbre, uma tonalidade. Talvez seja esta a singularidade das relações da arte com a política.

Referências

  • ARDENNE, P. Un art contextuel. Paris: Flammarion, 2004.
  • BRITO, R. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim, n. 350, p. 5. Folha de São Paulo, 2/10/1983.
  • DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.
  • FABRIS, A. “Redefinindo o conceito de imagem”. Revista Brasileira de História [dossiê: arte e linguagens], São Paulo: ANPUH/ Humanitas, n. 35, v. 18, 1998.
  • FAVARETTO, C. “Arte do tempo: o evento”. Sexta feira n. 5 [tempo]. São Paulo: Hedra, 2000.
  • GALARD, J. “Repéres pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, n. 119. Paris, 1982.
  • GALARD, J. “Beauté involuntaire et beauté prémédité”. Temps Libre 12. Paris, 1984.
  • LYOTARD, J-F. Moralidades pós-modernas. trad. Marina Appenzeller, Campinas: Papirus, 1996.
  • RANCIÈRE, J. “O destino das imagens”. Folha de São Paulo, Mais!, 28/01/2001.
  • RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. trad. Mônica Costa Netto, São Paulo: Ed. 34, 2005.
  • RENAUD, A. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers un “imaginaire numérique” (“Il faut imaginer un Démiurge heureux”). Cahiers Internationaux de Sociologie, v. LXXXII. Paris: PUF, 1987.
  • [a]
    Doutor em Filosofia, e-mail: cffavare@usp.br
  • *
    Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no colóquio “A dimensão estética imanente à política”, no seminário “São Paulo S.A.- práticas estéticas, sociais e políticas em debate”, promovido por Exo Experimental Org. e Sesc-São Paulo, 17/04/2005. Publicado na extinta revista Cadernos de pós-graduação do IA-Unicamp, ano 9, v. 9, n. 1, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2023
  • Aceito
    29 Ago 2023
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