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Discursos sobre tecnologias na atenção domiciliar: contribuições entre inovar, inventar e investir

RESUMO

Objetivo:

Analisar discursos de profissionais de saúde sobre as tecnologias na atenção domiciliar.

Método:

Pesquisa qualitativa realizada em quatro serviços públicos de atenção domiciliar de Minas Gerais. Dados obtidos de entrevistas com 52 profissionais, submetidas à Análise de Discurso Crítica.

Resultados:

Os resultados indicam o discurso funcional e econômico-financeiro sobre as tecnologias. O discurso econômico é dominante e revela a contradição entre investir em equipamentos de alto custo e a insuficiência de insumos básicos para o cuidado. Há uma tendência de reprodução da lógica hospitalocêntrica com alta densidade tecnológica. Evidencia-se a inventividade e um processo de adaptação no domicílio.

Conclusão:

Os discursos dos profissionais de saúde indicam que as circunstâncias do cuidado domiciliar são determinantes das adaptações e improvisos que ocorrem neste contexto e são decorrentes das contradições entre inovar, inventar e investir nas tecnologias na AD.

Palavras-chave:
Tecnologia biomédica; Desenvolvimento tecnológico; Assistência domiciliar; Pesquisa qualitativa; Investimentos em saúde; Difusão de inovações

ABSTRACT

Objective:

To analyze the discourses of health professionals about technologies in home care.

Method:

Qualitative research conducted in four public home care services in Minas Gerais. Data obtained from interviews with 52 professionals submitted to Critical Discourse Analysis. Results: The results indicate the functional and economic-financial discourse about the technologies. The economic discourse is dominant and reveals the contradiction between investing in high-cost equipment and the insufficiency of basic inputs for care. There is a tendency to reproduce hospital-centered logic with high technological density. The inventiveness and a process of adaptation at home are evidenced.

Conclusion:

The discourses of health professionals indicate that the circumstances of home care are determinants of the adaptations and improvisations that occur in this context and are due to the contradictions between innovating, inventing, and investing in technologies in home care.

Keywords:
Biomedical technology; Technological development; Home nursing; Qualitative research; Investments; Diffusion of innovation.

RESUMEN

Objetivo:

Analizar los discursos profesionales sobre las tecnologías en el cuidado del hogar. Método: Investigación cualitativa realizada en cuatro servicios públicos de atención domiciliaria en Minas Gerais. Datos obtenidos de entrevistas con 52 profesionales sometidos a Análisis Crítico del Discurso.

Resultados:

Los resultados indican el discurso funcional y económico-financiero sobre las tecnologías. El discurso económico es dominante y revela la contradicción entre invertir en equipos de alto costo y una atención básica insuficiente. Existe una tendencia a reproducir lógica centrada en el hospital con alta densidad tecnológica. Se evidencia la inventiva y un proceso de adaptación en el hogar.

Conclusión:

Los discursos de los profesionales de la salud señalan que las circunstancias de la atención domiciliaria son determinantes de las adaptaciones e improvisaciones que se dan en este contexto y se deben a las contradicciones entre innovar, inventar e invertir en tecnologías en atención domiciliaria.

Palabras clave:
Tecnología biomédica; Desarrollo tecnológico; Atención domiciliaria de salud; Investigación cualitativa; Inversiones en salud; Difusión de innovaciones

INTRODUÇÃO

Os Serviços de Atenção Domiciliar (SAD), no Brasil, vêm se desenvolvendo com maior expressão nos últimos 30 anos. A sua consolidação responde às necessidades de desospitalização, racionalização do uso de leitos hospitalares, redução de custos e organização do cuidado centrado no paciente11. Rajão FL, Martins M. Home care in Brazil: an exploratory study on the construction process and service use in the Brazilian Health System. Ciên Saúde Colet. 2020;25(5):1863-76. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34692019.
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. No sistema público de saúde, a atenção domiciliar (AD) é parte da Rede de Urgência e Emergência, estruturada com Serviços de Atenção domiciliar (SAD) do Programa Melhor em Casa11. Rajão FL, Martins M. Home care in Brazil: an exploratory study on the construction process and service use in the Brazilian Health System. Ciên Saúde Colet. 2020;25(5):1863-76. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34692019.
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A AD é definida como uma modalidade assistencial substitutiva ou complementar, prestada em domicílio e envolve um conjunto de práticas que abrigam procedimentos de média e elevada densidade e complexidade tecnológicas11. Rajão FL, Martins M. Home care in Brazil: an exploratory study on the construction process and service use in the Brazilian Health System. Ciên Saúde Colet. 2020;25(5):1863-76. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34692019.
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A tecnologia em saúde é um termo polissêmico e pode ser analisado a partir de diferentes dimensões. Compreendemos, neste estudo, tecnologia em saúde como um conjunto de saberes e instrumentos que expressa, no processo de produção do cuidado, a rede de relações e encontros sociais22. Rodrigues AMM. Por uma filosofia da tecnologia. In: Grinspun MPSZ, organizadora. Educação tecnológica: desafios e perspectivas. 3. ed. São Paulo: Cortez; 2009.. Compõem as tecnologias em saúde os medicamentos, materiais, equipamentos e procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte, programas e protocolos assistenciais, que atuam como meio na prestação de atenção à saúde da população33. Lima AA, Jesus DS, Silva TL. Densidade tecnológica e o cuidado humanizado em enfermagem: a realidade de dois serviços de saúde. Physis. 2018;28(3):e280320. doi: https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280320
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. Acrescenta-se ao rol de tecnologias em saúde um conjunto de relações e processos entendidos como não-materiais empregados nas práticas de saúde e dos quais derivam o caráter substitutivo do modelo assistencial ao imprimir à atenção maior valoração nos aspectos intersubjetivos e pessoais do cuidado.

Intrinsicamente, o cuidado no domicílio é sustentado por tecnologias materiais e não-materiais tendo em vista a natureza e o espaço singular no qual ocorre essa assistência. Mas a atenção domiciliar (AD) dispara também a necessidade de invenção de novos processos configurando-se como espaço potencial para a inovação tecnológica no SUS e, em consequência para uma nova composição tecnológica do cuidado.

Neste estudo, entendemos inovação como atividade que se executa com o objetivo de obter novos produtos, processos tecnológicos ou serviços resultando na introdução de novos conhecimentos ou tecnologias socialmente úteis44. Descritores em Ciências da Saúde: DeCS [Internet]. São Paulo: BIREME/PAHO/WHO; 2021. [cited 2021 Jul 10]. Available from: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=55130&filter=ths_termall&q=inova%C3%A7%C3%A3o
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. A invenção configura-se como uma recomposição ou adaptação de um dispositivo ou processo já existente44. Descritores em Ciências da Saúde: DeCS [Internet]. São Paulo: BIREME/PAHO/WHO; 2021. [cited 2021 Jul 10]. Available from: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=55130&filter=ths_termall&q=inova%C3%A7%C3%A3o
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. Assim, inova-se quando se produz algo totalmente novo diferentemente das invenções que partem de um modelo pré-existente. Inovar e inventar exigem investimentos e, no caso da saúde, estes investimentos representam recursos de natureza financeira ou não, destinados à manutenção ou melhoria do sistema de saúde.

A composição tecnológica é uma característica definidora da substitutividade dos modelos de atenção que deve comportar tecnologias distintas para atender as necessidades dos usuários. No modelo hospitalocêntrico, predomina o uso das tecnologias materiais. A inovação tecnológica na AD está na centralidade que é dada às tecnologias não-materiais. Com isso, a substitutividade se concretiza em ato com a inversão no núcleo tecnológico dos processos de trabalho que passa a ter o uso predominante das tecnologias relacionais55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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Sabe-se que a realidade da AD é marcada por falta de insumos para o cuidado66. Neves ACOJ, Castro EAB, Costa SRD. Needs for at-home nursing care after discharge from hospital in the SUS context. Cogitare Enferm. 2016;21(4):01-10. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v21i4.47708
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resultante do baixo investimento nesta modalidade assistencial o que resulta em dificuldades das famílias para incluir gastos do cuidado domiciliar no orçamento familiar77. Pozzolli SML, Cecilio LCO. About caring and being cared for in home care. Saúde Debate. 2017;41(115): 1116-29. doi: http://doi.org/10.1590/0103-1104201711510.
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e ainda em arranjos, adaptações e improvisos para prover o cuidado88. Andrade AM, Silva KL. Adaptations and inventions in the praxis of nurses in home care: implications of the reflective practice. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170436. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0436.
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Por um lado, essa realidade desafia a organização dos serviços exigindo a oferta tecnológica adequada para a prestação do cuidado no domicílio. Por outro, dispara também a necessidade de reflexões acerca do modo como as práticas cuidativas são realizadas com reconhecimento da valoração e da centralidade que são dadas a cada um dos recursos tecnológicos empregados na assistência.

Neste sentido, é importante investigar como os profissionais de saúde, atuantes neste cenário de cuidado, representam as tecnologias na AD, em especial as inovações e invenções presentes neste campo.

A representação, neste estudo, é entendida na perspectiva da Teoria Social do Discurso99. Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UNB; 2017. . Analisar os discursos permite entender os processos, as relações e as estruturas do mundo material, dos pensamentos, dos sentimentos, das crenças, enfim do mundo social99. Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UNB; 2017. . Mais do que isso, investigar o significado representacional dos discursos permite acessar desejos, interesses, impotência, crenças e valores que são veiculados a uma representação, indicando ou não abertura para a produção de transformações sociais e culturais99. Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UNB; 2017. .

Assim, questiona-se: Como os profissionais representam as tecnologias na AD? Que discursos são revelados neste campo? Pressupõe-se que os discursos reproduzem a concepção hegemônica de tecnologia na sua expressão biomédica e organizacional com poucos elementos que incorporam processos substitutivos para o cuidado na AD.

A hipótese que orientou essa investigação é que a composição tecnológica expressa na AD tem centralidade nos equipamentos e insumos revelados como tecnologias materiais em detrimento do reconhecimento e valorização dos meios, modos e processos tecnológicos substitutivos que se concretizam em processos e na relação assistencial. Ainda, esse formato culmina na representação ideológica dos profissionais sobre a transferência do aparato tecnológico de alta densidade para o ambiente domiciliar.

Diante do exposto, este estudo tem por objetivo analisar os discursos de profissionais sobre as tecnologias na AD. Os objetivos específicos foram identificar o significado representacional das tecnologias na AD e discutir as contradições entre a inovação, a inventividade e os investimentos para aquisição de tecnologias como requisitos para a substitutividade do modelo assistencial.

MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa orientado pelo referencial da Análise de Discurso Crítica (ADC) como tradição de pesquisa qualitativa99. Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UNB; 2017. . A ADC é um método que conjuga o estudo textual-discursivo à crítica social e permite analisar os fenômenos ou processos sociais contemporâneos lançando um olhar profundo sobre a linguagem e suas implicações com a realidade social99. Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UNB; 2017. -1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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Neste artigo, apresentamos resultados de uma investigação multicêntrica conduzida por pesquisadores de três universidades públicas federais. Os cenários da pesquisa foram os serviços de atenção domiciliar de quatro municípios do estado de Minas Gerais: Belo Horizonte, Contagem, Pará de Minas e Juiz de Fora. Estes cenários foram escolhidos a partir da avaliação estrutural e organizacional dos respectivos SAD.

A amostragem do estudo foi intencional, tendo como critério de inclusão o fato do profissional integrar a equipe de atenção domiciliar do município-cenário. Em dois municípios que havia mais de uma equipe, foi solicitada à coordenação a indicação das equipes com atendimento de maior variabilidade quanto ao perfil dos usuários assistidos, tendo sido indicados nestes municípios dois equipes distintas.

Os dados foram obtidos de entrevista com roteiro semiestruturado, realizadas no ambiente de trabalho dos participantes. As entrevistas foram guiadas por dois roteiros semiestruturados elaborados pelos pesquisadores com questões abertas: um direcionado aos coordenadores e outro aos profissionais das equipes. As questões versavam sobre o entendimento de tecnologias, aquelas utilizadas diariamente no trabalho, criações e inovações tecnológicos para o cuidado na AD. As entrevistas ocorreram no período de abril de 2019 a outubro de 2020 de modo presencial. As entrevistas ocorridas no período de abril a outubro de 2020 foram realizadas remotamente, em plataforma virtual, haja vista as restrições devido à pandemia COVID-19.

A amostra final foi composta por todos os 52 profissionais que compunham as equipes no momento da coleta de dados, dos quais cinco coordenadores (CO) pois em um dos municípios havia dois coordenadores, quinze enfermeiros (E), nove técnicos de enfermagem (TE) e oito médicos (ME) integrantes das Equipes Multidisciplinar de atenção domiciliar (EMAD). Foram entrevistados, também, quatro fisioterapeutas (FI), quatro fonoaudiólogos (FO), dois nutricionistas (NU) e cinco outros profissionais (terapeuta ocupacional - TO, psicólogo - PS, assistente social - AS, dentista - D e auxiliar administrativo - AD) integrantes das Equipes de Apoio à Atenção domiciliar (EMAP). Ressalta-se que o município possui autonomia para realizar a composição das EMAP definindo entre os profissionais especializados aqueles que melhor atendam o perfil assistencial do SAD local.

As entrevistas foram conduzidas por 2 pesquisadores em cada cenário, enfermeiros com experiência na abordagem qualitativa, formação em nível de doutorado ou mestrado concluída ou em andamento. Tiveram uma duração média de 30 minutos, foram transcritas e organizadas num banco de dados recebendo um código composto pela letra M para indicar o município de origem (M1 a M4), seguido de uma abreviação e um número atribuído para ordenação por categoria/ocupação profissional (por exemplo E1 a E15 para os enfermeiros, CO1 a CO5 para coordenadores, etc).

Os participantes eram em sua maioria do sexo feminino (43), casados (21), com tempo de atuação nos serviços de 1 mês a 11 anos. No município M4 havia 3 profissionais admitidos há pouco mais de 1 mês.

De modo operacional, a análise consistiu num movimento de transcrição do discurso falado para o discurso escrito, seguido de leituras e marcações das ideias centrais correspondentes aos objetivos do estudo. Na transcrição foram evidenciadas justaposições entre falantes, pausas, silêncios, entonação, ênfase, interrupções e trechos incompreensíveis. A seleção dos trechos a serem analisados foi realizada após a leitura das transcrições, visando reduzir o material a dados relacionados às questões da pesquisa.

Foi construída uma matriz analítica para extração dos dados das entrevistas. Cada entrevista foi lida de modo coletivo pelos pesquisadores procurando-se identificar, linha a linha, parágrafo/parágrafo, os elementos relativos aos eixos: definição de tecnologias e suas tipologias; invenções, criações e adaptações tecnológicas realizadas na AD; incorporações tecnológicas e os investimento na AD. Após essa etapa, foi realizada a leitura vertical de cada eixo e a leitura transversal do material procurando-se articular as perspectivas social e linguística do discurso elegendo o sistema de transitividade como a categoria analítica para o estudo1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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A transitividade é um sistema que compõe uma metafunção da linguística crítica no campo da Gramática sistêmico-funcional (GSF)1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. . Por meio da transitividade pode-se analisar textos e orações linguísticas que são compostos por processos, participantes e circunstâncias permitindo compreender os significados dos fenômenos comunicativos1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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-1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. .

Ao responderem à entrevista sobre o tema tecnologias na AD, os entrevistados expressam, em seus discursos, a representação das atividades realizadas (processos); das pessoas ou coisas envolvidas (participantes) e das circunstâncias de modo, tempo, lugar ou causa relacionadas ao fenômeno central. O papel do analista discursivo é identificar estes componentes e interpretar os significados subjacentes ao discurso1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. . Nesta interpretação, com o aporte da ADC, o pesquisador estabelece as relações entre o texto e a prática social1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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apoiando-se nas evidências expressas nos discursos dos participantes para demonstrar, dialeticamente, a interface entre os aspectos textuais e os sentidos sociais do discurso1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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Na apresentação dos resultados, optamos por incluir quadros que apontam os aspectos textuais do sistema de transitividade, conforme discutido por Fuzer e Cabral1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. . Nos quadros, cada coluna apresenta os componentes dos processos analisados. Foram identificados processos relacionais com os elementos portador, atributo, causas/razão que informam o significado representacional1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. , no estudo o significado sobre as tecnologias e o seu caráter inovador para os participantes. Foram identificados, também, processos mentais com os elementos experienciador, fenômeno e circunstâncias1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. que evidenciam como a ausência ou insuficiência das tecnologias existentes e aplicadas na AD são sentidas ou percebidas pelos participantes. E, ainda, o discurso dos participantes é construído por meio de processos materiais criativos ou transformativos com os elementos ator, meta, escopo ou beneficiário afetado pelo processo1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. para designar as invenções realizadas pelos profissionais ou familiares, no contexto da AD, expressando a falta de investimento nesta modalidade assistencial.

A pesquisa foi aprovada por Comitê de ética em Pesquisa sob protocolo 1.160.885. Todos os participantes do estudo assinaram Termo de Consentimento esclarecido (TCLE).

RESULTADOS

Ao dissertarem sobre as tecnologias na atenção domiciliar, os participantes utilizam componentes dos processos relacionais atributivos para descrevê-las, apresentando sua finalidade para melhorar o trabalho ou beneficiar o cuidado ao paciente. Os processos relacionais contribuem para identificar, caracterizar, qualificar pessoas, objetos ou situações1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. .

Os participantes expressam a tecnologia como recurso cujo uso está associado à praticidade, inovação e utilidade. Atribuem à tecnologia a funcionalidade de otimizar, melhorar ou facilitar a vida dos pacientes, família, cuidadores na mediação que exercem no processo de trabalho dos profissionais. Desta forma, os discursos enfatizam a identificação da tecnologia a partir da sua causa ou razão, conforme expresso no Quadro 1.

Quadro 1 -
Significados atribuídos à tecnologia na AD

No Quadro 1, destaca-se a atribuição de significado às tecnologias como “coisa”, “tudo”, “recurso” ou “aquilo” em uma identificação que é indefinida, mas que guarda semelhança entre os membros deste contexto da AD por se repetir nos diferentes municípios. Destaca-se a enunciação de tecnologias como máquina, produto ou artefato aplicados à assistência ou gestão.

A inovação das tecnologias na AD é atribuída também à materialidade de algo, em geral com a utilização de equipamentos, aparelhos, sistemas e aplicativos, bem como de exames.

Para os participantes, a novidade é um atributo que caracteriza o processo de inovação com o uso distinto de um equipamento existente em outros espaços ou para outros fins. Essa utilização é enfatizada a partir das circunstâncias que demandam a aplicação das tecnologias, conforme expresso no Quadro 2. Ressalta-se, mais uma vez, o significado representacional como “coisas” ou “algo” impreciso no discurso.

Quadro 2 -
Significado representacional da inovação das tecnologias na AD

Diferentemente dos processos relacionais revelados no entendimento sobre tecnologias e sua inovação, os participantes exprimem processos mentais para representar a percepção, o desejo ou a cognição de que os investimentos para a aquisição de tecnologias na AD não ocorrem ou são permeados de limitações. Por outro lado, expressam também a percepção de avanços com o uso de equipamentos, em especial de alto custo, antes restritos a outros espaços de cuidado sendo oportunizados para o cuidado domiciliar.

Os processos mentais são retratados discursivamente pelos profissionais com narrativizações que explicam a ausência ou insuficiência das tecnologias existentes e aplicada na AD, conforme demonstrado no Quadro 3.

Quadro 3-
Processos mentais que expressam a inovação das tecnologias na AD

Os discursos evidenciam também processos materiais que designam ações criativas ou transformativas realizadas pelos profissionais ou familiares, no contexto da AD. Essas ações são disparadas pelas circunstâncias próprias deste cenário de cuidado marcado pela relação dialética entre demandas crescentes e inesperadas e a oferta insuficiente de recursos. Com isso, as adaptações tornam-se rotina, expressa por discursos modalizados em que os profissionais reconhecem na meta ou escopo da sua prática a necessidade de oferecer determinado ação/procedimento. Com a ausência de insumos, justificam, narrativamente, o que realizam ou como as famílias providenciam seus arranjos, conforme exemplificado no Quadro 4.

Quadro 4-
Processos materiais sobre criação e transformação de tecnologias na AD

DISCUSSÃO

Os achados do estudo permitiram identificar que há uma representação das tecnologias na AD a partir do discurso funcional que indica o uso e papel das tecnologias no trabalho e no cuidado em saúde. Identifica-se também o discurso econômico-financeiro que revela a falta de investimento para a incorporação tecnológica e, em consequência, a necessidade de inventar e inovar para sustentar as práticas na AD. Explicitam-se, portanto, as contradições entre inovar, inventar e investir como significado representacional das tecnologias na AD.

Os discursos, analisados a partir dos elementos dos processos relacionais; processos mentais e processos materiais1010. Salles HK, Dellagnelo EHL. A análise crítica do discurso como alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais: um exemplo da análise do significado representacional. Organ Soc. 2019;26(90):414-34. doi: https://doi.org/10.1590/1984-9260902.
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-1111. Fuzer C, Cabral SRS. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras; 2014. , informam o significado das tecnologias associadas à sua como função como mediadora do trabalho humano para melhorar a assistência, enfatizando as causas e razões para o seu uso na AD. Fica evidente o caráter material das tecnologias, próprio da composição tecnológica do modelo hospitalocêntrico com poucos elementos que indicam a substitutividade nas práticas em saúde55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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A noção de tecnologia como "coisa" indica um processo de materialização de algo a ser utilizado, um artefato palpável e, na perspectiva dos participantes, são “coisas novas” que imprimem um caráter de inovação para além do “usual, do padronizado”.

A novidade como um atributo das tecnologias é representada, nos discursos dos participantes, como incorporação de produtos e equipamentos já existentes e amplamente utilizados em outros espaços de assistência ou com outras finalidades. Com isso, os discursos não retratam a inovação per si, mas revelam um atraso para fazer chegar determinados insumos para a AD, modalidade considerada, pelos participantes do estudo, inovadora na assistência à saúde. Ao mesmo tempo, esse achado reforça as características do modelo hospitalocêntrico55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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ao associar, contraditoriamente, o novo ao uso de equipamentos (ventilador mecânico e concentrador de oxigênio) ou sistemas operacionais sem, contudo, reconhecer que a novidade da AD deve-se ao caráter substitutivo das suas práticas como tecnologias não-materiais. Assim, a hegemonia do modelo hospitalacêntrico, centrado em equipamentos, está contida no discurso e reproduz-se nas práticas sociais.

A invenção, como ato de recompor instrumentos ou dispositivos44. Descritores em Ciências da Saúde: DeCS [Internet]. São Paulo: BIREME/PAHO/WHO; 2021. [cited 2021 Jul 10]. Available from: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=55130&filter=ths_termall&q=inova%C3%A7%C3%A3o
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, é um achado identificado no estudo e os relatos exemplificam e justificam os “improvisos” como invenções constantes no contexto da AD. Em geral, estes improvisos são consequências da ausência de recursos que levam equipes e cuidadores a substituírem equipamentos ou insumos por algo similar, na perspectiva de continuar o cuidado ao paciente.

Contraditoriamente, invenções e investimentos estão intrinsecamente relacionados na AD. Sob essa análise, identificam-se que as adaptações e improvisos na AD possuem uma conjugação dialética entre insuficiência de recurso e a necessidade de criação para a garantia da realização do cuidado1212. Andrade AM, Braga PP, Lacerda MR, Duarte ED, Borges Junior LH, Silva KL. Padrões do conhecimento que fundamentam a atuação de enfermeiras na atenção domiciliar. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20190161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2019-0161.
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. Nesta relação, por um lado, busca-se assegurar a assistência, mas por outro, concretizam-se ausências com repercussões nas condições de trabalho e no cuidado em si. A inexistência ou não disponibilização de insumos e de determinadas tecnologias mobiliza equipes e famílias num processo de inventividade no ato de cuidar conformando uma contradição.

Na AD, presencia-se um ambiente de trabalho plural e diversificado para a vivência de situações que despertem processos criativos na intenção de produzir algo novo, que não existia naquela realidade. Neste contexto, a inventividade é uma importante valise tecnológica no trabalho da AD, tanto para o profissional, quanto para o cuidador e o usuário88. Andrade AM, Silva KL. Adaptations and inventions in the praxis of nurses in home care: implications of the reflective practice. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170436. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0436.
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.

O processo inventivo é alimentado de vontade e conhecimento que culminam na criação de determinado produto ou tecnologia, motivando os sujeitos a melhorarem os seus resultados de forma simplificada1313. Carvalho JD. A invenção dos objetos técnicos e a atividade artística: uma leitura de Gilbert Simondon. Problemata. 2017;8(2):5-18. doi: https://doi.org/10.7443/problemata.v8i2.31049.
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. No caso da AD, os achados apontam que a motivação vem do desejo de “facilitar a vida e melhorar o cuidado” indicando um aspecto da substitutividade nesta modalidade assistencial ao incorporar tecnologias materiais e criar ou adaptar dispositivos no domicílio.

Contudo, nem sempre as criações parecem ser seguras. As adaptações e os improvisos identificadas no estudo podem impor situações de risco para pacientes, cuidadores e profissionais. Essa problemática é expressa, contraditoriamente, num discurso naturalizado que racionaliza a descrição de criações inseguras sem contestar os riscos neste processo. Desta forma, os achados evidenciam os efeitos da falta de investimento sobre o cuidado, o beneficiário da assistência ou o escopo da prática e informa as adaptações e improvisos decorrentes da indisponibilidade de insumos básicos para o cuidado no domicilio. O investimento em tecnologias é essencial para o futuro da AD1414. Landers S, Madigan E, Leff B, Rosati RJ, McCann BA, Hornbake R, et al. The future of home health care: a strategic framework for optimizing value. Home Health Care Manag Pract. 2016;28(4):262-78. doi: https://doi.org/10.1177/1084822316666368.
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Entende-se que a escassez de recursos e a falta de investimentos para ofertar tecnologias já existentes e aplicadas em outros espaços são as causas para a improvisação na AD. Os improvisos podem ser entendidos como invenção uma vez que partem de insumos, artefatos ou dispositivos pré-existentes44. Descritores em Ciências da Saúde: DeCS [Internet]. São Paulo: BIREME/PAHO/WHO; 2021. [cited 2021 Jul 10]. Available from: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=55130&filter=ths_termall&q=inova%C3%A7%C3%A3o
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alterando a sua função para facilitar ou proporcionar a execução do cuidado.

Importante ressaltar que as invenções, adaptações e improvisos são produzidas num contexto de insuficiência ou de não priorização de investimentos. Assim, não se trata da inexistência da tecnologia ou dos recursos no sistema de saúde, mas da sua não disponibilização para a assistência no domicilio. Adequa-se para fazer o melhor possível num cenário de reconhecimento da ausência de recursos para o cuidado domiciliar. Com isso, reforça-se a necessidade de um investimento tecnológico neste cenário1414. Landers S, Madigan E, Leff B, Rosati RJ, McCann BA, Hornbake R, et al. The future of home health care: a strategic framework for optimizing value. Home Health Care Manag Pract. 2016;28(4):262-78. doi: https://doi.org/10.1177/1084822316666368.
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Sabe-se que interesses econômico-financeiros direcionam o financiamento para certos setores, áreas, políticas e níveis de densidade e complexidade tecnológica, com aplicação de recursos sempre para o alto custo de procedimentos ou equipamentos. Com isso, outros níveis do sistema perduram com baixos investimentos o que revela uma desigual e contraditória distribuição de recursos financeiros, materiais e humanos com concentração na média e alta complexidade em especial nos serviços de uso intensivo de aparatos tecnológicos1515. Mazon LM, Colussi CF, Senff CO, Freitas SFT. Execução financeira dos blocos de financiamento da saúde nos municípios de Santa Catarina, Brasil. Saúde Debate. 2018;42(116):38-51. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201811603.
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. Por outro lado, outros serviços são acometidos por carência de investimentos, o que acarreta insuficiência de insumos, precarização e consequências subjetivas sobre os atores envolvidos neste processo1616. Lima LSC, Souza NVDO, Gonçalves FGA, Pires AS, Ribeiro LV, Santos DM. Subjectivity of the nursing workforce and the practice of adapting and improvising material. Cienc Cuid Saude. 2016;15(4):685-62. doi: https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i3.31555.
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,1717. Santos DM, Souza NVDO, Franco VQ, Silva PAS, Gonçalves FGA, Pires AS. Os trabalhadores de enfermagem e a prática de adaptar e improvisar no ambiente hospitalar. REAID. 2019 [cited 2020 Dec 26];85(23):57. Available from: https://revistaenfermagematual.com.br/index.php/revista/article/view/245 .
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A pressão da indústria médico-farmacêutica também exerce grande poder na aplicação dos recursos e, em consequência, conforma-se um modelo assistencial que enfatiza as ações curativas, tratamento das doenças, lesões e danos e o uso intensivo do aparato tecnológico do tipo material1818. Fertonani HP, Pires DEP, Biff D, Scherer MDA. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1869-78. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.13272014.
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. Para superar o modelo biomédico hospitalocêntrico e implementar novos modelos assistenciais é preciso superar os desafios no cotidiano dos serviços de saúde entre eles os conhecimentos acumulados e as tecnologias disponíveis para o cuidado, o financiamento e os valores orientadores de trabalhadores e usuários1818. Fertonani HP, Pires DEP, Biff D, Scherer MDA. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1869-78. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.13272014.
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É necessário, ainda, reconhecer que a definição de um novo modelo assistencial depende da inovação na composição tecnológica que se aplica o processo de cuidado rompendo com o alto consumo das tecnologias materiais para abrir espaço para o predominância das tecnologias relacionais55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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. Este parece ser um aspecto contraditório nos achados: apesar das premissas normativas da AD como modalidade substitutiva de cuidado, há uma tendência de reprodução da lógica hospitalocêntrica centrada no consumo de equipamentos de alta densidade tecnológica como aqueles de reconhecimento e valorização no discurso dos profissionais.

Deste modo, os achados indicam que a composição tecnológica substitutiva na AD tem uma potência inventividade no ato de cuidar revelada pelas criações e adaptações produzidas na participação e preparação das famílias. Entretanto, demonstrou-se como forte evidência a predominância do modelo hospitalocêntrico hegemônico representado pela valoração discursiva das tecnologias no seu significado material atravessado pelos determinantes econômicos.

Invenção, inovação e investimentos contrapõem-se na conformação tecnológica da AD. Há, de um lado, a ausência de inovações tecnológicas decorrentes do baixo investimento neste tipo de modalidade assistencial1818. Fertonani HP, Pires DEP, Biff D, Scherer MDA. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1869-78. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.13272014.
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. Do outro lado, identificam-se invenções disparadas pelas famílias ou pelos profissionais para sustentar o cuidado domiciliar88. Andrade AM, Silva KL. Adaptations and inventions in the praxis of nurses in home care: implications of the reflective practice. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170436. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0436.
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. Essas invenções, dada a precariedade, conformam-se como improvisos e adaptações que, contraditoriamente, podem comprometer o cuidado. Agrega-se, a este processo, a priorização dos investimentos em recursos e equipamentos de alta densidade tecnológica que reforçam a lógica hospitalocêntrica55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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enquanto faltam insumos básicos para a assistência.

Deste modo, os resultados do estudo apontam para a necessidade de superar essas contradições com definição de prioridades político, institucionais e econômico-financeiras de forma a disponibilizar todos os aportes tecnológicos necessários ao cuidado no domicilio com reversão da composição tecnológica hegemônica representada no discurso dos participantes. Essa necessidade coaduna-se com o imperativo de reduzir a transferência de responsabilidades para as famílias que desenvolvem suas próprias de estratégias de enfrentamento1919. Murphy A, McGowan C, McKee M, Suhrcke M, Hanson K. Coping with healthcare costs for chronic illness in low-income and middle-income countries: a systematic literature review. BMJ Glob Health. 2019;4(4):e001475. doi: https://doi.org/10.1136/bmjgh-2019-001475.
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) frente aos baixos investimentos na AD.

Em outros contextos, identifica-se a preocupação com os custos relacionados ao uso das tecnologias no domicílio revelando que essa aplicação pode ser econômica, mas que deve ser realizada criteriosamente para maximizar a eficiência dos cuidados com alta tecnologia em casa1414. Landers S, Madigan E, Leff B, Rosati RJ, McCann BA, Hornbake R, et al. The future of home health care: a strategic framework for optimizing value. Home Health Care Manag Pract. 2016;28(4):262-78. doi: https://doi.org/10.1177/1084822316666368.
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,2020. ten Haken I, Allouch SB, van Harten WH. The use of advanced medical technologies at home: a systematic review of the literature. BMC Public Health. 2018;18(1):284. doi: https://doi.org/10.1186/s12889-018-5123-4.
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Recomenda-se que as criações ou adaptações no ambiente domiciliar não devem ser responsabilidade dos profissionais e famílias. É preciso incluir e envolver os gestores e outros atores para previsão dos gastos e para a provisão de recursos materiais em quantidade e qualidade adequada para o desenvolvimento do trabalho na AD. Assim, os profissionais poderão utilizar seu potencial criativo para inventar e qualificar o cuidado numa composição que valoriza as tecnologias não materiais55. Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus. 2012;6(2):151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120.
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CONCLUSÃO

Conclui-se que há contradições entre a inovação, as invenções e os investimentos nas tecnologias no contexto da AD. Convivem dialeticamente, nesta modalidade assistencial, a insuficiência de recursos para aquisição de tecnologias necessárias para o cuidado básico e as invenções produzidas pelas famílias e profissionais.

Ainda, identifica-se que o caráter de novidade é atribuído à disponibilidade de equipamentos de alta densidade tecnológica, sobretudo o uso de ventilação mecânica e concentrador de oxigênio nos domicílios. Desta forma, as tecnologias na atenção domiciliar são representadas pelos profissionais como aparato material, símbolo do modelo biomédico.

Vislumbra-se um importante desafio de superar a perspectiva dominante de investimento e centralidade nas tecnologias de alto custo na AD para um modelo que incorpore outras formas tecnológicas de fazer a assistência.

Reconhecemos, como limitações do estudo, que a inclusão de outros participantes como gestores e familiares poderia acrescentar novas perspectivas acerca do tema aqui tratado. A observação dos processos de trabalho estabelecidos por estes participantes poderia também complementar os achados do estudo.

Agradecimentos:

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento da pesquisa, sob processo número APQ01010-15 com recursos do Programa de Pesquisas para o SUS (PPSUS).

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Editado por

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
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