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Repercussões impostas pela pandemia no cuidado à criança com transtorno mental em uma unidade pediátrica

RESUMO

Objetivo:

Compreender as percepções dos enfermeiros sobre as repercussões no cuidado à criança com transtorno mental em uma unidade de internação pediátrica, em meio à pandemia da COVID-19.

Método:

Pesquisa qualitativa realizada com 13 enfermeiros em uma unidade de pediatria geral em um hospital de grande porte no Sul do Brasil. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e analisados conforme a Análise Temática.

Resultados:

Os entrevistados perceberam repercussões nas rotinas hospitalares devido à pandemia, como restrição das atividades de recreação; imposição de distanciamento social; limitação de visitas familiares; uso obrigatório de equipamentos de proteção individual; e dificuldade contrarreferência do cuidado.

Considerações finais:

Os resultados caracterizaram o momento vivenciado na unidade, podendo proporcionar aos gestores da instituição ferramentas para a construção e implementação de novas práticas, possibilitando o atendimento das demandas dos cuidados em saúde mental à criança com transtornos mentais dentro das premissas da atenção psicossocial.

Palavras-chave:
COVID-19; Criança; Enfermagem; Transtornos mentais; Assistência hospitalar

ABSTRACT

Objective:

To understand the perceptions of nurses about the repercussions on the care for children with mental disorders in a pediatric inpatient unit amidst the COVID-19 pandemic.

Method:

Qualitative research conducted with 13 nurses in a general pediatrics unit in a large hospital in southern Brazil. Data were collected through semi-structured interviews and analyzed according to the Thematic Analysis.

Results:

Respondents perceived repercussions on hospital routines due to the pandemic, such as restriction of recreation activities; enforcement of social distancing; limitation of family visits; mandatory use of personal protective equipment and difficulty in counter-referral of care.

Final considerations:

The results characterized the moment experienced in the unit, providing the institution’s managers with tools for the construction and implementation of new practices, making it possible to meet the demands of mental health care for children with mental disorders within the premises of psychosocial care.

Keywords:
COVID-19; Child; Nursing; Mental disorders; Hospital care

RESUMEN

Objetivo:

Entender las percepciones de los enfermeros sobre las repercusiones del cuidado de niños con trastornos mentales en una unidad de hospitalización pediátrica en medio de la pandemia de COVID-19.

Método:

Investigación cualitativa realizada con 13 enfermeros de la unidad de pediatría general en un mayor hospital del sur de Brasil. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas y analizados según el Análisis Temático.

Resultados:

Los encuestados percibieron repercusiones en las rutinas hospitalarias debido a la pandemia, como restricción de actividades recreativas; cumplimiento del distanciamiento social; limitación de visitas familiares; uso obligatorio de equipo de protección personal y dificultad en la contrarreferencia de atención.

Consideraciones finales:

Los resultados caracterizaron el momento vivido en la unidad, proporcionando a los gestores de la institución herramientas para la construcción e implementación de nuevas prácticas, posibilitando atender las demandas de atención a la salud mental de los niños con trastornos mentales dentro de las premisas de la atención psicosocial.

Palabras clave:
COVID-19; Niño; Enfermería; Trastornos mentales; Atención hospitalaria

INTRODUÇÃO

A constituição de uma política específica em saúde mental para crianças, no Brasil, se estabeleceu apenas no século XXI. Antes disso, as ações relacionadas à saúde mental na infância eram delegadas aos setores de educação e assistência social, sendo quase ausente a participação de trabalhadores da saúde11. Sá NKCM, Costa IG Junior , Carvalho JW, Alencar DC, Campelo LLCR. Formação de acadêmicos de enfermagem para o cuidado da saúde mental de crianças e adolescentes. Rev Eletr Acervo Saúde. 2020;44:e3093. doi: https://doi.org/10.25248/reas.e3093.2020
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Ao longo dos anos, vem-se observando um aumento na prevalência de transtornos mentais na população, sobretudo infantil, frente às especificidades dessa fase da vida. Aproximadamente, a prevalência de questões relacionadas à saúde mental em crianças e adolescentes pode variar entre 10e 31%22. Li F, Cui Y, Li Y, Guo L, Ke X, Liu J, et al. Prevalence of mental disorders in school children and adolescents in China: diagnostic data from detailed clinical assessments of 17,524 individuals. J ChildPsycholPsychiatr. 2021;63(1):34-64. doi: https://doi.org/10.1111/jcpp.13445
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. Em países desenvolvidos essa média oscila entre 7,6% e 27,2%33. Whitney DG, Peterson MD. US national and state-level prevalence of mental health disorders and disparities of mental health care use in children. JAMA Pediatr. 2019;173(4):389-91. doi: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2018.5399
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Nesse cenário, existem serviços de base comunitária especializados no cuidado dos agravos de saúde mental infantojuvenil, no entanto, as crianças podem necessitar de hospitalização temporária em leitos da psiquiatria a fim de tratar os sintomas agudos. Sendo assim, a internação em saúde mental, inserida nos hospitais gerais, é considerada um recurso terapêutico indispensável para a assistência desses pacientes com diversos tipos de transtornos mentais, principalmente, em momentos de agudização dos sintomas44. Carneiro ES, Souza AIJ, Pina JC, Rumor PCF, Gevaerd TC, Cicéron MY. Abordagem da equipe de saúde nos agravos de saúde mental de crianças e adolescentes hospitalizados. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2018;18(1):7-14. doi: https://doi.org/10.31508/1676-3793201800002
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Dessa maneira, o enfermeiro, sendo o trabalhador que acompanha na maior parte do tempo a criança hospitalizada, deve ofertar um cuidado para além do olhar clínico, sobretudo, orientado pelas práticas biopsicossociais, pautadas no acolhimento, na humanização do atendimento e na promoção de autonomia das crianças no âmbito hospitalar55. Peters AA, Jeremias JS, Cordeiro GFT, Brugger EBA, Costa RCA, Assis GP, et al. Nursing care for people with mental disorder in the general hospital: challenges of specialized care. Saud Colet. 2020;10(55):2831-44. doi: https://doi.org/10.36489/saudecoletiva.2020v10i55p2831-2844
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Esses aspectos são fundamentais, pois propiciam reflexões sobre o compromisso de reconhecer o outro como sujeito único, através da ressignificação do cuidar em saúde mental. Além disso, é de suma importância que as instituições hospitalares, bem como os profissionais consigam atender às necessidades de saúde das crianças internadas, tendo em vista as suas particularidades e especificidades, inclusive durante a pandemia da COVID-1955. Peters AA, Jeremias JS, Cordeiro GFT, Brugger EBA, Costa RCA, Assis GP, et al. Nursing care for people with mental disorder in the general hospital: challenges of specialized care. Saud Colet. 2020;10(55):2831-44. doi: https://doi.org/10.36489/saudecoletiva.2020v10i55p2831-2844
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Durante a pandemia, muitos recursos comunitários foram temporariamente suspensos, aumentando os quadros de sintomas psiquiátricos e agravos na saúde mental infantil, gerando agudização e/ou descompensação dos casos. Fato este que pode despertar na equipe de saúde, principalmente de enfermagem, incertezas e inseguranças no atendimento de crianças em sofrimento psíquico66. Aydogdu ALF. Saúde mental das crianças durante a pandemia causada pelo novo coronavírus: revisão integrativa. J Health NPEPS. 2020;5(2):e4891. doi: http://doi.org/10.30681/252610104891
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Saliente-se que não estamos falando sobre quaisquer crianças, mas daquelas que apresentam características de uma infância atravessada pela identificação mais geral de um problema relacionado à saúde mental ou a detecção mais específica de um transtorno mental, comportamentos e necessidades de acolhimento, acompanhamento e cuidado em saúde mental.

Nessa direção e independente do contexto pandêmico, estabelecer características e critérios rígidos e estáticos para essa população, não é tão clara, devido a este período apresentar constantes desenvolvimento/mudanças, isto é, um fenômeno considerado normal aos três anos, já não é esperado aos oito anos. Da mesma forma, comportamentos considerados inconvenientes aos dez anos, não representam problema a uma criança de quatro anos.

Portanto, a caracterização do sofrimento/problema psíquico na criança ocorre por aquilo que é experimentado por ela, por seus responsáveis e pessoas próximas como algo que limita a sua vida, suas capacidades criativas e adaptativas. Necessita de uma avaliação minuciosa, para além da sintomatologia manifesta, mas seu funcionamento, suas relações com o ambiente próximo, seu lugar na família, histórico de vida e contextos experienciados22. Li F, Cui Y, Li Y, Guo L, Ke X, Liu J, et al. Prevalence of mental disorders in school children and adolescents in China: diagnostic data from detailed clinical assessments of 17,524 individuals. J ChildPsycholPsychiatr. 2021;63(1):34-64. doi: https://doi.org/10.1111/jcpp.13445
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,55. Peters AA, Jeremias JS, Cordeiro GFT, Brugger EBA, Costa RCA, Assis GP, et al. Nursing care for people with mental disorder in the general hospital: challenges of specialized care. Saud Colet. 2020;10(55):2831-44. doi: https://doi.org/10.36489/saudecoletiva.2020v10i55p2831-2844
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Tal panorama promove reflexões e indagações sobre o cuidado de enfermagem, diante do contexto pandêmico, que instaurou novas rotinas de atendimento e, possivelmente, terá repercutido na assistência prestada. O estudo advém da observação de uma das autoras na unidade de internação pediátrica, durante o período da pandemia, no qual foi possível refletir que o cuidado oferecido às crianças internadas nos leitos psiquiátricos sofreu alterações. Nessa jornada, percebeu-se que muitos enfermeiros, crianças e familiares necessitaram se adaptar às novas exigências em decorrência do contexto sanitário.

Dessa maneira, motivou-se a realização de um estudo que pudesse caracterizar este momento singular e identificar as principais alterações ocorridas. A partir disso, a presente pesquisa buscou responder à seguinte questão norteadora: “Qual a percepção dos enfermeiros sobre o cuidado à criança com transtorno mental em uma unidade de internação pediátrica em meio à pandemia da COVID-19?”.

Além de a temática ser relevante no contexto acadêmico, a condução deste estudo é justificada, pois observou-se uma lacuna do conhecimento devido à escassez de materiais que abordassem o tema sobre cuidado de enfermagem à criança com transtornos mentais em leitos destinados à psiquiatria na unidade de internação pediátrica, a partir da ótica dos enfermeiros, em um único estudo. Nesse contexto, apenas foram encontradas pesquisas que abordassem as repercussões da pandemia na saúde mental de crianças22. Li F, Cui Y, Li Y, Guo L, Ke X, Liu J, et al. Prevalence of mental disorders in school children and adolescents in China: diagnostic data from detailed clinical assessments of 17,524 individuals. J ChildPsycholPsychiatr. 2021;63(1):34-64. doi: https://doi.org/10.1111/jcpp.13445
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,66. Aydogdu ALF. Saúde mental das crianças durante a pandemia causada pelo novo coronavírus: revisão integrativa. J Health NPEPS. 2020;5(2):e4891. doi: http://doi.org/10.30681/252610104891
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,77. Lopes FPS, Nascimento JGC, Cartaxo LS. A influência da recreação terapêutica frente a recuperação da criança hospitalizada. Rev UFG. 2018;18(24):426-37. doi: https://doi.org/10.5216/revufg.v18i24.58630
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,88. Zuchetto MA, Faria AR, Osti KA, Schroeder L, Santiago MM, Schoeller SD. Enfermagem de reabilitação no Brasil frente à situação de pandemia: estudo de caso. Rev Port Enf Reab. 2020;3(Supl. 2):50-7. doi: https://doi.org/10.33194/rper.2020.v3.s2.7.5795
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,99. Ramos RS. Oncology nursing in coping with the COVID-19 pandemic: reflections and recommendations for oncology care practice. Rev Bras Cancerol. 2020;66(TemaAtual):e-1007. doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2020v66nTemaAtual.1007
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-1111. Moore R, Hayward A, Necaise K. Through their eyes: health care worker compliance with personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. J Nurs Care Qual. 2021;36(4):294-301. doi: https://doi.org/10.1097/NCQ.0000000000000584
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, cuidado de enfermagem em unidades psiquiátricas infantis11. Sá NKCM, Costa IG Junior , Carvalho JW, Alencar DC, Campelo LLCR. Formação de acadêmicos de enfermagem para o cuidado da saúde mental de crianças e adolescentes. Rev Eletr Acervo Saúde. 2020;44:e3093. doi: https://doi.org/10.25248/reas.e3093.2020
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,33. Whitney DG, Peterson MD. US national and state-level prevalence of mental health disorders and disparities of mental health care use in children. JAMA Pediatr. 2019;173(4):389-91. doi: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2018.5399
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-55. Peters AA, Jeremias JS, Cordeiro GFT, Brugger EBA, Costa RCA, Assis GP, et al. Nursing care for people with mental disorder in the general hospital: challenges of specialized care. Saud Colet. 2020;10(55):2831-44. doi: https://doi.org/10.36489/saudecoletiva.2020v10i55p2831-2844
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, e repercussão dos cuidados de enfermagem com crianças hospitalizadas na pediatria1212. Ministério da Saúde (BR). Gabinete do Ministro. nº 2.261, de 23 de novembro de 2005. Aprova o Regulamento que estabelece as diretrizes de instalação e funcionamento das brinquedotecas nas unidades de saúde que ofereçam atendimento pediátrico em regime de internação. Diário Oficial União. 2005 [cited 2021 Nov 13];142(225 Seção 1):70. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24/11/2005&jornal=1&pagina=70&totalArquivos=104
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,1313. Gonçalves KG, Figueiredo JR, Oliveira SX, Davim RMB, Camboim JCA, Camboim FEF. Hospitalized child and the nursing team: opinion of caregivers. J Nurs UFPE on line. 2017;11(Supl. 6):2586-93. doi: https://doi.org/10.5205/reuol.9799-86079-1-RV.1106sup201713
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,1414. Knihs NS, Sens S, Silva AM, Wachholz LF, Paim SMS, Magalhães ALP. Care transition for liver transplanted patients during the COVID-19 pandemic. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200191. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0191
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Assim, tem-se por objetivo compreender as percepções dos enfermeiros sobre as repercussões no cuidado à criança com transtorno mental em uma unidade de internação pediátrica, em meio à pandemia da COVID-19.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e descritivo1515. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014., conduzido conforme o guia Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)1616. Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE02631. doi: https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
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A pesquisa foi realizada em uma unidade de internação pediátrica de um hospital geral do Sul do Brasil. No momento da coleta dos dados, a unidade possuía 34 leitos, nos quais ocorriam hospitalizações infantis com as mais variadas patologias, com prestação de cuidados clínicos, pré e pós-cirúrgicos, e à psiquiatria, sendo dois leitos voltados às crianças com transtornos mentais.

Nos leitos destinados à saúde mental se internavam crianças na faixa etária de cinco a 14 anos incompletos. O tempo médio de permanência na internação era de 31 a 49 dias, podendo variar conforme a necessidade. As principais causas de internação, geralmente, eram sintomas depressivos, agitação/hiperatividade, tentativas de suicídio, agressividade, seguidos por distúrbios alimentares1717. Guinsburg SZN, Cunegatto FR, Lima FM, Castan JU. Psicodiagnóstico na internação psiquiátrica da infância e adolescência: Panorama do triênio 2015-2016-2017. Clin Biomed Res. 2019;39(3):216-9. doi: https://doi.org/10.22491/2357-9730.93263
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A escolha dos participantes foi intencional, mediante convite prévio para todos os 13 enfermeiros que trabalhavam na referida unidade e que estavam distribuídos nos turnos de trabalho: manhã, tarde, noite e finais de semana.

Estabeleceram-se como critérios de inclusão: enfermeiros que estivessem atuando na assistência à criança na unidade de internação do estudo e que possuíssem contrato efetivo de no mínimo seis meses de trabalho, dada a familiarização com a assistência.E como critérios de exclusão: enfermeiros que estivessem em período de férias, licença de gestação ou licença de saúde, durante a realização da pesquisa. Após a aplicação dos critérios de seleção, todos os 13 enfermeiros foram incluídos.

Para a coleta das informações, em um primeiro momento, o projeto de pesquisa foi apresentado à chefia da unidade de internação, de forma virtual. Após a ciência e permissão da chefia, realizou-se um primeiro contato com os profissionais, através do e-mail coletivo, com o convite para participar do estudo. Confirmado o interesse dos enfermeiros em participar, através do preenchimento de um formulário individual contendo a carta-convite, foi disponibilizado previamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e agendado um dia da preferência do profissional para a realização da entrevista, de forma remota, seguindo os protocolos de segurança da instituição hospitalar.

Realizou-se um teste piloto antes de iniciar oficialmente a pesquisa, com a aplicação das questões norteadoras propostas, a fim de revisar e aprimorar os pontos necessários, para alcançar o objetivo proposto. Posteriormente, aconteceram as entrevistas semiestruturadas, por uma enfermeira-pesquisadora com experiência em pesquisa qualitativa, através da plataforma virtual Google Meet. A pesquisadora não havia tido contato/relação interpessoal com os entrevistados antes do estudo, para não comprometê-lo e gerar vieses.

As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado com questões fechadas sobre o perfil dos profissionais, a fim de caracterizar a população, como sexo, idade, categoria, tempo de formação e especialização em saúde mental, por exemplo; seguida da questão “Quais as práticas de cuidado realizadas às crianças com transtornos mentais na unidade de internação em meio a pandemia da COVID-19?” em que os entrevistados discorreram sobre o tema proposto, inclusive podendo destacar outros aspectos que achassem relevantes e, que não haviam sido contemplados na pergunta disparadora.

As entrevistas ocorreram nos meses de julho e agosto de 2021, tiveram duração entre 10e 50 minutos. Foram realizadas através de uma vídeochamada com a possibilidade de gravação pela plataforma e transcritas na íntegra de forma literal, para posterior análise. Em consonância com a Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD), somente a pesquisadora teve acesso às respostas.

Ao término da escrita do relatório de pesquisa, a versão final da pesquisa foi apresentada em um encontro virtual agendado com os entrevistados, a fim de validar os resultados do estudo. Esse momento compreendeu a oportunidade de os participantes comentarem, corrigir e/ou afirmarem a credibilidade das interpretações. Ressalta-se que não foram sugeridas alterações pelos profissionais, frente à análise realizada inicialmente.

Os profissionais entrevistados foram codificados pela letra “E” de Enfermeiro, seguida pelo número de acordo com a sequência em que a entrevista ocorreu, como “E1”, “E2”, “E3” e, assim, sucessivamente.

As informações foram analisadas de acordo com a Análise Temática1515. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014., seguindo três etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A primeira etapa consistiu na retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, com uma leitura flutuante para contato direto e intenso com o material de campo, a fim de conhecer o conteúdo e constituir um corpus. Já a segunda etapa consistiu no agrupamento de categorias, onde o conteúdo foi organizado, visando alcançar a compreensão do texto. A terceira etapa consistiu no processo de redução do texto, resultando na classificação e na agregação dos dados, separando-os em categorias responsáveis pela especificação dos temas. Por fim, evidenciaram-se as informações obtidas e, a partir delas, foram realizadas inferências e interpretações, relacionando-as em torno de novas dimensões teóricas baseadas em literatura. Após a análise, surgiu a categoria: “Implicações no cuidado em decorrência da pandemia da COVID-19”.

A pesquisa iniciou-se após apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do referido hospital, tendo sua aprovação sob o número 4.757.539/2021 (CAAE 46986021.0.0000.5327). Aos participantes, foi assegurado o anonimato, respeitando-se os itens da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que dispõe sobre as normas éticas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos. O estudo também respeitou os aspectos pontuados no Ofício Circular nº 2/2021 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que orienta sobre as etapas de pesquisas em ambiente virtual.

Os dados pessoais também foram manejados respeitando a LGPD, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

O TCLE, lido e elucidado, foi fornecido para cada participante, que só prosseguiu para a fase de entrevistas após ter confirmado o interesse e concordado com o mesmo, preenchendo a opção “sim” para aceite via formulário eletrônico, com cópia em e-mail para o pesquisador e o entrevistado.

No TCLE havia informações referentes ao projeto de pesquisa, como objetivos, riscos e benefícios, bem como a garantia do caráter voluntário de participação, da manutenção de seu anonimato e da possibilidade de retirar seu consentimento em qualquer etapa do estudo, sem nenhuma penalização ou prejuízo, além da não interferência em seu vínculo empregatício ou relação com avaliação de desempenho. Os riscos relacionados à participação foram referentes ao possível desconforto ou constrangimento ao abordar o conteúdo das perguntas. Não existiram benefícios diretos aos participantes, porém, os resultados poderão contribuir para aumentar o conhecimento sobre o assunto estudado e, se aplicável, poderá beneficiar futuros participantes, contribuindo com estratégias que qualifiquem o cuidado de enfermagem à criança com transtornos mentais no contexto da pandemia de COVID-19.

RESULTADOS

Na primeira parte da entrevista semiestruturada, havia questões fechadas sobre o perfil dos profissionais que possibilitaram caracterizar a população do estudo.

Sendo assim, a faixa etária dos participantes variou entre 35 e 57 anos. Quanto ao tempo de formação dos trabalhadores, variou entre 11 e 27 anos, onde cinco profissionais possuíam entre 11 e 15 anos de formados, quatro profissionais possuíam entre 16 e 20 e quatro tinham mais de 20 anos de formação.

Quanto ao tempo de trabalho na instituição, verificou-se que todos os profissionais possuíam mais de dez anos, onde nove entrevistados tinham entre 11 e 20 anos de trabalho, e quatro profissionais possuíam mais de 20 anos de atuação no referido hospital. Quanto ao tempo de trabalho na unidade de internação pediátrica, variou entre 6 meses e 25 anos.

Implicações no cuidado em decorrência da pandemia da COVID-19

Devido à pandemia da COVID-19, houve a necessidade de alterações nas rotinas hospitalares, que foram percebidas pelos profissionais enfermeiros no cuidado destinado à criança com transtornos mentais internadas na unidade de pediatria, sendo elas: a restrição das atividades de recreação; imposição de distanciamento social; limitação de visitas familiares; uso obrigatório de equipamentos de proteção individual (EPIs); e dificuldade na contrarreferência do cuidado.

A restrição nas atividades de recreação das crianças foi adotada a fim de evitar aglomeração e que os objetos e brinquedos da sala se tornassem fontes de transmissão do vírus entre os pacientes internados. Essa mudança repercutiu no cuidado das crianças, na medida em que os enfermeiros perceberam que as atividades e o espaço de recreação faziam parte do tratamento em saúde mental.

Senti que, para o paciente psiquiátrico, o que dá uma modificada no cuidado é a recreação. No auge da pandemia, não teve recreação pelo risco de contaminação, isso interferiu diretamente no cuidado. (E2)

Uma barreira foi o serviço de recreação, que por muito tempo ficou fechado [...]acredito que isso é fundamental para esses pacientes, então, foi uma lacuna bem grande que existiu. (E4)

É o que mais faz diferença para eles, pois talvez eles pudessem estar mais agitados pela questão de não ter a recreação. (E8)

Em 2005, a Portaria nº 2.261 tornou obrigatória a instalação desses espaços de recreação para pacientes pediátricos em regime de internação, reconhecendo a brincadeira como necessidade da criança saudável ou comprometida1212. Ministério da Saúde (BR). Gabinete do Ministro. nº 2.261, de 23 de novembro de 2005. Aprova o Regulamento que estabelece as diretrizes de instalação e funcionamento das brinquedotecas nas unidades de saúde que ofereçam atendimento pediátrico em regime de internação. Diário Oficial União. 2005 [cited 2021 Nov 13];142(225 Seção 1):70. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24/11/2005&jornal=1&pagina=70&totalArquivos=104
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No cenário das internações pediátricas, esse espaço faz parte do cuidado e a utilização da brincadeira torna-se um instrumento para o bem-estar biopsicossocial dessas crianças. A denominada recreação hospitalar une o brincar à terapêutica, utilizando dinâmicas de acordo com a idade, limitações e necessidades de cada criança77. Lopes FPS, Nascimento JGC, Cartaxo LS. A influência da recreação terapêutica frente a recuperação da criança hospitalizada. Rev UFG. 2018;18(24):426-37. doi: https://doi.org/10.5216/revufg.v18i24.58630
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, sendo de fundamental importância para as que possuem transtornos mentais.

Dentre as várias adaptações em decorrência da pandemia que o serviço hospitalar instaurou, uma das repercussões ocasionadas foi o fechamento da sala de recreação. Assim, esses espaços não puderam ser utilizados, demandando das instituições o planejamento de estratégias para assegurar as atividades recreativas e terapêuticas no próprio quarto e/ou leito da criança. Com isso, incentivou-se a disponibilização de materiais exclusivos e intransferíveis de pintura, leitura, assim como jogos e brinquedos que pudessem ser descartados na alta da criança1818. Ferreira EAL, Menegussi JM, Bombarda TB, Torcia VC, Silva ID, Piovezan S. Quality of life of children hospitalized in the COVID-19 pandemic. Resid Pediatr. 2020;10(3):1-5. doi: https://doi.org/10.25060/residpediatr-2020.v10n3-401
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A implementação de estratégias de distanciamento social, na unidade de internação, como outra medida de prevenção à disseminação da COVID-19, além de limitar as crianças de brincar e de interagirem umas com as outras, modificou a atuação dos enfermeiros em suas práticas de cuidado.

As crianças tiveram mais dificuldade porque não puderam interagir com as outras crianças [...]. (E1)

Muitos são extremamente afetivos e a gente não pode abraçar, não pode se tocar, não pode compartilhar objetos (brinquedos), acho que isso é uma barreira. (E4)

O distanciamento social promoveu o rompimento e/ou enfraquecimento de vínculos afetivos, sociais e também de cuidado de saúde, importantes ao desenvolvimento humano. A suspensão do contato físico, assim como dos encontros e das brincadeiras, acabou dificultando a oferta de cuidado mais próximo, em virtude de serem elementos imprescindíveis no tratamento. Um simples toque ou um sorriso tornaram-se ferramentas de acolhimento e construção de vínculo entre as crianças e os enfermeiros.

Com o distanciamento social, foi necessário repensar o cuidado de enfermagem, uma vez que essa profissão é, historicamente, vinculada à presença física e do toque terapêutico88. Zuchetto MA, Faria AR, Osti KA, Schroeder L, Santiago MM, Schoeller SD. Enfermagem de reabilitação no Brasil frente à situação de pandemia: estudo de caso. Rev Port Enf Reab. 2020;3(Supl. 2):50-7. doi: https://doi.org/10.33194/rper.2020.v3.s2.7.5795
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. Esses fatores são capazes de influenciar no tempo de internação das crianças hospitalizadas, agravando seu estado de saúde, por interferirem diretamente no estabelecimento de vínculos emocionais e afetivos.

O olhar, a palavra e os gestos utilizados pelos profissionais de saúde foram alternativas substitutas ao contato físico e se tornaram essenciais neste período, fortalecendo a humanização (que as barreiras físicas retiraram) no cuidado e (re)aproximando familiares, pacientes e equipe88. Zuchetto MA, Faria AR, Osti KA, Schroeder L, Santiago MM, Schoeller SD. Enfermagem de reabilitação no Brasil frente à situação de pandemia: estudo de caso. Rev Port Enf Reab. 2020;3(Supl. 2):50-7. doi: https://doi.org/10.33194/rper.2020.v3.s2.7.5795
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Somado a isso, há outras maneiras que podem atenuar o estresse causado, uma delas é oportunizar e estimular ainda mais a participação ativa do familiar ou cuidador que acompanha no tratamento, já que é a referência de cuidado e de laços afetivos da criança, que pode contribuir para o bem-estar durante a hospitalização1313. Gonçalves KG, Figueiredo JR, Oliveira SX, Davim RMB, Camboim JCA, Camboim FEF. Hospitalized child and the nursing team: opinion of caregivers. J Nurs UFPE on line. 2017;11(Supl. 6):2586-93. doi: https://doi.org/10.5205/reuol.9799-86079-1-RV.1106sup201713
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No cenário estudado, foi estimulada a criança a estreitar as relações com seu familiar durante a internação, pois al imitação de visitas na unidade de pediatria foi outra modificação instaurada pelas estratégias de distanciamento social, que promoveu a diminuição do trânsito de pessoas no hospital. Essa mudança repercutiu no cuidado à criança com transtornos mentais, sendo percebida pelos enfermeiros.

Nós tivemos dificuldade nessa época de pandemia pela questão de não poder ter visitas, permanecia apenas um acompanhante. (E5)

Foi cortado a visita, antes podiam ficar até às 22 horas duas pessoas (um acompanhante e um visitante)nos quartos, agora não pode mais. (E12)

No cuidado em pediatria, a inclusão da família é uma prática comum e incentivada pela equipe e pelas instituições de saúde, por contribuir para uma compreensão melhor da situação, na tomada de decisão e na oferta de apoio e suporte infantil. Por consequência da pandemia, a presença do acompanhante permaneceu, mas as visitas não puderam ser efetuadas, a fim de evitar a contaminação pelo vírus por pessoas externas ao ambiente hospitalar, afetando o cuidado e os laços de afetividade da criança internada.

A limitação de visitas foi medida que se fez necessária,promovendo um maior afastamento físico dos pacientes de outrosmembros da família. Nesta situação, as famílias apresentaram sintomas de ansiedade, e sentimentos de preocupação e incerteza, relatando maior necessidade de informações dos profissionais de saúde1717. Guinsburg SZN, Cunegatto FR, Lima FM, Castan JU. Psicodiagnóstico na internação psiquiátrica da infância e adolescência: Panorama do triênio 2015-2016-2017. Clin Biomed Res. 2019;39(3):216-9. doi: https://doi.org/10.22491/2357-9730.93263
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Assim, com a implementação das restrições de visitas em serviços de saúde, os enfermeiros tiveram que adaptar a prestação de cuidados para compensar os efeitos negativos no processo de reabilitação dessas crianças internadas. Dessa maneira, visando seguir o modelo de cuidado centrado no paciente e família, reforçou-se a necessidade de manter um canal de comunicação com os demais parentes. Esses encontros foram realizados por meio de dispositivos virtuais, para que houvesse compreensão sobre o estado de saúde da criança hospitalizada1717. Guinsburg SZN, Cunegatto FR, Lima FM, Castan JU. Psicodiagnóstico na internação psiquiátrica da infância e adolescência: Panorama do triênio 2015-2016-2017. Clin Biomed Res. 2019;39(3):216-9. doi: https://doi.org/10.22491/2357-9730.93263
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, e assim proteger a todos, diminuindo a circulação pelo ambiente hospitalar.

No ambiente hospitalar, através da declaração do Ministério da Saúde, houve a necessidade do uso de EPIs, por todas as pessoas, incluindo pacientes e acompanhantes. Nesse contexto, acessórios como a máscara e face shield foram imprescindíveis nas rotinas e trouxeram impactos na assistência em saúde.

Teve o uso da máscara que nos esconde e a gente acaba não enxergando o outro, não enxergando a cara do outro, então, tira a imagem e a proximidade. (E3)

Uma criança com esquizofrenia [...] geralmente eles enxergam imagens, escutam vozes. A pessoa vem de máscara e ela pode se assustar. (E4)

Por exemplo, uma criança com dificuldade de fala, autista, enfim, elas precisam ver a gente falando. Então, para crianças que têm algum retardo de desenvolvimento, isso é muito pior [...]. (E9)

Os enfermeiros verbalizaram que esses equipamentos atrapalharam a aproximação (tanto física, quanto emocional) do profissional para com a criança internada, principalmente aquela com diagnóstico de esquizofrenia ou autismo, pois,além de esses dispositivos se constituírem como um elemento que gera uma barreira física, muitas crianças se assustavam com a paramentação.

Dentre as regras instituídas nos serviços de saúde, a lavagem das mãos, o uso de álcool em gel e o uso de EPIs foram indispensáveis por aqueles que necessitavam se manter no contexto hospitalar. Nesse cenário, o uso obrigatório de EPIs tem o propósito de impedir a disseminação do vírus da COVID-19. No entanto, a paramentação dificultou que a criança pudesse ver, ouvir e sentir o toque da pessoa que estava prestando a assistência, impactando nas atitudes de proximidade e afetividade entre profissional e paciente88. Zuchetto MA, Faria AR, Osti KA, Schroeder L, Santiago MM, Schoeller SD. Enfermagem de reabilitação no Brasil frente à situação de pandemia: estudo de caso. Rev Port Enf Reab. 2020;3(Supl. 2):50-7. doi: https://doi.org/10.33194/rper.2020.v3.s2.7.5795
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Ainda, em relação ao uso de EPIs, houve o receio das crianças internadas para com os profissionais utilizando máscaras. O uso desses acessórios esconde a expressão facial dos membros da equipe, e a criança não consegue visualizar o rosto do trabalhador que está cuidando, podendo gerar medo e ansiedade1010. Martinhago F. O confinamento do outro lado do oceano: a experiência de crianças e adolescentes durante a epidemia da Covid-19 na França. Polít Soc. 2020;19(46):65-94. doi: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e75264
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,1111. Moore R, Hayward A, Necaise K. Through their eyes: health care worker compliance with personal protective equipment during the COVID-19 pandemic. J Nurs Care Qual. 2021;36(4):294-301. doi: https://doi.org/10.1097/NCQ.0000000000000584
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, aumentando o desconforto no período da hospitalização.

Algumas instituições utilizaram a criatividade nesse período, ao confeccionarem crachás com fotos maiores e com fácies sorridentes, para que a criança pudesse identificar e ver o rosto do profissional por trás de todos os EPIs. Esta ação buscou humanizar o cuidado, aproximando e aumentando o vínculo do trabalhador para com o paciente1919. Báo ACP, Amestoy SC, Bertoldi K, Menna Barreto LN, Nomura ATG, Silveira JCS. Segurança do paciente frente à pandemia da COVID-19: ensaio teórico-reflexivo. Res Soc Dev. 2020;9(11):e73091110252. doi: http://doi.org/10.33448/rsd-v9i11.10252
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) durante o período de sua estadia no hospital.

Outra questão que repercutiu na assistência, conforme a percepção dos participantes entrevistados, foi o processo de alta e a contrarreferência para a atenção primária. Partindo do pressuposto de que o cuidado na atenção hospitalar é de alta complexidade, é recomendado que seja de duração limitada ao mais precoce possível, encaminhando o paciente para o domicílio e continuando o acompanhamento nos dispositivos territoriais, de acordo com as premissas da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)2020. Ministério da Saúde (BR). Gabinete do Ministro. Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União. 2013 maio 21 [cited 2021 Jan 31];96(150 Seção 1):37-40. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=21/05/2013&jornal=1&pagina=37&totalArquivos=176
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Os enfermeiros possuem papel fundamental nessa prática, denominada de contrarreferência. Entretanto, essa tramitação foi prejudicada, pois os serviços que habitualmente eram acionados para dar continuidade ao cuidado tiveram seus funcionamentos restritos e/ou suspensos.

Como vai ser esse retorno para casa, como vai-se retornar? E se precisar conversar com a assistente social, com o posto de saúde, com a escola, como a gente vai fazer? [...] precisaríamos entrar em contato com a rede básica, com a família ampliada, com a escola que está fechada, com o posto de saúde. (E3)

Eu vejo que o cuidado foi muito prejudicado, porque essa criança, quando sai do hospital, geralmente já é referenciada para seu CRAS, para alguma escola especial ou alguma escola que tenha esse cuidado, e a pandemia interferiu muito nessa questão dos contatos, dificultou muito a comunicação entre o hospital e a unidade de saúde, porque os programas tiveram que ser reestruturados. (E4)

Diante disso, os enfermeiros relataram que o contato com a rede no território sofreu alterações devido à reestruturação dos serviços em razão da pandemia, o que impactou no seguimento do cuidado quando a criança e família retornam ao domicílio, acarretando prolongamento no período de hospitalização ou maior probabilidade de reinternações futuras.

A restrição de profissionais em alguns serviços de base territorial, a fim de evitar a contaminação pela COVID-19, foi um dos motivos para que a contrarreferência não funcionasse de maneira esperada, devido à diminuição dos atendimentos. Assim, a alta demanda pelas instituições de saúde, que já era uma realidade latente, foi ainda mais reprimida pela pandemia, uma vez que, para aderir aos protocolos de segurança e isolamento social, se fez necessário mantê-los fechados.

Já, nos Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), os profissionais revezavam-se em escala de plantão, realizando atendimentos agendados1414. Knihs NS, Sens S, Silva AM, Wachholz LF, Paim SMS, Magalhães ALP. Care transition for liver transplanted patients during the COVID-19 pandemic. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200191. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0191
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, o que dificultou o fluxo de comunicação entre o hospital e esses serviços de saúde.

Esse fluxo de comunicação precisa estar alinhado no pós-alta hospitalar, no qual o paciente é contra-referenciados para o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da área de abrangência do seu território, que dará seguimento ao caso1414. Knihs NS, Sens S, Silva AM, Wachholz LF, Paim SMS, Magalhães ALP. Care transition for liver transplanted patients during the COVID-19 pandemic. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200191. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0191
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. Dessa forma, a criança que teve a estabilização do seu quadro e alta hospitalar deve retornar ao domicílio e manter acompanhamento nos dispositivos territoriais da RAPS.

Dessa maneira, a referência e contrarreferência são métodos eficazes de seguimento do fluxo do usuário no sistema de saúde para a continuidade do cuidado. No momento em que esses métodos não funcionam adequadamente, isso pode gerar problemas, pois o paciente fica sem um direcionamento, o que impede o acompanhamento de sua condição de saúde de forma integral e longitudinal.

Limitações do estudo

É importante ressaltar que o presente estudo apresenta algumas limitações, como a escolha de uma determinada unidade de internação pediátrica de apenas um hospital, pois pode ser que, em outras unidades semelhantes, o cuidado tenha tido diferentes implicações causadas pela pandemia. Além disso, considerando o cuidado na atenção hospitalar, é relevante a inclusão dos demais profissionais da equipe multidisciplinar, e outros integrantes, tais como crianças e suas famílias, para uma compreensão ainda mais aprofundada sobre as repercussões da pandemia no cuidado em saúde mental. Sendo assim, sugerem-se novos estudos que promovam as perspectivas desses grupos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ponderando o momento vivenciado no mundo durante a coleta de dadosdesta pesquisa, este estudo oportunizouanalisar as percepções dos enfermeiros sobre as repercussões no cuidado à criança com transtorno mental em uma unidade de internação pediátrica em meio à pandemia da COVID-19.

As implicações no cuidado ocasionadas nesse contexto sanitário foram relacionadas à restrição do uso da recreação, à limitação das visitas dos familiares e à necessidade do distanciamento social com vistas a reduzir a possibilidade de contágio, tanto através de brinquedos, quanto através de pessoas. O uso obrigatório de EPIs, na visão dos profissionais, também causou um distanciamento em decorrência da barreira física, além de afastar algumas crianças devido ao medo causado. Ademais, a repercussão da pandemia na contrarreferenciado cuidado ocasionou uma dificuldade de comunicação entre os serviços que compõem a rede de saúde mental, gerando uma insegurança no momento da alta hospitalar.

No local estudado houve discussão e reflexão sobre o assunto, uma vez que a pesquisa ofertou espaço para o tema, por vezes, pouco debatido. Os resultados apresentados têm potencial para proporcionar aos gestores das instituições ferramentas para a articulação e implementação de novas práticas, possibilitando o atendimento das demandas dos cuidados em saúde mental à criança com transtornos mentais, principalmente, em unidades não especializadas em psiquiatria. Faz-se importante que a criança internada seja reconhecida em sua integralidade, respeitando sua autonomia dentro das premissas da atenção psicossocial.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

João Lucas Campos de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2022
  • Aceito
    23 Jan 2023
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