Acessibilidade / Reportar erro

Acidentes de trânsito na infância: prevenção na perspectiva do enfermeiro

RESUMO

Objetivo:

analisar a percepção dos enfermeiros da atenção primária a saúde sobre a prevenção dos acidentes de trânsito com crianças como componente do cuidado.

Método:

estudo de abordagem qualitativa, com dez enfermeiros de um município do Paraná. Os dados foram coletados em 2017, por meio de entrevistas semiestruturadas, analisados segundo a modalidade da temática indutiva.

Resultados:

identificou-se dois temas: “ações de prevenção são secundárias às de cura”; “indicando o caminho para a prevenção dos acidentes de trânsito: o cuidado de enfermagem”. Os relatos explicitaram que o cuidado costuma acontecer somente após a ocorrência do acidente, evidenciando que intervenções preventivas ainda são insuficientes. As ações intersetoriais foram apontadas como caminho para o cuidado, sendo a escola especialmente recomendada.

Conclusão:

identificou-se que o cuidado na prevenção dos acidentes é realizado pelo enfermeiro ampliando a possibilidade de interação e comunicação com o indivíduo buscando a integralidade e a equidade da atenção em saúde.

Palavras-chave:
Cuidados de enfermagem; Criança; Prevenção de acidentes

ABSTRACT

Objective:

to analyze the perception of nurses in primary health care on the prevention of traffic accidents with children as a component of care.

Method:

study of a qualitative approach, with ten nurses from a municipality in Paraná. The data collected in 2017, through semi-structured interviews, analyzed according to the modality of the inductive theme.

Results:

two themes were identified: “prevention actions are secondary to cure”; “Indicating the way to prevent traffic accidents: nursing care”. the reports explained that care usually occurs only after the accident, showing that preventive interventions are still insufficient. Intersectoral actions were identified as the path to care, with the school being especially recommended.

Conclusion:

it was identified that the care in accident prevention is performed by the nurse, expanding the possibility of interaction and communication with the individual seeking the integrality and equity of health care.

Keywords:
Nursing care; Child; Accidents prevention

RESUMEN

Objetivo:

analizar la percepción de las enfermeras en atención primaria de salud sobre la prevención de accidentes de tránsito con niños como un componente de la atención.

Método:

estudio de un enfoque cualitativo, con diez enfermeras de un municipio de Paraná. Los datos recopilados en 2017, a través de entrevistas semiestructuradas, analizadas según la modalidad del tema inductivo.

Resultados:

se identificaron dos temas: "las acciones de prevención son secundarias a la cura"; "Indicando la forma de prevenir accidentes de tráfico: cuidados de enfermería". Los informes explicaron que la atención generalmente se produce solo después del accidente, lo que demuestra que las intervenciones preventivas aún son insuficientes. Las acciones intersectoriales se identificaron como el camino hacia la atención, y se recomendó especialmente la escuela.

Conclusión:

se identificó que la atención en prevención de accidentes la realiza la enfermera, ampliando la posibilidad de interacción y comunicación con el individuo que busca la integralidad y equidad de la atención médica.

Palabras clave:
Atención de enfermería; Niño; Prevención de accidentes

INTRODUÇÃO

Os acidentes de trânsito (AT) são resultantes das ameaças à saúde e ao bem-estar da criança e de ações ou omissões humanas que seriam passíveis de prevenção. Portanto, advêm da negligência de seus responsáveis, da ausência, carência ou falta de investimento, fiscalização, legislação e controle público eficiente no trânsito. Para o enfrentamento deste agravo, são necessários investimentos em setores como educação e saúde, em especial nos países em desenvolvimento de média e baixa rendas1Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? a WHO-UNICEF-Lancet Commission. The Lancet. 2020 Fev;395(10224):605-58. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32...
-2World Health Organization (CH). Save lives: a road safety technical package. Geneva: WHO; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255199/9789241511704-eng.pdf?sequence=1
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
.

Além do sofrimento e do luto, o prejuízo financeiro causado pelos ATs é de 1% a 3% do produto interno bruto na maioria dos países2World Health Organization (CH). Save lives: a road safety technical package. Geneva: WHO; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255199/9789241511704-eng.pdf?sequence=1
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
. Já os gastos hospitalares com um AT podem variar de 50 a 100 dólares por semana para internamento causados por lesão traumática3United Nations Children’s Fund, Foundation for the Automobile and Society. Rights of way: child poverty & road traffic injury in the SDGS. New York: FIA Foundation, Unicef; 2016 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.fiafoundation.org/media/391038/rights-of-way-spreads.pdf
https://www.fiafoundation.org/media/3910...
. Enquanto o custo dos investimentos na prevenção a saúde das crianças mais pobres é diretamente relacionado a melhoria dos resultados de saúde, ou seja, cada um dólar investido, resulta no dobro de vidas protegidas, conforme dados das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)4United Nation Children’s Fund (US). Narrowing the gaps: the power of investing in the poorest children. New York: Unicef; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.unicef.org/publications/files/UNICEF_The_power_of_investing_in_the_poorest_children.pdf
https://www.unicef.org/publications/file...
.

Neste sentido, a atuação do enfermeiro na Atenção Primária a Saúde (APS) pode desempenhar um papel singular na prevenção a saúde da criança e na promoção do acesso aos cuidados de saúde das populações vulneráveis das áreas urbanas5World Health Organization (CH). State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
https://www.who.int/publications/i/item/...
. Como propõe a campanha lançada neste ano, e intitulada Nursing Now, que fomenta o papel e a importância da enfermagem no mundo. Sobretudo considerando as interfaces da intersetorialidade e interprofissionalidade, além da integralidade já mencionada.

Pressupomos que o problema aqui evidenciado, os acidentes de trânsito na infância, necessita ser abordado dentro da perspectiva da promoção da saúde. No entanto, entende-se que ainda é preciso investir no campo da prevenção dos acidentes de trânsito na infância, a fim de subsidiar práticas de educação em saúde, que impactem na redução das mortes, das incapacidades e dos custos com saúde gerados pelos AT.

Neste contexto, o problema tem sido pouco estudado, sendo ainda raras ou escassas as pesquisas que buscam descobrir quais atividades podem prevenir os acidentes gerando comportamento seguro no trânsito e salvando vidas. Para isso busca-se responder a seguinte questão de pesquisa: Como a prevenção, com enfoque no cuidado aos acidentes de trânsito envolvendo crianças, vem sendo empreendida pelos enfermeiros da APS?

Portanto, o objetivo desta pesquisa foi analisar a percepção dos enfermeiros da APS sobre a prevenção dos acidentes de trânsito com crianças como componente do cuidado.

METODOLOGIA

O quadro conceitual do cuidado utilizado neste estudo está imbricado à discussão da integralidade da atenção à saúde, que estabelece uma relação dialógica a partir da valorização dos sujeitos, de suas experiências, conhecimentos, opiniões e crenças6Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
https://portalseer.ufba.br/index.php/enf...
.

Estudo descritivo exploratório, desenvolvido por meio da abordagem qualitativa. Tal proposta, busca tecer um arranjo comum nas falas dos grupo de participantes permeado pelos conceitos, vivências, significados, crenças e valores. Nesta lógica, tem a finalidade de compreender o cuidado destinado ao fenômeno AT na infância, com foco na prevenção, enriquecendo e/ou fazendo novas observações sobre os dados objetivos da realidade7Silva Filho OC, Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da palavra, do olhar e da empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia. 2019 [Resenha]. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(5):1991-2. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.22042019
https://doi.org/10.1590/1413-81232020255...
.

Neste sentido, a riqueza de detalhes, as especificidades e a sensibilidade nas contradições evidenciam a profundidade dos dados coletados. As respostas aos questionamentos iniciais acerca do fenômeno em estudo, sob o olhar do referencial teórico de cuidado proposto por Ricardo Ayres6Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
https://portalseer.ufba.br/index.php/enf...
, guiaram a análise das falas dos participantes.

O estudo foi desenvolvido em um município de médio porte localizado na região oeste do estado do Paraná e integra um estudo maior de doutoramento, do qual, nesse artigo, apresentam-se os dados das entrevistas com os enfermeiros.

A primeira fase da pesquisa ocorreu identificando os dados de vítimas de AT no banco de dados do Corpo de Bombeiros /4º Grupamento de Bombeiros, local em que são registrados os atendimentos dos ATs do município do estudo. Posteriormente, buscou-se identificar os dados das unidades de pronto atendimento e hospitais em que estas vítimas foram encaminhadas. Assim, foram obtidas as informações referentes ao endereço da criança e a partir daí foi identificado a unidade de saúde a que o domicílio pertencia, bem como as enfermeiras destas unidades.

Portanto, fizeram parte da pesquisa 10 enfermeiros, de acordo com os critérios de inclusão, ou seja, após a identificação das 15 crianças (vítimas de AT, com a idade entre cinco e nove anos). Sendo que, dois enfermeiros se recusaram a participar e em outros três casos, as crianças frequentavam a mesma unidade de saúde, ou seja, eram assistidas por enfermeiros que já haviam sido entrevistados. Portanto, não houve desistência ao longo da pesquisa.

Como critério de exclusão considerou-se os registros para os quais não havia o endereço e telefone, da família da criança vítima de AT, no prontuário, assim como, quando o participante foi liberado após o atendimento pré-hospitalar e não continha os dados de acesso destes sujeitos. As unidades de saúde que não estavam na área urbana também foram excluídas.

As entrevistas aconteceram entre maio e agosto de 2017. O primeiro contato com as enfermeiras foi feito por telefone, agendando-se o encontro para a coleta de dados. As entrevistas foram realizadas individualmente, pela pesquisadora, a qual possui graduação em enfermagem, pós-graduação Stricto Sensu, nível mestrado, devidamente capacitada para conduzir a coleta dos dados. As entrevistas ocorreram, no local de trabalho, escolhido pelos participantes e em horário de sua preferência. O tempo de duração das entrevistas variou entre 25 a 50 minutos, as quais foram transcritas na íntegra, pela mesma pessoa, ou seja, pelo pesquisador responsável.

Para definir o grupo de dados, tomou-se por base encerrar a coleta quando os relatos se tornaram repetitivos, permitindo o aprofundamento da temática e a capacidade de refletir a totalidade do fenômeno nas suas múltiplas dimensões, considerando a confiança e a validade interna do estudo8Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qualitat. 2017 [cited 2020 Jul 10];5(7):1-12. Available from: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4111455/mod_resource/content/1/Minayosaturacao.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
.

As entrevistas individuais foram guiadas por um roteiro semiestruturado, em que os participantes expressaram suas percepções, vivências e significados acerca dos ATs com crianças em sua área de abrangência, o que têm desenvolvido na atenção a este evento e quanto a existência de programas, ações intersetoriais ou atividades especificamente direcionadas à prevenção do AT.

As perguntas que nortearam o roteiro das entrevistas foram: Como você percebe os acidentes que envolvem crianças em sua área de abrangência? Que ações você e sua equipe tem desenvolvido na prevenção e atenção ao acidente de trânsito envolvendo criança?

Não houve necessidade de repetir entrevistas, porém após as transcrições retornaram aos participantes para as devidas correções e comentários, por fim foram organizadas conforme o modelo de análise temática.

Para a organização da codificação dos dados foi utilizado o Software R e o pacote que optou-se para uso foi o Qualitative Data Analisys (RQDA) formulado pela Universidad de la República (Uruguay) e Universidad Autónoma de Barcelona. Esta ferramenta é direcionada para a sistematização dos dados de análises qualitativas, assim as leituras foram realizadas pela pesquisadora responsável, os trechos selecionados e identificados compondo os primeiros códigos e seguindo as fases da análise temática se obteve os temas9The R Project for Statistical Computing [Internet]. Vienna: The R Foundation; 2020 [cited 2020 May 06]. Available from: https://www.r-project.org/
https://www.r-project.org/...
.

Os temas ou padrões dos dados foram reconhecidos por meio de análise indutiva, em um processo de codificação sem tentar enquadrar os dados10Braun V, Clarke V, Hayfield N, Terry G. Thematic analysis. In: Liamputtong P. (eds) Handbook of research methods in health social sciences. Singapore: Springer; 2019. p. 843-60. Available from: https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_103
https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-...
. O processo de análise percorreu cinco etapas: (1) familiarização do pesquisador com os dados; (2) busca de dados relevantes para a geração de códigos iniciais; (3) ocorreu o desenvolvimento/busca dos temas; (4) o mapa temático foi gerado; (5) foi permeada pelo refinamento ainda maior dos temas e etapa (6) compôs a realização da escrita do relatório final.

Seguindo a teoria que rege a técnica de análise temática, foram identificados no mapa 32 códigos, que geraram as categorias iniciais “Acidente de trânsito não é emergente”, “Desatenção/Comportamento (in)seguro no trânsito” e “Cuidado/práticas educativas na prevenção dos AT”. O lapidar dos temas posteriormente gerou as duas categorias apresentadas neste texto.

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - EERP/USP, sob aprovação de número 1.761.748 e CAAE 57429316.0.0000.5393. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias, uma para o pesquisador e outra para o participante. Para garantir o anonimato, os participantes foram representados por letras “E”, seguindo uma sequência numérica conforme ocorreram as entrevistas.

RESULTADOS

As dez participantes deste estudo possuíam idade entre 29 e 53 anos. O tempo de atuação profissional compreendeu entre quatro e 30 anos. Somente duas trabalhavam seis horas diárias e o restante cumpria uma carga horária de oito horas.

Apesar de identificarem que os AT acontecem nas áreas de abrangência em que atuam, as enfermeiras evidenciaram nas falas a dificuldade em realizar a prevenção e inquietações por não realizar as mesmas. Ainda assim, apontaram práticas educativas individuais, em grupo, mesmo que elementares e vislumbraram alternativas de intervenção em suas falas articulando vários setores e atores evidenciando o compromisso com a população atendida.

Os resultados configuraram um mapa temático com 32 códigos, elaborado de acordo com os métodos da análise temática10Braun V, Clarke V, Hayfield N, Terry G. Thematic analysis. In: Liamputtong P. (eds) Handbook of research methods in health social sciences. Singapore: Springer; 2019. p. 843-60. Available from: https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_103
https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-...
. Após verificar como os temas se relacionavam com os extratos codificáveis, foi possível identificar dois temas: “Ações de prevenção são secundárias às de cura” e “Indicando o caminho para a prevenção dos acidentes de trânsito: cuidado de enfermagem”.

Ações de prevenção são secundárias às de cura

Os relatos do presente estudo ilustram a prática do cuidado somente após o evento ter decorrido e evidenciaram que as profissionais possuem dificuldades em realizar a prevenção dos AT, como atividade inerente ao papel do enfermeiro, no tocante ao cuidado à redução de um agravo à saúde. As falas a seguir ilustram estes apontamentos:

Só vem para a unidade se for coisa leve […] ou ainda a gente fica sabendo por relato do ACS [agente comunitário de saúde] que faz visita domiciliar ou por relato de outros profissionais. (E1)

Acidente de trânsito geralmente é chamado o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] ou o Siate [Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência] e é levado para as UPAs [Unidades de Pronto Atendimento]. Nós só vamos fazer o atendimento desses pacientes depois que eles receberem a alta, quando eles vão procurar a unidade de saúde. (E4)

Essas duas falas remetem a visão fragmentada do sistema de saúde, ou seja, considera os acidentes de trânsito como não sendo prioridade na atenção primária, mas um fator a ser abordado apenas na urgência e emergência.

Parece ilustrar a não consolidação da incorporação do modelo proposto pelas equipes saúde da família, ou seja, a atenção ainda está centrada no paradigma biomédico, exigindo ações curativas, ao contrário do que seria esperado para a atenção primária, com enfoque na prevenção e promoção à saúde, fomentando o vínculo com a sua população adscrita, com os indivíduos e comunidade e a humanização dos atendimentos.

A gente trabalha com prioridade, e mesmo assim, trabalhando com prioridades, a gente não dá conta, e o acidente de trânsito mesmo, ele não entrou como prioridade […]. A gente tem muita doença, então a gente deixa de trabalhar com prevenção para trabalhar com cura e sobrecarrega demais! (E5)

Outro aspecto que emana das falas é o apontamento de que o cuidado na APS tem foco na demanda espontânea como prioridade em detrimento de ações de prevenção.

A ausência de clareza da população em relação a descentralização da rede de serviços, a falta de informação e dificuldades na questão da referência e contrarreferência parecem influenciar no poder de resolução da APS, bem como na autonomia do enfermeiro no momento do cuidado e acolhimento.

Depois que acontece o acidente o paciente vem para nós […]. Ele vem para fazer o curativo, para tomar medicação. Às vezes a gente vai até a casa para realizar o curativo se ele está acamado por um período. A reabilitação fica a nosso critério, a nosso cuidado. Eu acho que tem que envolver a saúde nisso, eu acho que é bem importante. (E6)

A gente acaba recebendo algumas demandas que vêm da Secretaria de Saúde e que geralmente acabam tendo um prazo de resposta, e acabamos focalizando [as demandas da secretaria]. Além disso, eu acho que as vezes nós, da atenção básica, estamos seguindo um padrão que já vem de alguns anos. (E8)

A comunidade quando é mais carente, como é o caso nosso, às vezes, não tem tanta informação, até não digo de acidentes, mais não tem tanta informação para passar. Até dos próprios direitos que elas têm, para tentar buscar e de tentar assim fazer alguma coisa... (E6)

Estas falas parecem revelar que as enfermeiras ainda possuem uma visão polarizada no modelo biomédico, positivista indicando as limitações na busca por respostas efetivas às necessidades de saúde dos indivíduos e populações que possuem uma complexidade a ser considerada no momento em que se estabelece o cuidado.

Indicando o caminho para a prevenção dos acidentes de trânsito: cuidado de enfermagem

Os apontamentos revelam que as participantes entendem as ações intersetoriais como um horizonte para a realização do cuidado, a escola é especialmente recomendada nas falas como um setor a ser incorporado nas intervenções.

As práticas educativas em saúde fazem parte das funções inerentes ao enfermeiro para mediar o desenvolvimento da criança de forma saudável. O ambiente escolar é um dos principais espaços para a implementação de programas e estratégias de promoção da saúde, tendo como premissa a abordagem multi e intersetorial para garantir que crianças e adolescentes sobrevivam hoje e no futuro.

Teria que ver com a equipe para trabalhar com grupos, ou nas escolas. Eu até hoje nunca vi nenhuma unidade trabalhar com acidente de trânsito, não, mas daria para se pensar alguma coisa, no futuro, para trabalhar com a escola. (E2)

No PSE [Programa Saúde na Escola] parcerias com o DNIT [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes] e CETRANS [Conselho Estadual de Trânsito] melhorou as faixas, […] e eles têm um projeto […], no colégio municipal, de quatro a dez anos, pra conscientização, porque nos CEMEIS [Centros Municipais de Educação Infantil] as mães até vêm buscar as crianças, mas no colégio não. E muitas crianças de seis anos, quatro, vão embora sozinhas, ou com o irmão mais velho. (E3)

Consigo desenvolver práticas educativas individuais durante os meus atendimentos, que é a parte que eu oriento, por exemplo, para gestantes, quando vai para o pré-natal, durante a puericultura eu consigo orientar em boa parte as mães, como preventivo também consigo dar orientação, e sobre acidente de trânsito [...] (E4)

A gente pode começar pela escola, porque nós conseguimos abranger as três categorias. A gente consegue pegar os pais, as crianças, os educadores e mais a saúde, porque o acidente de trânsito envolve diretamente a saúde. A prevenção acontece lá. (E6)

Toda a equipe pode fazer sala de espera, e fazem. E a gente também aborda vários assuntos, avisos em geral. E a gente também fala sobre trânsito […]. A gente teria que criar um dia e nesse dia as pessoas seriam convidadas. (E7)

De uma forma geral os pais, a sociedade, não sabem que as causas gerais são as principais causas de mortalidade infantil e que esse assunto deveria sim ser melhor trabalhado. A gente sabe que a escola é um lugar bem estratégico para gente trabalhar com essa faixa etária, com esse público, talvez a gente realmente desenvolva ações intersetoriais. (E8)

Tem em associação de bairros, nas escolas, na pastoral da criança, mas atualmente está segregado um pouquinho o trabalho. De um modo geral a Secretaria de Saúde poderá estar promovendo na área infantil prevenção de acidentes em crianças e adolescentes, muita demanda de acadêmicos [...]. (E9)

Na minha opinião, o que eu posso trabalhar é começar pelo Bolsa Família, que na minha opinião é a faixa etária que é para se orientar e que as mães estão lá também. (E10)

No entanto, algumas práticas educativas individuais ou isoladas são apresentadas como ações já realizadas, como é o caso das campanhas que são realizadas pontualmente que parece ser a lógica das ações orientadas pela demanda, pelas campanhas ou práticas educativas ainda isoladas.

DISCUSSÃO

Mundialmente morrem mais de 500 crianças menores de 18 anos por dia nas estradas e outras milhares sofrem lesões1Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? a WHO-UNICEF-Lancet Commission. The Lancet. 2020 Fev;395(10224):605-58. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32...
. As sequelas físicas, psíquicas, sociais e o tempo em que ficam afastadas das atividades escolares ou a reabilitação da saúde também são aspectos que implicam na vulnerabilidade destes sujeitos. Considera-se que as crianças são mais expostas, pois tem dificuldade em enfrentar e julgar as situações de perigo, proximidade, velocidade, direção, sons. Estas especificidades no crescimento e desenvolvimento as colocam em condições de situação de dependência dos pais, familiares, cuidadores, sociedade e poder público, encontrando-se muitas vezes predispostas a acidentes, indefesas e vulneráveis as violências11Nunes AJ, Sales MCV. Violence against children in Brazilian scenery. Ciênc Saúde Coletiva. 2016 Mar;21(3):871-80. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.08182014
https://doi.org/10.1590/1413-81232015213...
.

Identificou-se nos relatos que a dimensão técnica do cuidado perpassa, além das atividades educativas, pelas mais diversas atividades do enfermeiro na APS, tais como aplicação de vacinas, curativo, aferição de sinais vitais, entre outros. Essas expressões indicam que as enfermeiras, participantes desse estudo, entendem o cuidado como ação, ao executar um procedimento no encontro direto do indivíduo a ser cuidado. Mostram, ainda, a possibilidade do início de uma relação terapêutica entre o profissional de saúde e o indivíduo. Identificam o cuidado em um procedimento técnico, ampliando a possibilidade de interação e comunicação com o indivíduo que procura os serviços de saúde.

O cuidado, portanto, pode ser compreendido sob três perspectivas conceituais: como categoria ontológica, genealógica e reconstrutiva, na perspectiva proposta por Ayres6Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
https://portalseer.ufba.br/index.php/enf...
. Deste modo, compreende a articulação entre as ciências biomédicas, humanas e a epidemiologia, propondo medidas preventivas e definições mais assertivas por meio de frutíferas interações terapêuticas entre sujeitos. Em vista disto, busca sanar o problema identificado ou explicitado pelo paciente, uma vez que o profissional de saúde se empenha em alcançar o bem-estar como finalidade desta interação.

Assim, o cuidado como categoria ontológica, que influencia a prática assistencial do enfermeiro, é balizado pelos seguintes elementos: “movimento, interação, identidade/alteridade, plasticidade, projeto, desejo, temporalidade, não-causalidade e responsabilidade” (6:50Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
https://portalseer.ufba.br/index.php/enf...
.

Contrapõe a prática assistencial mecanicista polarizada, fragmentada e que privilegia os procedimentos técnicos influenciados pelo modelo hegemônico médico-curativo, que ainda é evidenciada no cotidiano da enfermagem. O avanço tecnológico também tem contribuído para um cuidado centrado em ações curativas, deste modo, coloca-se em discussão como o cuidado tem acontecido no sistema de saúde brasileiro12Hämel K, Toso BRGO, Casanova A, Giovanella L. Advanced practice nursing in primary health care in the Spanish National Health System. Ciênc Saúde Coletiva. 2020 Jan;25(1):303-14. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28332019
https://doi.org/10.1590/1413-8123202025...
.

As tecnologias disponíveis na área biomédica fazem com que os profissionais muitas vezes limitem suas ações à realização de técnicas. Neste sentido, cabe rever as práticas, pois quando realizadas isoladamente são insuficientes e ineficazes evidenciando inúmeros agravos à saúde e internamentos que poderiam ter sido evitados na APS. É preciso voltar-se para um cuidar efetivo6Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
https://portalseer.ufba.br/index.php/enf...
, em que o outro esteja ativamente presente e as interações sejam férteis e ágeis. Desta forma, permeados pelas tecnologias leves utilizadas racionalmente, ampliando horizontes e, portanto, buscando intervenções em saúde articuladas a outras áreas de saberes. Este olhar pode não ser o simples, mas é uma ação a ser empreendida para a prática integral à saúde.

Nessa direção, as falas evidenciam que o cuidado prestado pelas enfermeiras participantes no estudo ainda está articulado a ações técnicas voltadas às ações curativas e a sobrecarga de trabalho, corroborando outros estudos, apontando para o desafio de que se espera no contexto da APS, pautada pela integralidade do cuidado5World Health Organization (CH). State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
https://www.who.int/publications/i/item/...
.

Pode-se inferir que existe uma relação próxima entre a demanda de serviço aumentada e o entendimento do agravo aqui estudado. Assim como, o problema de saúde e a consequente falta de priorização do cuidado a ele destinado. Estudos confirmam o fato de que o excesso de trabalho, a necessidade de atingir metas e uma equipe reduzida podem acarretar a escolha de atividades em detrimento a outras5World Health Organization (CH). State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
https://www.who.int/publications/i/item/...
,13Vera MG, Merighi MAB, Conz CA, Silva MH, Jesus MCP, González LAM. Primary health care: the experience of nurses. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 1):531-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0244
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
. Ainda assim, o cuidado destinado a prevenção dos AT pode estar à frente nas ações de prevenção e promoção à saúde, tendo em vista a autonomia e competência do enfermeiro na APS.

A ideia de seguir padrões, ou seja, permanecer continuamente seguindo as mesmas condutas, nos remete a possibilidade de resistência a mudanças. Neste sentido, as tradições, a rotina de trabalho e os hábitos diários acabam incorporados culturalmente e/ou de forma organizacional, seja individual ou social. Atrelado a este apontamento, é preciso destacar o papel dos enfermeiros na APS na promoção, prevenção e o controle da saúde adequados14Organização Pan-Americana da Saúde (US). Ampliação do papel dos enfermeiros na atenção primária à saúde. Washington, DC: OPAS; 2018 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/34960/9789275720035_por.pdf?sequence=6
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
. Portanto, no planejamento e delineamento das ações de saúde que articulam a participação das equipes interprofissionais e serviços, realizando rotinas significativas em que o trabalho coletivo intervenha nos reais riscos de saúde da população atendida.

As práticas educativas realizadas pelos enfermeiros são desenvolvidas de forma programada com grupos específicos13Vera MG, Merighi MAB, Conz CA, Silva MH, Jesus MCP, González LAM. Primary health care: the experience of nurses. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 1):531-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0244
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
) corroborando os dados evidenciados neste estudo, em que o enfermeiro prioriza o cuidado sob à lógica curativa, mas que quando superado, pode promover processos educativos emancipatórios baseados no modelo integral e humanizado de cuidado.

O enfermeiro, muitas vezes, realiza cotidianamente ações de educação em saúde de forma individual. Sendo elas: na puericultura, no pré-natal, nas visitas domicilares, na orientação pós-alta e são peças-chave no enfrentamento e na proteção da criança ao acidente de trânsito. Entretanto, para ampliar e dar sustentabilidade a esta atuação poderia realizá-las associadamente à um conjunto de estratégias, setores e atores que precisam incorporar, desempenhar e fomentar o comportamento seguro em todo seu entorno15Will KE, Dunaway KE. Evaluation of a participative education process for increasing tween restraint use in Virginia: The Make it Click initiative. Transport Res Part F: Traffic Psychol Behav. 2017 Feb;45:54-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.013
https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.01...
.

As desigualdades econômicas apontam para a má distribuição dos inúmeros benefícios da sociedade atual. Ou seja, para enfrentar as ameaças à saúde e ao bem-estar infantil é necessária uma abordagem deliberadamente multisetorial, com investimento maciço nos setores de educação e saúde1Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? a WHO-UNICEF-Lancet Commission. The Lancet. 2020 Fev;395(10224):605-58. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32...
.

Conhecer e aplicar estratégias de intervenção para a prevenção dos AT tem sido o objetivo de estudos, os quais tem encontrado, em seus resultados, que o comportamento de crianças e adolescentes tende a sofrer influência do exemplo de seus cuidadores ou acompanhantes. Esse comportamento também acontece no trânsito16Kovess-Masfety V, Sowa D, Keyes K, Husky M, Fermanian C, Bitfoi A, et al. The association between car accident fatalities and children’s fears: a study in seven EU countries. PLoS ONE. 2017 Aug;12(8):e0181619. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0181619
https://doi.org/10.1371/journal.pone.018...
-17Holm A, Jaani J, Eensoo D, Piksoeoet J. Pedestrian behaviour of 6th grade Estonian students: implications of social factors and accident-prevention education at school. Transport Res Part F: Traffic Psychol Behav. 2018;52:112-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.trf.2017.11.005
https://doi.org/10.1016/j.trf.2017.11.00...
. Dessa forma, realizar atividades isoladas não tem sido uma estratégia eficiente. No entanto, as intervenções multifacetadas com a participação das escolas e da comunidade escolar certamente contribuirão para o fomento do comportamento seguro das crianças no trânsito, de forma global.

As práticas educativas multidimensionais1Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? a WHO-UNICEF-Lancet Commission. The Lancet. 2020 Fev;395(10224):605-58. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32...
,15Will KE, Dunaway KE. Evaluation of a participative education process for increasing tween restraint use in Virginia: The Make it Click initiative. Transport Res Part F: Traffic Psychol Behav. 2017 Feb;45:54-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.013
https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.01...
vêm sendo desenvolvidas buscando a redução das lesões causadas pelos AT. Assim, estas interlocuções de saberes e de associação de ações multifacetadas tem resultado em experiências exitosas ao envolverem as crianças, famílias, comunidades, educadores e outros cuidadores nestas práticas.

Ao compreender a educação pelo aspecto da dialogicidade, os profissionais de saúde entendem o homem como corpo consciente. As práticas educativas integram as capacidades e habilidades dos cidadãos, não sendo um processo estanque de transmissão de informações. Desta forma, compreendem um processo de ensino-aprendizagem, regido pelo diálogo, promovendo um campo fértil para a emancipação e participação dos sujeitos preparando-os para intervir na sociedade18Silva JP, Gonçalves MFC, Andrade LS, Monteiro EMLM, Silva MAI. Health promotion in primary education: perceptions of bachelor’s degree with a teaching diploma in nursing students. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0237. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0237
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2...
.

Ao pensar os ATs nessa proposta, as práticas educativas tornam-se um fomento a reflexão crítica sobre os condicionantes da saúde, as causas e consequências desse agravo em especial. Tornam possível mobilizar a participação dos indivíduos, dos grupos populares, da equipe de saúde para transpor as adversidades que os mantém vulneráveis, propondo coletivamente resoluções para superar ou minimizar estas situações de exposição das crianças.

De maneira alguma as ações de prevenção e promoção à saúde limitam-se às práticas educativas contendo informações técnicas e transmitidas do profissional para o sujeito. Sendo assim, é necessário identificar as necessidades conjuntamente e construir respostas para as necessidades de forma dialógica.

Outro ponto a ser considerado é a necessidade, apontada nas falas de algumas enfermeiras, de desempenhar ações em conjunto com as escolas. Nesta perspectiva, destaca-se o Programa Saúde na Escola (PSE), do Ministério da Saúde19Ministério da Saúde (BR). Portaria interministerial nº 1.055, de 25 de abril de 2017. Redefine as regras e os critérios para adesão ao Programa Saúde na Escola - PSE por estados, Distrito Federal e municípios e dispõe sobre o respectivo incentivo financeiro para custeio de ações. Brasília, DF; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Avaialble from: Avaialble from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/pri1055_26_04_2017.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
, que se baseia na vigilância e prevenção de acidentes e violências, na promoção da saúde do escolar e na cultura de paz, mas que parece não abordar a prevenção dos acidentes.

Em que pese a prevenção ser indispensável nesse contexto do estudo, a prática multiprofissional é uma alternativa para organizar o trabalho em saúde. O cuidado interdisciplinar e as práticas colaborativas são medidas que contribuem para direcionar vários olhares para o indivíduo na tentativa de promover o cuidado integral12Hämel K, Toso BRGO, Casanova A, Giovanella L. Advanced practice nursing in primary health care in the Spanish National Health System. Ciênc Saúde Coletiva. 2020 Jan;25(1):303-14. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28332019
https://doi.org/10.1590/1413-8123202025...
. Sendo assim, cada profissional se destaca em sua expertise, mas isoladamente não se basta20Lukewich JA, Tranmer JE, Kirkland MC, Walsh AJ. Exploring the utility of the Nursing Role Effectiveness Model in evaluating nursing contributions in primary health care: a scoping review. NursingOpen. 2019;6(3):685-97. doi:https://doi.org/10.1002/nop2.281
https://doi.org/10.1002/nop2.281...
.

Assim, as atividades de prevenção dos ATs realizadas pela enfermagem, envolvem não somente o cuidado prestado após o AT, mas ações que os impeçam de acontecer. O seja, sempre que se observa a oportunidade de intervir sobre ele. Tendo em vista, melhorar as condições do indivíduo acidentado, assim como de outros indivíduos envolvidos, como familiares, amigos, colegas de trabalho, comunidade.

A enfermagem pode ser importante no avanço da APS, em particular na promoção da saúde, na prevenção de agravos e no cuidado, especialmente com populações vulneráveis14Organização Pan-Americana da Saúde (US). Ampliação do papel dos enfermeiros na atenção primária à saúde. Washington, DC: OPAS; 2018 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/34960/9789275720035_por.pdf?sequence=6
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
. Os ATs envolvendo crianças em países de média e baixa renda, como é o caso do Brasil, acontecem quando as crianças começam a realizar atividade de forma independente. Tais como: ir para a escola sozinhas, por exemplo, ou quando se tornam economicamente ativas e mais vulneráveis. Nesta perspectiva, os gastos com a reabilitação e os efeitos sobre a vítima e a família podem ser extremamente prejudiciais e cíclicos, principalmente a longo prazo3United Nations Children’s Fund, Foundation for the Automobile and Society. Rights of way: child poverty & road traffic injury in the SDGS. New York: FIA Foundation, Unicef; 2016 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.fiafoundation.org/media/391038/rights-of-way-spreads.pdf
https://www.fiafoundation.org/media/3910...
.

O comportamento seguro dos usuários das vias e a redução das mortes causadas pelo trânsito dependem não somente de conhecimentos e habilidades. Mas, também do apoio da comunidade, da percepção de vulnerabilidades e riscos, das normas e modelos sociais, de medidas de engenharia e monitoramento do cumprimento das leis2World Health Organization (CH). Save lives: a road safety technical package. Geneva: WHO; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255199/9789241511704-eng.pdf?sequence=1
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
,12Hämel K, Toso BRGO, Casanova A, Giovanella L. Advanced practice nursing in primary health care in the Spanish National Health System. Ciênc Saúde Coletiva. 2020 Jan;25(1):303-14. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28332019
https://doi.org/10.1590/1413-8123202025...
. Portanto, para além do cuidado de enfermagem, ações programáticas precisam ser empreendidas, tais como políticas públicas efetivas, legislação, fiscalização e ações de engenharia de tráfego que permeiam a complexidade do fenômeno AT buscando a atenção integral à criança.

O estudo se ocupa de um tema pouco explorado no campo da prática profissional do enfermeiro. Os resultados apresentados podem contribuir para a prática assistencial de enfermagem na APS, por evidenciar a necessidade de ampliar e efetivar o trabalho de prevenção dos ATs de forma articulada e intersetorial, consolidando um modelo de atenção integral à saúde.

Assim, o estudo poderá fomentar novos paradigmas com base na promoção da saúde superando o modelo hegemônico hospitalocêntrico e médico-curativo e priorizando o cuidado em enfermagem. Cuidado este, que se estabelece na ação, na atitude e no movimento cotidiano da equipe e dos serviços, ao considerar a presença do outro no espaço assistencial.

Além disso, considera uma perspectiva interdisciplinar e intersetorial na otimização e na diversificação das formas e da qualidade da interação, no enriquecimento dos horizontes de saberes e fazeres em saúde7Silva Filho OC, Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da palavra, do olhar e da empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia. 2019 [Resenha]. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(5):1991-2. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.22042019
https://doi.org/10.1590/1413-81232020255...
. Em destaque, o protagonismo trabalho do enfermeiro atuante na APS, dado seu lugar, papel e atuação junto às equipes de saúde.

Nesta perspectiva, o desafio atual consiste em articular explicação e compreensão na interpretação do fenômeno AT. Para além de dados estatísticos que sofrem influência de fatores causa-efeito, a proposta de analisar o cuidado direcionado às crianças para a prevenção dos ATs, considerando também fatores sociais, programáticos e ainda conhecimentos não científicos, tem a pretensão de superar vulnerabilidades.

Ao tentar fazer esta articulação, há a aproximação de um plano normativo, ou seja, há a possibilidade de escolher um plano de cuidado e ação mais adequado, singular para cada contexto e sujeitos, diferente do que acontece em um cuidado reducionista, que não dialoga com outras áreas de conhecimento ou não considera o conhecimento prático e o contexto de vida da população atendida.

É preciso que a prevenção enquanto cuidado seja alvo de pesquisas e diálogos na APS na tentativa de compreender o papel dos enfermeiros e suas práticas de cuidado, bem como os sentidos que eles atribuem a tais práticas, buscando visibilidade no cenário nacional e a incorporação no cotidiano de ações de prevenção dos acidentes de trânsito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pressuposto inicial do estudo foi confirmado, ou seja, a prevenção dos acidentes de trânsito enquanto cuidado de enfermagem vem sendo realizada timidamente em atividades pouco articuladas. Salienta-se que o cuidado na prevenção dos acidentes deve ser empreendido simultaneamente à busca por intervenções que promovam a igualdade e equidade da população.

Na ótica das enfermeiras deste estudo, as práticas educativas multifacetadas e multidisciplinares são indicadas como plano fundamental para articular campos de saberes, comunidade e Estado na intervenção para reduzir os agravos aqui estudados.

Além de o objetivo ser alcançado, o estudo avançou no sentido de evidenciar, o cuidado à redução do acidente de trânsito, como atividade inerente ao papel do enfermeiro e apontando as ações intersetoriais como um horizonte para a realização deste cuidado.

Esta pesquisa indica a importância de que sejam ampliados os estudos sobre prevenção enquanto cuidado de enfermagem, tendo em vista que a atenção primária à saúde é o espaço privilegiado para desenvolver ações de prevenção em saúde, corroborando com a prerrogativa da Campanha Nursing Now, para promover a adequada visibilidade da Enfermagem, que atua incessantemente nas ações de melhoria dos indicadores vitais.

Nesse sentindo, as estratégias de promoção e prevenção da saúde para a integralidade do cuidado são sustentadas pelo trabalho da equipe de saúde, especialmente do enfermeiro, permitindo a articulação entre prevenção e cuidado como prática colaborativa interdisciplinar e intersetorial.

Como contribuição, a articulação entre diversas áreas do conhecimento pode evidenciar uma opção por um plano de cuidados mais assertivo, ou seja, por cuidados ou ações singulares, de acordo com a necessidade de cada sujeito e realidade, respondendo ao paradigma da integralidade do cuidado e do verdadeiro encontro entre usuários e profissionais.

REFERENCES

  • Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? a WHO-UNICEF-Lancet Commission. The Lancet. 2020 Fev;395(10224):605-58. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)32540-1
  • World Health Organization (CH). Save lives: a road safety technical package. Geneva: WHO; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255199/9789241511704-eng.pdf?sequence=1
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255199/9789241511704-eng.pdf?sequence=1
  • United Nations Children’s Fund, Foundation for the Automobile and Society. Rights of way: child poverty & road traffic injury in the SDGS. New York: FIA Foundation, Unicef; 2016 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.fiafoundation.org/media/391038/rights-of-way-spreads.pdf
    » https://www.fiafoundation.org/media/391038/rights-of-way-spreads.pdf
  • United Nation Children’s Fund (US). Narrowing the gaps: the power of investing in the poorest children. New York: Unicef; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.unicef.org/publications/files/UNICEF_The_power_of_investing_in_the_poorest_children.pdf
    » https://www.unicef.org/publications/files/UNICEF_The_power_of_investing_in_the_poorest_children.pdf
  • World Health Organization (CH). State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
    » https://www.who.int/publications/i/item/9789240003279
  • Ayres JRCM. Care: work, interaction and knowing health practices [editorial]. Rev Baiana Enferm. 2017 [cited 2020 Jul 10];31(1):e21847. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
    » https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847/14172
  • Silva Filho OC, Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da palavra, do olhar e da empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia. 2019 [Resenha]. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(5):1991-2. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.22042019
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.22042019
  • Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qualitat. 2017 [cited 2020 Jul 10];5(7):1-12. Available from: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4111455/mod_resource/content/1/Minayosaturacao.pdf
    » https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4111455/mod_resource/content/1/Minayosaturacao.pdf
  • The R Project for Statistical Computing [Internet]. Vienna: The R Foundation; 2020 [cited 2020 May 06]. Available from: https://www.r-project.org/
    » https://www.r-project.org/
  • Braun V, Clarke V, Hayfield N, Terry G. Thematic analysis. In: Liamputtong P. (eds) Handbook of research methods in health social sciences. Singapore: Springer; 2019. p. 843-60. Available from: https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_103
    » https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_103
  • Nunes AJ, Sales MCV. Violence against children in Brazilian scenery. Ciênc Saúde Coletiva. 2016 Mar;21(3):871-80. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.08182014
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.08182014
  • Hämel K, Toso BRGO, Casanova A, Giovanella L. Advanced practice nursing in primary health care in the Spanish National Health System. Ciênc Saúde Coletiva. 2020 Jan;25(1):303-14. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28332019
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28332019
  • Vera MG, Merighi MAB, Conz CA, Silva MH, Jesus MCP, González LAM. Primary health care: the experience of nurses. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 1):531-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0244
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0244
  • Organização Pan-Americana da Saúde (US). Ampliação do papel dos enfermeiros na atenção primária à saúde. Washington, DC: OPAS; 2018 [cited 2020 Jul 10]. Available from: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/34960/9789275720035_por.pdf?sequence=6
    » https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/34960/9789275720035_por.pdf?sequence=6
  • Will KE, Dunaway KE. Evaluation of a participative education process for increasing tween restraint use in Virginia: The Make it Click initiative. Transport Res Part F: Traffic Psychol Behav. 2017 Feb;45:54-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.013
    » https://doi.org/10.1016/j.trf.2016.11.013
  • Kovess-Masfety V, Sowa D, Keyes K, Husky M, Fermanian C, Bitfoi A, et al. The association between car accident fatalities and children’s fears: a study in seven EU countries. PLoS ONE. 2017 Aug;12(8):e0181619. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0181619
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0181619
  • Holm A, Jaani J, Eensoo D, Piksoeoet J. Pedestrian behaviour of 6th grade Estonian students: implications of social factors and accident-prevention education at school. Transport Res Part F: Traffic Psychol Behav. 2018;52:112-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.trf.2017.11.005
    » https://doi.org/10.1016/j.trf.2017.11.005
  • Silva JP, Gonçalves MFC, Andrade LS, Monteiro EMLM, Silva MAI. Health promotion in primary education: perceptions of bachelor’s degree with a teaching diploma in nursing students. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0237. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0237
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0237
  • Ministério da Saúde (BR). Portaria interministerial nº 1.055, de 25 de abril de 2017. Redefine as regras e os critérios para adesão ao Programa Saúde na Escola - PSE por estados, Distrito Federal e municípios e dispõe sobre o respectivo incentivo financeiro para custeio de ações. Brasília, DF; 2017 [cited 2020 Jul 10]. Avaialble from: Avaialble from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/pri1055_26_04_2017.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/pri1055_26_04_2017.html
  • Lukewich JA, Tranmer JE, Kirkland MC, Walsh AJ. Exploring the utility of the Nursing Role Effectiveness Model in evaluating nursing contributions in primary health care: a scoping review. NursingOpen. 2019;6(3):685-97. doi:https://doi.org/10.1002/nop2.281
    » https://doi.org/10.1002/nop2.281
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - e pela Fundação Araucária - Apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico do Paraná. Apoio financeiro pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq - Bolsa de Produtivdade em Pesquisa - Processo: 305469/2019-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    21 Set 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@enf.ufrgs.br